«O Primeiro Aniversário da Vitória da Praia num Poema de Francisco Joaquim Bingre» in Nova Atlântida, vol. XLV, Angra do Heroísmo, 2000, pp. 293-314. O PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DA VITÓRIA DA PRAIA NUM POEMA DE FRANCISCO JOAQUIM BINGRE (1763-1856) - Vanda Anastácio Francisco Joaquim Bingre que viveu entre os anos 1763 e 1856 é, hoje, um poeta esquecido. A sua obra permanece em grande parte inédita e as raríssimas referências que lhe fazem estudiosos e historiadores da Literatura evidenciam, sobretudo, a falta de informação disponível sobre este autor e a dificuldade de acesso aos seus textos1. Contudo, a obra poética de Bingre reveste-se de um interesse fundamental para todos aqueles que se debruçam sobre a Cultura e Literatura Portuguesas dos finais do século XVIII e inícios do século XIX não só pela sua qualidade estética inegável, como pelo facto de ter comentado nas suas composições todos os grandes acontecimentos da actualidade do tempo em que viveu. Quem foi Francisco Joaquim Bingre? A sua vida, que durou 93 anos, não é menos interessante do que a sua obra. Nascido em 9 de Julho de 1763, Francisco Joaquim nasceu do casamento de Maria Ana Clara Hibinger, - austríaca e sobrinha de uma dama da rainha Maria Ana de Áustria (esposa de D. João V) - com Manuel Fernandes, natural de Canelas, povoação do concelho de Estarreja. Segundo conta Calisto Luís de Abreu, o amigo do poeta que redigiu a sua primeira biografia2, D. Maria Ana Clara teria vindo de Viena de Áustria para Lisboa na sequência da morte dos pais e sido recolhida por sua tia, de apelido Balestri. Na opinião de Inocêncio Francisco da Silva, a mãe do poeta, tendo ficado desamparada pelo falecimento de seus tios durante o terramoto de 1755, ter-se-ia então casado com o pai deste, antigo criado dos Balestri3. 1 Vejam-se, por exemplo, as palavras de Inocêncio, no artigo sobre Bingre que publicou no Archivo Pittoresco, vol. 4, 1861, p. 152: «Se chegar a realisar-se a edição d’estas obras, já tentada por vezes, e que (segundo nos constou há tres ou quatro annos) estava a final em caminho de vir à luz a expensas do sr. Sebastião de Carvalho e Lima, patricio do poeta, e zeloso da sua gloria, então poderão ser cabalmente apreciadas a vastidão do talento, e ainda mais a maravilhosa fecundidade do Cysne do Vouga.» Opinião semelhante é a de Álvaro Fernandes quando afirma no trabalho «O Cisne do Vouga» incluído no Arquivo do Distrito de Aveiro, nº 19, 1939, p. 306: «Emquanto a obra [de Bingre] jazer inédita em grande parte, não poderá escrever-se o juízo crítico definitivo sobre o valor literário do Cisne do Vouga.» A mesma dificuldade de avaliação da obra do poeta na ausência do acesso aos seus textos se depreende da curta referência de Jacinto do Prado Coelho, «O poeta Bingre» Ao Contrário de Penélope, Amadora, Bertrand, 1976, pp. 97-100. Ainda em 1997, no seu artigo sobre o poema incluído no Dicionário do Romantismo Literário em Portugal, Lisboa, Caminho, p. 48, Pedro da Silveira afirmou: «Bingre, que se deu bem com os vates românticos e a par deles aparece na imprensa literária que dominavam, não poderá avaliar-se, enquanto neo-clássico ou já pré-romântico, permanecendo inéditos os quatro tomos do seu Estro, ou sem deles estar publicada uma criteriosa antologia.» 2 Trata-se do texto «Noticia Biographica de Francisco Joaquim Bingre» publicado no jornal Campeão do Vouga nº 451, em 10 de Setembro de 1856, pp. 3-4. 3 «Francisco Joaquim Bingre (Francélio Vouguense)» Archivo Pittoresco, vol IV, 1861, Lisboa, typ. Castro e Irmão, 1861, pp. 129-151. © Vanda Anastacio 1 Não se sabe ao certo quando terá a família regressado a Lisboa onde, ainda segundo informação de Inocêncio, D. Maria Ana Clara, valendo-se dos seus conhecimentos no meio cortesão, se teria dedicado ao negócio de fazendas ditas de paquete (ou seja, de contrabando). Apesar de muito pouco se conhecer acerca da infância e da adolescência do poeta, parece ser certo que terá feito os seus estudos de latim e de humanidades com Manuel Pereira da Costa. Os primeiros biógrafos do poeta - Calisto L. de Abreu e Inocêncio Francisco da Silva- contam ainda que Francisco Joaquim se teria chegado a inscrever e a frequentar a Aula do Comércio (criada por estatuto de 19 de Abril de 1759) não chegando a terminar o curso. Bingre inicia a sua vida literária em Lisboa, por volta de 1790, data em que funda, juntamente com Belchior Curvo Semedo, Domingos Caldas Barbosa e Ferraz de Campos, a «Academia de Belas Letras», apadrinhada pelo então Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique. Usando o nome arcádico de Francélio Vouguense, Francisco Joaquim frequentou nessa época não só círculos próximos da corte, onde a Academia teve aceitação ao ponto de os seus sócios terem realizado, no Palácio da Ajuda, uma sessão pública por ocasião do nascimento da infanta Maria Teresa, primeira filha de D. João VI mas, também, diversos salões, como os da Marquesa de Alorna ou o da Viscondessa de Balsemão, brilhando graças aos seus dotes de improvisador e à aura de poeta arcádico. Entre 1793 e 1802 são dadas à estampa diversas composições suas. São também desta época alguns dramas alegóricos e de assunto religioso de que se conservam autógrafos, como A Graça Triunfante da Culpa (1800), Drama alegórico à paz de 1801 (c. 1801), O Mérito Exaltado e a Inveja Abatida (1802), Drama Pastoril (c.1801-1802), Drama aos anos de Sua Majestade (1802), etc. Afastado dos círculos literários desde 1801, data em que dificuldades financeiras o levaram a aceitar o cargo de escrivão dos órfãos em Ílhavo e, no ano seguinte, o de escrivão do tribunal de Mira, Bingre dedicará os muitos anos de vida que lhe restam à escrita e à leitura. Talvez para exorcisar a distância geográfica e psicológica que o separava de Lisboa e das relações da sua juventude, manteve-se extremamente atento aos sucessos históricos do seu tempo, comentando-os amplamente nas suas obras. Assim, é possível seguir através dos seus textos, não só a evolução da carreira de Napoleão Bonaparte e o seu impacto nas monarquias europeias do tempo, como a atribulada situação política portuguesa: a regência de D. João VI, a sua fuga para o © Vanda Anastacio 2 Brasil e consequente subalternização dos interesses metropolitanos, a aclamação do soberano, a proclamação do Reino Unido de Portugal e Brasil, o regresso e a morte do monarca, a Revolução de 1820, as guerras entre liberais e absolutistas, a passagem de D. Miguel pelo poder, a Batalha da Praia, o restabelecimento do Regime Liberal, o governo de Costa Cabral, a subida ao trono de D. Maria II, etc. Na sua visão dos factos, Bingre é um comentador implicado, vibrando com aquilo que se passa à sua volta, denunciando a corrupção, a tirania e a violência, mas acreditando entusiástica e esperançadamente em cada uma das figuras que vão acedendo ao poder, para depois voltar a cair na desilusão: congratula-se com a Revolução liberal de 1820, mas desgosta-se com o clima de violência e divisão que lhe sucedeu, concede as suas simpatias a D. Miguel antes deste assumir o poder, para se desiludir depois e denunciar o autoritarismo e a corrupção do seu governo; é um entusiástico adepto de Costa Cabral, mas acaba por perder a confiança nas suas medidas e por festejar a sua queda em 1846... Os seus comentários, circulando em pasquins manuscritos4, publicados em opúsculos e em folhetos volantes5, ter-lhe-ão granjeado inimizades que contribuíram para que fosse, em 1824 e em 1828, demitido dos cargos que ocupava. Nomeado em 1834, depois do restabelecimento do regime liberal e da subida ao trono de D. Maria II, uma vez mais, para o tribunal de Mira, vê-se de novo destituído do cargo devido à reorganização do sistema judicial que suprimiu aquela instituição em 1836. Então com setenta e três anos, nunca mais conseguiu colocar-se nem ter meios de subsistência. No entanto, em 1838 entra em contacto com José Maria da Costa e Silva, a propósito de uma ode que aquele publicara no Ramalhete6. Da troca de correspondência que se lhe seguiu, resultou o envio de colaboração poética de Francisco Joaquim Bingre para essa revista e, nos anos que se seguem, talvez por intermédio de Costa e Silva, são dados à estampa diversos poemas de Bingre em outras publicações periódicas como O Panorama, A Revista Universal Lisbonense, Miscelânea Poética, O Campeão do Vouga, O Periódico dos Pobres do Porto, etc. 4 É caso do Búzio Mirense, periódico mensal manuscrito que Bingre pôs a circular na zona de Mira durante o ano de 1821, e de que existe uma cópia na Biblioteca Geral Da Universidade de Coimbra, por exemplo. 