1 INTERAÇÃO PELO RÁDIO: MONÓLOGO OU CONVERSAÇÃO? Por: Antonio Carlos Xavier – Universidade Federal de Pernambuco1 Há interação entre comunicador e ouvinte mediados por emissora de rádio ? Que tipo específico de interação ocorre entre esses dois interactantes? Monólogo? Conversação? Este artigo busca apontar as marcas características do tipo de interação predominante na relação comunicativa que envolve comunicador e ouvinte através do rádio, ponto de partida para compreender esta interação e desvelar-lhe os mecanismos que fazem o sucesso deste veículo entre as massas há quase oitenta anos. Os pressupostos teóricos para a definição de interação derivam das premissas de Mikhail Bakhtin, segundo a qual todo ato comunicativo é essencialmente dialógico, bem como da concepção de interação postulada por Teun van Dijk. A - Perspectiva Vandjkiana de Interação e Análise da Conversação Van Dijk, em A Ciência do Texto (1989), discute questões que envolvem o conceito de interação. Parte preliminarmente da Filosofia Analítica que começara a introduzir nos estudos da linguagem a teoria da ação. Segundo J. Austin, autor desta teoria, as ações verbais representam um determinado tipo de evento, o qual, por sua vez, remete a uma "modificação". Para exemplificar como esse processo acontece, van Dijk conjectura que a queda de um copo no chão é um tipo de acontecimento por ter ocorrido uma modificação no estado de 'copo sobre a mesa para copo no chão'. Assim, ao fazermos algo, por regra geral, produzimos uma modificação em nosso corpo. A maioria dessas ações são 1 Este artigo faz parte da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPE, cujo título original é Conversa ao Pé do Rádio: um estudo da interação comunicador-ouvinte. Portanto, os exemplos aqui presentes pertencem ao corpus analisado o qual foi constituído da gravação do Programa Show do Paulo Lopes, veiculado pela Rádio Globo AM de São Paulo, que no momento - fevereiro de 1994, ocupava o primeiro lugar de audiência, segundo o IBOPE. 2 conscientes e controladas pelo sujeito da ação, que tem geralmente objetivo e finalidade definidos, quando executa um fazer. Todavia, van Dijk ressalta que não é apenas a ação que caracteriza o comportamento humano, mas, sobretudo, a ação social, a interação. Essa, segundo ele, "se define como uma série de ações em que várias pessoas se vêem implicadas alternativa e simultaneamente como agentes"(p.89). Acrescenta ainda que a sucessão de ações na interação sujeita-se tanto a regras convencionais, quanto a exigências sociais, as quais também são impostas aos interactantes. O lingüista holandês declara que o traço característico fundamental da interação é o fato de várias pessoas, juntas ou separadas, simultânea ou consecutivamente, executarem uma seqüência de ações. Destaca ainda que o requisito mais importante para a existência da interação é a conectividade das ações, isto é, todas elas devem estar relacionadas entre si e seqüencialmente coerentes. Nestes termos, postulo que a comunicação pelo rádio é, de fato, um evento verbal interativo - que denominarei doravante Interação Radiofônica (IR). Comunicador e audiência executam entre si, cada um dentro do seu espaço, ações consecutivas, relacionadas e seqüencialmente coerentes, ainda que não simultaneamente. O comunicador, "no ar", as realiza levando em consideração a compreensão e aceitação tácita da audiência dos enunciados que produz. Há, permeando o dizer do comunicador, todo um fazer lingüístico que privilegia determinados elementos da oralidade, âncoras do seu discurso, tais como as várias repetições, a alta freqüência dos marcadores conversacionais e as marcas caracterizadoras da busca pelo envolvimento do ouvinte no evento, as quais conjuntamente vão construindo a já intitulada Interação Radiofônica. As estruturas sintáticas, bem como os recursos lexicais, semânticos, pragmáticos e prosódicos são também explicitamente recorrentes na enunciação do comunicador de 3 rádio. Adicionem-se a isso os temas abordados em programas radiofônicos geralmente de grande interesse da audiência por relacionarem-se às suas atividades cotidianas. A tipologia de interação esboçada por van Dijk estabelece dois tipos específicos de relação interpessoal, a partir do nível de participação dos interactantes no evento: