PEQUENOS DELITOS
E OUTRAS CRÔNICAS
Walcyr Carrasco
Apresentação
QUANTO DAR DE GORJETA sem parecer pão-duro? Gomo se livrar
daquela amiga que aparece nos horários mais inconvenientes? E os
pseudovendedores, que te empurram tudo quanto é coisa que fatalmente irá para o
lixo? Que tal realizar o sonho de ter uma casa no campo e depois descobrir que
adquiriu um mico? Você,consegue disfarçar a decepção ao receber um presente que
não terá nenhuma serventia?
Quem nunca passou por situações semelhantes? E quem nunca se irritou,
riu e se emocionou com muitas delas?
A arte de Walcyr Carrasco está no modo de narrar esses episódios: a
escolha das palavras, o tom levemente irônico, uma emoção contida, um certa
indignação que não dá para ser disfarçada.
Suas crônicas são um apanhado geral do cotidiano de todos nós, e sem
dúvida nos identificamos com a maioria das situações.
Estamos sujeitos a pequenos delitos, mas podemos trocá-los por grandes
prazeres: ler Pequenos
Delitos e outras crônicas será certamente um prazer.
O Tempo e a Memória
OUTRO DIA OBSERVEI UMA FOTO minha, quando bebê. Um garoto
gordinho, de chocalho na mão. Sei que sou eu. Ao mesmo tempo existe um certo
estranhamento. Não me lembro de quando andava de gatinhas. Abro um livro da
minha infância. Alice no País das Maravilhas. As ilustrações em preto-e-branco
estão pintadas com lápis de cor. Fui eu! Tive um ursinho de pelúcia, também. Não
sei onde foi parar. Decidido a ser médico, eu lhe aplicava injeções. Acabou
destruído, o coitado! Eu adorava o ursinho, como deixei desaparecer?
O início de um novo ano é simbólico. Sempre se faz uma certa
retrospectiva. Flashes passam pela minha cabeça. Um ano-novo em Ubatuba,
quando eu era adolescente. Uma festa agitada. Andava com uma turma da qual não
tenho mais notícia. Havia uma carioca, chamada Marcy. Só a conheci naquela
passagem de ano... ou terá sido na seguinte, em Parati? Entre meus guardados há
uma foto da garota. Um sorriso enorme. Não soube mais dela. A sua alegria, nunca
esqueci. Tento imaginar. Como estará agora, uma mulher madura, com filhos? O
que a vida lhe reservou? Um marido, uma separação? Terá ido viver fora do país?
O sorriso permanece o, mesmo?
Tive um grande amigo, Nelson, lá pelos vinte anos. Artista gráfico. Passei
dois anos vivendo fora do país. Só nos escrevemos no começo. Quando voltei,
perguntei dele a conhecidos comuns.
— Sumiu. De um dia para o outro não se teve mais notícia.
A mulher procurou por todo lado. Foi na época da ditadura militar. Nunca
soube que tivesse envolvimento político. Seria um segredo seu? Ou simplesmente
largou tudo? Saiu de casa para ir ao cinema e nunca mais voltou? A pergunta dói.
Sumiu ou foi sumido?
E minha amiga Malu, psicóloga? Íamos dançar sempre. Não perdíamos festas. Só a
vi muito tempo atrás, em um lançamento de livro. Beijou-me e pediu:
— Não desapareça.
Prometi ligar na semana seguinte. Há anos. Resta a vaga informação de que
ela fez doutorado. Será que ainda dança? Outro psicólogo, o Ercílio. Gostava de
psicodrama. Continuará acreditando em um modo de vida alternativo? Ou
transformou-se em um homem formal?
Há gente que nos acompanha a vida toda. Tenho uma amiga desde a
infância. Não nos falamos muito. Outro dia, depois de uns cinco anos, ela me ligou.
—
Estou com um problema afetivo. Preciso de um conselho e só tenho
você a quem recorrer.
Ficamos duas horas ao telefone. No final, ela agradeceu, aliviada.
— E bom ter com quem falar.
Passo anos sem ver o Pérsio e o Raul, a Sônia e a Míriam.
Se nos encontramos, começamos a conversar como se tivéssemos nos
visto a noite anterior. Certas amizades são assim, não? A gente fica um tempo
enorme sem se ver. Quando se encontra, retoma do ponto em que parou.
Não consigo deixar de pensar, ao começar um ano, nas coisas que poderia
ter feito. Quis ser pintor, e há uma tela horrenda que perpetrei aos onze anos.
Médico. Leitor de taro. Fica uma certa lamentação pelos amigos que nunca mais vi.
Por tudo que poderíamos ter vivido juntos. Também, outras pessoas entraram na
minha vida. Olhando em torno, eu penso que essa é a grande vantagem dos anos.
A gente forma famílias não só de sangue. Mas de pessoas que nos acompanham, de
perto ou de longe, sempre em um caminho do coração. Vejo a foto de um bebê
que fui. Pergunto-me.
— A vida é apenas uma grande recordação?
Vem a resposta, como se o bebê da foto conversasse comigo.
— É uma continuidade. Você de hoje é fruto do de ontem.
Sorrio. A entrada de um novo ano mostra que a vida continua. Passado,
presente e futuro se misturam, com muita coisa boa para acontecer.
Promessas Angelicais
CONTO OU NÃO CONTO? Pois bem, digo. Neste ano prometo perder
a barriga. Posso até visualizar o sorriso descrente de quem estiver lendo estas bem
traçadas linhas. Falo da minha barriga há tempos. Prometer, nunca prometi. O caso
é o seguinte: todo final de ano enfio o pé na jaca. Vou a festas. Devoro pernis,
bacalhoadas, tênderes, arroz com passas, lentilha com lingüiça (a lentilha é para dar
sorte, a lingüiça porque é bom mesmo). Esbaldo-me como se estivesse próximo do
Juízo Final. Desta vez, foi pior ainda. Afinal, havia boa possibilidade de que o Juízo
Final acontecesse. Desde criancinha ouço falar nisso. Para que fazer regime, se o
mundo podia acabar no réveillon?. O resultado é visível: minha barriga ultrapassou
todos os limites. Seja dita a verdade. A gula é o único pecado que vem com o
castigo junto. Fiz outras promessas. Uma delas é fugir de tudo que é "alternativo".
Passei as últimas décadas reverenciando essa palavra. Cada vez que comia um prato
de broto de feijão em um restaurante "alternativo", eu me sentia mais saudável.
Ouantas vezes tomei suco de couve pela manhã? Confesso: até macrobiótica tentei.
Tudo começou quando estive em um restaurante do tipo. O dono me garantiu que
se tornara um homem equilibrado e sem ansiedades. Passei dez dias comendo arroz
integral. Depois dessa fase radical, incluí bardana e peixe no cardápio. No final do
primeiro mês tive uma inequívoca experiência extra-sensorial. Estava deitado, de
olhos abertos, quando um hambúrguer-salada flutuou na minha frente. Estiquei os
maxilares, pronto para abocanhar a delícia. Ao morder, quase perdi a língua. A
visão etérea do hambúrguer se desfez. Saí pela madrugada atrás de uma lanchonete.
Comi três hambúrgueres e quase fui parar no hospital. Recentemente li uma
reportagem sobre as propriedades do dry martíni. Sim, ele é antioxidante. Combate
os radicais livres. Pesquisa científica. E o vinho tinto? É bom para o coração,
dizem. Enquanto eu comia bardana e tomava chá de jasmim, os desregrados é que
se davam bem! Sinto arrepios ao ouvir falar em "alternativo". Prometo tirar a
diferença neste milênio.
Vou ler todos os romances policiais e ouvir as músicas bregas a que tenho
direito. O caso é que adoro um bom policial, mas meus amigos vivem dizendo que
um intelectual deveria estar se abastecendo de livros mais sérios. E sou louco por
boleros. Quem vai a minha casa mexe em meus CDs e suspira. Dizem que não há
nada que preste. Não há. Mas eu gosto. E se eu gosto, presta. Pelo menos para
mim. Fica mal para um intelectual, eu sei. Talvez eu desista de ser intelectual, mas
não dos boleros.
Quero me transformar em um homem bom. Um anjo. Prometo, com
todas as minhas forças, nunca mais falar mal de mulheres ao volante. A estatística
demonstra que elas sofrem menos acidentes. Pensarei nisso cada vez que pedir
passagem e uma delas me cortar pela direita. Elevarei meus olhos, pensando:
"Perdoai-as, elas não sabem o que fazem". Terei a mesma atitude perante os
motoqueiros. Quando cinco ou seis deles cruzarem em diagonal na minha frente,
batendo no meu espelho e me xingando, manterei um sorriso harmônico no rosto.
Nem pensarei que a CET deveria dar duro em cima deles. Mas que estão
trabalhando e por isso têm o direito de transformar as pistas em uma loucura. Não
sou bom? Durante os engarrafamentos, procurarei manter a calma. Farei meditação
transcendental cada vez que a 23 de Maio ficar paralisada.- Talvez um dia o carro
saia levitando.
Finalmente, eis minha última promessa. É séria. Quero perder o ranço de
esquerda. Passei toda a minha vida analisando cada fato dentro do seu contexto.
Arre! Cada vez que via um mendigo, decidia não ajudar porque o problema, afinal,
é da sociedade como um todo. Da distribuição de renda. Do... Se explicasse tanta
responsabilidade social ao pedinte, acho que levaria uns tapas. Outro dia, no
semáforo, apareceu uma senhora com um bebê. Dei a esmola e me senti bem.
Pronto. Que teoria resolveria a vida dela?
Com tudo isso, eu me sentirei um anjo. O anjo carrasco. Soa bem. Eu
gosto. Quem sabe?
Síndrome de Carrapato
GOSTO DE PASSEAR EM LOJAS. Em vez de me esfalfar em
monótonas pistas de exercício, tento ativar a musculatura andando em shoppings
ou em ruas comerciais. Pensei até em criar um método de emagrecimento desse
tipo. Seria um sucesso, mesmo que não tirasse a barriga de ninguém. Admiro uma
coisa, outra. Eventualmente, compro. Mas está ficando difícil. Não sei se é a crise,
mas os vendedores andam com síndrome de carrapato. Grudam. Entro na loja e
imediatamente vem alguém com um sorriso de orelha a orelha.
— Posso ajudar?
Tenho vontade de dizer que estou muito bem, não preciso de ajuda. Sorrio.
— Só estou olhando.
Caminho, tentando desfrutar a visão de copos, roupas, o que seja. O
vendedor corre atrás.
— Este até está com preço promocional.
— Obrigado.
Tento fugir, ele insiste.
— É só até amanhã.
Quase grito que já sei. Continuo a sorrir e dou dois passinhos. O vendedor
dá dois passinhos atrás de mim e fica parado logo atrás, como um falcão
observando a presa. Perco toda a vontade de continuar na loja. Vou embora, diante
da cara decepcionada. Existe o tipo que faz questão de perguntar o nome e dizer o
seu. Dali a pouco, se resolvo perguntar o preço:
— Qual é mesmo seu nome?
Se é para se fazer de simpático, por que não tenta um esforço de memória?
Há o que tenta se enturmar a qualquer custo. Outro dia, procurava uma
mochila para viagem. Vi uma bolsa de lona perfeita na vitrine.
— Quero essa aqui.
A mocinha correu para mostrar uma maior e mais cara.
— Esta é quase o mesmo preço, e é maior.
— Obrigado, mas prefiro a menor.
Abriu a bolsa na minha frente.
— A alça é de couro muito bom.
— Sei. Vou levar.
— Viaja muito?
Sinto-me em um interrogatório. Resolvo não dar trela.
— Pouco.
.
— Vai para o Guarujá?
— Não. Ao Rio.
— Costuma ir muito para o Rio?
— Às vezes.
Entrego o cartão de crédito. As perguntas continuam. Não respondo e
saio, provavelmente com fama de antipático. Pior foi o rapaz de uma grife de
roupas masculinas.
— Gostei dessa calça. Tem meu número?
— Humm... experimente esta aqui.
Dois números menor. A braguilha mal fechava. Ele sorri, falso.
— Ficou muito bom.
Olho no espelho. Se respirasse mais fundo, era capaz de estourar o botão
da cintura.
— Não serviu.
— Garanto que está ótima. Usando número menor, Você fica mais
magro.
Quase atiro as calças no nariz dele. Juro nunca mais pisar na loja — é
horrível quando tentam nos fazer de bobos.
Vitoriosa foi uma vendedora de um shopping carioca. Escolhi a
mercadoria exposta. Cheguei ao balcão decidido.
— Quero o "maio da vitrine. Qual o meu número?
Percorreu minha silhueta com um leve sorriso nos lábios.
— Grande.
Imaginei que a causa do sorriso fosse a barriga. Mandei trazer. Pediu no
estoque, com toda a naturalidade.
— Quer experimentar?
— Acho que não precisa.
Saquei o talão de cheques. Só então notei que a padronagem não conferia.
— Não é este aqui. É ó azul.
:— Mas o azul é sunga!
Abriu o pacote, desfraldando uni maio feminino inteiriço, ideal para uma
mãe de família de classe média. Perplexo, descobri a causa da confusão. Homem,
no Rio, usa sunga. Maio sempre é feminino. Nós, paulistanos, é que falamos um
termo ou outro. Ainda tentei argumentar:
— Você acha que eu, peludo desse jeito, ia usar maio de alcinha?
Sem se constranger, a diaba respondeu:
— O senhor pediu, eu vendi.
Fiquei imaginando a cena. Eu, com minhas pernas cabeludas,
experimentando um maio listrado e ela dizendo:
— Ah, ficou bom, sim. É exatamente o seu número!
Levei a sunga. Pelo menos dessa vez a vendedora tinha savoir-faire.
Eu, Cidadão
COMO BOM CIDADÃO, decidi racionar meus gastos com energia
elétrica. Chamei a empregada:
— Você está proibida de tomar banho aqui em casa.
— Mas o senhor quer que eu vá embora suja?
— Quando for para casa, você vai ter de pegar um ônibus lotado. O
primeiro banho terá sido inútil, pois terá de tomar outro ao chegar. Economize!