5 De que citamos a título exemplificativo a Proclamação do Douro aos portuenses (1820), O Cidadão Liberal rindo com a sua sanfona dos corcundas portugueses (1822), Ode à briosa revolução do Minho 1846. 6 Trata-se da ode «Ao tragico acontecimento occorrido em a Praia das Maçãas», publicada no volume I, série I, Anno I, Novembro de 1837 a Dezembro de 1838, pp. 319-320 © Vanda Anastacio 3 Em 1849, a situação do poeta, na velhice e sem recursos, move uma comissão de benfeitores (Luís Cipriano Coelho de Magalhães, Calisto Luís de Abreu, Filipe Luís Bernardo Júnior, José Maria dos Santos Pacheco e José Ferreira da Cunha e Sousa) a promover uma recolha de fundos para o socorrer. No ano seguinte, sob a orientação de José Maria da Costa e Silva e de Calisto Luís de Abreu publica-se uma antologia dos seus poemas, intitulada O Moribundo Cisne do Vouga7 e, dois anos depois, em 1852, realiza-se no Teatro de S. João do Porto um espectáculo de homenagem, destinado a recolher fundos em seu benefício8. Nos textos daqueles que nesta época se referem ao poeta é evocada uma imagem que depois será repetida por biógrafos e por comentadores: a de que Francisco Joaquim Bingre é vítima de uma pátria que foi sempre ingrata aos poetas, negando-lhes a protecção que deveriam merecer-lhe. No folheto que circulou para a recolha de fundos de 1849, acima referida, convidam-se «os verdadeiros cidadãos, a remirem a Patria do opprobio, que a opprime, de deixar perecer à mingua os grandes genios, que a illustram» e Marcelino Matos, no texto sobre Bingre que publica nas páginas da Esmeralda, afirma que «o fado se compraz em perseguir de preferencia os espiritos escolhidos nesta boa terra de Portugal»9. Esta onda de solidariedade de que o poeta foi alvo no fim da vida é a face visível de um prestígio literário de que este nunca deixou de gozar graças, também, à circulação manuscrita dos seus versos. Estes continuaram a suscitar interesse depois da sua morte como se depreende do facto de, nas páginas da revista A Grinalda, que reúne a produção poética de nomes já ligados ao romantismo, se terem publicado, entre os anos 1860-1864, numerosos poemas seus. O facto de termos em preparação a edição crítica da poesia de Francisco Joaquim Bingre permitiu-nos ler os seus textos que se encontram, na sua maioria, inéditos. Entre eles figura um interessante Elogio Dramático redigido pelo poeta em 1830, por ocasião do primeiro aniversário da batalha da Praia. Trata-se de uma obra que 7 Francisco Joaquim Bingre, O Moribundo Cysne do Vouga Collecção d’ algumas peças mais importantes extrahida das Obras Poeticas do Snr. Francisco Joaquim Bingre nos ultimos momentos de sua vida, Porto, Typographia Commercial, 1850. 8 Os poemas lidos nesta sessão foram publicados em O Benefício do Poeta Bingre ou collecção das poesias recitadas no Theatro de S. João, em a noite de 14 de Dezembro de 1852, Porto, Typ. De F. P. D’ Azevedo, 1852. © Vanda Anastacio 4 não chegou a ser impressa, mas que foi preservada por dois manuscritos: numa cópia apógrafa de escritos do poeta realizada por um seu amigo, Calisto Luís de Abreu, que se guarda no Museu Marítimo de Ílhavo, que designamos por E10 e por uma outra cópia, realizada por Manuel Luís de Abreu, possivelmente a partir de E, que se encontra na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a que chamamos C.11 É deste breve poema dramático, bem como de algumas das questões que suscita, que gostaríamos de tratar em seguida. Debrucemo-nos um pouco sobre o assunto aqui tratado. Um olhar atento pela literatura produzida sobre a Batalha da Praia permite facilmente verificar a fecundidade e a longevidade do tema. Com efeito, o número de composições - narrativas, líricas, épicas e dramáticas - que tratam da ocorrência é considerável12, não se limitando apenas a escritos produzidos no calor do momento, mas incluindo obras que foram sendo dadas a lume durante décadas, até datas recentes13. Henrique de Campos Ferreira de Lima, o Director do Arquivo Histórico Militar que prefaciou o catálogo da exposição comemorativa do 1º Centenário do recontro, observou que, do ponto de vista militar, a batalha ocorrida a 11 de Agosto de 1829 na vila da Praia, «não constituiu, pròpriamente em si, um notável feito de armas» sublinhando que a importância desta para o triunfo da causa liberal, terá consistido, acima de tudo, naquilo a que chama o seu «efeito moral» e no seu «alcance político».14 Adquiriu, sem dúvida, um valor simbólico, que se reflectiu na intensidade e na frequência com que foi eleita como tema de elaboração literária. Em 1830, quando Bingre redige o presente Elogio Dramático, Ao Aniversário da Vitória Alcançada na Vila da Praia da Ilha Terceira Pelas Tropas Constitucionais está a trabalhar sobre um assunto querido a grande parte dos seus contemporâneos, a prosseguir na senda de um número considerável de autores que o haviam tratado antes 9 Marcelino Matos, «O Poeta Bingre» Esmeralda, nº 27, 1852, p. 215. O manuscrito de Ílhavo, em quatro volumes, tem o título de O Estro de Bingre collecção de Poesias Selectas de Francisco Joaquim Bingre.ultimo socio Arcade Francelio Vouguense. Coordenada por C. L. Abreu e publicada sob os auspícios do Illmo Sr. Sebastião José de Carvalho e Lima. 11 Trata-se do códice intitulado: Poesias de Francisco Joaquim Bingre com a cota: Ms. 1330 12 Veja-se o apêndice I aqui junto. 13 Veja-se a título de exemplo, o conto de Vitorino Nemésio «Os Malhados» in O Paço do Milhafre. Contos,Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924, a cuja acção a batalha serve de pano de fundo. 14 Henrique de Campos Ferreira de Lima, «Breves Palavras» in Catálogo da Exposição Bibliográfica e Iconográfica comemorativa da Batalha da Vila da Praia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 6. 10 © Vanda Anastacio 5 dele (dos quais o mais célebre é, sem dúvida, Almeida Garrett15) e que continuará a inspirar escritores durante muito tempo ainda. A forma escolhida por Francisco Joaquim Bingre, o Elogio Dramático, foi extremamente popular entre os finais do século XVIII e meados do século XIX. Luís Francisco Rebello, na sua História do Teatro Romântico16, conta que: A sua voga foi, de facto, imensa, alcançando, entre 1790 e 1825, todos os teatros da capital (os Teatros da Rua dos Condes, do Salitre e de S. Carlos, inaugurados respectivamente em 1765, 1782 e 1793), do Porto (Teatro de S. João, inaugurado em 1798) e até do Brasil. Entre os textos do género que se conhecem, figuram alguns da autoria de sócios ou de poetas próximos da Academia de Belas Letras, (como Nuno Álvares Pereira Pato Moniz, Manuel Barbosa do Bocage e o próprio Bingre). Talvez por esse facto, na sua História do Theatro em Portugal, João Salgado tenha chegado a considerar que a prática do género corresponderia a intenções programáticas dos sócios daquela associação literária.17 No entanto, muitos foram os autores que continuaram a praticar estas composições muito depois da extinção da dita Academia. Durante os anos de lutas entre a facção liberal e a absolutista foram escritas numerosas composições deste tipo, frequentemente carregadas de alusões políticas18 tendo chegado a ser, por vezes, representadas em teatros particulares, para audiências mais restritas19, celebrando quer os êxitos dos adeptos de D. Miguel, quer os dos partidários do Regime Liberal. Para entender a importância e a vitalidade destes poemas dramáticos é necessário ter presente a maneira como o teatro era encarado nesta época, tanto pelo poder político, como pelos dramaturgos. Com efeito, o teatro constituiu uma preocupação central de uns e de outros que o viram como um dos aspectos mais 15 O texto de Garrett, escrito em data próxima dos acontecimentos, foi reimpresso pelo poeta por três vezes, a última das quais nas Folhas Caídas. Veja-se a este respeito o apêdice I deste trabalho. 