a) Interação Unilateral - só um dos interactantes toma parte ativa nas ações, sendo o agente único. Por exemplo, uma conferência é uma forma de interação oral unilateral. b) Interação Bilateral - há o envolvimento de mais de um agente em uma série ordenada de ações. Os interactantes podem executar uma ou mais ações conjuntamente, como, por exemplo, carregar um piano, ou separadamente, como se cumprimentarem na rua. A unidade mínima do primeiro tipo de interação é, por definição, a ação de uma pessoa que se dirige a outra, enquanto que a unidade mínima da interação bilateral é um par ordenado de ações realizadas por duas pessoas. Na Interação Radiofônica, há a sobressalência de um dos interactantes sobre o outro. Refiro-me ao maior volume de ações verbais realizadas pelo comunicador em relação ao quantitativo das mesmas realizadas pela audiência em geral. Isso ocorre em função das condições de recepção da audiência que não dispõe de um aparelhamento técnico que lhe viabilize o retorno responsivo fônico imediato. Se por um lado, as ações verbais do comunicador predominam sobre as do ouvinte, por outro, não se pode ignorar a substancial participação da audiência nesse evento, afinal ela é a razão maior de todo o aparato eletrônico-interacional que se põe em funcionamento. Além disso, o ouvinte não é mero recipiente de ações lingüísticas do comunicador, absolutamente inerte e alheio ao jogo de linguagem e ao arcabouço ideológico a ele subjacente. Na verdade, é a audiência que, de forma indireta, "comanda" esta relação interacional, já que com apenas um simples movimento pode desligar o aparelho receptor, interrompendo, dessa forma, o evento comunicativo em andamento. 4 O sucesso desta relação comunicador-audiência depende também de como se dá o processo de negociação entre as partes e de quais são os recursos (lingüísticos, interacionais e tópicos) utilizados pelo o comunicador na "barganha" com o ouvinte. A negociação na interação pelo rádio, embora mais lenta que na conversação espontânea, é essencial por trabalhar com mais suposições de reações verbais da audiência que com suas verbalizações concretas. A tipologia vandijkiana, tal como foi apresentada, permite-me classificar a Interação Radiofônica como uma interação estruturalmente unilateral, em razão do maior número de verbalizações produzidas por um dos interactantes, o comunicador, e pela falta de simultaneidade de resposta fônica da audiência. Para van Dijk, uma interação eficaz precisa cumprir requisitos cognitivos e sociais, ou seja, é necessário que todos os interactantes tenham ou suponham que tenham uma intenção comum cognitiva e social ao interagirem. Só haverá comunicação com sentido, de acordo com o autor, quando um sujeito B toma consciência de que a ação do sujeito A lhe foi dirigida, e assim agir coerentemente. Na IR, tanto o comunicador quanto o ouvinte parecem estar predispostos a “unificar” suas intenções. O primeiro, quando fala, visa a satisfazer os desejos e expectativas do segundo, para, em última análise, conquistá-lo. As verbalizações do comunicador assemelham-se ao jogo de sedução, para o qual as "ciladas" lingüísticas e as redes da estrutura interacional são cuidadosamente articuladas com o propósito de "aprisionar" a audiência, fazê-la refém de seus atos de fala. van Dijk assinala (p.244) que as ações que formam uma unidade de interação vêm determinadas por certas limitações espácio-temporais, que são, em parte, inerentes às ações condicionalmente vinculadas. Geralmente não se considera interativa uma resposta a um cumprimento feito um ano antes. 5 No rádio, embora comunicador e audiência estejam distantes fisicamente um do outro, ambos vivem a mesma identidade temporal. Isto permite que o ouvinte se entregue ao exercício de imaginação e abstração durante o resgate das intenções inscritas no posto e no pressuposto dos enunciados que margeiam o verbal do comunicador. Nesse momento, o ouvinte pode experimentar uma mudança cognitiva e social. O autor (p.252-253) faz uma descrição sistemática das diferentes formas de interação, tomando por base a conversação espontânea. A fim de verificar a sua aplicabilidade empírica, sujeitá-la-ei à IR. Antes porém, farei uma breve exposição dos tipos e dos critérios de classificação de um evento como interativo: 