Ela me olhou raivosamente. Com certeza não economizou pensamentos!
Lembrei-me dos conselhos de um avô, segundo os quais banhos frios
ajudam a manter a pele elástica. Abri o chuveiro. Ai, que frio! Saí pelo banheiro
saltitando como uma rã.
Conversei com meu personal trainer. A esteira gasta, muito energia.
— Você substitui eliminando o elevador.
Moro no 122 andar. Quando cheguei ao terceiro, minhas pernas latejavam.
No quarto, eu me agarrava nas paredes como uma lagartixa. No sexto, bati na porta
da vizinha, pedindo socorro. As panturrilhas duras recusavam-se a dar sequer um
passo! De qualquer maneira, funcionou. Com as pernas em chamas, nem penso em
voltar à esteira!
O microondas está criando teias de aranha. Ultimamente só comia
refeições dietéticas adquiridas em supermercados. Entretanto, já que é para usar o
fogão a gás... vamos à luta! Chafurdei em salsichas com mostarda. Fiz um bolo de
cenoura com calda de chocolate. Ganhei dois quilos, mas sem peso na consciência.
Tudo pelo racionamento!
Luz, só para ler. Outro dia recebi visitas no escuro.
— Assim não consigo enxergar o seu rosto — reclamou uma amiga.
— Vamos nos contentar com uma conversa agradável, sem olhar um
para o outro — retruquei.
Não ofereci café, pois minha cafeteira é elétrica. Sugeri:
— Aceita um refrigerante morno?
A visita demorou quinze minutos.
Aposentei um antigo e heróico freezer. Era meu orgulho. Tem bem uns
dezessete anos. Aparelhos velhos gastam mais.
—- A gente podia criar abelhas dentro dele — propôs o caseiro da chácara.
.
.
Para tudo há um novo uso: Não seria o impulso para me transformar em
um grande produtor de mel? Botamos o freezer encostado na cerca, certos de que
abelhas pertencentes a algum movimento das sem colméia se instalassem. Dois dias
depois, ouvimos um barulhinho.
— Não disse que elas vinham? — comemorou o caseiro.
Fomos espiar cautelosamente. Dependurado nas grades havia um bando
de... morcegos! Fugimos.
Na chácara há uma piscina. Proibi a limpeza.
— Como o senhor vai nadar?
-— Não vou, neste frio.
A água começa a esverdear. Tento agora descobrir como evitar a dengue.
Só temos um problema: o cortador de grama.
— Se eu não cortar, isso aqui vira mato.
Resolvi comprar uma ovelha. Nada mais útil. Poderia pastar e ainda
fornecer nutritivos litros de leite. E lã, caso eu encontrasse alguém capaz de fiar e
tecer. Foi difícil. Tive de ir até perto de São Roque, onde consegui uma linda e
econômica ovelhinha. Mal cheguei, o cachorro rosnou.
— E cão de caça, ele vai querer comer a ovelha.
Não deu outra. O caseiro passou dias de pavor tentando impedir os
instintos selvagens do cão. A ovelhinha tremia, e nada de comer a grama! Para
sobreviver, teve de dormir presa na cama do caseiro. Está sendo devolvida. Foi um
prejuízo, que espero recuperar na conta de luz!
Parei de ouvir música. Para me distrair, canto em voz alta. Assim, além de
evitar o meu consumo, evito o dos vizinhos. Ouvi falar em um abaixo-assinado,
mas nada ainda chegou até mim.
Já ouvi um zunzunzum falando em camisa-de-força. Nem sempre uma
atitude cívica é bem compreendida. O bom cidadão é, antes de tudo, um mártir!
Pequenos Delitos
COMPRAS DO MÊS. Percorro as prateleiras do supermercado olhando
gulosamente tudo aquilo que é bom mas engorda. Um senhor magro e grisalho
pára diante dos iogurtes. Olha em torno, cautelosamente. Agarra uma garrafinha
sabor morango, abre e vira na boca, bem depressa. Esconde a embalagem.
Disfarço, mas sigo o homem. Podem me chamar de abelhudo. Sou. Minha
desculpa é que só tento entender o comportamento humano para escrever depois.
Dali a pouco o homem pega um pacote de bolachas. Abre. Come algumas. A
sobremesa? Na banca de frutas. Uvas itália tiradas do cacho. Um pêssego pequeno.
Devora. Esconde o caroço no bolso. Nem sei como consegue fazer a digestão, tal a
rapidez. Não, não se trata de nenhum MSS — Movimento dos Sem-Supermercado
— ou coisa que o valha. É um senhor com jeito de vovôzinho e trajes de classe
média. Termina as compras de barriga cheia e com expressão de vitória.
— Faço de tudo para não praticar pequenos delitos — conta uma amiga.
— É uma responsabilidade pessoal.
Culposamente, lembro de quando vou comprar fruta seca. Adoro uva
passa. Com a desculpa de experimentar, pego uma. Duas. Três. Trezentas! Outra
amiga é absolutamente contra camelôs. Diz que emporcalham a cidade. Há uma
semana chegou com um brinquedo para os filhos.
— Paguei baratinho — contou animada.
Era de uma banquinha do centro da cidade. Espantei-me.
— Você não é contra?
— Sou contra, mas não sou burra!
Pode? Hoje em dia se fala muito em ética. Mas, quando podem dar o golpe
nas pequenas coisas, muita gente se sente orgulhosa. Conheço uma livraria, em
Pinheiros, onde sempre se aceita devolução. Recentemente uma senhora levou seu
exemplar. A gerente não reconheceu o livro. A cliente teimou. Ela verificou todas
as notas. Simplesmente o título não havia sido negociado. Insistiu:
— Eu troco, desde que a senhora me diga a verdade. Não é daqui, é?
A mulher reconheceu: havia comprado o exemplar há tempos, em outro
lugar. Mesmo assim, aceitou a troca e saiu satisfeitíssima com um livro novo. Outra
cliente levou o livro de atividades do filho, acompanhada pela criança. Trocou. Dias
depois se descobriu que os questionários internos estavam preenchidos a mão. Era
golpe.
— Que exemplo essa mulher dá ao filho? — admira-se a moça.
E quando o troco vem errado? Confesso que a minha primeira reação é de
alegria! De repente, tenho mais dinheiro do que pensava. Em seguida lembro que a
diferença será paga pelo caixa. Devolvo. Já vi gente feliz da vida porque o dono da
loja fez confusão nos preços. Outra coisa que odeio é emprestar e não receber. Há
uma predisposição, para não pagar pequenas dívidas. Mesmo quem empresta fica
sem jeito.
— São só cinco reais... não faço questão.
Como se fosse feio receber o que é seu! Já ouvi, uma vez que reclamei.
— Pão-duro! Você liga pra mixaria?
Tenho um conhecido que jamais tem dinheiro para dar ao manobrista.
Sempre pede uni trocado. Se eu não tenho, pede desculpas ao homem.
— Da próxima vez, dou em dobro.
Ou então:
— Saí sem talão de cheques. Hoje você paga o jantar, o próximo é meu.
Ah, que raiva! De facadinha em facadinha, faz uma bela economia.
.
Surrupiar um queijinho no supermercado parece não ter sequer
importância. Mas os pequenos delitos, quando somados, tornam a vida na cidade
grande ainda mais selvagem.
Em Busca da Paz
FÉRIAS! QUEM VAI VIAJAR costuma ser acometido pela síndrome de
mudança de vida. Basta sentir um cheirinho de mato ou uma brisa marinha para
querer jogar o emprego, os compromissos e a rotina cheia de horários para o alto,
É o sonho de morar fora da cidade. Quer-se largar tudo e viver no campo ou na
praia, mergulhado em silêncio e tranqüilidade. Um casal de amigos tinha um sítio
em Ibiúna, onde esperava passar a velhice. Casa simples e três cachorros, que a
dona chamava carinhosamente de "meus filhos peludos". Acabaram seqüestrados
juntamente com os caseiros. Os "filhos peludos" mantiveram-se a distância,
abanando o rabo para os meliantes. Os reféns ficaram presos em uma casa, no
meio- da mata. Apavorados. A família não poderia pagar um resgate, nem que fosse
dividido em suaves prestações. A certa altura, os bandidos saíram. Meus amigos
conseguiram abrir uma janela. Saltaram. Ela torceu o tornozelo. Fugiram pelo
mato, morrendo de medo das cobras e de outros bichos, ou de ficarem perdidos
para sempre.
Gente urbana imagina que toda mata é semelhante à selva amazônica.
Desaguaram em uma chácara a quilômetros de distância. Ainda tiveram de fugir
dos cães de guarda. Esses, sim, furiosos.
E montar restaurante à beira-mar? Conheço uma penca de gente que lá
pelos 40 anos almeja ser dono de bar ou restaurante. Imaginam que basta ficar
bebendo e comendo com os fregueses, e passar a vida dando risada. Acompanhei
um casal durante todo o processo. Ela murmurava:
— Vou servir umas comidinhas caseiras, tipo feijão gordo, arroz bem
soltinho, mandioca frita. Quem não vai gostar?
Eu fazia a pergunta desagradável:
— Quem vai fritar a mandioca?
Mal arrumaram o ponto, em uma praia distante, ela descobriu a resposta.
Acorda todos os dias às 4 da manhã para botar o feijão no, tacho. Os cabelos, antes
lavados com xampu, transformaram-se em uma massa envolta em óleo de cozinha.
Lá está ela, a postos, quebrando ovos, fritando, cortando, temperando e brigando
com garçons. Ele se esfalfa no caixa e reclama das costas! Ao se deitarem, rnoídos
de cansaço, suspiram pelos tempos no asfalto. Iam ao cinema. Liam. Podiam sentir
preguiça! De suspiro em suspiro, a esperança reviveu. Puseram o restaurante à
venda!
Eu também já tive o sonho. Fui para o sítio de um amigo com o objetivo
de comprar algum em torno. Passamos o dia com o corretor. No primeiro, para
chegar à casa era preciso atravessar o estábulo no meio das vacas, com o risco de
levar uma chifrada. Outro, lindo, repleto de buganvílias, era na beira da estrada.
Mais barulhento que o Minhocão! Dormi no sítio onde fora convidado. Os
cachorros latiram embaixo da minha janela até o amanhecer. Passei a noite
desejando estar nomeio de um belo congestionamento!
Nem tudo está perdido. Finalmente, descobri uma pessoa que conseguiu
realizar o sonho de ser feliz. Uma antiga colega de escola, Eugênia. Mudou-se para
Peruíbe. Trabalha como tradutora. Escreveu alguns livros. O último narra sua vida
na .praia, divertida e... bem, não tão pacífica assim! Morar na praia ou no campo é
mel para hóspedes! Durante as férias sua casa fica invadida por parentes, amigos,
amigos dos amigos. Passa o verão preparando cafés da manhã, almoços, secando
toalhas e lavando o chão. Vive na praia, mas fica aterrorizada diante da chegada do
sol. Realizou o sonho, mas está sempre torcendo pela vinda da chuva e do mau
tempo. Que vida! Já não se fazem sonhos como antigamente! Férias são boas
quando são justamente o que "o nome diz: simplesmente férias!
A Raça Superior
A ESPÉCIE HUMANA ACREDITA ser a única inteligente. Puro engano.
Há tempos imemoriais nós, os humanos, fomos derrotados por uma raça superior,
muito mais esperta. Mais que derrotados, fomos domesticados. Pelos cachorros.
De fato, sob qualquer índice de avaliação, a raça canina se mostra superior. Quem
convive com um cão gosta de dizer que é "dono". Como acreditar, se tudo prova
que o cachorro é dono do homem? Na questão da alimentação, por exemplo.
Qualquer pessoa gasta dinheiro e tempo para comprar ração. Analisa os vários
tipos e até experimenta uns pedacinhos para avaliar o sabor. Corre atrás de ossos
para proporcionar tardes de degustação ao cachorro. Compra imitações de
borracha. Indústrias pesquisam novas rações nutritivas. Gastam uma fábula em
propaganda. Ou seja: sem levantar uma pata, o cachorro faz com que os seres
humanos trabalhem torrando neurônios, tempo e dinheiro simplesmente para
alimentá-los! Certa vez tive uma cachorrinha que só podia comer arroz com
cenoura e carne moída. Estava sem empregada. Durante um mês levantava uma
hora antes, preparava a comida e saía para trabalhar. Ao voltar, servia uma nova
refeição e lavava o prato. Em troca, ela me lambia os dedos. Eu me sentia no
cúmulo da felicidade só de receber essas lambidinhas! Seja dita a verdade: quem era
dono de quem?
E na questão amorosa? Quando gosta, de alguém, o cão abana o rabo.
Pode ser um desconhecido. Gostou, abanou. Quando está a fim, deita-se de patas
para cima e lança um olhar bem pidoncho. Até o coração mais duro não resiste a
dar carinho, cocar as orelhas, fazer uns afagos. Eu, não. Nunca me deitei de barriga
para ficar me oferecendo. Vontade não faltou, mas e a coragem? Nós, seres
humanos, usamos artifícios. Gastamos dinheiro em perfumes, em cabeleireiros, em
dermatologistas. Vamos a happy hours, jantares, festas, barzinhos da moda,
entramos em chats da internet, só para achar quem nos coce as orelhas. Se alguém
faz festa para todo mundo que conhece, rebolando como um cãozinho, vem o
veredicto:
— Ih! Está com carência afetiva.
Toca a procurar terapeuta. Horas e horas dedicadas a analisar a pura
vontade de buscar amor! Revistas dedicam quilômetros de papel a.práticas de
sedução. Como olhar de lado, como sorrir, como se oferecer sem dar na vista.
Mais: como ter coragem de expressar os sentimentos. Cachorro, não. Abana o rabo
e pronto. Muitas vezes, com ciúme, já tive vontade de morder alguém. Ao
contrário, sorri simpaticamente enquanto o sangue fervia. Cães não possuem esse
tipo de constrangimento. Atiram-se em cima do rival. Mordem a mão de quem
acaricia. Até conseguirem seu quinhão de afeto. Mas também não guardam raiva.