16 Luís Francisco Rebello, História do Teatro Romântico (1838-1869), Lisboa, ICALP, Biblioteca Breve, 1980, pp. 23-24. 17 Diz, com efeito, na p. 43: «[...] talvez pelo conhecimento do pouco resultado que tinha alcançado a antiga tragédia arcadiana, a Nova Arcádia tentou a restauração do theatro pelo Elogio Dramático.» in História do Theatro em Portugal, Lisboa, David Corazzi editor, 1885. 18 Terá sido, segundo cremos, a abundância de referências políticas nestas peças que terá levado Teófilo Braga a imaginar, na Historia do Theatro Portuguez (Século XIX). Vol IV, o contexto em que teriam sido escritas, como segue, p. 5: «Durante o periodo em que decorreram a invasão franceza em Portugal, a fuga da côrte para o Rio de Janeiro, a dictadura militar de Lord Beresford, a revolução de 1820 que inaugurou o governo constitucional, e a reacção absolutista por occasião do regresso de Dom Miguel, o theatro portuguez apresentou uma vida extraordinaria; era no teatro que se faziam todas as manifestações partidarias [...] as allusões politicas enlouqueciam as plateias que estavam attentas a escutar os Elogios dramaticos, à espera em que podessem proromper em estrondosos applausos» 19 Poderíamos citar a título de exemplo o Elogio Dramático anónimo, intitulado A Liberdade. Elogio Dramático para se representar no theatro particular situado na rua direita de S. Paulo por ∗∗∗, Lisboa, na Imprensa Régia, Anno 1820. © Vanda Anastacio 6 importantes da renovação da literatura nacional. Tanto Verney, como os árcades Correia Garção, Manuel de Figueiredo e o Padre Francisco José Freire como, ainda, os sócios da Academia de Belas Letras, apesar das diferenças individuais que os distinguem, têm em comum uma mesma visão da arte dramática: é útil, tem uma função pedagógica e pode ser usada como um meio de moralização dos costumes, de educação e de coesão social. Garção afirma, por exemplo, que o teatro «é capaz de concorrer para a boa polícia de uma república»20 porque é capaz de «edificar, deleitando»21. E o mesmo ponto de vista exprime Francisco José Freire quando considera a tragédia como um instrumento capaz de «refrear a soberba dos príncipes, dos poderosos e dos ricos» e de «emendar» os costumes do «vulgo» e do «povo»22. Estas afirmações, que constituem, no fundo, um eco de ideias que circulavam na Europa das Luzes23, são comuns a grande parte dos teóricos europeus que se pronunciaram sobre a matéria nos séculos XVIII e inícios do século XIX e explicam até certo ponto, segundo cremos, o facto de o teatro ter sido, em Portugal, alvo da atenção constante dos responsáveis pelo poder24 que, durante mais de meio século, se preocuparam em legislar sobre os teatros e as representações que neles tinham lugar. 20 Correia Garção, «Dissertação segunda» in Obras Completas, Lisboa, Sá da Costa, 2ª edição, 1982, p. 118 21 Correia Garção, diz, com efeito, também na «Dissertação Segunda»: « Aos teatros concorre todo o mundo com a ideia de que só vai divertir-se e recrear-se. E se o poeta tem a feliz arte de obrigar a que os espectadores se transportem com o movimento das paixões, e neste transporte lhes inspira uma máxima de boa Ética, o triunfo é infalível.» Op. cit., p. 128. 22 Diz Francisco José Freire: «Pelas tragédias se refreia a soberba dos príncipes, dos poderosos e dos ricos, expondo-lhes os casos atrozes de outros da sua condição, sujeitos às desgraças e castigados pelo braço da justiça divina e humana. O vulgo e também o povo igualmente aprende das comédias a emendar seus costumes e a contentar-se com seu próprio estado, vendo nos defeitos alheios, bem representados e que movem a riso, a correcção dos seus próprios» in Arte Poética, pp.22-23, citado por António José Saraiva, «Introdução» ás Obras Completas de Correia Garção, Op. cit., pp. XLV-XLVI 23 Encontramo-las, por exemplo, no célebre prefácio de Schiller à peça Die Räuber que teve um papel tão determinante no debate acerca do drama. Eis algumas das suas palavras: «descobriu-se que o método dramático por si mesmo, sem ter que ver com a personificação teatral, tinha uma grande vantagem sobre todos os outros géneros de poesia, seja comovente, seja instrutiva. Como de alguma maneira coloca sob os nossos olhos o mundo que ela nos pinta, e que nos representa as paixões e os mais secretos movimentos do coração pelos próprios discursos das personagens, é necessariamente superior em poder de efeito sobre a poesia descritiva, da mesma maneira que a contemplação viva o é sobre o conhecimento histórico.» in Monique Borie, Martine de Rougemond e Jacques Scherer, Estética Teatral. Textos de Platão a Brecht, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1996, p. 229-230. 24 O que se verifica pela legislação aprovada pelo Marquês de Pombal em 1771, pela legislação de Pina Manique, em 1780, obrigando as peças de teatro a aprovação pela Mesa Censória antes de serem representadas, bem como pela proibição, da mesma data, (só revogada em 1799) sancionada por D. Maria I, de as mulheres representarem ou frequentarem os bastidores dos teatros e ainda, pela lei de 1812, que decretava que se representassem, além das peças portuguesas, peças italianas musicadas, para entretenimento dos dos oficiais ingleses estacionados em Portugal, etc. © Vanda Anastacio 7 Francisco Joaquim Bingre partilha de ideias semelhantes, como demonstram os numerosos comentários sobre o teatro da sua época que encontramos na sua obra. Estes definem um ideal dramático a que poderíamos chamar clássico, pela insistência na observância das regras do decorum,25 por exemplo, aliada à crença na finalidade educativa do teatro. Bingre afirma, claramente, que o docere deve sobrepor-se ao delectare26 que é no teatro que a «moral civil se ensina» (v. 59) e na cena que a «pura doutrina / Anivela as paixões e os pensamentos, / E os costumes gerais» (vv.61-63) e insiste em que o «intento» do teatro é «Divertir instruindo» (v. 110) 27. Recordamos estes aspectos, porque eles nos ajudam a contextualizar os Elogios Dramáticos, uma vez que se trata de composições que, através do recurso à alegoria, fazem o comentário de episódios reais, apresentando-os de modo a atribuir-lhes um determinado significado. Procurando acima de tudo ter um efeito pedagógico sobre o espectador e conduzir as suas emoções, estas peças transformaram-se muitas vezes numa espécie de interpretação simbólica, mitificada, dos acontecimentos contemporâneos, usada com fins políticos. De natureza circunstancial, os Elogios Dramáticos destinavam-se à celebração de datas e de acontecimentos festivos. Conhecem-se composições comemorando aniversários, nascimentos, bodas, etc., de personalidades ilustres, redigidas por ocasião de aclamações de monarcas e de chefes militares, de batalhas, de revoltas, nos festejos de datas históricas e de outros sucessos bélicos e políticos. Geralmente construídos em forma de diálogo e recorrendo ao verso branco de dez sílabas neoclássico, estes dramas punham em cena personificações de entidades abstractas como o Tempo, a Glória, o Fado, bem como deuses da mitologia greco-latina e heróis nacionais. Entre estes, destacam-se pela frequência com que surgem nos Elogios Dramáticos, Camões, Nuno Álvares Pereira, Afonso Henriques e os monarcas reinantes. Intervêm nestas peças, com frequência, sobretudo entre 1815 e 1836, alegorias da nação e das regiões do império, como o Génio de Portugal, o Génio de Lísia, o Génio Lusitano, Lísia, o Numen Tutelar 25 Como afirma, por exemplo, no soneto intitulado «Aos Dramas do século presente, sem unidade de acção, de tempo e de lugar» cujo primeiro verso é: «O romântico gosto das comédias» 26 Como acontece, por exemplo, na epístola Ao Revdo Sr. Pe Cura da freguesia de Campanhã em resposta à sua carta de 18 de Março de 1842, inserta no Periódico dos Pobres do Porto em o nº 66 vv. 13-21 quando diz: «Da palavra dramática segura / Da representação bem regulada / Moral civil cristã se aprende pura. // Porém, onde se vê hoje observada / Essa lei que ditou Pombal famoso, / Pelo grande José aos lusos dada? // O timbre da comédia é ser jocoso, / E rindo castigar os maus costumes / Com estilo facécio e decoroso.» Citamos a partir do manuscrito conservado no Museu Marítimo de Ílhavo. 