1 - conversação cotidiana; 8 - disputa; 2 - conversação formal e semi-formal; 9 - debate, fórum; 3 - consulta, interrogatório; 10 - audiência; 4 - exame; 11 - troca de cartas (pedido/resposta); 5 - entrevista; 12 - preenchimento de formulário; entre 6 - aula , seminário, conferência; outros; 7 - assembléia, congresso; A descrição acima foi definida a partir dos seguintes critérios que deveriam constar em cada uma dessas manifestação verbais: 1 - a seqüência dos atos de fala; 4 - o grau de normatização; 2 - as categorias dos interactantes e seus 5 - o objetivo social da interação; possíveis contribuintes; 6 - as convenções sociais (regras, 3 - a situação social (se privada, pública normas e usos) ou institucional); Há nos programas de rádio de formato eclético-popular uma tendência à aglutinar vários dos tipos de interação apontados pelo van Dijk, (debate, consulta sentimental, carta, entrevista) o que faz da Interação Radiofônica uma forma híbrida de comunicação verbal. 6 Quanto aos critérios vandijkianos de classificação dos diversos formatos de eventos interacionais, verifica-se que o comunicador, mesmo não estando em situação de conversação face a face com a audiência, realiza o critério número 1 - a seqüência dos atos de fala que lhe convém dentro do seu discurso. Executa-os talvez até com maior fluência e desembaraço exatamente por não estar diante dos olhos do ouvinte. Exemplos: Ex. 01: 1.L 2. Ex. 02: 1.L 2. 3. antes de tomá qualquer decisão / converse com o seu coração \ quem vai ganhá / Nelson Gonçalves / (5) ou ganha José augusto / (5) você decide \ você liga pra globo / pro Paulo Lopes e decide \ dois cinco dois / meia quato oito quato / e dois cinco dois / meia nove meia cinco \ Observe que em todos os enunciados destacados o comunicador utiliza um ato de fala ilocucionário, para o qual o dizer realizar um fazer. Ao dirigir a palavra à audiência, o comunicador não apenas lhe informa algo, mas efetivamente a ordena a tomar uma atitude: converse, decide, liga. Tais enunciados trazem, necessariamente, elementos suprassegmentais inerentes 2 à fala, gerando uma relação de maior proximidade com o ouvinte, e tornando o evento altamente envolvente e personalizado tal como ocorre na conversação face a face. No que se refere ao critério 2 - categoria dos interactantes e seus possíveis contribuintes, o comunicador busca integrar a audiência à estrutura do evento, estabelecendo com ele uma relação de parceria, uma co-prudução na IR. Há clara disposição da audiência de apropriar-se do turno e pronunciar-se através dele, demonstrada quando telefona, escreve ou vai até ao estúdio da emissora para garantir a sua efetiva participação. O próprio comunicador instiga, provoca e leva o ouvinte a replicar, quando simula uma conversação, mesmo conhecendo as limitações do veículo, conforme se verifica nos exemplos abaixo: 2 David Crystal em seu Dicionário de Lingüística e Fonética (1988:249) define suprassegmental como efeito vocal que se estende por mais de um SEGMENTO de som de um ENUNCIADO como PITCH, ACENTO E JUNTURA. 7 Ex. 03 1.L 2. 3. Ex. 04: 1.L 2. 3. 4. 5. alô alô minha amiga / como vai / tudo bem / dormiu bem / passou bem / tá calor é / NOSSA \ que CA-LOR hein / como tá quente// cê vê \ essa hora da manhã já tá quente / [...] amigos da rádio globo / DROga é uma desgraça \ a droga é um caminho sem VOLta \ é uma estrada que só tem uma mão / que só leva ao abismo \ mas Paulo Lopes cê tá falando isso por quê / (3) [...] Concomitantemente aos enunciados dirigidos ao ouvinte, o comunicador apresenta o que seria uma provável "réplica" da audiência para seus enunciados. O falante único os utiliza como um contribuição responsiva real do seu interlocutor. No exemplo 03, observa-se que a série de perguntas comuns em aberturas conversacionais são seguidas por micro-pausas, as quais seriam preenchidas com breves respostas da audiência. Há toda uma reconstrução de uma típica situação conversacional instrumentalizada pela montagem de um “mise en cene” prosódico. Por outro lado, tais perguntas são antes retóricas: passou bem / tá calor é /, pois precisam ser respondidas pelo interlocutor, buscam conseguir a sua adesão tão importante à manutenção da interação. O comunicador supõe uma provável indagação do ouvinte - mas Paulo / você está falando