Depois de rosnarem um para o outro, dois cães saem pulando e brincando juntos.
Que espécie sabe lidar melhor com as próprias emoções?
A questão da pele também é importante. Criamos indústrias do vestuário
porque não estamos satisfeitos com a própria pele, e inventamos estratagemas para
cobri-la. Boa parte da humanidade se dedica a fabricar tecidos, a inventar e a
vender roupas. Qualquer pessoa ambiciona se vestir bem. Fortunas são
despendidas em novos guarda-roupas. A moda vira, e toca a gastar tudo outra vez.
Cachorro, não. Nasce vestido. Imagine-se quanto delírio, quanta mão-de-obra seria
evitada se o ser humano tivesse a mesma tranqüilidade a respeito da própria
aparência.
Chegamos ao X da questão. Criamos filosofias, escrevemos livros. Há
quem faça ioga, meditação. Tudo para aprender a aceitar o fardo da existência. O
cão já nasce aceitando. A vida é e não é, deve pensar o cão, com a, sabedoria de
um mestre zen. É o que constato todo dia ao chegar em casa exausto do trabalho,
de mau humor com o chefe, com a fatura do cartão de crédito prestes a me
degolar, o cheque especial batendo as folhas em torno de minhas orelhas como
uma ave de rapina.
Sento na varanda e meu cachorro se aproxima: Sem nenhuma preocupação
na vida. Deita-se aos meus pés e prepara-se para receber sua dose cotidiana de
carinho. Eu me submeto. Raça superior é isso aí.
Truque no Assaltante
JURO QUE É VERDADE. Tenho uma amiga especializada em se livrar
de assaltantes. Sua arma: a imaginação. Maria Adelaide é escritora. Madura, de
aparência frágil, é o tipo de vítima ideal. Foi assaltada várias vezes. Acabou
desenvolvendo uma estratégia. Certa vez andava pela rua do Curtume, vindo de um
encontro profissional. Notou que um rapaz vinha em sua direção, a mão enfiada
dentro do casaco. Prestes a sacar a arma. Olhou em torno. Ninguém! Não teve
dúvidas. Saltitou em direção a ele, com um sorriso de orelha a orelha!
— Você! Finalmente nos encontramos! Como vai sua mãe?
Faz tanto tempo que não nos vemos!
O rapaz hesitou, em dúvida. Maria Adelaide continuou, rápida.
— E a Cidinha, tem visto a Cidinha? Como é que ela está?
— Bem...
Abraçou o rapaz.
— Agora eu preciso ir. Mas vê se não some, hein?! Telefona! Fugiu em
direção ao carro, deixando o ladrão parado, com ar de dúvida. Na vez seguinte, saía
com uma amiga da Pinacoteca do Estado, na avenida Tiradentes. Lá adiante viu um
trombadinha se aproximando. Não teve dúvidas. Virou-se para a amiga e começou
a brigar, aos gritos!
— Você nunca podia ter feito isso comigo! Ah, mas você não presta. O
que você fez não tem perdão. Você vai me pagar!
A amiga arregalou os olhos, chocada com a gritaria, cada vez maior.
O trombadinha aproximou-se, já enfiando a mão no bolso. Adelaide gritou
ainda mais. Parecia prestes a partir para as vias de fato.
— Não me responda! Fica quieta, você não tem o direito de falar!
O ladrão ainda tentou estabelecer contato:
— Dona... dona...
— Fica quieto você também! — gritou para o assaltante.
— Você não sabe o que ela me fez.
— Mas o que foi que ela aprontou? .
— Ela acabou com a minha vida!
O possível assaltante pensou um segundo e aconselhou:
— Mata ela.
— É o que eu devia fazer! Acabar com você, ouviu? — vociferou
Adelaide para a amiga.
O rapaz foi embora — possivelmente para não ser envolvido em crimes
maiores. Quando estava longe, a amiga recuperou a fala.
— Que eu fiz?
— Nada. Eu vi que o ladrão vinha em nossa direção. A rua estava vazia e
aprontei um escândalo. Assim, ele desistiu. Vamos embora?
Partiu sorridente, com a amiga cambaleante.
A última vez foi em uma floricultura da avenida dos Bandeirantes. Acabava
de comprar um buquê. O rapaz entrou de arma em punho.
— Passa a carteira!- E você, dá o dinheiro! — gritou para a vendedora.
A caixa ficou paralisada. Adelaide respondeu, fria.
— Estou só com cartões de crédito, sem dinheiro. Não adianta você levar
minha carteira, não vai ter lucro nenhum.
— Não quero nem saber! Passa a grana.
Adelaide voltou-se furiosa e interpelou a caixa.
— Não ouviu o que ele disse? Se ele está roubando, é por que tem
necessidade e precisa do dinheiro. Passa a grana!
O assaltante fez que sim, feliz pela compreensão.
— É isso mesmo! Se eu assalto é porque preciso!
Levou todo o dinheiro da floricultura. Adelaide continuou incólume, com a
bolsa fechada. Seu segredo:
— Preciso de um segundo para pensar. Se sou pega de surpresa, entrego
tudo. Mas quando tenho chance... invento uma história.
A imaginação ainda é a melhor arma para enfrentar as dificuldades da vida
moderna!
Meu Pai, o Homem que Torcia por Mim
SEMPRE QUE VEJO UM CANÁRIO, lembro do meu pai. Cresci
cercado por gaiolas, repletas de espécimes coloridos. Ajudava a dar alpiste, a encher
os bebedouros de água. Acompanhava as fêmeas chocando os ovos, pequenos e
pintados. Era fantástico ver os filhotinhos piando. Minha mãe preparava uma papa
de ração, que meu pai dava com uma colherinha. `As vezes eram tantos os
cuidados que eu sentia ciúme. E se gostasse mais dos canários que de mim?
Meu pai não era dado a expansões carinhosas. Talvez porque fosse criado
em um meio em que homem não expressava os sentimentos. Talvez porque nunca
recebeu muito carinho de seu próprio pai. Saiu de casa aos treze anos e foi morar
com um irmão. Teve um problema nos olhos e quase ficou cego, ainda adolescente.
Mais tarde, quando quis continuar os estudos, já estava casado e com filhos.
Tentou, mas não pôde seguir adiante.
Era ferroviário. Telegrafista. Profissão simples, mal remunerada. A
pobreza, na minha infância no interior, era mais digna do que a de hoje em dia.
Afinal, ele conseguiu batalhar por um projeto de vida para os filhos. A duras penas,
mas conseguiu. Sua maior crença era nos fazer estudar. Meus dois irmãos
começaram a aprender música aos seis anos de idade. Eu preferi estudar inglês,
desde os dez. Ia à escola pública. Na época o colégio do Estado era prestigiado.
Lutava-se para entrar, pela qualidade do ensino. Os professores eram pessoas
respeitadas na cidade. Tratadas de maneira especial, pois, afinal, eram professores!
Tudo isso pode parecer estranho hoje em dia, quando se ouve falar de escolas
depredadas e de alunos que ameaçam os mestres. Mas houve um tempo, e não há
tantos anos assim, em que o ensino merecia tratamento especial. Todos os esforços
da família eram orientados para nossa educação. Até a fuga dos canários causaria
menos dor a meu pai do que ver um filho repetir o ano.
Ganhei minha primeira máquina de escrever aos treze. Já anunciava aos
quatro ventos meu desejo de ser escritor. Um dia —: não era Natal nem aniversário
— ele veio com a máquina. Modelo simples, portátil. Comprada em prestações a
perder de vista. Coloquei a primeira folha de papel sulfite e experimentei a primeira
tecla. Nunca vou esquecer a sensação, o cheiro de tinta e a letra surgindo no papel!
Ao longo da vida, tive a chance de sentir seu apoio, várias vezes. Mesmo
quando resolvi partir pelo mundo, de mochila nas costas, não ouvi uma palavra de
recriminação. Quando voltei, ele continuava torcendo por mim. .
Ficou doente por quase vinte anos. Algum tempo antes da grande partida,
teve a percepção de que não duraria muito. Foi ao cartório e fez o documento,
pedindo para ser cremado. E outro para doar seus órgãos. Entretanto, quando
aconteceu, pareceu tão de repente, tão despropositado! Fica sempre a sensação de
que poderia ter ficado conosco por mais tempo, de que faltou falar sobre tantas
coisas!
Quando fomos examinar seus papéis, encontramos uma carta, endereçada
a todos nós. Escrita para ser aberta depois da partida. Dizia como tinha sido bom
ser nosso pai. A palavra de carinho que, em vida, foi tão difícil pronunciar. Para
cada um tinha uma mensagem especial. Lembrava que a vida não termina aqui,
neste mundo. Fosse para onde fosse, prometia continuar pensando em nós.
Até hoje, quando lembro dessa carta, sinto os olhos marejados de lágrimas.
Meu pai era um homem simples, mas teve grandeza. E o mais importante,
ele torcia por mim. Para mim, esse é o significado maior de um pai. Alguém capaz
de torcer, sempre, sem nenhuma condição, nenhuma imposição. Porque a única
condição entre pai e filho deve ser sempre o amor.
O Automóvel
QUANDO PAPAI COMPROU nosso primeiro carro, mamãe decidiu:
—
Vou tirar carta de motorista!
Eu era criança. Não era comum que mulheres dirigissem. Mamãe tinha
alma de pioneira. Por exemplo, trabalhava fora, enquanto suas amigas se
conformavam em ser donas-de-casa. Morávamos em uma cidade do interior. A
auto-escola só tinha um jipe. Começaram as aulas. Comigo no banco de trás, as
mãos presas agarradas na capota. O jipe dava solavancos e rodopiava pelas ruas. O
instrutor aterrorizado.
— O breque, o breque! Aperte o breque!
Mamãe se confundia. Enfiava o pé no acelerador. Ela gritava. O instrutor
gritava. Os pedestres corriam. Entre as façanhas, arrancou a porta de um Karmann
Guia. Na última aula antes do exame arrasou a entrada do mercado municipal.
Repetiu duas vezes. Na terceira, o examinador tremia:
— Mais devagar! Assim a senhora enfia o carro em uma árvore.
Surpreendentemente, ganhou a carta. Talvez por terror dos examinadores.
Seu idílio automobilístico não durou muito. Papai perdeu o pouco que tinha.
Viemos para São Paulo com uma mão na frente e outra atrás. Carro? Nem pensar.
Ficou mais de dez anos sem dirigir. A vida melhorou. Minha cunhada ofereceu o
volante.
— Só para ter o gostinho.
Entrou atrás de um caminhão parado.
Mais uma temporada de exílio. Papai se recuperou montando um
estacionamento. Todas as manhãs, lá estava mamãe, gordinha, de chapéu de
homem na cabeça, dando ordens aos manobristas.
— À direita! Vira... vai que dá, vai que dá!
Só havia uma condição. Não fazer manobras ela mesma. Seria impossível
pagar os prejuízos. O incrível é que papai não gostava de dirigir. Desistiu de ter
automóvel. Mamãe olhava os modelos. Sonhava. Mudaram-se para Santos. Tempos
depois, papai faleceu. Para surpresa de toda a família, mamãe veio a arrumar um
namorado, aos 64 anos. Perguntei, cauteloso, a idade do príncipe encantado.
— Sessenta e três.
- Suspirei, aliviado. Se fosse trinta, aí sim, eu ficaria bem preocupado.
Nunca se viu casal tão apaixonado. Era um senhor aposentado, de índole
calma. Mamãe me contou:
— Sabe, ele está pensando em comprar um carro.
— Mãe, quem é doida por automóvel é você! Convenceu o velho?!
— Não tenho o direito?
Tinha. Juntaram as economias. Vieram para São Paulo. Compraram um
bom automóvel usado no sábado de manhã. Pegaram a serra. Na curva, havia óleo
na pista. Derraparam de leve. Pararam. Um policial aproximou-se.
— Deixem o carro aí, já vamos ver. Venham para cá, por causa da curva.
Mal se afastaram caminhando, outro carro veio voando na curva. Derrapou
também. Voou em cima do automóvel. O que sobrou dava para levar em uma
sacola.
Não tinha seguro. Perda total. Revoltada, mamãe não se conformava:
—
Não ficamos mais de uma hora com o carro!
Tentei confortá-la.
— Mamãe, quem sabe seu destino não é ter automóvel.
— Que conversa é essa de destino? Eu não me conformo!
E vou ter!
Teve. Dali a meses comprou novo veículo em sociedade com o namorado.
Eu e meus irmãos demos uma força. Que felicidade! Subiam a serra só para comer
um filé. Só se tornou um pouco ressabiada.
—- Ele dirige muito bem — contou, referindo-se ao grisalho. — Às vezes
tenho vontade de pegar a direção, mas não gosto da serra.
Com a proximidade do Dia das Mães, sinto um aperto no coração. Ela
partiu há dois anos, doente, e às vezes me dá uma imensa saudade. Sinto também
uma sensação de alegria. Mamãe conseguiu seu carro. Felizmente, eu a ajudei a
realizar seu sonho!
Culinária Afetiva
CERTOS PRATOS SÃO TÃO IMPORTANTES quanto um abraço de
amor. Nunca esquecerei do pudim de queijo de minha avó. Era uma grande
cozinheira essa avó. Seu pudim de leite era massudo, com queijo parmesão, com
um delicioso contraste entre doce e salgado. Até hoje, quando me oferecem pudim,
eu aceito, na esperança de recuperar o mesmo sabor. Nenhum neto esqueceu essa
avó, que nas épocas festivas enchia a mesa com cabrito assado, leitão, frangos
recheados com farofa, doces de todo tipo. Entretanto, os filhos e noras —- meus
pais e meus tios —- temiam a cozinheira. Inexplicavelmente, certa vez minha avó
confundiu parte da farinha com veneno em pó e quase matou a família inteira com
uma fornada de rosquinhas. Salvaram-se as crianças pôr serem muito pequenas. Só
comiam papinha. Desde então os adultos viviam ressabiados cada vez que
ganhavam uma lata de biscoitos de anis. Eu, nunca! Basta comer um bom pudim
para sentir o calor dos beijos e abraços de minha avó.
