[ Crónica ]
Rui Cardoso Martins
Chegar a horas
A cara de fome da Sandra ao descobrir que os outros passageiros levavam
um farnel preparado para atravessar o deserto do Sinai, não fosse a viagem demorar... nove horas, mais coisa, menos coisa.
Nove horas. Das 12h 00m às 21h 00m, dá
três ou quatro máquinas. Primeiro foi preciso mudar de
deixar de me lembrar que Mussolini alcançou o poder
nove horas de carris. Até para um facto normal naquele
automotora, por questões logísticas e de rota que nin­
com a promessa de colocar todos os comboios de Itália
tempo foi exagero. Uma vez, levei nove horas dentro
guém explicou, depois porque o motor se avariou mesmo.
a chegar à estação «al minuto».
duma automotora a diesel entre Sines e Évora. Romper
Morreu de sede como um animal no meio do Alentejo.
Mas também lembro o simpático carteiro de Há Festa
os caminhos-de-ferro do Alentejo foi como fazer um
Então, os senhores foram buscar outra automotora lá
na Aldeia, de Jacques Tati, um Sr. Hulot de bicicleta a quem
túnel de fuga da prisão com uma colher de chá: cada
no sítio onde elas estavam a pastar, mas só devem ter
convencem a fazer a entrega das cartas ‘à americana’,
quilómetro de linha, uma colherada na rocha dura.
agarrado a mais lenta, que mugia como no matadouro
em duas rodas, sem nunca pôr os pés no chão, e o
nas passagens de nível sem guarda.
trapalhão assim faz, gritando ‘rapidité, rapidité!’.
Era uma tarde de Agosto e eu seguia viagem com
uma amiga norte-americana, Sandra Bieniek. A Sandra
A cara de fome da Sandra ao descobrir que os outros
A portugalidade dos horários, felizmente, não de­sa­
nascera e vivia em Manhattan, a parte mais animada
passageiros levavam um farnel preparado para atravessar
pareceu toda: numa ocasião recente, fui buscar uma pessoa
da cidade que não dorme. A Sandra era amiga pessoal
o deserto do Sinai, não fosse a viagem demorar... nove
à estação e o comboio chegou com uns inacreditáveis 20
dos Beastie Boys, especialmente do vocalista, um rapaz
horas, mais coisa, menos coisa.
minutos de atraso. Melhor ainda, primeiro disseram no
que ainda hoje, sem a juventude a seu lado, debita 500
Que cómicos os olhos da Sandra quando chegámos
altifalante que seria uma espera de dez minutos, mas o
palavras num minuto de rock e rap, se lho pedirem.
à noite a Évora, património da Humanidade, que face
atraso atrasou-se e as coisas acabaram por correr bem,
Além disso, o pai da Sandra, o engenheiro Bieniek, ca­
humana ela mostrou ao consultar o mapa de Portugal,
sem correrias nem nervos. No fundo, como era dantes.
te­drático da Universidade de Columbia, fora o técnico
engelhado e carcomido pelo sol, molhado de sal e suor
Tenho um amigo que quando se atrasa, isto é, sem­
responsável pela obra de melhoramento da ponte de
nas pontas. Quando mediu as distâncias com a escala da
pre que tem um compromisso na vida, porque nunca,
Brooklyn, que aumentou a segurança do tráfico auto­
falangeta do indicador e disse (foi ao lado do Templo de
mas nunca, chega à hora marcada, manda a mensagem
móvel e pedestre na histórica ponte de Nova Iorque. Em
Diana, no cenário das colunas romanas do templo, altas
SMS:
resumo, a Sandra estava habituada à velocidade.
como pernas) «só andámos isto?».
Que engraçada a cara da Sandra quando a automotora
— Just that? Fuck.
— Estou no Marquês.
Mesmo que esteja a lavar os dentes, ele está no
parou meia hora em Santiago do Cacém e... «é só mais
— You know... here in Portugal, very difficult,
Marquês. E se estivesse em Inglaterra a enervar ingleses
um minuto, senhores passageiros». A primeira pausa da
disse eu. E quem nunca disse isto, afinal, a uma bela
com a pontualidade, diria que já estava no Marquês de
aventura mais lenta da sua vida (também da minha).
estrangeira?
Pombal. Podemos então prever que ele chegará nove
E quando o maquinista saiu aparentemente para fa­
Agora diz-se menos. Por vezes, na questão dos
minutos, noventa minutos, nove horas depois, mas che­
zer chichi, algures a meio da tarde de Agosto, molhando
transportes, até sinto o problema contrário. Na estação
gará ao seu destino, como as antigas automotoras do
ervas secas, entre girassóis e cigarras, deixando os cinco
do Oriente, em Lisboa, chega a ser arrepiante a chegada
Alentejo. É só mais um minuto... vai fazendo qualquer
passageiros no forno da carruagem. E quando tivemos de
a horas dos comboios que vão para o Porto. Chegam
coisa entretanto, nem que seja nada.
esperar que alguém chamasse um tractor para desviar um
de Santa Apolónia às horas certas, com os segundos
animal morto em cima da linha, uma vaca, salvo erro.
a bater nos tracinhos, como nos filmes com bombas-
Nove horas dentro duma automotora entre Sines e
relógio, e saem da plataforma, rumo ao Norte, sem es­
Évora, em Agosto. Uma não: acho que acabaram por ser
perar por ninguém! Quando isso acontece, não posso
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Espiral do Tempo 29 Verão 2008
Rui Cardoso Martins
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