isso por quê /. Ele imagina uma provável intervenção da audiência, fundindo-a com o seu próprio turno. Dessa forma, a IR incorpora partes de Conversação. O critério número 3 - a situação social em que ocorre a Interação Radiofônica é essencialmente pública. Ondas de radiofreqüência são lançadas à atmosfera e viajam sem endereço específico e ao mesmo tempo bastante especificado: os aparelhos receptores de rádio de potenciais ouvintes, cujo raio de alcance esteja dentro das fronteiras limítrofes dos tais ondas eletromagnéticas. No universo heterogêneo de ouvintes não há restrição às variáveis sexo, cor, raça, religião, ideologia, estrato social, nível cultural. Embora cada programa de rádio trace o seu formato artístico tendo em vista um certo perfil de ouvinte. 8 No que tange ao critério de número 4 - grau de normatização postulado por van Dijk para descrever eventos interacionais, diria que a IR estrutura-se, tomando como parâmetro as atividades cotidianas realizadas pela audiência. Os produtores de programas populares pressupõem que a audiência goste de quadros que contemplem a sua realidade de vida como: religião, prestação de serviços, curiosidade de pessoas famosas, música, conselhos sentimentais, um pouco de política, entre outros. Quanto ao critério 5 - objetivo social da interação, a IR apresenta pelo menos duas funções explícitas nos dias atuais:: entreter e informar. O rádio nasceu no Brasil em 1922 com o objetivo inicial de “levar a cada canto um pouco de educação, ensino e alegria” (Ortriwano 1985:14). Com a chega da publicidade, ele transfigurou-se: “O que era 'erudito', 'educativo', 'cultural' transforma-se em 'popular', voltado ao lazer e à diversão“(p.15). A grande maioria da audiência parece se afastar de tudo que lhe exige cálculos inferenciais ou concentração em demasia. Ela prefere ouvir amenidades a notícias, ouvir música a acompanhar debates educativos ou entrevistas com especialistas. A segunda função social do rádio, informar, vem a reboque, quase que somente por consistir em imperativo constitucional imposto às emissoras concessionárias do serviço de radiodifusão no Brasil. É bem verdade que já há rádios voltadas só para jornalismo, o que não deixa de ser uma opção de segmentação necessária e muito lucrativa. O critério 6 da classificação vandijkiana trata das Convenções. Na interação pelo rádio, a consciência do limite de participação de cada um dos interactantes dentro desse processo comunicativo e a focalização do tópico comum a eles é fundamental. Tanto radialista quanto audiência aceitam tacitamente as fronteiras de suas ações lingüísticas. Ambos manifestam conhecer principalmente os princípios de quantidade e relevância conversacional postulados por H. Grice 3, quando interagem. 3 Grice (1975, apud. Dascal 1882), em artigo intitulado “Lógica e Conversação”, formula o que chamou de Princípio Cooperativo, o qual defende que os participantes devem fazer a sua contribuição conversacional tal como for requerida pelo intercâmbio conversacional em que estejam engajados. Este princípio se subdivide em quatro máximas, que são: Quantidade (faça a sua contribuição tão informativa quanto 9 Além de utilizarem com competência estes dois princípios cooperativos de Grice, os interactantes da IR também fazem uso apropriado de quatro das cinco características da conversação apresentadas pelos etnometodólogos Sakcs, Schegloff e Jefferson (1974). Segundo os estudiosos da Análise da Conversação, para um evento comunicativo ser considerado conversação propriamente dita, ele deve conter: 1 - Participação de pelo menos dois interactantes; 2 - A interação centrada no mesmo foco de atenção; 3 - Ações com identidade temporal; 4 - Presença de ações coordenadas entre os interactantes; 5 - Ocorrência de pelo menos uma troca de turno; Observemos se estas características estão presentes na IR. Quanto à participação de pelo menos dois interactantes na interação, a IR tem o comunicador e o ouvinte diretamente envolvidos no evento. Ex. 05: 1.L alô alô minha amiga / como vai / tudo bem / dormiu bem / 2. passou bem / tá calor é / NOSSA \ que CA - LOR hein / como tá quente// cê vê \ 3. essa hora da manhã / já tá quente / [...] No exemplo acima, os termos indicadores de endereçamento, minha amiga, representam a ratificação da