Minha mãe fazia pão. Se ficava nervosa, ia para a cozinha surrar a massa.
Eram pães gordinhos como pés. Bons para comer quentinhos, com manteiga e
café. E uma receita difícil de encontrar. Ainda bem. Seria incômodo começar a
fungar diante de cada pãozinho francês que me aparecesse pela frente. A filha de
uma amiga adora gatos. Compartilha a ração dos felinos. Garante que tem um
agradável sabor de peixe. Amo meus cães. Mas ainda não sou capaz de roer um
osso. Quem sabe com terapia eu consiga vencer essa última resistência.
Inesquecível a primeira vez em que vi a empregada da vizinha fazer bala de
coco. A massa branca rolando de um braço para o outro. Juro. Não há coisa mais
linda. Uma empregada da minha infância fazia um ovo frito perfeito. A clara branca
e a gema rosada no meio. Dá fome só de lembrar. Também não vou esquecer da
primeira vez em que cozinhei para os amigos. O objetivo: frango ao molho
roquefort. Diretamente do livro de receitas. Por engano, comprei um galo. Parecia
um frango gigante. Achei bom. Observando melhor, concluí que era um galo. Em
pleno domingo de manhã, saí caçando um frango. Consegui segundos antes de os
convidados chegarem. Cortei e temperei as pressas. Acendi o fogo. Segundos
depois, acabou o gás. Ah, os botijões! São incontroláveis! Não tinha reserva. Saímos
todos batendo nos vizinhos, pedindo gás emprestado. Nada! Lembrei de um
fogãozinho de acampamento que eu tinha. Lá ficou o frango horas e horas. Os
convidados rugindo de fome. Ao chegar ao ponto, atiraram-se na panela como
lobos. Até hoje não sei se era bom ou ruim. Foi, sim, um começo primoroso!
Convidados famintos sempre elogiam o cardápio, haja o que houver.
Entre todos os pratos, jamais esquecerei de uma torta que comi em uma
viagem. Era um grupo de jovens hospedado em um antigo internato japonês.
Todos os dias tomávamos banho de furo, em grupo. Um dia os rapazes iam
primeiro, no outro as garotas. Certa vez elas demoraram tanto que as esperamos do
lado de fora, com toalhas molhadas. Foi uma perseguição, com todas correndo,
gritando, segurando as próprias toalhas, e os rapazes gritando e assustando. No
jantar do dia seguinte, uma torta verde, deliciosa. Comi vários pedaços, guloso. Ao
final, a revelação.
— A torta é de capim!
Riram, vingadas!
Essa torta de capim ficou para sempre, com esses dias gloriosos no campo.
Em culinária, o afeto e os bons momentos são sempre um tempero sem igual.
Comida boa é a que fica no coração.
O Pinheiro
HÁ MUITOS ANOS TIVE um Natal especialmente feliz. Eu e um grupo
de amigos nos reunimos para fazer uma ceia em minha chácara. Cada um ficou
encarregado de um detalhe. Uma semana antes dei pela falta:
—- E a árvore?
O bando de gulosos, de tão entusiasmado em discutir cardápio, achar
receitas, comprar bebida, nem se preocupara com um detalhe tão prosaico e ao
mesmo tempo tão natalino. Houve quem dissesse que árvore não precisava ter.
Insisti:
— Natal sem árvore não dá.
Sou meio romântico, apegado a certas deliciosas, tradições. Quando eu era
criança, meus pais tinham uma árvore de penas verdes (acreditem), precursora das
de plástico. As bolas coloridas, capazes de quebrar ao menor toque, ficavam
guardadas o ano todo, envoltas em papel de seda. Em cima colocava-se um
ponteiro brilhante, e em torno dos galhos, festões prateados cobertos com
discutíveis pedaços de algodão branco. Uma vizinha fazia um presépio famoso no
bairro. As figurinhas de cerâmica, pintadas. Um espelho fazia as vezes de rio. E
grama, grama de verdade, colocada sobre uma tênue camada de terra, deixando o
presépio cheio de vida. Eu, por mim, continuaria acreditando até em Papai Noel.
Seria ótimo bater o pé, anunciar o presente desejado e ficar fazendo caras e bocas
até ganhar. Entretanto, a verdade me foi revelada lá pelos sete anos, quando insisti
em ganhar um cavalo de corrida. Tanto chorei quando o cavalo não veio que minha
mãe não teve alternativa a não ser revelar a triste realidade. O Papai Noel que cabia
no orçamento familiar não abarcava cavalos. Mas da árvore eu nunca quis abrir
mão.
Um amigo saiu em busca de um pinheiro verdejante. Demorou horas.
Voltou com uma árvore raquítica e torta.
— Mas que pinheiro pavoroso! — reclamei.
— Bati em vários lugares, ninguém mais tinha. Achei este.
Pelo menos o homem deu desconto.
Era uma tristeza enfeitar aquele pinheiro tortinho. Compramos umas
bolas, inventamos uns laços de fitas, botamos umas luzinhas. Minha mãe veio, e na
véspera, quando todos estavam cozinhando, ela dedicou-se a conferir quantas
cervejas cada um bebia.
— Se você continuar bebendo vai deixar o pernil queimar! — anunciava.
O pudim de uma amiga desandou. Inventei uma salada estranhíssima, que
todo mundo experimentou por educação, de nariz torcido. Eu mesmo comi para
disfarçar. Mas o pernil e a farofa estavam excelentes. Bebemos, comemos e
trocamos presentes, e rimos muito!. Para minha surpresa, as pessoas não ficaram o
tempo todo correndo de um lado para o outro. Sim, porque na maioria das vezes a
ceia de Natal é parecida com uma estação de metrô, com uma porção de gente
entrando e saindo. Há quem chegue atrasado porque precisou dar uma
"passadinha" na casa de não sei quem. E quem saia voando, sem comer direito, rir
ou desfrutar, para ir a outra casa, onde alguém pode ficar "chateado".
No dia seguinte um grupo ainda se encontrou para desfrutar as sobras.
Dias depois o pinheiro continuava lá, com as fitas já meio caídas. Pensei
em jogar no lixo. Hesitei. Afinal estava vivo, não estava?
Achei que plantar uma árvore era um bom sinal para o Ano-Novo. Decidi.
Peguei a enxada. Abri uma cova em frente da casa e botei o pinheiro, cortando o
fundo da lata. As raízes quebraram, achei que não fosse para a frente. Para minha
surpresa, continuou crescendo bem devagarinho, ano após ano. Certa vez, uma
visita comentou:
— Meu avô, dizia que, quando o pinheiro ultrapassa o telhado, o dono da
casa morre.
Sou supersticioso. Quase peguei o machado para cortar. Resisti,
suspirando:
— Deixo nas mãos do destino!
O pinheiro já está bem mais alto que o telhado e eu continuo aqui. Minha
mãe se foi. Muitos daqueles amigos tomaram outros rumos, e o nosso Natal em
comum é uma vaga lembrança. Estranhamente o pinheiro cresceu de um jeito
torto, com o tronco fazendo uma curva pendendo para um lado. Mesmo assim,
encontrou um equilíbrio — como talvez todos nós, em situações de dificuldade.
Ficou enorme e majestoso. Ao olhá-lo, sinto sempre um calor no peito. Não só
pela lembrança, mas também pelo sentimento de continuidade. Em datas especiais,
como Natal e Ano-Novo, é essa a grande sensação. A alegria de enfeitar uma
árvore. Os amigos que se foram e os que estão chegando. Os laços. A troca. A
felicidade de estar ao lado de quem a gente gosta. E a vida, que se renova.
Os Ex-Ricos
VOU VISITAR UMA AMIGA. Desempregada, ela acaba de mudar de
casa. Estranho o endereço, nos Jardins. Há uma semana a dita senhora morava com
umas primas solteironas, dormindo em um sofá-cama. Terá descoberto novos e
generosos- parentes? Suspiro. Deve ser difícil ser uma dama e ter de lutar pelo bife
de cada dia. Aperto a campainha. Ela me recebe com um sorriso radioso. Os
móveis, recuperados da garagem das primas, espalham-se por uma sala soberba.
Percebo rolos de tecido de decoração a um canto. Coço a cabeça. Ela me explica,
feliz da vida.
— Vendi o terreno!
Em tempo: o tal terreno localizava-se em um dos condomínios mais caros
de São Paulo. E o Parque Silvino Pereira, na Granja Viana, onde um lote de cinco
mil metros custa em torno de quatrocentos mil reais. A dama recebera o imóvel de
herança. Espanto-me.
— Mas o dinheiro deu para comprar essa mansão?
— Comprar, não. Aluguei!
Alguns amigos espalham-se pela sala, bebericando copos de uísque. Uma
bandeja aninha caviar e torradinhas. Comemoram a iminente partida da dama para
Nova York. Plantado na minha educação de classe média, reflito. . -— Mas desse
jeito o dinheiro vai acabar!
Ela me encara como se tivesse dito que ela estava gorda. Falar em fim_de
dinheiro pareceu o cúmulo da deselegância!
Voltou do exterior carregada de compras. Dali a alguns meses alugou um
quarto para um conhecido. Outros mais, e brigou com o pensionista porque ele
comeu as duas últimas salsichas da geladeira. Não tardou, vendeu parte dos móveis
e retornou ao sofázinho das tais primas solteironas. Com dívidas.
As idas e vindas da economia acabaram criando uma classe de ex-ricos, e
até de ex-novos-ricos. Nesta cidade as ondas econômicas evidenciam as marés do
país. Saímos dos ex-barões de café e dos ex-industriais aos ex-altíssimos executivos
de multinacionais aos... enfim... Boa parte tem uma coisa em comum: só sabe viver
à larga. São pessoas que vendem casas para comprar uma partida de vinhos, ou,
simplesmente, jantar fora por mais seis meses. Dão festas e no dia seguinte pelejam
para não pagar a faxineira. Se recebem visita em época de vacas magras, oferecem:
—- Quer comer uma saladinha? Estou de regime.
E lá vem um prato de alface. Se torram uma propriedade, atacam de
salmão norueguês! A antiga nobreza também sofre! Certa vez, numa festa, um
grupo agitava-se em torno de uma senhora de coque, muito fina.
— E uma princesa — alguém contou.
De fato. Seus pais seriam os herdeiros do trono de um reino italiano se não
tivesse acontecido a Unificação, Garibaldi e a economia de mercado. A princesa
continuava princesa nos gestos suaves. Seu anel de brasão emitia raios a cada
movimento de seus dedos. De tão elegante, todo mundo se sentia constrangido ao
comer perto dela. Quase comentei: a gargantilha parecia ser bijuteria, e não uma
jóia de família de origem remota. Mas um plebeu como eu sabe reconhecer
preciosidades?
Dias depois encontro um amigo despachado, conhecido do anfitrião.
Conta.
— A princesa? Mora num sobradinho geminado. Quer ver?
Curiosidade pouca é bobagem. Fui. Na garagem real, um fusca. No terraço
de cima, um casal grisalho, tomando sol de sandália de dedo. Meu amigo mostrou,
discreto.
— Aqueles são o rei e a rainha. Poderiam estar mandando decapitar
pessoas. Agora são obrigados a fazer a feira. Já venderam até os talheres de prata,
mas a rainha e a filha princesa não saem do cabeleireiro.
Vida de ex-rico não é fácil. E capaz de fritar ovo na água para economizar
óleo. Mas não consegue sobreviver sem uma taça de champanhe.
Velhos Amigos
RECEBO O CONVITE DE casamento de um amigo. Espanto-me. E o
quinto enlace do rapaz. O convite faz menção a uma cerimônia religiosa. Na
primeira vez, a noiva deslizou pela nave de véu e grinalda. Ainda está viva. O que
ele terá feito para obter a dispensa? Arquivo o mistério para resolver depois. Pego o
cartãozinho da lista de presentes. Suspiro. Será o quinto presente. A continuar
assim, ele devia abrir um crediário para os convidados.
Loja chique. A noiva deve ser descendente do rei Midas. Tudo que
escolheu vale o peso em ouro. Penso em fugir e mandar um livro de culinária
vegetariana. Seria original. Decido-me por um cinzeirinho que não está na lista, mas
é lindo. . Lembro que ele parou de fumar. Decido esquecer. Qualquer comentário,
farei um oh! de surpresa:
— Oh, você parou de fumar? Bem... deixe o cinzeirinho para as visitas!
Retiro meu terno do armário. Boto a gravata. Torço para que a comida seja
boa. Gosto de me empanturrar de bem-casados e, se der, ainda levar alguns para
casa, escondido. Há esperança. A cerimônia é em um bufê. Mal entro, ouço um
grito do fundo.
—Você!
Casamentos são ideais para encontrar velhos amigos. Pessoas que dez ou
vinte quilos atrás foram íntimas, ressurgem com um sorriso atarraxado no rosto. É
leve a sensação do reencontro. Parece que nunca nos separamos!
Meu filho vai prestar vestibular, acredita?
— Sabe aquele livro que comecei há dez anos? Estou quase terminando!
— E sua filha, como vai?
— Um pouco nervosa. Casei com a melhor amiga dela.
No ar fica a pergunta. Por que nunca mais nos vimos? Não existiu uma
briga definitiva. Apenas, um dia, não telefonei para marcar o programa de fim de
semana. Duas semanas depois eles ligaram, mas eu não podia. Quando liguei,
tinham ido viajar. Os meses foram passando. Os encontros rareando. Dois
aniversários depois, não me chamaram. Não nos vimos no final do ano. De vez em
quando, uma notícia. Aquele separou, aquela desencarnou. Contemplo os rostos. Se
continuasse na mesma turma, minha vida seria diferente? Dá saudade dos bons
momentos que poderíamos ter tido. Em seguida, todos agitam canetas, papeizinhos
e cartões.
— Dá o Seu telefone. A gente precisa se ver.
— Pega meu cartão. Olha, vou anotar o numero do celular e o e-mail.
— Que tal almoçar a semana que vem?
— Ih, a semana que vem não sei se vai dar. Quem sabe na outra.
— Na outra eu é que não posso. E à noite?
— Isso. Talvez à noite. A gente se liga para combinar!