27 Referimo-nos aqui ao texto do Elogio recitado em de Aveiro no teatro da Pascoela que citamos a partir do Manuscrito autógrafo que se preserva na Biblioteca Municipal de Aveiro. Estas ideias são, © Vanda Anastacio 8 da América, a América, o Génio Insular, o Douro, etc. os quais contracenam com outras personificações alegóricas, sintomáticas da situação política como a Discórdia, a Intriga, a Concórdia, o Despotismo, etc. Apesar de se limitarem, na generalidade, a um acto único, estas representações faziam amplo recurso à cenografia e à tramóia: às mudanças de cena, frequentemente assinaladas pelo ribombar de trovões, por simulações de relâmpagos e por chuvas flamejantes, correspondem quase sempre mudanças de cenário: grutas, bosques, templos, e praias são os mais frequentes. A representação terminava muitas vezes com uma cena de apoteose final, na qual eram evocadas a personagem ou a ocasião festejada, com vivas, hinos e, por vezes, declamação de poesias alusivas à circunstância. Os Elogios Dramáticos constituíram enormes êxitos de bilheteira durante o período conturbado que mediou entre a fuga da corte de D. João VI para o Brasil e a subida ao trono de D. Maria II funcionaram como veículos de difusão dos pontos de vista dos vários campos em litígio. Todavia, a sua popularidade não se esgotou abruptamente com a subida ao poder de D. Maria II, tendo continuado a ser alvo das atenções do público até meados do século XIX. No entanto, apesar de ter sido praticado por escritores de primeiro plano, como Manuel Maria Barbosa du Bocage e Almeida Garrett, o género foi frequentemente desvalorizado pela crítica posterior, aparentemente insensível à sedução que havia exercido sobre autores e audiências. O primeiro a investir contra os Elogios Dramáticos foi, segundo cremos, Teófilo Braga que, na sua História do Theatro Portuguez considera que só o gosto degenerado de uma população oprimida por um regime monárquico absoluto poderia explicar que acorresse aos teatros para assistir a tais representações.28 Braga considera estes textos «forçados»29, «glaciais», e o resultado da «asfixia» intelectual causada pelo «despotismo de Pombal» e pela «repressão» de D. Maria I.30 Tendo tido ocasião de ler a composição que aqui contudo, reiteradas em todos os textos em que o poeta se pronuncia sobre a natureza e finalidade do teatro. 28 Diz, com efeito, na obra: Historia do Theatro Portuguez (Século XIX). Vol IV: Garrett e os Dramas Românticos, Porto, Imprensa Portugueza Editora, 1871, p.10: «No primeiro quartel do seculo XIX, debatiam-se em Portugal a ideia absolutista e a ideia republicana; a primeira tinha inteira permissão de manifestar-se, e para incutir-se, já que não podia falar à intelligencia nem ao coração, serviu-se dos Elogios dramáticos, com que deslumbrava com personificações extravagantes a plateia burgueza.» 29 Teófilo Braga, Op. cit. vol. IV, p. 74 30 Diz Braga, na Historia do Theatro Portuguez (Século XVIII). Vol. III: A Baixa Comedia e a Opera, Porto, Imprensa Portugueza, 1871, p. 382: «Os theatros portuguezes e os genios dramaticos asphyxiavem-se por falta de liberdade; ao despotismo de Pombal, seguira-se a repressão católica de D. Maria I. Quem escrevia para o theatro só podia inventar Elogios dramáticos e mais nada.» Prova desta visão é a afirmação que faz ainda no vol. IV da mesma obra, p. IX: «Temos até aqui mostrado como o © Vanda Anastacio 9 nos ocupa, na cópia feita por Calisto Luis de Abreu, Teófilo Braga descreve-a como o oposto do verdadeiro teatro, que deveria ser, em sua opinião, uma espécie de fusão entre «sentimento» e «realidade da vida»: Vimos um [elogio dramático] «Ao anniversario da victoria alcançada na Villa da Praia da Ilha Terceira, pelas tropas constitucionaes,em 11 de Agosto de 1829.» A scena consta de um dialogo entre o Genio insular e a Fama. Como o Theatro, que se funda unicamente no sentimento e na realidade da vida, foi desnaturado n’ estas glaciais allegorias!31 Estas palavras de Teófilo Braga encontraram eco noutros críticos que, se não partem da mesma concepção do drama, continuaram, mesmo em datas recentes, a depreciar o género. Luís Francisco Rebello, por exemplo, em 1980, chama aos Elogios Dramáticos «glaciais composições em verso»32 acusando-os de «abastardar» o teatro nacional com o seu «servilismo»33 e parece lamentar, no seu retorno ao tema em 199934, que «nem Bocage nem Garrett» tenham «logrado resistir» à sua composição.35 Já em 1916, Xavier da Cunha chamava a atenção para a forma incompreensível como o género havia sido «desdenhado» pela crítica36 e, de facto, um olhar atento pelos textos deste tipo permite observar não só que se trata de uma estrutura herdeira da tradição teatral portuguesa anterior (a quase inexistência de intriga e a elaboração e a riqueza de cenários e trajos recordam os Momos de quinhentos e as representações dos colégios de jesuítas dos séculos XVII e XVIII) como, até, notar que contém, em embrião, elementos que o teatro theatro portuguez se engrandeceu ou definhou conforme o grau de liberdade politica que o povo gosou em cada seculo.» 31 Teófilo Braga, Op. cit. vol. IV, p. 25 32 Luís Francisco Rebello, O Teatro Romântico (1838-1869), Lisboa, Biblioteca Breve, ICALP, 1980, p. 23: «Ora estas glaciais composições em verso, que o fogo de uma retórica eloquência não chegava para aquecer [...]» 33 Luís Francisco Rebello, Op. cit., p. 27: «Assim a desnacionalização do nosso teatro, abastardado pelo servilismo dos elogios dramáticos, se consumava.» 34 Luís Francisco Rebello, e «O Teatro» D. João VI e o seu tempo, Catálogo da Exposição realizada no Palácio da Ajuda Maio-Julho de 1999, p. 83; o mesmo autor havia voltado ao tema de modo semelhante na obra História do Teatro, Lisboa, INCM, Europália, Portugal, 1991, p. 55. 35 Também Duarte Ivo Cruz se refere aos elogios dramáticos em 1988, considerando que os textos deste tipo «nada nos deixam» de «teatral» na obra O Ciclo do Romantismo (Do Judeu a Camilo), Lisboa, Guimarães, 1988, p. 43. 36 Xavier da Cunha, Os Elogios Dramáticos. Fugitivas divagações em que se intercala um inédito do Visconde de Almeida-Garrett, Lisboa, Typographia Universal, 1916. O autor diz, com efeito, a pp.7-8: «Os «Elogios Dramaticos», que por largo tempo brilharam muito em voga nos palcos dos nossos theatros, acabaram por completamente ficar fóra de moda, a pontode que hoje apenas figuram como recordações historicas de um genero absolutamente esquecido, - genero de que desdenham modernos criticos (não sei se por convencionalismo artificioso), pretendendo mesmo sustentar que só ridiculos poetastros tal genero haviam cultivado...» © Vanda Anastacio 10 romântico irá retomar (como o recurso a figuras históricas, a heróis e a temáticas nacionais, por exemplo). Vejamos, o texto de Francisco Joaquim Bingre: Elogio Dramático [E II,29v] AO ANIVERSÁRIO DA VITÓRIA ALCANÇADA NA VILA DA PRAIA DA ILHA TERCEIRA PELAS TROPAS CONSTITUCIONAIS Em 11 de Agosto de 1829 Diálogo entre o GÉNIO INSULAR e a FAMA Cena Única Vista de praia do mar FAMA Neste dia feliz, sempre risonho, Grave Génio Insular, eu te diviso. O ganhado laurel na marcial praia Que te engrinalda a fronte vitoriosa, Inda verde conservas, tão viçoso? Com que fausto prazer, com que alegria, Eu venho nesta aurora aniversária Da tua excelsa glória visitar-te! 5 GÉNIO INSULAR Vem, deusa centilíngua, pregoeira Das brilhantes acções de heróis sublimes, Vem gozar o prazer deste almo dia, Da lusa redenção feliz ensaio. Deste dia imortal, em que tu viste, Librada sobre as asas luminosas, Homens livres bater servis escravos Do feroz Despotismo sanguinário. Tu, em onze de Agosto memorando, Do ano vinte e nove tão faustoso, Vendo o brio dos nossos combatentes E a corage da Praia em campo aberto Contra as hordas navais da Tirania, As façanhas sem par dos nossos Martes Espalhaste, cantando, em toda a Europa. © Vanda Anastacio 10 15 20 11 FAMA [E II,30r] Sim, eu vi com assombro a tenaz luta Dos defensores teus contra os tiranos Dessa frota invasora; eu vi portentos Dos lusos liberais contigo unidos. Eu os vi arrancar das mãos da sorte Da indecisa vitória a palma invicta. As muralhas da Praia eram seus peitos; Esses peitos de bronze onde quebravam Duras balas de cem canhões batentes. Teu ardor marcial, Génio Insulano, As façanhas sem par de teus alunos Eu cantei às nações com voz de ferro. 