audiência feminina para a qual dirigirá seus atos de linguagem. Paradoxalmente, esta é uma estratégia de endereçamento globalizadora e ao mesmo tempo especificadora, pois toda e qualquer ouvinte do sexo feminino poderá sentir-se endereçada e, imediatamente, envolvida na interação pelo comunicador por considerá-la sua amiga, além de criar uma atmosfera de intimidade própria de uma relação a dois amigos velhos conhecidos. Na Interação Radiofônica, os interactantes parecem compartilhar um mesmo foco de atenção, ou seja, cumprem o requisito 2) estão em interação centrada, convergindo, necessária aos propósitos da interação), Relevância (faça a sua contribuição relacionada ao tópico da interação), Qualidade (seja verdadeiro), Modo (seja claro). 10 ambos, para um mesmo tópico. Isso se evidencia quando dos telefonemas, cartas e visitas pessoais à emissora motivados por um apelo feito pelo comunicador. Os institutos de opinião aferidores de índices de audiência ratificam este fato. Embora haja variação de espaço entre os interactantes da Interação Radiofônica, ela possui a terceira característica de um evento conversacional que é a ocorrência de ações com identidade temporal. O comunicador fala de dentro de um estúdio, cujo som da voz é ouvido por milhares de potenciais ouvintes, em muitos lugares, simultaneamente. Sabe-se que na interação pelo rádio os interactantes não se relacionam face a face e a possibilidade de resposta fônica imediata é mínima, todavia a identidade temporal tem sido fundamental para concretização deste evento comunicativo. O programa se dá em tempo real. A Interação radiofônica também apresenta a quarta propriedade, presença de ações coordenadas entre os interactantes. O comunicador verbaliza suas intenções pressupondo que serão tacitamente aceitas pela audiência. Ele coloca o tópico a ser “discutido” apostando que interessará ao seu interlocutor. O ouvinte não questiona o tópico exposto, apenas o aceita. Logo, não há qualquer entrave para a ocorrência da "progressão" tópica. Ex. 06: 1.L 2. 3. 4. 5.O 6.L 7.O qué que você acha / telefone pra cá / dê a sua opinião / pode de ligá / [...] a:: Rosana da Vila Formosa / tá no telefone / qué dá sua opinião \ bom dia / bom dia \ e aí Rosana a sua opinião / olha / eu acho que ela não deve lutá com isso \ [...] A audiência demonstra total engajamento ao evento, uma vez que as linhas telefônicas do programa à disposição do público permanecem superlotadas de ouvintes desejosos por participar efetivamente da interação. Para que haja a efetiva participação do ouvinte, é necessário que ele fale sobre o tópico proposto e o que disser contribua de alguma forma para a sua progressão. Isso lhe exige um grande esforço de coordenação de suas verbalizações, a fim de torná-las relevantes para a inter-relação como um todo. Por motivos óbvios, na Interação Radiofônica não há a troca de turno, fenômeno comum na conversação face a face. Só ocorre a mudança de turno conversacional quando o 11 comunicador interage pelo telefone com o ouvinte ou quando este vai ao estúdio da emissora. Esta impossibilidade da troca de turno, é a única característica da conversação ausente na Interação Radiofônica. Embora a Interação Radiofônica seja uma forma híbrida e amalgamática de comunicação verbal, há mais semelhanças desta com a conversação que com qualquer outro tipo interacional. B - O Dialogismo Bakhtiniano Mikhail Bakhtin, considerado um dos semiólogos mais importantes da cultura européia, contribui profundamente para os estudos da linguagem ao postular a Teoria do Dialogismo. Nela, ele afirma que a comunicação só existe na reciprocidade do diálogo, transcendendo à simples transmissão de mensagem. Interpretou o ato de comunicar como um processo pelo qual o emissor estabelece com o receptor uma relação de alteridade e troca de papéis. A noção dialógica que, conforme o autor, perpassa todo discurso está diretamente vinculada a duas categorias lingüísticas obrigatórias na construção do diálogo, as quais são o eu e o tu que se identificam, se reconhecem e se alternam nas funções de falante e ouvinte. Em Estética da Criação Verbal (1992:290), Bakhtin declara que o ouvinte, ao receber e compreender uma significação lingüística, adota uma postura responsiva ativa: concorda, discorda, completa, enfim, está planejando constantemente uma possível resposta aos enunciados produzidos pelo falante. Este, por sua vez, busca obter do ouvinte uma compreensão responsiva ativa a qual pode ocorrer tanto através de uma resposta fônica subseqüente a um ato fônico (como uma tomada de turno, por exemplo) quanto por meio de ato ou execução de uma ordem ou pedido. 