Afundo o cartão no bolso. Viro-me. Sorrio e pego um novo cartão.
Continuamos chilreando como beija-flores. Só nos calamos aos acordes da marcha
nupcial. Lá vem a noiva de véu e grinalda, de braços com o pai orgulhosíssimo.
Todos se olham, constrangidos. Afinal, como ele está casando no religioso? E o
divórcio, já saiu?
Abraço os noivos, desejo felicidades. Consigo me empanturrar de
picadinho de frango afogado em um molho exótico. Devoro a sobremesa duas
vezes. No fim, agarro o noivo.
— Vem cá, você já não era casado no religioso?
— Ah, essa cerimônia foi só para contentar os pais dela. E de uma outra
igreja, dissidente.
.
— E o cartório?
— Não casamos no civil, porque meus papéis estavam enrolados. Mas os
velhos pensam que foi hoje de tarde.
— Então eu vim em um casamento que não foi casamento? E ainda dei
presente? Tem pai que é cego!
O noivo funga, ofendido. Despeço-me dos velhos amigos. Todos
prometem se ver, se ver, se ver... mas, é claro, não vai dar certo. Até o próximo
casamento. Quem sabe com o mesmo noivo!
Desculpa Esfarrapada
SEMPRE FUI UM DORMINHOCO. Adoro acordar tarde. É o tipo de
coisa malvista por possíveis empregadores. Em época de vacas magras eu instruía o
pessoal de casa a dizer, todas as vezes que alguém ligasse: "Ele está no banho".
Nada mais prático. Quem está no banho, não atende telefone. O problema
é que às vezes a pessoa ligava várias vezes, hora após hora. A resposta, invariável.
No banho.
— Será que ele não se afogou embaixo do chuveiro? — vinha a pergunta
irônica.
Ou batiam o telefone.
— Se ele não quer me atender, por que não diz de uma vez?
Ganhei a fama de ser o homem mais limpo da cidade. O Sabonetinho,
como diziam! Chegaram a me citar uma crônica do Nelson Rodrigues sobre o
tema. Ou seja: acabou a desculpa. Mas, nessa era de celulares, de comunicação,
rápida; como se safar? Faço terapia todas as sextas-feiras. Quando estou esperando
alguma ligação importante, deixo o celular ligado. Às vezes não reconheço o
número no visor. Em dúvida, atendo. Já tentei mil vezes explicar:
— Estou no meio de uma consulta e...
Que adianta? A pessoa continua falando, falando! Agora uso o estratagema
do túnel,
— Ih! Olha, estou no meio do trânsito... ih! Estou entrando em um túnel,
se a ligação cair... ih! Não estou ouvindo mais nada, alô, alô. Ih!, ih!
Desligo, enquanto o interlocutor se esgoela do outro lado. Muita gente
usa a estratégia, de tão boa. Já está ficando velha. Antes da revolução das
comunicações o interurbano funcionava como desculpa. Bastava mandar dizer.
— Ele está em um interurbano.
Falar com outra cidade era complicado. Todo mundo compreendia. Nesta
era de DDD e DDI facilitados, é uma desculpa esfarrapadíssima! Mas a do chefe
ainda funciona.
— Sinto muito, ele está em reunião com o diretor.
Dá certo e confere status. Reunião privada com o diretor não é para
qualquer um. Podem ligar vinte vezes no dia. Quanto mais longa parecer a reunião,
mais importante será o cargo. A não ser que venha um rugido do outro lado:
— Invente outra. Quem está falando sou eu, o diretor.
Afinal, onde é que ele está?
Há outra que está entrando em moda.
— Liguei o dia todo e você não atendeu.
— Mas eu estava em casa. Houve um problema nas linhas telefônicas de
todo o bairro. Ficamos incomunicáveis.
A estratégia costuma provocar um gesto de solidariedade. Raios, trovões,
ventanias. Tudo mexe com as linhas. Bateria do celular que pifa também é outra. A
pessoa está doida para se livrar. Então começa:
— Oh! A bateria está pifando... olha, se a ligação cair, depois eu ligo.
E bate o telefone na cara do outro, a salvo!
Excesso de trabalho também funciona. O problema é quando uma
desculpa óbvia se contrapõe a outra mais óbvia ainda. Como quando o casal se
encontra, depois de um cano.
— Desculpa ter deixado você esperando ontem à noite, querida. Surgiu
um projeto super urgente, fiquei até tarde trabalhando. Nem me agüento em pé —
diz ele, aproveitando para disfarçar as olheiras e os sinais de ressaca.
. .
— Ah, meu amor, eu até fiquei preocupada! Houve um problema nas
linhas do bairro. Para cúmulo, a bateria do celular pifou. Então... se você tentou
ligar... — responde ela, inocentemente.
Os dois se olham, imperturbáveis. E agora?
A sorte foi que não deram de cara um com o outro na farra!
Os tempos mudam. A tecnologia dos pretextos evolui. A desculpa ganha
roupa nova. Mas dificilmente muda a aparência. Desculpa que é desculpa, sempre
tem jeito de esfarrapada!
Vocação
UMA DAS ATIVIDADES QUE mais deliciam os adultos é perguntar aos
pimpolhos:
— O que você vai ser quando crescer?
Entre meus amigos de infância, a resposta padrão era médico ou advogado.
Algum, mais aventureiro, respondia:
— Vou dirigir caminhão!
Minha resposta era a mais esquisita:
— Escritor.
Tinha me apaixonado pela idéia de ser escritor, embora não soubesse bem
do que se tratava.
— O que faz um escritor? — perguntava minha mãe.
— Escreve! — eu respondia, cheio de razão.
Ao longo da adolescência, a crise explodia nos almoços de domingo:
— Vou prestar bioquímica — avisava meu irmão mais velho.
Mamãe não sabia exatamente do que se tratava, mas parecia respeitável.
Chegava minha vez:
— Quero ser escritor.
— Do que vai viver?
Essa era a questão.
. Segundo todas as informações, artistas em geral passavam fome.
— O certo é você ter uma profissão e escrever nas horas vagas —
aconselhava papai.
Eu teimava, dizendo que o dinheiro não era importante. Mas a satisfação.
— Quero ver a satisfação quando não tiver com que pagar o aluguel!
O almoço se tornava um caos. Mamãe perguntava:
— Onde você estuda para ser escritor?
Eu me calava. Médicos, advogados, engenheiros, estudam em faculdades.
Agora... escritores? Como alguém se tornava um?
Tentava seguir o conselho de Monteiro Lobato: ler bastante. Para escrever
bem, é preciso ler muito. Eu me afundava nos livros.
Um amigo de escola me aconselhou:
— Só com bastante experiência de vida. Como você vai falar sobre a vida
dos outros se não passar por tudo?
Sou do tipo tímido. Seria obrigado a passar noites bebendo, até rolar pela
sarjeta? Namorar uma daquelas moças muito maquiadas, de saias bem curtas e
botinhas de cano longo que nos meus tempos passeava pela avenida São João? Sem
dúvida, elas deviam ter experiência de vida!
Talvez fosse melhor fazer artesanato com couro. Deixei-crescer os cabelos,
comprei couro, cola, tesouras. A bolsa ficou pavorosa. Desisti.
Lá pelos vinte anos escrevi minhas primeiras peças. Mostrei a um
intelectual.
— Está muito meloso.
Reli. Nada mais pavoroso.
Comprei um livro de culinária. Terminava a faculdade de jornalismo, mas
precisava de algo para expressar minha criatividade. Poderia montar um
restaurante, se aprendesse algumas receitas sofisticadas. Dediquei-me aos peixes
com laranja, frangos com laranja, arroz com laranja... as visitas, que só comiam de
vez em quando, adoravam. Eu não suportava mais olhar para uma laranja. Voltei
para as omeletes, macarrão... e ao sonho de ser escritor.
Meu primeiro livro saiu a fórceps. Foi um infantil, Quando Meu
Irmãozinho Nasceu, que conta a história de um menino que acompanha a gravidez
da mãe. Demorou mais ainda para ser editado. Montar a primeira peça foi bem
mais difícil, por causa do dinheiro. Meu Terceiro Beijo acabou fazendo certo
sucesso.
Acabei descobrindo que a velha máxima é correta. Para subir uma escada é
preciso um degrau de cada vez. O mundo mudou. Agora existe um mercado para
autores de livros, roteiristas de cinema e televisão. Às vezes vou dar palestras em
escolas e me perguntam qual seria a carreira do futuro. Digo que não sei.
— Na minha juventude, se alguém falasse em trabalhar com
computadores, ia ser tachado de maluco — explico.
Como será o mundo de amanhã? O grande negócio é escolher o que se
gosta. Quando a gente gosta do que faz, pode ser até pavoroso. Mas insiste. Acaba
aprendendo. Quando a gente gosta, tem mais chance de dar certo. Foi isso que
aprendi na vida. Foi assim que me tornei escritor.
Sinal Vermelho
QUANDO PERGUNTEI SE TINHA dinheiro trocado, minha amiga
abriu a bolsa e tirou a carteira. Verificou. Insuficiente. Imediatamente, tirou uma
segunda carteira do bolso do casaco, essa repleta de notas. Espantei-me:
— Duas carteiras?
— Uma é para os assaltantes — explicou.
Farta de ter sido roubada várias vezes ao parar no semáforo, ela optou pelo
estratagema.
Houve época em que os assaltantes eram rápidos. Aproximavam-se,
arrancavam um relógio e uma corrente de ouro e saíam correndo como ratos
assustados. O assaltante do semáforo, hoje, é um profissional seguro, consciente de
ter conquistado um espaço na sociedade. Em certo sentido, tem muito a ver com
um dentista. Ambos sabem lidar com o nervosismo alheio. A única diferença é que,
enquanto o dentista promete que não vai doer, o ladrão garante o oposto. Está
distante
de
qualquer
proposta
feminista,
pois
prefere
as
mulheres
desacompanhadas. Aproxima-se, explica que é um assalto e que quer todo o
dinheiro da carteira. Generosamente, dispensa os documentos e as vítimas até
agradecem.
— Tive a maior sorte — comentou uma conhecida. — Ele deixou tudo,
menos o dinheiro. Foi muito legal.
Como se o ladrão fosse um amigo compreensivo!
Seu método, desenvolvido em centenas de semáforos, é o da pressão
psicológica pura e simples. Na maior parte das vezes nem arma mostra. Já vi a
atuação de um desses assaltantes. Eu estava parado num semáforo próximo à praça
Roosevelt. Atrás de mim, em seu Fiat, a sábia amiga das duas carteiras. O
profissional, acompanhado de um ajudante, aproximou-se de seu vidro. Vi, pelo
meu retrovisor, que conversava com ela cortes-mente. "Será um assalto?", refleti.
Observei para ver se havia alguma arma. De jeito nenhum. Um bando de rapazes
"mal-ajambrados" acompanhava a cena de longe. Já me vi descendo do carro e
enfrentando todos a golpes de capoeira. O único problema é que não sei capoeira.
Apenas pensei em aprender, duas ou três décadas atrás.
Prudentemente, decidi-me pela versão menos perigosa. "Deve estar
pedindo esmola." Vi quando minha amiga ofereceu algumas notas. Achei a esmola
grande, mas disfarcei. O sinal abriu, partimos. Mais tarde, no restaurante, onde
havíamos combinado nos encontrar, ela revelou: fora um assalto! Gentilmente (e
com alguma dor de consciência), fiz questão de pagar o jantar. Ou seja, o assaltado
fui eu, porque o menu custou muito mais do que a quantia roubada.
Conheci uma garota que no último mês foi assaltada cinco vezes, em
semáforos diferentes. Acha normal. Particularmente, acho que o mais grave é
quando uma coisa dessas começa a ser "normal". E inútil revoltar-se. Uma jovem
que trabalha na área de moda estava no semáforo do Trianon, na esquina da
avenida Paulista, às 4 da tarde. O ladrão aproximou-se, pediu o relógio e o dinheiro.
Ela rodopiou o pescoço em busca de ajuda. Foi-se o tempo dos cavaleiros
andantes! Parecia ter-se tornado invisível. Nesse instante, farol verde! Os carros se
moveram. Ela acelerou. O meliante agarrou seu rabo-de-cavalo. Pior que Rapunzel
com suas tranças, ela ficou presa pelos cabelos, com um pé no acelerador, outro no
breque e o pulso entregue ao ladrão. Liberou-se só depois de devidamente
depenada.
Qualquer motorista sabe quais são os pontos mais perigosos. Então por
que ninguém faz nada? Em regiões como a praça Roosevelt e o Trianon sucedemse os assaltos como se fossem terras de ninguém.
Estou começando a desenvolver a síndrome do pânico em cada sinal
vermelho. Fecho os vidros, mesmo agora no verão. Fico parado, olhando
cautelosamente em todas as direções enquanto o interior do veículo se transforma
numa sauna. Logo eu, um tipo capaz de fazer piada de quase todas as coisas da
vida. Mas a questão é séria. Seria cômica se não fosse trágica.
Perder peso e entrar em forma?
Para andar na moda já não basta usar esta ou aquela roupa. E preciso ter o
corpo certo, com as medidas exatas de um halterofilista para eles, com o padrão de
uma ginasta olímpica para elas. Uma tragédia para os barrigudinhos como eu.
Tenho um amigo que passa três horas por dia na academia. Sai do trabalho e corre
para os abdominais, para os alongamentos, para o levantamento de peso. Está com
peito de pombo. Outro malhou tanto que os bíceps parecem dois pernis. A
cabecinha fica enterrada nos ombros como uma coruja. Ambos sentem-se
orgulhosos como gaviões. Uma conhecida passa os. dias malhando. O corpo,
enxuto, não combina com os vincos do rosto e com o nariz em forma de guardachuva. Às vezes dá a impressão de que fez um implante de cabeça.
Tenho inveja dos tempos em que alguém podia envelhecer tranqüilamente.