25 30 35 GÉNIO INSULAR Sempre, ó deusa veloz, tu foste pronta Em cantar as acções de hercúleos lusos. FAMA Assaz me tem cansado esses guerreiros Com a chusma sem fim de altas vitórias. Quantas vezes eu tenho enrouquecido Proclamando seus feitos portentosos! Seu semideus, herói, seu grande Pedro; Esse rei liberal sem par no Mundo, De todo me esfalfou com seus triunfos. Cantando Napoleão, gradivo Marte, Por férreas tubas cem, rompi noventa. Mas cantando as acções do luso Alcides Por cem áureos clarins, rebentei todos. 40 45 GÉNIO INSULAR Mil que fossem de bronze, estalariam C’ os espantosos brados de seu nome. Paralelo não tem o herói das Gálias C’ o semideus hercúleo lusitano. Aquele fez proezas ambiciosas; Este acções liberais de eterna estima. 50 FAMA Essas mesmas acções de independência, Demitida de si a bem dos povos, © Vanda Anastacio 55 12 Não tem tido na Terra semelhança. Dois ceptros pôr de mão, deixar dois tronos; Desistir de impor leis, fazer-se sócio De seus concidadãos; quebrar-lhe os ferros Da dura escravidão; são assombrosos Feitos heróicos nunca vistos inda, Pela raiva dos reis com pasmo olhados. Pelos eu repetir cansei cem vezes; Pois não podia o Despotismo crê-los. 60 65 GÉNIO Inda os déspotas hoje o Herói praguejam; Mas ele, astro de luz, fulge sem sombras No vasto campo dos planetas vivos. Vamos, Fama, do fausto Aniversário Os festejos gozar açorianos. 70 FAMA Por pouco tempo só, pois inda quero, Transpondo os mares com ligeiros vôos Passar a Portugal e ver as festas, Que neste fausto dia ali celebram Douro, Vouga, Mondego, Tejo, e Sado. 75 GÉNIO Ah! Em chegando lá, quando assomares À cidade fiel da foz do Vouga, Se inda lá existir um velho vate, Um Francélio Vouguense, amigo fido Do talábrico herói, bravo Evaristo, (Cujo sangue fiel aqui vertido A Memória guardou em vaso de oiro) Dize-lhe, que lhe peço cante sempre (Enquanto dedilhar puder a lira) A corage37 do bravo egrégio moço, Que a vida vendeu cara aos invasores Para eu conseguir, da luta, a palma: Que louve bem assim os outros bravos, Denodados mancebos corajosos, Aveirenses campeões, que neste dia Fizeram nesta praia acções ilustres 80 85 90 37 Substituímos a forma que figura em E, «coragem» por «corage», que se encontra em C e nos parece mais consentânea com os hábitos scriptográficos do autor. © Vanda Anastacio 13 Ao bem da liberdade.... FAMA Sim, é justo Que esse pátrio cantor, (bem que já rouco) Não se esqueça jamais de dar louvores A seus fiéis patrícios, valorosos. Adeus, Génio imortal, toma este abraço. 95 (Abraçam-se) Eu parto a publicar os teus louvores. AMBOS Viva Aveiro fiel! Vivam os Açores! VARIANTES: Título 1: Praia da Ilha Terceira, pelas C; 9. Vem deusa Fama, centilíngua C; 14. Coloca o verso entre parêntesis C; 26. eu os vi portentos C; 49. bronze e estalariam C; 85. corage C; 93. bem quasi já rouco C; 95. valorosos C. Trata-se, como vemos, de uma composição de estrutura bastante simples: uma única cena, num cenário único, vagamente evocador do local da batalha (é uma «vista de praia de mar») no verso branco de 10 sílabas posto em voga pelos dramaturgos da Arcádia Lusitana. Também a acção se resume facilmente: a Fama visita o Génio Insular no dia do aniversário da batalha da Praia. Depois de louvar a coragem dos liberais portugueses e as virtudes do seu rei, D. Pedro IV, a Fama despede-se para ir assistir aos festejos que se realizam em Portugal Continental. Nesse momento, o Génio Insular recomenda-lhe que diga da sua parte a Francélio Vouguense, velho poeta da foz do Vouga, que não se esqueça de cantar os jovens heróis de Aveiro que, como Evaristo, morreram no combate pela liberdade. A cena termina com as despedidas de ambas as personagens que dão, em uníssono, vivas a Aveiro e aos Açores. Assistimos, pois, através do recurso à personificação e à alegoria e do uso abundante de efeitos de retórica, a uma idealização da História. O aniversário da batalha passa a ser, na boca da Fama, a «aurora aniversária da excelsa glória» do Génio Insular; o recontro propriamente dito é descrito como o «feliz ensaio» da «lusa redenção»; os © Vanda Anastacio 14 soldados que nele participaram são «alunos do Génio Insulano» que realizaram «façanhas sem par», etc. Obedecendo à concepção iluminista, arcádica, do papel e dos fins do teatro, o desenvolvimento do diálogo segue uma estrutura expositiva, didáctica, informando o espectador sobre a data e a natureza da ocorrência celebrada, ao mesmo tempo que recorda o ocorrido e procura não deixar dúvidas quanto à identidade dos interlocutores. Assim, o tema é mencionado logo nos primeiros versos e a personagem do Génio Insular claramente identificada pelo vocativo na primeira fala da Fama. Quando aquele assume o discurso, usa um processo semelhante, designando claramente a sua interlocutora («Vem deusa centilíngua pregoeira » v. 9). Tal como é característico dos elogios dramáticos, assistimos à hiperbolização do acontecimento de que se fala: o Génio Insular descreve o recontro como uma «brilhante acção» (v. 10) levada a cabo por «heróis sublimes» (v.10). Na pena de Francisco Joaquim, o incidente histórico que a batalha da Praia constituiu adquire valor universal, exemplar: tratou-se da vitória dos «homens livres» (v.15) sobre os «servis escravos / Do feroz Despotismo sanguinário» (vv.15-16) do confronto entre «a coragem da Praia em campo aberto» contra «as hordas navais da Tirania» (vv. 20-21). A data concreta da circunstância celebrada - 11 de Agosto de 1829 - é expressamente referida (vv. 17-18) e a veracidade das façanhas narradas sublinhada pelas frequentes anáforas na fala da Fama, que se apresenta como testemunha presencial dos acontecimentos: «eu vi com assombro» (v. 24); «eu vi portentos» (v. 26); «Eu os vi arrancar» (v. 28). Da descrição da vitória alcançada pelas forças liberais na batalha da Praia, a Fama passa à menção da «chusma sem fim de altas vitórias» alcançadas pelos portugueses, introduzindo um segundo tema: o elogio de D. Pedro IV. Com efeito, a parte central do diálogo entre a Fama e o Génio Insular é ocupada com a caracterização laudatória daquele e a enumeração das suas acções. D. Pedro IV começa, pois, por ser apresentado como um ser excepcional, elevado acima dos mortais: é um «semideus herói» (v. 42) um «Rei liberal sem par no Mundo» (v. 43) para sair, em seguida, vencedor da comparação com o mais célebre estadista do seu tempo: Napoleão. Nas palavras da Fama, D. Pedro é superior a Bonaparte e digno de maior renome, e a diferença entre ambos é apresentada em termos simbólicos e em termos morais, como um contraste entre dois estilos de governo: o que seria, implicitamente o praticado pelo mau governante - que busca apenas o poder e os próprios interesses (aqui encarnado em © Vanda Anastacio 15 Napoleão) - e o do governante exemplar, neste caso personificado em D. Pedro IV, que é capaz de colocar o bem comum acima dos interesses pessoais. Assim, de Bonaparte diz-se que é um «gradivo Marte» (v. 45) que «fez proezas ambiciosas» (v. 53) mas, do soberano português afirma-se que realizou «acções de independência / Demitida de si a bem dos povos» (vv. 55-56). A lista de «acções liberais de eterna estima» mencionada no texto é longa, e contribui para caracterizar D. Pedro como um ser superior, que faz feitos únicos, nunca vistos. No discurso do Elogio Dramático ele surge como um salvador abnegado, movido pelo altruísmo: abandonou o poder por um ideal, «pôs de mão» dois ceptros, deixou dois tronos, desistiu de impôr leis, fez-se «sócio dos seus concidadãos» e quebrou-lhes