12 Nesta perspectiva bakhtiniana de comunicação, a Interação Radiofônica, estruturalmente unilateral, ilustra perfeitamente essa possibilidade de definição inequívoca de um tipo de interação com traços monológicos, mas que é verdadeiramente dialógica. Ela contém no seu cerne o âmbito da compreensão responsiva ativa, pois a audiência, na impossibilidade estrutural de dar uma resposta fônica aos enunciados do comunicador, demonstra possuir compreensão responsiva de ação retardada. Isto se explicita quando o ouvinte responde ao comunicador por meio de comportamentos objetivos como telefonemas, cartas e visitas pessoais ao local de produção do discurso radiofônico. O falante sempre espera do ouvinte, uma resposta, uma objeção, uma adesão ou uma complementação ao dito. Muitas vezes: "o próprio locutor como tal já é um respondente"(1992:291), pressupondo, além da existência do sistema lingüístico que utiliza, a existência dos enunciados anteriores derivados de si mesmo ou de outros com os quais mantém alguma relação, ora fundamentando-se neles, ora polemizando com eles. Afirma, então, que: "por mais monológico que seja um enunciado (uma obra científica ou filosófica, por exemplo), por mais que se concentre no seu objeto, ele não pode deixar de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema, ainda que esse caráter de resposta não receba uma expressão externa bem perceptível" (1992:317). Argumenta dizendo que o nosso pensamento, nas mais diversas áreas do conhecimento humano como artes, ciências e filosofia, por exemplo, nasce e forma-se "em interação e luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento" (1992:317). As frágeis fronteiras dos enunciados, além de apontar a possibilidade de alternância de sujeitos falantes, infiltram e difundem o discurso do outro/tu, instaurando essa interrelação dialógica, transmitida em aspectos diversos como, por exemplo, irônico, 13 simpático, indignado, indagativo, reticente, entre outros, através dos recursos lingüísticos e paralingüísticos ou suprassegmentais. Para ele, o fato do enunciado dirigir-se a um outro/tu já se constitui um forte indício de busca por uma ressonância responsiva ativa, o que confere o atributo dialógico à enunciação. Complementa Bakhtin, afirmando que nas interações cotidianas, orais ou escritas, geralmente um dos protagonista desempenha dois papéis diversificados: o papel de falante, quando num tempo presente identificado como já-aqui realiza um enunciado que está sempre relacionado a outros: respondendo-o, comentando-o, acrescentando-o, corrigindo-o; e o papel de ouvinte pressuposto, cuja resposta ou compreensão responsiva se dá num tempo por-vir. Isto porque o falante, quando se precavém de ou presume uma possível resposta do interlocutor, assume temporariamente o papel de ouvinte. A Interação Radiofônica apresenta-se, assim, como uma das modalidades interacionais adequadas para o falante, o comunicador, desempenhar essa dupla função de falante e ouvinte simultaneamente, pois não há respostas ou turnos da audiência ad hoc num tempo já-aqui, mas há certamente uma compreensão responsiva ativa dela ou, na maioria das vezes, compreensão responsiva de ação retardada. O exemplo a seguir evidencia esse dialogismo bakhtiniano que permeia o dizer formalmente monológico do comunicador de rádio. Ex. 07: 1.L pomada MINÂNCORA / ei::ta pomada boa ein / 2. ah Paulo Lopes / pomada minâncora até hoje é boa / até hoje \ 3. OITENta anos / ainda não inventaram nada melhó \ Embora essa seqüência seja produzida inteiramente por um único falante, as fronteiras dos enunciados estão claramente demarcadas pelas curvas entoacionais ascendentes e descendentes que as contornam, sinalizando espaços discursivos diferenciados. Em outras palavras, os padrões de entoação propiciam a projeção da presumida intervenção indagativa do ouvinte no conjunto enunciativo do falante. Neste ponto, o dialogismo se manifesta em toda a sua plenitude, quando