Fazer exercícios não é mau. O duro é que virou obsessão. Há uma amiga que passa
as noites pedalando numa bicicleta ergométrica enquanto vê as novelas. Outra
comprou uma esteira a prazo, que agora enfeita seu dormitório, com uma porção
de roupas dependuradas. Virou cabide. O filho de outro amigo começou a se
queixar de gordura. Entrou em pane, até convencer o pai a adquirir a bicicleta mais
cara do pedaço. Uma maravilha, colocada no terraço do apartamento. Mal chegou,
atirou-se sobre ela e pedalou quinze minutos, feliz. Nunca mais a usou. Está lá, no
terraço, tomando chuva.
O pior é que qualquer rapaz bombado, qualquer pantera malhada age
como se fosse um ser oriundo das estrelas. Vão às festas de camiseta, com jeans e
roupas colantes. Se eu apareço com um paletó folgado para disfarçar o abdome,
observam-me, fiscalizando. Eu me sinto como se fosse uma bolsa Chanel na vitrine
de uma sex shop. Confesso: resolvi fazer ginástica, recentemente. Tentei o personal
trainer. Ou seja, um professor de ginástica particular, até que eu pegasse o ritmo.
Mal começamos, ele me deitou numa espécie de cadeira de dentista forrada de
preto e me deu uma barra com pesos nas extremidades, a ser erguida vinte vezes.
Ergui uma, foi fácil. Duas, mais ou menos. Na terceira, o coração batia no nariz.
— Estou velho, já não posso mais! — reclamei.
—- Continue erguendo, ou a barra cai no seu queixo — ele avisou,
didaticamente.
Nos abdominais foi pior. Eu contava, e logo chegava aos trinta. Quase
mordi o joelho, de tanto nervosismo. Depois o instrutor me pendurou num
aparelho de alongamento. Fiquei de pernas abertas, barriga para a frente e mãos
agarrando uma barra de madeira, logo atrás.
— Esse exercício tira barriga — explicou.
— Você não pode me algemar aqui, até amanhã? — implorei.
Com um sorriso de desprezo, o crápula terminou a aula.
— Se amanhã você conseguir se mexer, faça alguns exercícios —
despediu-se.
Desde a primeira aula, bastava olhar no espelho para me sentir um atleta.
Assim, continuei com o sofrimento. Aulas depois ele começou a colocar pesos nos
pés, que eu deveria erguer ritmadamente. Dava a impressão de que os dedos iam
cair no chão. Meus amigos, só elogios:
— Agora você vai sentir mais vitalidade
Eu sentia sono só de ouvir a palavra vitalidade. Fui me pesar, esperançoso.
Dois quilos extras.
— E a massa muscular — disse o crápula.
Tanto esforço para engordar? Preferia ter devorado quilos de chantili.
Mesmo assim, persisti no sacrifício.
Outro dia peguei uma revista de moda internacional. Até agora essas
revistas eram pródigas em exibir manequins até quarentões, mas sempre com
peitorais e bíceps expressivos. Surpresa! Em todas, modelos longilíneos, magros,
cabelos compridos e ar romântico.
— O homem musculoso está saindo de moda! — pontificou uma amiga
estilista. — O bonito agora é o tipo dândi, bem magro.
Pensei nos meus amigos nadando, jogando tênis, malhando. O que vão
fazer agora? Trocar de corpo? E eu? Corri ao espelho. Examinei: meus braços
estavam começando a ficar com aquele jeitinho de quem faz ginástica! Ih!
É isso aí. Até quando entro em forma dou com os burros n'água.
Sorrisos Comerciais
ANTES; QUANDO CONVIDADO para uma festa, perguntava qual era a
comemoração. Hoje verifico que produto será lançado. São cada vez mais raras as
reuniões sociais sem interesse definido. As pessoas perderam o prazer de se reunir
para bater papo simplesmente. Isso em todos os níveis sociais. Conheço várias
donas-de-casa que sempre se encontravam para tomar café com leite, comer bolo e
destrinchar a vida alheia. Na semana passada minha tia foi convidada para passar a
tarde na casa de uma vizinha.
— Que bom, faz tanto tempo que não batemos papo! — suspirou.
— Bem... Se der, a gente conversa um pouquinho — reagiu a vizinha. -—
Mas a reunião é para você aprender a reprogramar sua vida vendendo cosméticos.
— Gosto de minha vida, e já me aposentei!
— Engano seu. Venha à reunião! Vai perceber como é infeliz!
As festas de sociedade no passado eram ofuscantes. Após cada uma, as
pessoas esquadrinhavam as colunas para analisar o vestido dessa, o penteado
daquela. Damas eram veneradas como estrelas de cinema. Tornaram-se garotaspropaganda. Coquetel com gente badalada é para lançar carro, xampu, aparelho
contra celulite. As pessoas se arrumam, se perfumam, e vão fazer caras e bocas de
copo na mão, diante dos fotógrafos. Tanto que certas figurinhas carimbadas, como
o Chiquinho Scarpa, estão cobrando cachê para comparecer. Como a festa perdeu a
grandiosidade, os convidados se comportam à altura. Ficam disputando
salgadinhos, e no final todos se estapeiam para não sair sem o brinde. Pior é
quando o convite implica o uso de uma camiseta e o evento elegante vira um
festival de barrigas e pneus acentuados pelo modelito.
Surgiu até uma nova profissão: promoter. E o especialista em transformar
a festa em sucesso. Agita os convidados, organiza o bufê e permanece na porta
com um sorriso atarraxado. Há casos de promoters que sofrem deslocamento do
maxilar de tanto reverenciar os convidados. Alguns são bem sérios, com escritórios
montados etc. Exceções. Sei promoter é coqueluche. A profissão implicaria
conhecimento das regras de etiqueta, por exemplo. Há uma profissional na cidade
que é o próprio papagaio de pirata. Basta chegar um famoso e ela sé pendura para
tirar fotografias. Adora vestir jeans justíssimos e collants. Talvez seja a única
promoter mundial no gênero farofeira. Outro faz o gênero cambalacheiro. Há dois
meses armou um grupo vip para ir ao Moinho Santo Antônio. Todos deixaram
seus carros para chegar de microônibus, com ar-condicionado. Os vips desceram,
chiquérrimos, e receberam uma carteia cada um. Na hora de sair, a conta -—
cerveja por cerveja. Uma socialite gemeu:
— Mas eu sou vip. Sou convidada do... Onde é que ele foi?
Desapareceu. Tal como a promoter que exigiu a presença de um executivo
assanhado na festa do Mercado Mix.
— Venha com três amigos. Vou deixar seu nome na porta, como vip.
Quando ele chegou, nem nome nem promoter. Morreu com a entrada dele e
dos amigos. Trata-se de uma estratégia: seduzir pagantes dizendo que são vips.
Pobres vips, que fim!
Mesmo inocentes festas de aniversário passaram a ser eventos
promocionais, porque em certas profissões, como estilistas de moda, aparecer dá
lucro. Resultado: os promoters contratam pessoas para comparecer e evitar o salão
vazio. Pagam pouco, mas é divertido. Que o digam os modelos jovens chamados
em todas as ocasiões sociais só para ficar circulando. Os promoters ganham, a
boate fica animadíssima, o dono se sente prestigiado. Pergunto: cadê a festa? Passo
a noite toda comemorando e, no dia seguinte, descubro que estava promovendo
desodorante. Que graça tem?
Decidi me vingar quando fizer aniversário. Quero bolo com velinhas,
bexigas no teto, língua-de-sogra e chapeuzinho colorido para os convidados. Vou
chamar amigos velhos, até os chatos. Não será nenhum grande evento badalado.
Pode até parecer coisa tonta. Mas vou dar boas risadas, e isso é que era bom nas
festas de antigamente!
Adeus ao Fogão
SENTO À MESA COM o estômago dançando rumba, de tanta fome. Há
quarenta minutos, eu, minha cunhada e as duas sobrinhas esperamos a feijoada
descongelar. A carne-seca, o toucinho e o paio imersos no caldo negro são,
finalmente, apresentados. Encho o prato, degusto a primeira garfada. Puro sabor de
asfalto. As duas sobrinhas quase desmaiam de enjôo, enquanto minha cunhada dá o
veredicto:
— Queimou.
Um sentimento de tragédia paira no ar. Como é sábado, o expediente da
doméstica já acabou. As três sabidonas mal sabem fritar um ovo. Proponho fugir
para um restaurante. Concordam, entusiasmadas. Apenas uma ressalva, da mãe:
— Só que estou sem talão de cheques...
Submeto-me. Saímos em direção ao mais próximo. Na
porta, o namorado da sobrinha mais velha incorpora-se ao cortejo. Chegou
tarde, mas em jejum! Pouco depois, com as cabeças enfiadas em tigelas de feijãopreto, conversamos. Estou surpreso: não sabem cozinhar nem para emergência?
— Uma vez eu fiz uma sopa num acampamento em Maresias — conta
uma. — Mas de pacotinho!
É uma constatação: as mulheres andam cora orgulho de ficar longe das
panelas. As conquistas femininas implicam quebrar os grilhões que as prendiam ao
forno e fogão. Fico impressionado com o número de mães executivas que criam
seus rebentos à base de salsicha e hambúrguer.
Essa geração acha vantagem confundir berinjela com abobrinha. As que
cozinham melhor são especializadas num único prato. Conheço uma garota que
adora fazer frango no azeite. Afoga peitos e coxas numa fôrma repleta de óleo e
deixa no forno até secar. Se algum convidado tiver colesterol alto, morre no jantar.
Outra se sente o máximo quando coloca um macarrão com consistência de chiclete
na minha frente. Dou uma garfada e meus dentes ficam presos no prato.
— Gosto assim, bem molinho — explica a gourmet.
Não é à toa que um número crescente de homens descubra talentos
culinários. Engano imaginar que é vocação. Trata-se de pura sobrevivência. Afinal,
a maior parte dos mancebos da mesma geração foi criada por mães esplendorosas,
capazes de passar uma tarde inteira enrolando brigadeiros para a festinha de
aniversário. Quando se casam, enfrentam os sinais do avanço da luta entre os
sexos. Um amigo recém-casado geme:
— Ela só sabe fazer estrogonofe. Nos finais de semana, dá-lhe
estrogonofe. Cada vez que vejo os pedacinhos de carne boiando no molho tenho
vontade de chamar minha mãe. Outro dia pedi para ela fazer um bolo. Saiu um
pedaço de cimento.
Reclamei, chamou-me de machista!
— Sua mulher trabalha?
— Ainda não... Pensamos em ter um filho. Morro de medo de ter de
passar as noites esquentando mamadeira. Ela é incompetente até para fazer café!
Algumas, mais cruéis, vivem fazendo regime e submetem o marido a ele.
Um rapaz começou a afinar. Quando estava quase despencando, revelou:
— No jantar, só salada de alface e cenoura ralada. Ela emagreceu, eu
sumi. O pior é que me faz ralar as cenouras, para não quebrar as unhas. Às vezes
acordo no meio da noite sonhando com um filé mignon!
Sei que muitas mulheres ficam "bravésimas" com esse tipo de crítica.
— Não temos nenhuma obrigação de saber cozinhar! — insiste qualquer
garota pós-moderna.
Em termos de avanço social, seria fundamental transformar o arroz em
mingau e o bife em sola de sapato? Hoje em dia, a figura da doméstica de forno e
fogão, escravizada no emprego, tornou-se cada vez mais rara. Digam o que
disserem as feministas de última hora, dietas à base de pizza com gosto de papel
não são uma forma de felicidade.
No último Natal, quis agir com sutileza. Minha prima se descabelava
porque perdera a empregada de muitos anos. Ofereci-lhe um livro de receitas.
Meses depois me convidou para jantar. O menu: comida chinesa, entregue em casa.
Surpreendi-me:
—E o livro?
— Estou lendo! — respondeu alegremente.
— Não é um romance para ler! É para fazer! — rugi.
Ela me encarou, magoada. Mesmo assim, pretendo continuar com a
estratégia. Quando alguma amiga executiva faz aniversário, presenteio com Dona
Benta, A Maravilhosa Cozinha de Ofélia e outras preciosidades do gênero. Pode ser
até que não dê certo. Mas adoro ver a expressão de susto quando abrem o pacote!
O Mestre da Faxina
SUBITAMENTE, MINHA FAXINEIRA desapareceu. Deixou chinelos,
um avental e um maço de cigarros pela metade. Três semanas depois, resolvi:
— Eu mesmo vou limpar o apartamento!
Peguei um saco de lixo grande, botei dois coadores de café usados, a casca
de uma mexerica e algumas torradas secas. No processo, um pedaço de torrada caiu
no chão. Esmigalhei-o com o pé, sem querer. Observei horrorizado os pedacinhos
se espalharem pelo piso.
— Não tem importância, depois vou lavar o chão.
Joguei o lixo. Voltei. Abri a geladeira. Duas cenouras mumificadas me
observavam. Retornei ao lixo. Foram dez idas e vindas. Sempre esquecia alguma
coisinha! Finalmente, encarei a cerâmica da cozinha. Originalmente, é branca. A
alvura ocultava-se sob manchas marrons, vermelhas e cinzentas. Passei a vassoura.
As manchas continuavam lá. Tocou o telefone.
— Estou às voltas com a vassoura — expliquei, sorridente.
— Vai voar? — perguntou meu interlocutor.
Desliguei e voltei à cozinha. Tinha espalhado as migalhas de torrada por
todo o trajeto. Achei melhor me concentrar e pensar na sala mais tarde.
Cautelosamente, espalhei o líquido limpador multiuso no chão. Puxei a sujeira com
o rodinho. As manchas desapareciam magicamente!
— Venci as faxineiras — comemorei.
Só então descobri estar do lado oposto à porta. Ao voltar sobre a área
limpa e molhada, na ponta dos pés, minhas botas espalharam marcas pretas, bem
redondinhas. Dava a impressão de que uma cabra havia passado por lá. Suspirei.
Tirei os sapatos, as meias e arregacei as calças. Joguei limpador de novo. Puxei o
rodinho, dessa vez ao contrário. Trouxe uma horrível borra cinza até a porta da
sala. Quando ia atingir meu tapete persa, corri até a pia, peguei um pano e ajoelheime para eliminar a borra. O pano estava imundo, emporcalhei tudo mais ainda.