os «ferros» da «escravidão» (vv. 57-65). No entanto, apesar do lugar central que ocupa no texto, a caracterização elogiosa de D. Pedro IV introduz uma nova mudança de rumo no discurso. Com efeito, num salto do geral para o particular, Francisco Joaquim Bingre inclui-se a si e à sua região no texto desta composição revelando, nas falas finais dos interlocutores, o que parece ter sido a sua intenção predominante ao escrevê-lo: a celebração dos heróis aveirenses mortos na batalha. De facto, quando a Fama revela ao Génio Insular o seu desejo de assistir aos festejos que Portugal Continental realiza nesse dia, este recomenda-lhe que diga da sua parte ao velho vate da foz do Vouga, Francélio Vouguense (o nome arcádico de Bingre), que continue a cantar a memória de Evaristo e dos outros «mancebos corajosos» de Aveiro que morreram na batalha e é assim, juntando o louvor do herói local ao da vitória na batalha da Praia na ilha Terceira, que os interlocutores se despedem com uma exclamação em que as duas regiões são reunidas: «Viva Aveiro, Vivam os Açores!» Como vemos, o recontro da Praia é tratado neste poema de modo relativamente superficial. Mais do que descrever o recontro, os interlocutores preocupam-se em comentar o seu carácter glorioso e o facto de ser digno de Fama. A batalha parece ser afinal, apenas uma introdução aos dois temas fundamentais do texto, que se sucedem pelo que parece ser uma ordem gradativa de importância: o elogio de D. Pedro IV e a homenagem aos soldados aveirenses mortos no recontro. Entre imagens gloriosas e quadros heróicos, o diálogo entre o Génio Insular e a Fama limita-se, praticamente, a uma alternância de vozes que se referem, em termos idênticos, aos mesmos assuntos. O modo como o fazem será melhor entendido, julgamos, recordando alguns pormenores de contexto. © Vanda Anastacio 16 A imagem mitificada de D. Pedro ao ponto de roçar a santidade, por exemplo, é extremamente frequente no discurso da propaganda do partido liberal durante os anos de litígio com os partidários absolutistas38, (os quais, aliás, fazem algo de semelhante ao apresentar D. Miguel como uma nova encarnação do «Encoberto» designando-o por «Desejado»). Conhecem-se, por exemplo, orações contrafeitas (Padre Nosso e Credo39) a ambas as figuras, e panfletos que se referem a um e a outro como seres superiores, mandatados por Deus. Do mesmo modo, o vocabulário usado por Bingre nesta composição é, em grande medida, reflexo da linguagem do discurso político dos finais do século XVIII primeira metade do século XIX, altura em que determinadas palavras ganharam significados próprios, nem sempre coincidentes com aqueles que hoje lhes atribuímos40. Termos como «Tirania», «Despotismo», «Servidão», «Escravidão», «ferros» tornaram-se mesmo, a partir de 1820, verdadeiras palavras-chave do discurso político liberal que as repete até à exaustão41. Na óptica iluminista e, depois, também, liberal, «Tirania» e «Despotismo» são equivalentes, e sinónimos de opressão e de de falta de liberdade. Depois da Revolução de 1820, foram usados tanto para designar o regime anterior, como para referir os partidários de D. Miguel e, para os seguidores de 38 Veja-se, a título exemplificativo do que acabamos de afirmar, um excerto do panfleto intitulado Cópia da Carta queo o Brigadeiro Pizarro dirigio ao Maire desta cidade de Plymouth, e que este mandou imprimir, e affixar pelas Ruas; e foi publica nos Periodicos, Plymouth, High Street, nº 36, 3 de Decembro (sic) de 1828, impresso por R. W. Stevens Impressor, 18, Woolster-Street onde se diz: «Dom Pedro he tão bom Alliado como o erão seus Augustos Avós; a sua virtude, a sua grandeza, que tem enchido o Globo de gloria do seu Nome não podia deixar de excitar a viva simpathia d’hum Povo creado nos santos, e respeitadores principios das liberdades Patrias.» 39 Ernesto do Canto transcreve estas orações no seu Ensaio Bibliographico. Catalogo das obras nacionais e estrangeiras relativas aos successos políticos de Portugal nos annos 1828 a 1834, 2ª edição correcta e augmentada, Ponta Delgada-S. Miguel, 1892: aí se encontram, nas pp. 66-67 um «Padre Nosso» e um «Credo» a D. Miguel e, na p.161 um «Credo Patriótico» a D. Pedro e a pp. 227-228 um «Padre Nosso realista » e a pp. 253-254 um «Responso» a D. Pedro. 40 Veja-se, a título de exemplo da consciência que os contemporâneos têm deste facto, as observações incluídas no Novo Vocabulario filosofico-democratico indispensável para todos os que desejem entender a nova lingua revolucionaria. Escripto em italiano e traduzido em portuguez, Lisboa, Na Impressão Régia, 1831, (de tendência miguelista) onde se pode ler, por exemplo, na p. 8: «Pois esta perniciosa confusão de linguas he a que, d’ algum tempo a esta parte, se há descoberto com surpreza universal em todos os idiomas da Europa! He verdade que as vozes são as mesmas; porem he igualmente certo que muitissimas dellas, e as de mais importancia, não significão já o que antes significavão. He verdade, repito, que são as mesmas vozes; porem tambem he indubitavel que hum sem numero dellas, longe de explicar, o que até aqui hão explicado, não tem outro uso que significar o contrario do que são.» e, na p. 10: «Tem-se tornado por tanto necessario formar, e publicar hum vocabulario da lingua antiga, e da moderna democratica e republicana, não só para impedir que os Povos, enganados pela semelhança das palavras, vivão eternamente deslumbrados; mas para que se entendão os republicanos e para que se destruão os seus embustes.» 41 Veja-se a este respeito o interessantíssimo trabalho de Telmo Verdelho As Palavras e as Ideias na Revolução Liberal de 1820, Coimbra, INIC, 1981. © Vanda Anastacio 17 D. Pedro IV, personificavam todos os males que atingiam o país.42 Também «Escravidão» e «Servidão» se tornaram em lugares-comuns liberais, alusivos do estado dos povos que vivem sujeitos às ideias opostas ao Liberalismo. São frequentes nos textos políticos da época as alusões aos «ferros» que oprimem o povo, e a expressão é usada tanto para designar os que viveram durante durante o regime político anterior à revolução liberal de 1820, como para os que sofreram o jugo absolutista durante o período de governo de D. Miguel. Trata-se, de facto, de uma metáfora da opressão e da repressão, que alterna frequentemente com outras duas: «grilhões» e «cadeias». A presença destes elementos e a sua caracterização no presente Elogio Dramático é, pois, um aspecto a ter em conta, uma vez que corresponde à confluência do discurso alegórico típico do género com o dos partidários do liberalismo. De facto, apesar de ter inicialmente acreditado na possibilidade de D. Miguel poder constituir uma alternativa de governo para Portugal, Francisco Joaquim Bingre cedo se desiludiu com a actuação deste, sobretudo entre finais 1828 e inícios de 182943, tendo abraçado a causa liberal. Marques Gomes conta que entre os que exerciam funções no juízo da comarca de Aveiro «o espirito de liberdade» parecia ser «contagioso», pois que todos, desde os escrivães ao ajudante do cartório, «eram tidos por liberais e disso deram sobejas provas»44. O mesmo deverá ter acontecido nas povoações limítrofes, uma vez que, depois da Revolução de 1828, muitos foram os funcionários destituídos dos seus cargos em toda a região, e Bingre, que exercia funções junto do Tribunal de Mira, não foi excepção. Na região de Aveiro parece ter existido de facto, na época, um grupo extremamente activo de partidários do liberalismo.45 Segundo Marques Gomes, em finais de 1828, foram numerosos os liberais aveirenses que abandonaram o país, pelo Norte, atravessando a Galiza e embarcando para Plymouth, em Inglaterra. Entre os emigrados da zona, incluíam-se vários membros da família Moraes Sarmento (Evaristo 42 Telmo Verdelho chama a atenção na referida obra, por exemplo, para o modo como a palavra Despotismo é empregue no discurso jornalístico do liberalismo, afirmando Op. cit., p. 75: «Os jornais de 1820-23 não se alongam, em geral, a definir ou a analisar o despotismo, preferem lançar sobre ele sistemáticas acusações, vitimá-lo, invocar mesmo as suas funestas consequências para desculpar o regime revolucionário. O despotismo é o soberano e anónimo responsável pelas desgraças da nação.» 