A indústria automobilística: vantagens e conseqüências
Carlos Lessa
Nos meses iniciais de 2008, os executivos do complexo metal-mecânico no
Brasil, devem estar estourando bolhas de champanha a cada mês. Já no ano anterior
se havia vivido uma prosperidade na indústria, com vendas crescentes. Associada à
expansão do crédito às famílias, mediante amplificação do número de prestações hoje é possível comprar um veículo sem entrada e em mais de 70 prestações -, a
indústria automobilística certamente festeja ter crescido mais de 30% em vendas, só
nos primeiros quatro meses deste ano.
Como é sabido, foi o motor a explosão interna, movido por derivados de
petróleo, a chave da industrialização do Século XX. A linha de montagem de veículos
automotores está no centro da Segunda Revolução Industrial e mudou, radicalmente,
o paradigma da industrialização. No início dos anos 50, com o Plano Rodoviário
Nacional, com o monopólio do petróleo e a constituição da Petrobras, o Brasil cria o
patamar que permite a JK promover o salto metal-mecânico. Desde então, surtos de
prosperidade e de desânimo na cadeia automobilística estão no coração da atividade
macroeconômica brasileira. Somente a construção civil tem o mesmo sentido de
produzir ciclos econômicos de expansão e declínio. A atividade metal-mecânica tem
uma complexa cadeia produtiva, de alto nível tecnológico, grande escala de produção
e produz o objeto central do desejo do consumidor moderno. O computador não
deslocou a paixão pelo desfrute de um carro zero quilômetro.
As vantagens macroeconômicas para a economia brasileira do surto de
prosperidade da indústria metal-mecânica no último biênio podem ser, assim,
repertoriadas: geração de empregos qualificados e com carteira assinada, melhoria de
renda contratual dos diretamente empregados pela indústria - naturalmente se elevou
o poder de negociação dos sindicatos metalúrgicos -, aumento de encomendas para
toda indústria produtora de componentes e matérias-primas utilizados na cadeia
produtiva dos veículos, aumento dos lucros do comércio especializado, uma nova
componente de lucros financeiros no sistema bancário - o brasileiro compra a prazo
pelo tamanho da prestação e não pelos juros embutidos, sendo o devedor ideal -,
ampliação das receitas fiscais federais, estaduais e municipais, multiplicação de
anúncios e estímulos à criação publicitária, e assim por diante. É virtuosa a
combinação de uma persistente política de elevação do salário mínimo real e apoio
assistencial do Bolsa Família com a explosão do crédito às famílias, pela aquisição de
veículos e outros bens duráveis de consumo, do ponto de vista da atividade
econômica baseada no mercado interno.
As pessoas ficam extremamente felizes quando adquirem seu primeiro
automóvel, mesmo de segunda mão, ou trocam o carro por um novo modelo. É
voluptuosa a relação de retirar o veículo "zero" da vitrine da agência, tanto que os
adquirentes enfrentam uma grande perda patrimonial já ao colocá-lo na calçada. Por
outro lado, o governo brasileiro se felicita pelo êxito de sua política econômica em
"produzir" uma taxa de crescimento econômico de 5% ao ano.
A população brasileira é urbanizada; mais de 80% da nossa gente vivem na
rede urbana, sendo que 50% de nosso povo são metropolitanos. Não estão
disponíveis dados recentes do tempo gasto com deslocamento residência-trabalhoresidência. Para o Rio de Janeiro, os dados disponíveis da década de 90 indicavam,
em média, duas horas e dez minutos. Hoje, certamente é mais demorado. Não falarei
de engarrafamentos com centenas de quilômetros em São Paulo, porém lembrarei
que, cada vez mais, o trânsito piora e somente o arquimilionário ou o superexecutivo
podem dispor de helicóptero para uma qualidade de vida razoável. É infernal se
deslocar nas grandes cidades brasileiras. As pessoas não associam este inferno
crescente, aonde o tempo de vida útil se esvai no deslocamento, em câmara lenta, à
expansão explosiva da população metal-mecânica.
Cada brasileiro adicional necessita de uma vaga na escola, de uma ampliação
dos serviços públicos de saúde, segurança, etc. Uma ampliação residencial terá que
ser provida. Assim sendo, as prioridades humanas impõem crescimento tanto da
capacidade urbana de dar sustentação a um padrão de vida como da agropecuária,
em produzir mais alimentos. Se imaginarmos que cada automóvel saído da linha de
montagem e adquirido internamente por um brasileiro é um nascimento metalmecânico, sendo cada veículo sucateado ou destruído um falecimento, teríamos um
grande crescimento da população metal-mecânica. Cada veículo automotor adicional,
para circular, necessita de novos 38 m2 de pistas de rolamento e áreas de
estacionamento. Se a malha urbana, que suporta a população metal-mecânica, não
crescer continuamente, o trânsito se degrada, e com ele a existência daqueles que se
realizam na solidão do transporte personalizado e individual propiciado pela posse de
um veículo.
Cabe registrar que obras públicas, enquanto estão sendo executadas,
comprometem a circulação de veículos. Assim sendo, a aceleração do crescimento da
população de veículos joga o poder público a "enxugar gelo": faz a nova obra para
melhorar o trânsito e deteriora o tráfego enquanto constrói. Se não fizer obras, é
considerado inoperante e displicente em uma dimensão cada vez mais essencial para
a qualidade da vida urbana. Uma variante deste dilema é a manutenção da rede viária
e rodoviária. Com a intensificação do tráfego, crescem explosivamente os acidentes
que, no Brasil de hoje, matam o equivalente a todos os americanos falecidos nos dez
anos da Guerra do Vietnã e levam 300 mil brasileiros para os leitos dos hospitais,
anualmente.
Os recursos públicos são sempre escassos. Cabe à sociedade decidir pela
população humana ou mecânica - este é um dilema na metrópole. No país como um
todo, o governo federal opta por pagar juros e dar baixa importância à infra-estrutura
urbana. O PAC é silencioso em relação aos metrôs e malhas viárias urbanas.
Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de Economia da
UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) (endereço eletrônico: [email protected]). Escreve mensalmente, às
quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 7 maio de
2008.
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É infernal se deslocar nas grandes cidades brasileiras. As pessoas