Pior; meus joelhos também se sujaram e minhas próprias calças passaram a criar
manchas. Não tive dúvida: tirei a roupa toda.
— O melhor é ficar nu — concluí, embora, é claro, nunca tenha visto uma
faxineira trabalhando pelada,
Retornei à pia, tentei lavar o pano. A pia entupiu. Corri ao banheiro,
acrescentando mais marcas no chão. Molhei e torci o trapo. Mais limpador. Notei
que as casquinhas da torrada, apesar de todo o meu empenho, pareciam ter colado
na cerâmica. Agachei-me e, com a ponta das unhas, fui tirando uma por uma. Até
quase enlouquecer. Quis chorar. Pus a mão nos cabelos, e o líquido de limpeza
começou a escorrer pelo meu rosto. Espirrei. Joguei água por tudo, espalhei sapólio
e passei o rodinho. Meus pés arderam. Ao. puxar os detritos, eles voaram no tapete
persa. Deitei-me sobre ó tapete para caçar os pontinhos de sujeira. Nesse instante,
o rodinho escorregou e caiu em direção ao ralo. Na batida, uma poça d'água
explodiu. Com fúria, agarrei o pano e passei em cada milímetro do piso. Desmaiei
no tapete, exausto. Olhei a cozinha.
Surpresa! O piso estava limpo! Suspirei, quis tomar um café. Duas gotas
negras caíram da xícara. Desesperado, quase lambi o chão. Limpei com meu
próprio lenço. Respirei profundamente, senti minha franja grudada nos cílios. Uma
mancha de sapólio se instalara na minha barriga! Corri para a ducha. Adormeci
pensando como seria fascinante limpar a sala, no dia seguinte.
De manhã bem cedo, a faxineira reapareceu, com uma história
complicadíssima. Quase beijei seus pés. Sempre desdenhei os trabalhos domésticos.
Quando ouvia alguém falar em ser dona-de-casa, torcia o nariz. Já me arrependi.
Francamente! Que vida!
Generais do Cotidiano
COM UM FILHO NO COLO, sacola na mão e passo vagaroso, a diarista
toca o interfone do prédio. Entrada permitida, sobe uma longa escada à direita.
Está no meio quando o porteiro se aproxima rugindo, braços agitados:
— Volte! Vá pela da esquerda.
Protestos, lamentações, nada adianta. A moça desce penosamente os
degraus para retomar o caminho. Que leva exatamente ao mesmo lugar, o lobby do
edifício. O porteiro cruza os braços, vitorioso. Fez valer a autoridade. Diz um
ditado que basta dar um quepe a alguém para que essa pessoa se sinta general.
Nunca vou esquecer o dia em que estacionei em frente a um prédio residencial na
alameda Lorena, nos Jardins. O porteiro, gritou, com voz de comando:
— Você não pode estacionar aí. Tire o carro.
— Por quê? A rua é pública.
— Mas o síndico não gosta.
Senti a Declaração dos Direitos Humanos ferver dentro da minha cabeça.
Não que ela entre em detalhes sobre síndicos. Mas o nome pomposo mexe com
meus brios de cidadão. Ergui o queixo:
— Pois é aqui que ele vai ficar. Se eu voltar e tiver acontecido alguma
coisa, tipo pneu murcho, chamo a polícia.
No regresso, o veículo estava intato. Eu não. Passei o tempo todo, na visita
a uma amiga, preocupado com a possível represália.
O maior terror dos candidatos a vestibular é chegar um minuto atrasado.
Há sempre uma inspetora fechando a porta. Se o estudante tentar entrar pela fresta,
é capaz de decepar os dedos da mão, tal a decisão dessas guardiãs.
— Você ainda nem fechou direito.
— Atrasou, não entra!
Inútil argumentar que o minuto vale um ano. O prazer dessas pessoas é
exercer a autoridade. Como fazem as recepcionistas de empresa.
— A identidade, por favor.
— Estou sem ela. Tenho o título de eleitor, serve?
-
— Não, não tem foto.
A minha foto da identidade tem uns vinte anos e uns vinte quilos a menos.
Para que serve, a não ser para refletir sobre os espinhos da passagem do tempo?
Falar de certas secretárias é redundante. Existem as mais ferozes do que os
chefes.
Telefono e entra em cena a inquisidora:
— Qual é o assunto?
— Diga apenas que sou eu.
— Ele sabe quem é?
— O interesse é dele. Se não quiser avisar, o problema é seu.
Ouço um gemido raivoso do outro lado. Quando sentem a autoridade
trincada, deixam aflorar os sentimentos mais selvagens. Os seres mais terríveis no
exercício dos pequenos poderes estão, provavelmente, na área artística. Testes para
ator de teatro são a prova. Um bando de jovens passa horas e horas esperando
numa sala. O diretor e alguns asseclas chamam de um em um. Mandam o candidato
falar de si próprio, dançar, cantar, contar piada. Olham de cima, como se
estivessem diante de um verme, enquanto a. pessoa rebola e desafina. Depois
concluem:
— Daqui a alguns dias a gente telefona.
Nunca mais chamam, nem atendem se o candidato liga. É o mesmo estilo
de quem recebe pretendentes a modelo nas agências especializadas. A mocinha de
cabelos bem cortados, sorriso sedutor, cordas vocais gélidas, avisa a adolescente
esquálida que ambiciona as passarelas:
— Espera aí que eu já falo com você.
Passam-se três ou quatro horas antes que a anoréxica seja percebida
novamente, embora esteja no sofá em frente.
— Ih, você ainda está aí? Esqueci de dizer, nosso diretor não vai receber
mais ninguém hoje. Desculpe.
Sorri, derramando fel.
A gana pelo poder é tão grande que certas pessoas o exercem sem que se
entenda bem por quê. Foi o caso de duas senhoras, recentemente, numa rua do
Itaim. O marido de uma parou o carro, fechando a vaga do de trás. A dona do
carro preso quis sair. Não conseguiu, começou a brigar. A que esperava o marido
pediu um tempo. Começou o bate-boca, que continuou após a chegada do
motorista e a liberação do carro. A tantas, a primeira gritou:
— Você sabe com quem está falando?
Imediatamente, a segunda retrucou:
— E você, sabe com quem está falando?
Olharam-se, apavoradas uma com a outra. Correram para seus carros e
partiram rapidamente.
Quem gosta de mandar sempre acaba encontrando quem queira mandar
ainda mais. Trombam e soltam faíscas. E a prova de que rio mundo ainda existe
uma certa justiça!
Nos tempos da naftalina
Brrrrr! Passei a vida toda dizendo que adoraria viver em um país com neve.
Só para bancar o chique, naturalmente. Observava, sonhador, as fotos de estações
de esqui, embora morra de medo de altura e seja descoordenado demais para descer
geleiras sem embaralhar as pernas. Tudo bobagem. Passei os últimos tempos
rugindo contra o frio. Felizes, em São Paulo, ficaram apenas as proprietárias de
peles que, após anos de espera, puderam retirá-las dos baús. Outro dia pensei que
uma senhora estivesse sendo mordida no pescoço por um cachorro magro.
Aproximei-me, heróico. Tratava-se de uma raposa. Mumificada, de tão velha.
Francamente, nada mais tenebroso do que os dentinhos brancos e a boca
arreganhada do bicho.
O frio provou que a cidade não está aparelhada para o inverno. A começar
pelas obras arquitetônicas. Uma conhecida investiu fortunas construindo uma casa
de concreto pendurada no morro, e assinada por um arquiteto de renome. Seu
quarto, voltado para a paisagem, possui portas-balcão belíssimas, bem em frente à
cama. Pelas frestas entra um vento frio a noite toda. O chão, lindíssimo, de cimento
branco, assemelha-se hoje a um campo nevado. Vestida com uma camisola de
flanela, pantufas e uma touquinha para proteger as orelhas, a elegante comenta,,
com um sorriso conformado:
— Dá a impressão de que estou morando num freezer. Mas vou acabar
me acostumando.
— Tenho uma informação desagradável. Ninguém se acostuma ao frio.
Senão os esquimós andariam pelados — explico gentilmente.
Ela disfarça. Dorme abraçada com sua cachorra da raça pastor alemão, à
qual, com a função de aquecedor biológico, foi promovida do canil para os lençóis.
Da minha alergia, nem falo! Noite dessas compareci a um desfile de moda.
O odor da naftalina dos casacos de lã, peles sintéticas e outros artefatos era
evidente. Nem o perfume francês de algumas "modetes" evitou meus espirros.
Pior, apenas o sorriso estarrecido dos modelos desfilando biquínis e maios.
Andavam pela passarela com a desenvoltura de sorvetes. É o preço do glamour.
Também os guarda-roupas não estavam preparados para os ventinhos torturantes.
Foram anos e anos de inverno enganador. Quantas vezes passei incólume diante de
liquidações de camisas de flanela! E mesmo agora, poucos ainda acreditam em frio
duradouro, capaz de compensar o investimento em casacos e botas forradas.
Prefere-se dar um jeitinho. À custa de enormes transtornos psicológicos,
reconheço. Como quando decidi vestir uma confortável calça de veludo. Não
abotoou na barriga. Respirei fundo, consegui. Soltei o ar, o botão de cima
incrustou-se no umbigo. Quase chorei. Uma calça apertada é sempre a testemunha
cruel dá passagem dos anos. Consolo-me por não ser o único. A cidade vive um
festival de paletós apertados no abdome, casacos largos demais e buracos de traças
em geral. Um amigo careca botou boné.
— Tive medo de a geada queimar o resto dos cabelos — explica.
Qualquer jantar transforma-se num desastre. No trajeto entre a travessa e o
prato, a comida esfria completamente. Somos obrigados a devorar estrogonofe
gélido e macarrão colante. Comer pizza pode resultar em fratura de queixo.
Só me surpreendo com certas mulheres, capazes de sair de pernas de fora,
saia curta e sapatos de salto. Deviam ser estudadas pela Nasa e utilizadas em
alguma experiência de vida em ambiente alienígena. Às vezes sinto tanto frio que
sonho entrar numa banheira cheia de conhaque com um canudinho na mão.
Confesso a saudade das camisas de manga curta, dos sapatos, da cervejinha gelada!
Mal posso esperar pelo verão! Ele virá, eu sei. Ainda bem. Aí poderei reclamar do
calor.
Mentiras Felizes
SÁBADO. RESTAURANTE. Entro com uma amiga. Ambos dispostos a
pedir uma salada. Batemos os olhos na mesa do lado. Cumbucas de feijoada. Não é
preciso dizer uma palavra. E uma das raras situações em que se pode provar a
existência da telepatia. Mal o garçom se aproxima, uivamos ao mesmo tempo:
— Feijoada!
Chegam as duas cumbucas, mais a guarnição. Que delícia, torresmos!
Devoro os meus e os dela. Em compensação, Lalá ataca minha costelinha. Paio.
Carne-seca. Orelha, de porco. Couve com bacon. Farinha. Muito feijão-preto. Tudo
regado a cerveja. Na última garfada, tenho a impressão de que vou desmaiar, de tão
cheio. Ainda encontro forças para a pergunta essencial:
— O que tem de sobremesa?
Doce de abóbora com queijo para mim. Torta de chocolate para ela. Raspo
o prato. Por pouco, não o lambo. Eu e Lalá poderíamos sair rolando do
restaurante. Pedimos o cafezinho. Quando o garçom serve, ela exige:
— Traga o adoçante!
Surpreendo-me:
— Você acha que vai emagrecer por conta do cafezinho?
Ela pinga as gotinhas de hipocrisia e diz com a voz doce de uma gulosa:
— Sempre é melhor.
Levanta a xícara, certa de que continua fazendo regime.
É espantoso como o cotidiano é povoado de enganos. Mentimos a nós
mesmos. Damos o truque nos outros. O mais impressionante é que... funciona!
Outra amiga morre por liquidações. Outro dia apareceu com a sacola cheia.
Três jeans e um par de sapatos um número abaixo do seu. Apertava, mas, com boa
vontade, servia.
.— Aproveitei. O preço está baixíssimo. Economizei.
-— Mas você tem o armário cheio de jeans! E não vai suportar o sapato.
Gastou à toa.
Irritou-se. Quem gosta de gastar sempre acha que economiza.
Mentiras em relação à idade sempre funcionam. Dia desses uma senhora
me revelou:
— Já passei dos 50.
Em seguida, fixou os olhos em mim, aguardando o "oh" de surpresa. Abati
os dez anos de praxe e comentei, com expressão fascinada:
-— Você não aparenta a idade que tem. Eu não daria mais que quarenta.
Sorriu, satisfeitíssima. Acreditou. Todo mundo acredita nessa conversa. É a
mesma coisa que encontrar alguém e não se lembrar quem é. O sujeito diz:
— Não está lembrando de mim? Eu sou o...
Imediatamente estico os lábios até as orelhas.
— Você? Mas o que você fez? Parece dez anos mais jovem!
Claro que eu não o estava reconhecendo.
Em vez de sentir-se insultado, ele infla de vaidade. Outra coisa que
funciona é dizer, surpreso:
— Que foi que você fez para estar tão diferente? Cortou o cabelo?
— Ah, é... Ficou bom?
Aniversários e festas também são um prato cheio para as falsidades.
Encontro um conhecido e comento:
-— Ah, soube que você fez aniversário.
— Por que você não foi?
— Bem... É que nem fiquei sabendo da festa.
— Ah, eu não avisei ninguém. Foi quem quis.
Mentira deslavada. Todo mundo liga convidando os amigos. Dizer que
ficou com a mesa posta e a porta aberta é pura malandragem. A pior de todas é
quando sou empurrado para a casa de alguém. Chego e descubro que está rolando a
maior festa, para a qual não fui convidado. Tento sair correndo. O anfitrião chega,
de braços abertos:
— Que bom que você veio!
Bom por quê? Se achasse que era bom, teria me chamado. Agradeço e trato
de pegar uma bebida. O outro lado da moeda é chegar de mãos abanando.
— Não deu tempo de comprar seu presente. Depois eu...
Depois coisa nenhuma. Posso beber, comer e me fartar sem dor na
consciência. Finjo acreditar que comprarei o presente. O dono da casa finge que vai
ganhar, e a noite segue.