43 Pensamos que as duas epístolas autógrafas que se conservam no espólio da família Bingre do Amaral, na qual são dados conselhos de tolerância e de justiça a D. Miguel, terão sido redigidas por Francisco Joaquim Bingre antes de 1828. 44 Marques Gomes, Aveiro, Berço da Liberdade. O Coronel Jeronymo de Moraes Sarmento, Porto, Imprnesa Portugueza, 1900, p. 47. © Vanda Anastacio 18 Luiz, João António, Clemente, Jeronimo, António Joaquim e Bento Augusto)46 que viriam a ser integrados no Batalhão de Voluntários da Rainha, organizado pelo General Stubbs em Novembro de 1828. Este batalhão foi depois enviado para os Açores em Janeiro de 1829 e ficou responsável, na Terceira, pela defesa do distrito da Praia. No seu poema, Francisco Joaquim Bingre refere, precisamente, Evaristo Luiz de Moraes, o sargento dos voluntários que fora a primeira vítima do recontro, atingido com uma bala ainda antes do desembarque, quando desafiava «com uma bandeira os rebeldes».47 Como é característico do Elogio Dramático, as circunstâncias históricas particulares são uma vez mais submetidas a um processo de idealização e a uma hiperbolização que transformam cada evento aludido num feito heróico sublime, de alcance mítico. Este trabalho, que é possibilitado, afinal, pelo recurso abundante a figuras de retórica como a hipérbole, a metáfora, a alegoria, etc, que acrescentam ao sentido literal do discurso uma dimensão significativa que o transcende, permite que um mesmo texto possa ser usado para celebrar mais de um acontecimento de natureza semelhante, modificando, apenas, as referências de pormenor de que falávamos acima. Não é pois, surpreendente que, alguns anos depois de ter composto este Elogio ao Aniversário da Vitória Alcançada na Vila da Praia da Ilha Terceira pelas tropas Constitucionais em 11 de Agosto de 1829, Francisco Joaquim tenha usado o mesmo texto para compor um Elogio em diálogo Ao Aniversário dia 8 de Julho de 183248, (data 45 Veja-se, a este respeito, a obra acima citada de Marques Gomes, Aveiro, Berço da Liberdade. O Coronel Jeronymo de Moraes Sarmento, Porto, Imprensa Portugueza, 1900. 46 A emigração de tantos membros da família levou a represálias por parte dos absolutistas. Veja-se Marques Gomes, op. cit., p. 160: «Na familia Moraes, todos os filhos varões combateram pela liberdade, e as senhoras, essas, a principiar por a srª D. Maria Maxima Miquelina de Moraes Sarmento, a virtuosa mãe de tão esforçados paladinos da mesma causa, que pelo único crime de ser mãe de Evaristo Luis de Moraes, de João Antonio de Moraes, de Clemente de Moraes Sarmento, de Jeronymo de Moraes Sarmento, de Antonio Joaquim de Moraes Sarmento e de Bento Augusto de Moraes Sarmento, foi arrastada ás enxovias das cadeias d’ esta cidade onde esteve presa seis mezes» 47 Veja-se a descrição de José Joaquim d’ Almeida Moura Coutinho, O Ataque da Villa da Praia na Ilha Terceira em 11 de Agosto de 1829, no primeiro dos quadros historicos da liberdade portugueza, e a Memoria Historica do Coronel de Engenheiros Euzebio Candido Cordeiro Pinheiro Furtado sobre a Victoria da Villa da Praia ou a Gloria do Batalhão de Voluntarios da Rainha a Senhora D. Maria Segunda, revindicada (sic) por um Capitão do mesmo Batalhão, Lisboa, Typographia do Director, 1840, p. 30: «Porem tão fortunosos fomos que, apesar do aturado e vivo fogo dos 340 canhões das embarcações inimigas só tivemos, antes de se tentar o desembarque, a lamentar a morte do Sargento do Batalhão de Voluntários Evaristo Luiz de Moraes, cujo sangue leal foi o primeiro a tingir o nosso campo, excitandonos à vingança, e a do capitão de Infanteria nº 10, Manuel Joaquim Simões: aquelle morto com uma balla, expondo-se com o maior arrojo, em cima do parapeito, a desafiar com uma bandeira os rebeldes; [...]». O nome do 2º Sargento do Batalhão de Voluntários Evaristo Luiz de Moraes figura ainda na relação intitulada: «Guarnição da Ilha Terceira. Mapa dos mortos e feridos dos corpos abaixo designados, na acção do dia 11 do corrente» incluída no folheto: Victoria Alcançada sobre a Esquadra de D. Miguel na Ilha Terceira pelo Conde de Villa Flor Capitâo General dos Açores. Em o dia 11 de Agosto de 1829. 48 Veja-se o Apêndice II, deste trabalho. © Vanda Anastacio 19 do desembarque das tropas liberais na praia do Mindelo) substituindo o Génio Insular pelo Génio Portuense, a vila da Praia e a Ilha Terceira pela praia do Mindelo e pela cidade do Porto, eliminando os passos alusivos a Evaristo Luís e a Aveiro e retocando muito ligeiramente alguns versos. Mais do que ilustrar-nos acerca da forma de trabalhar de Bingre, esta «reciclagem» de um Elogio Dramático anterior para servir à celebração de uma outra circunstância constitui uma lição fundamental sobre a natureza e características do género. Ensina-nos, em primeiro lugar, que as personagens do Elogio Dramático são, acima de tudo, vozes (são designadas na época, pelos seus autores, aliás, como «Interlocutores») pelo que o seu discurso pode facilmente ser assumido por qualquer outra entidade de valor alegórico semelhante. Mostra-nos, também, que ao idealizar as circunstâncias celebradas, amplificando-as por meio da hipérbole e embelezando-as através da metáfora, da alegoria e da profusão de imagens grandiosas, o texto dos Elogios acaba por se transformar num discurso simbólico, de alcance mítico, que transcende os pormenores de contexto. Por fim, parece dizer-nos que é nesta sua capacidade de transmutação do real em poesia, que residiu (e talvez resida ainda) a sua capacidade de sedução. BIBLIOGRAFIA: BORIE, Monique, Martine de Rougemond e Jacques Scherer, Estética Teatral. Textos de Platão a Brecht, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1996. BRAGA, Teófilo, Historia do Theatro Portuguez (Século XIX). Vol IV: Garrett e os Dramas Românticos, Porto, Imprensa Portugueza Editora, 1871 CANTO, Ernesto do, Ensaio Bibliographico. Catalogo das obras nacionais e estrangeiras relativas aos successos políticos de Portugal nos annos 1828 a 1834, 2ª edição correcta e augmentada, Ponta Delgada-S. 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GOMES, Marques, Aveiro, berço da liberdade. O coronel Jeronymo de Moraes Sarmento, Porto, Imprensa Portugueza, 1900. LIMA, Henrique de Campos Ferreira de, «Breves Palavras» in Catálogo da Exposição Bibliográfica e Iconográfica comemorativa da Batalha da Vila da Praia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930. MACHADO, Álvaro Manuel «Francisco Joaquim Bingre» Dicionário de Literatura Portuguesa, Lisboa, Presença, 1996, p. 64. MADAHIL, António Gomes da Rocha, Notícia do «Estro de Bingre» (No Segundo Centenário do Poeta), Sep. Do vol XXIX do Arquivo do Distrito de Aveiro, Aveiro, Oficinas gráficas da Coimbra Editora, 1963. NEMÉSIO, Vitorino, A Terceira durante a Regência (1830-1832 ) Coimbra, Imprensa da Universidade,1929. NEMÉSIO, Vitorino, Exilados (1828-1832) História Sentimental e Política do Liberalismo na Emigração, Lisboa, Bertrand s. d. Novo Vocabulario filosofico-democratico indispensável para todos os que desejem entender a nova lingua revolucionaria. Escripto em italiano e traduzido em portuguez, Lisboa, Na Impressão Régia, 1831. PICCHIO, Luciana Stegagno, História do Teatro Português, REBELLO, Luís Francisco, O Teatro Romântico (1838-1869), Lisboa, Biblioteca Breve, ICALP, 1980 SALGADO, João, História do Theatro em Portugal, Lisboa, David Corazzi editor, 1885. SARAIVA, António José (org.) Obras Completas de Correia Garção, Lisboa, Sá da Costa, 2ª edição, 1982. VERDELHO, Telmo Verdelho, As Palavras e as Ideias na Revolução Liberal de 1820, Coimbra, INIC, 1981. APÊNDICE I: Contribuição para um inventário de obras poéticas inspiradas na batalha da Praia ALBUQUERQUE, Luiz da Silva Mousinho de «Ode feita por... ao dia 11 de Agosto de 1829» Archivo dos Açores, vol 6, pp. 116-118 ANONIMO, Lembrança feliz offerecida pelo auctor a sua esposa, Coimbra, Impr. De Trovão e Cia, 1836, pp. 28, 81-83 e 93-102 (inclui um elogio dramático cujos interlocutores