da ocorrência do fenômeno do turno intra- 14 turno, isto é, um forjado turno inteiro da audiência inserido no mesmo turno do comunicador: ah Paulo Lopes / pomada Minâncora até hoje é boa /. Isto visa a garantir toda a condição necessária para que tal intervenção seja identificada enquanto enunciado do outro/tu, não coincidente com o do eu que detém, no momento, o poder da palavra. A suposta pergunta do ouvinte, na linha 2, opera também como índice indicativo da presença do outro/tu nesse diálogo virtual. No exemplo 08 a seguir, a marca de dialogismo está na presença do pronome pessoal "a gente" próprio da linguagem coloquial observável nas linhas 5, 6, 8, 9, 18. Ele seria equivalente ao "nós", que tem valor inclusivo, e no caso do exemplo, também funciona estabelecendo uma “identificação” com fins persuasivos entre comunicador e audiência. Também chamam-me atenção as pausas longas, acima de três segundos. Elas operam não só como estratégia de planejamento verbal, mas também como espaço supostamente concedido para a intervenção do outro/tu, ou seja, a pista “falsa” para o ouvinte tomar o turno no que seria o "lugar relevante para transição", atitude sobremodo improvável em face às condições de produção e recepção do evento interacional. Ex. 08: 1.L 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. antes de tomá qualqué decisão / converse com seu coração \ pergunte pro seu coração / se você deve fazê aquilo ou não \ ouça a sua INTUIÇÃO \ (3) na verdade eu falo isso sabe por quê / por que muitas vezes faz a gente po::r simplesmente pela razão \ sabe / a gente fala assim / ah:: a razão diz que eu devo fazê isso \ eu fiz as contas eu acho que eu devo fazê \ e o coração / (3) a gente tem que consultá o coração da gente \ por que quando a gente faz alguma coisa que no fundo a gente não queria / sabe / aí a gente sofre depois \ uma mulhé por exemplo que casa só por dinheiro / a vida dela vira um inferno \ (3) é verda::de \ C - Considerações Finais À luz das teorias de van Dijk e Bakhtin, o evento comunicativo mediado pelas ondas de radiofreqüência se configura como mais um típico caso de interação verbal, aqui denominado Interação Radiofônica. Contrariando as expectativas para este formato de 15 comunicação, o qual estaria mais próximo de uma palestra ou conferência, em função da unilateralidade das ações verbais e das condições de recepção das verbalizações, constatou-se que a IR apresenta muitos traços comuns à Interação Conversacional. Além do caráter dialógico que permeia o dizer formalmente monológico do comunicador, evidenciado pela própria natureza da linguagem e enfatizado pelas simulações de turnos do ouvinte e de pistas ou “deixas” indicadoras de entrega de fala no suposto lugar relevante para transição, a interação pelo rádio utiliza-se de quase todas as características da conversação, faltando-lhe apenas a tomada de turno pela audiência. Esta, porém, não deixa de acontecer na IR, seja por reações verbais (telefonemas, cartas) ou comportamentais (contribuição para campanhas de solidariedade, por exemplo), ainda que com retardo temporal. A incessante busca pelos traços de similaridade entre Interação Radiofônica e Conversação feita por comunicadores de programas de perfil eclético talvez seja a explicação para a permanência do rádio na preferência popular em meio a tantas outras mídias eletrônicas mais modernas e sofisticadas. A informalidade do evento dada a semelhança com a conversação e a possibilidade, ainda que virtual, de co-construir o discurso radiofônico envolvem o ouvinte com o comunicador, efetivando-o como copartícipe da Interação Radiofônica. D - BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, M & V. N. Volochinov. (1990). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec. __________ (1992). “Os Gêneros do Discurso”. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Fontes (pp.227-326). DASCAL, Marcelo. (1892). “Relevância Conversacional”. In: DASCAL, M. (org.) Fundamentos Metodológicos da Lingüística, Vol. IV: Pragmática. Campinas, UNICAMP, (pp.105-131). ORTRIWANO, G. S. (1985). A Informação no Rádio. São Paulo, Sumus. 16 SCHEGLOFF, E. JEFFERSON, G & SACKS, H. (1974). “A Simplest Systematics for the Organization fo Turn-Taking for Conversation. In: Language, Vol. 50, (pp.696-735).