são: o Génio da Terceira, o Fado, a Fama e o Dia Onze) BETTENCOURT, Mendo Bem Moniz «À Praia da Vitória 11 d’ Agosto de 1829» poesia publ. Em 1895 em Angra © Vanda Anastacio 21 Collecção de sonetos offerecidos à Illustrissima e Excellentissima Senhora Duquesa da Terceira em memória do 7º anniversario da Batalha da Villa da Praia ganhada pelo sempre immortal Duque da Terceira no Dia eternamente Fausto 11 de Agosto de 1829, Lisboa, Typ. José Baptista Morando, 1836. COUTINHO, J. J. de Moura, «Elogio» in Ao Illmo e Exmo Snr Conde de Villa Flor Governador e Capitão General dos Açores. Elogio por J. J. d’ A. Moura Coutinho Capitão do Batalhão de Volluntarios (sic) da Rainha a Senhora D. Maria Segunda. Recitado na noite de 12 de Outubro de 1829 no Plácio do Governo em Angra, Ponta Delgada, na Typ. Do Patriota, Rua do Pao do Conde, pp. 11-13. FURTADO, Eusébio Candido Cordeiro Pinheiro, Ao decimo terceiro anniversario da memoravel batalha da Villa da Praia: Ode ao illmo e exmo snr. Antonio José de Sousa Manuel e Menezes, Duque da Terceira, etc... Lisboa, Typ. Do Gratis, s. d. GARRETT, Visconde de Almeida «A Lealdade, ou a vitória da Terceira: canção» in Chaveco Liberal, nº 3, 23 de Setembro de 1829, pp. 63-72 GARRETT, Visconde de Almeida A Lealdade em Triunfo, ou a vitória da Terceira: canção ao General Conde de Villaflor e ao valoroso batalhão de voluntários da Senhora D. Maria II, Londres, 1828 [saíu anónima] GARRETT, Visconde de Almeida «A vitória da Praia» Flores sem Fruto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1845, pp. 107-128 GENTIL, António Luiz O dia 11 d’Agosto de 1829 ou a Victoria da Villa da Praia. Poema heroico offerecido ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Duque da Terceira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844 (Poema heróico em quatro cantos: I A Discórdia; II A Defesa; III O Ataque ea Vitória; IV O Templo do Heroísmo) LIMA, Gervásio, O Veterano da Liberdade (um acto em verso expressamente escrito para ser representado na Praia da Vitória, na festa centenária da batalha de 11 d’ Agosto de 1829). Angra do Heroísmo, Typ. Andrade, 1929. NEMÉSIO, Vitorino «Os Malhados» Paço do Milhafre. Contos. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924. PASSOS, Manuel da Silva «Ode pindárica ao Conde de Villa Flor sobre a vitória da Terceira» Chaveco Liberal, nº 5, pp. 135-139 reimpr. In Correio das Damas, nº 21, 1 de Novembro de 1836, pp. 166-168 PIETRA, Carlos Augusto Schiappa A Terceira e a Liberdade, poema histórico- político, Angra do Heroísmo, Impr. Do Governo Civil, 1881 PIMENTEL, Alberto, «Hymno patriotico (Poesia de Almeno Damoeta) composto por um martyr da liberdade portugueza, e por elle dedicado aos bravos defensores da Ilha Terceira» in A Musa das Revoluções. Memoria sobre a poesia popular portuguesa nos acontecimentos politicos, Lisboa, Viúva Bertrand & Cia, 1885, pp. 164-169 ROCHA (LOUREIRO), João Bernardo da Ode pindárica ao nobre feito dos leaes portuguezes nas praias da Ilha Terceira aos 11 de Agosto de 1829, Londres, Impr. Por L. Thompson, 1829 ROCHA, João Bernardo da Ode pindárica ao nobre feito dos leaes portuguezes nas praias da Ilha Terceira aos 11 de Agosto de 1829, Porto, Typ. Da Viúva Álvares Ribeiro & Filho, 1833. ROCHA, João Bernardo da Amostras poéticas dedicadas ao illmo e exmo Senhor Francisco Antonio de Campos Barão de Villa Nova de Fozcôa, Ministro de Estado honorario, etc., etc., Lisboa, Imprensa dos Cobellos, 1852, pp. 23-33. SILVA, Francisco Xavier da «Saudação à Heroica ilha Terceira» in Contos e Poesias, Porto, typ Arthur José de Sousa, p. 156 SOARES, Pedro Inácio Ribeiro Ode em memória do 5º anniversario da gloriosa batalha da villa da Praia, no grande dia 11 de Agosto de 1829 © Vanda Anastacio 22 SORIANO, Simão José da Luz, Poesias diversas de Luz Soriano Voluntário, emigrado, e academico de Coimbra, Angra, Impr. Do Governo, 1832 pp. 4, 15-17, 18, 20, 27-31, 32, 33-41, 46, 52, 53. TAVARES, João Eduardo d’ Abreu Algumas poesias, Angra, Typ. Do Heroísmo, 1867 «Hino da Terceira» Archivo dos Açores, vol 6, p. 119 e Chaveco Liberal, p. 96 APÊNDICE II: Elogio em Diálogo ao Aniversário dia 8 de Julho de 183249 INTERLOCUTORES: A FAMA e O GÉNIO PORTUENSE [B I,650] Cena única A FAMA e o GÉNIO FAMA Neste Dia feliz, sempre risonho, Grave Génio Portuense, eu te diviso!... O faustoso laurel, que te cingiu Nas praias de Mindelo a fronte invicta, Verde conservas inda, e tão viçoso?... 49 5 Transcrevemos a partir do manuscrito autógrafo B, em poder da família Bingre do Amaral. © Vanda Anastacio 23 Com que fausto prazer, com que alegria, Não venho neste Dia aniversário Da tua excelsa glória, visitar-te!... [B I,651] [B I,652] GÉNIO Vem, centilíngua deusa, pregoeira De brilhantes acções, de heróis sublimes, Vem gozar o prazer deste almo Dia, Da tua redenção feliz ensaio. Deste Dia imortal, em que tu viste (Librada sobre as asas luminosas) O sem pavor Alcides lusitano Com seu bravo esquadrão saltar em terra Nas venturosas praias de Mindelo. Tu, em oito de Julho memorando Do ano trinta e dois, Dia assombroso: Vendo o brio dos argonautas lusos E a corage feroz, na praia unidos, Para as hordas bater de seus contrários: As façanhas depois dos bravos Martes Espalhaste, cantando, em toda a Europa. FAMA Sim, eu vi com assombro a tenaz luta Dos defensores teus depois no Porto, Dessa heróica cidade, Esparta lusa, Combater com valor, eu vi portentos Dos lusos liberais contigo unidos. Eu os vi arrancar das mãos da Sorte, Da indecisa vitória, a palma invicta. As muralhas do Porto eram seus peitos, Esses peitos de bronze, onde quebravam Duras balas de cem canhões batentes. Teu ardor marcial, Génio Portuense, As façanhas sem par de teus alunos Eu contei às nações com voz de ferro. 10 15 20 25 30 35 GÉNIO Sempre, ó deusa veloz, tu foste pronta Em cantar as acções de hercúleos lusos!... FAMA Assaz me tem cansado esses guerreiros Com a chusma sem fim d’ altas vitórias! Quantas vezes não tenho enrouquecido Proclamando seus feitos majestosos?... Seu semideus herói, seu grande Pedro, Esse Rei liberal, sem par no mundo: De todo me esfalfou com seus triunfos. Cantando Napoleão, gradivo Marte, Por férreas tubas cem, rompi noventa. Mas, cantando as acções do luso Alcides Por cem áureos clarins, rebentei todos. 40 45 50 GÉNIO PORTUENSE Mil que fossem, de bronze, estalariam C’ os espantosos brados do seu Nome. Paralelo não tem o herói das Gálias C’ o semideus hercúleo lusitano. © Vanda Anastacio 24 Aquele, fez proezas ambiciosas: Este, acções liberais, de eterna estima. [B I,653] FAMA Essas mesmas acções de independência, Demitidas de si a bem dos povos: Não tem tido na Terra semelhança. Dois ceptros pôr de mão, deixar dois tronos, Desistir de impôr leis, fazer-se sócio De seus concidadãos, torná-los livres C’ uma lei liberal, são assombrosos Feitos heróicos nunca vistos inda, Pela raiva dos reis com pasmo olhados. Pelos eu repetir, cansei cem vezes; Pois não podia o Despotismo crê-los. GÉNIO Inda os déspotas hoje o herói praguejam: Mas ele, astro de luz, fulge sem sombras No vasto campo dos planetas vivos!... Vamos, Fama, do fausto aniversário Os festejos gozar neste almo Dia. FAMA Por pouco tempo só, pois quero ainda Sondar de Portugal os quadros todos. Quero ver se este Dia inda celebram Com gosto e gratidão, livres de intrigas, Douro, Vouga, Mondego, Tejo e Sado. [B I,654] GÉNIO PORTUENSE Ah! Em correndo tudo, ao Porto volta. E, se vires que algum dos pontos lusos Se esquece de louvar o Dia excelso Da nossa redenção e, ingrato, nega À nossa liberdade os puros cultos Esquecidos do herói que os libertara: Pregoa a ingratidão desses díscolos, Faze patente ao mundo os feios nomes Desses ingratos vis, filhos das Fúrias. Volta depressa a nós, fidos e gratos Ao nosso benfeitor, ao grande Pedro: Para nesta cidade eterna minha Contigo e c’ os heróis que nela existem, Cantar do aniversário memorando Das vitórias triunfais os epinícios. 55 60 65 70 75 80 85 90 FAMA Sim, ó Génio imortal! Toma este abraço Eu parto a publicar os seus louvores... AMBOS Viva o Dia triunfal oito de Julho! © Vanda Anastacio 95 25 © Vanda Anastacio 26