Mentiras são mentiras. Mas algumas tornam a vida mais confortável. Quem
não adora uma pequena e deliciosa falsidade?
Banhos, Banheiros & Cia.
UM DOS MISTÉRIOS DA ARQUITETURA moderna é a importância
dada aos banheiros. Há algumas décadas, um casarão tinha dois, no máximo três
banheiros. Observo os anúncios dos apartamentos modernos. Propagandeiam o
número de suítes. Quanto mais, mais luxuosos e mais caros. O número de
banheiros faz a glória dos corretores. A sala pode ser pequena. A cozinha,
minúscula. O quarto de empregada, equivalente a um armário — eu me pergunto
quando as empregadas vão aprender a dormir de pé! Banheiros, há em profusão.
Um apartamento de luxo médio possui três suítes, um lavabo e um banheiro de
empregada. Em contrapartida, tem três dormitórios, sala dupla, cozinha, quarto de
empregada. Cinco banheiros para seis cômodos! Casais modernos e abastados
fazem questão de dois banheiros na suíte. Uma senhora me revelou:
— A razão pela qual nunca me separei é que meu marido tem o banheiro
dele.
Isso que é matrimônio!
Os apetrechos também estão se tornando mais sofisticados. Designers
criam louças assinadas. Sanitários com grife nunca pensei! Uma amiga comprou
uma banheira com pezinhos, réplica dos antigos modelos vitorianos. Linda. Assim
que instalou, quis inaugurar. Encheu. Botou essências. Entrou. Tentou sentar-se.
Escorregou. A banheira era funda, ela, baixinha. Agarrou-se às bordas para não
morrer afogada. Quis erguer-se. Patinou. Foi Um custo. Quando conseguiu, a
perna não ultrapassava a borda. Agarrou-se à parede. Os dedos deslizaram pelos
azulejos. Quase dependurada no registro, conseguiu botar um pé para fora.
Resvalou pelo tapete. Salvou-se por pouco. Quando me contou a aventura,
observei:
—- Você teve sorte. Do jeito que anda gorda, podia ter entalado.
Agora está pensando em usar a peça para criar carpas coloridas,
Entrar no chuveiro ou afundar na banheira é um ato cada vez mais
glamouroso. Só no Shopping Pátio Higienópolis existem duas lojas em que o forte
são os produtos para tornar o banho um ato de luxaria. Sabonetes com todo tipo
de promessa. Uns relaxam, outros melhoram a vida amorosa, outros energizam.
Como se o simples ato de limpar não fosse mais suficiente. Sal grosso aromatizado
para tirar o mau-olhado e perfumar. Existem até umas bolinhas exóticas. Jogam-se
na banheira e elas efervescem, soltando pétalas de flores. Alguns sabonetes também
trazem flores incrustadas. Ganhei um. À medida que usava, foi surgindo uma
margarida. Mais tarde, alguém comentou:
— O que você tem na orelha?
Eram pétalas. Também havia algumas em meus cabelos. Quando vi, estava
arrancando pétalas de todo o corpo. O sabonete me transformara em um sachê!
Comentei o fato com a amiga que me presenteou. Ela irritou-se:
— É um sabonete supernatural. Não serve para tomar banho.
— Poderia me explicar para que serve um sabonete?
— Esse é para levantar o astral. E, se não levantou o seu, o problema não
é com o sabonete. É com você mesmo!
Haja! Sabonetes também estão ganhando grifes! Os industrializados
seguem a onda. Outro dia peguei uma embalagem que prometia vantagens
adicionais. Vitaminas potentes, hidratação. Deu a impressão de que bastava usar
três vezes para nunca mais pensar em operação plástica. Rejuvenescimento e
espuma, eis tudo. Mas o grande hit da tendência vem do Japão. Banho em ofurô
entrou na nova novela das 7. Prova de que a moda está ficando mais forte que
nunca. Quis experimentar. Toma-se um leve banho antes e entra-se numa tina
escaldante. Nunca tinha conjugado o verbo ferver. Agora sei como se sente uma
galinha que vai ser canja. Tentei levantar e sair. Avisaram:
— Relaxe. Aproveite! Descanse e elimine as tensões.
Insisti. Fervi mais um pouco. Só a cabeça de fora. Meu corpo ficando
rosado. Comecei a lembrar de histórias de missionários capturados na África.
Tenho um primo que é missionário. Ultimamente tem enviado cartas falando em
fazer contato com uma tribo canibal. Talvez devesse convidá-lo para um banho de
ofurô, para testar sua vocação. O fato é que saltei fora em exatos sete minutos e
meio. Reconheço que fiquei aliviado ao sair. Qualquer ser humano relaxaria ao
salvar-se dá água escaldante.
Sempre fui do tipo antiquado, para quem um banho é um banho. Fervidas
à parte, reconheço que sabonetes delicados, essências, flores boiando na água e
toalhas felpudas têm seu charme. No dia-a-dia tão banalizado, um banho calmo,
mas glamouroso, é quase uma experiência existencial.
Turista de Imobiliária
TENHO ALMA CIGANA. Adoro mudar de casa. Reformar, nem se fala.
O som dos martelos quebrando azulejos é música para meus ouvidos. Amaria ser
corretor de imóveis. Assim, depois de trocar o endereço três vezes em quatro anos,
resolvi vender minha nova casa. Doidice? Meu lar era um sonho. Rouxinóis, sabiás
e rolinhas enfeitaram as árvores. Tantos pássaros que a barulheira até me irritava.
Comia amoras do pé. Estava a cinco minutos da Paulista, do centro e das
marginais. Só minha mãe fazia ressalvas:
.
— A casa tem escada. Quando estiver velho e com reumatismo, você vai
ter dificuldade para subir.
-— Mãe, ainda estou na casa dos 40.
Ela calava-se e assumia uma expressão sábia. A mesma de todas as mães
quando acabam os argumentos, mas ainda sentem que têm razão.
Um dia acordei a mil. Chamei meu amigo José Antônio, dono de uma
imobiliária, e mandei avaliar. No outro dia, a frente estava cheia de faixas, e eu com
um sorriso atarraxado. E. incrível como tem gente disposta a ver uma casa!
Veio uma pintora. Mal-entrou, lançou-se aos elogios.
— Meu lar, achei meu lar! Aqui será meu estúdio... Aqui...
Parecia disposta a se mudar na semana seguinte. Comecei a imaginar como
torraria o dinheiro da venda. Pois sim! Nunca mais vi a tal artista! Outra achava
defeito em tudo. Desprezo total.
— Aquela parede está rachada — apontou com ar de especialista.
— É só o reboco.
Fez cara de quem duvidava. Eu me senti culpado, embora dissesse a
verdade. Quase pedi:
— Desculpe-me por ter esta casa!
Arrasado, telefonei para a imobiliária:
— Não gostaria de fazer negócio com ela. Parece loucura, mas...
— Sabe da última? A madame mora em um apartamento pequeno e não
tem onde cair morta. Gosta de fingir que é compradora para passear na casa alheia.
E conhecida de outras imobiliárias! — contou a corretora Marilene.
Parece que é comum. Turista de imobiliária! E eu sorrindo, fazendo-me de
bonzinho... Até ofereci café! Ah, que raiva!
Preparei um tour, começando pela sala, quartos. O problema era o quintal.
Meu cachorro é um husky siberiano. Impossível prendê-lo. Escala muros e grades
como gato. Morder não morde, mas é grandão. Estrategicamente, deixava para o
fim. — Bilu, bilu... Olhe que gracinha! Pode vir, ele não morde.
— Não sei...
Tem uns dentões — reagia o interessados
— Que é isso, olhe que árvore linda! Viu? Um passarinho!
Voou, voou!
O candidato encarava o cão, apavorado. Devo ter perdido boas vendas por
causa do salafrário! Um quarentão apaixonou-se pela casa. Trouxe a mulher, os
filhos, a mãe. Fez uma oferta em vários anos, com uma quitinete inclusa. Quando
neguei, ofendeu-se. Parecia estar fazendo um favor.
— Sua casa tem tijolo de ouro?
— Se não pode, não compre.
Poder, podia. Muitos compradores adoram imaginar que o vendedor está a
míngua. Almejam raspar o tacho.
Quase arranquei a faixa. Dali a dois dias apareceu um casal. Viu a casa
rapidamente. Achei que não se tinha impressionado.
Meia hora depois, fez uma oferta. Logo fechamos. Conheci a família. Tem
um filho pequeno que vai adorar o jardim e outro que pode ensaiar a banda na
garagem. Ela já está planejando sua festa de aniversário. Fiquei feliz, porque sei que
vão ser felizes. Agora vou mudar. Encontrei um apartamento. Já mandei quebrar os
azulejos... Ah, o doce som dos azulejos quebrando! Tudo vai começar novamente!
Em Busca de Status
AO ENTRAR NA SALA DE um amigo, observo uma luminária idêntica a
um chifre. Ele a exibe, orgulhoso.
— Phillipe Starck. Só existem três no Brasil.
Atarraxo um sorriso de admiração. Como dizer que parece o despojo de
uma fantasia da Vai-Vai? Entusiasmado, ele aconselha:
— Na loja havia uma cadeira de couro de vaca incrível, assinada. Você
precisa comprar.
— Mas não preciso de mais uma cadeira.
— E uma oportunidade única, e você vai jogar fora?
Suspiro. Devia jogar a cadeira na cabeça dele. E impressionante como as
pessoas dão valor a grifes. Há bastante tempo vi uma carteira Louis Vuitton com
desenho quadriculado. Linda. Fui verificar. Meus documentos não cabiam. O
vendedor explicou:
—- E que os documentos europeus são de tamanho menor. Os nossos
ficam sobrando.
Agradeci. Um amigo que me acompanhava se escandalizou. -— Não vai
levar?
— Onde vou botar minha identidade?
Mas quando você abrir a carteira todo mundo vai notar. É chique.
Sou do tipo que só compra quando gosta. Espanto-me quando vejo as
pessoas se digladiando p.ara ser elegantes. Visito um casal. Ele me oferece um
drinque.
— Uísque 12 anos, de uma reserva especial. Você nunca experimentou
igual.
— Obrigado, só quero água.
— Você tem de experimentar! É o máximo!
Enche meu copo. Observo a samambaia mais próxima. Quantas vezes terá
sido regada pelo uísque? A busca por status faz com que modas sejam inventadas.
Sempre odiei tiramisu. Há algum tempo, ninguém podia dizer que não gostava.
— Prefiro creme de papaia -— arrisquei, certa vez, à mesa.
Olharam-me como se fosse um ET. Descobri que o creme fora a moda de
um ano atrás. Querem botar grife até dentro do meu estômago! Agora que o
tiramisu se tornou mais popular, é até fino desdenhar. Escritores também podem
entrar em moda.
— Você já leu o último da saga de Ramsés.
— Não gostei do primeiro, parei.
— Ah, mas todo mundo está lendo. Eu também achei um pouco
exagerado... mas só falam nisso!
E filmes que não se pode deixar de ver? Já perdi a conta.
Gada vez que desembarca uma nova Bruxa de Blair, há uma comoção.
—
Como, você não viu?
— Assisto mais tarde, no vídeo.
— Mas aí é diferente. Todo mundo já vai ter visto.
Será que, por todo mundo desfrutar, o filme perde o interesse, a comida o
sabor? E a mania de conhecer vinhos? Se parte dos homens de negócios se
dedicasse a estudar os gregos com o mesmo afinco com que decora rótulos,
teríamos um país de filósofos. Guerra semelhante acontece entre conhecedores de
charuto. Discutem aromas. Nuances. A maioria seria incapaz de distinguir um
cubano de um cigarro de palha do sítio. Respeito os apreciadores das coisas boas da
vida. Mas é terrível ver alguém comendo, bebendo e fumando só para parecer o
que não é, nem precisa ser.
De maneira mais cruel, algumas personalidades se tornam notórias da noite
para o dia. São convidadas para todas as festas. Pensam que entraram para o grand
monde. Bobagem. Passa algum tempo e seu telefone pára de tocar. São descartadas
como a roupa do verão passado.
Inventaram até uma expressão para dizer que alguma coisa é chique e
imprescindível: Estava em uma badalada loja de roupas masculinas. A gerente
conversava com um rapaz. Comentou.
— Seu sapato é tudo.
O elogiado sorriu como se tivesse ganho a Mega-Sena.
— Eu sei. E mesmo. Tudo.
O sistema solar não é tudo, a via láctea não é tudo. Como um sapato pode
ser?
Falando assim, parece que estou me referindo aos ricos, ou pelo menos à
classe média abastada. Coisa nenhuma. Soube que uma grande grife, que patrocina
desfiles chiquérrimos, vive da venda de camisetas e jeans. Seu público: office-boys e
congêneres. Gastam o pouco que ganham para ter roupa com etiqueta. Quanto
mais jovens, mais estritos: é preciso usar os tênis que todos usam, botar o jeans, a
calça. Caso contrário, serão desdenhados como o patinho feio.
Fico pensando: nessa ânsia por ser especiais, as pessoas tornam-se
idênticas. Ser "tudo" acaba sendo um bom caminho para terminar em nada.
A Etiqueta Carioca
MUITOS SÃO OS ERROS que um paulistano comete no Rio de Janeiro.
Cariocas vivem de uma maneira peculiar. Nenhum paulista jamais passará por
carioca, mesmo que exagere nos calções, no torso sem camiseta, nos óculos
escuros, e bote uma lixa dentro da boca para arrastar os "erres". Parecerá um
paulista metido a carioca, no máximo.
A primeira dica (dica é uma palavra muito paulista, por sinal. Um carioca
preferiria "sacada", eu acho) é na área das relações sociais. Cariocas são falantes e
simpáticos. Você conhecerá gatas, gatos, hipopótamos e baleias comprimidas em
biquínis do tamanho de um lenço de nariz. Ao final da conversa, sempre vem a
frase:
— Quando é que você vem em casa?
Não cometa a bobagem de sair atrás de uma caneta, papelzinho para anotar
o endereço, ou qualquer atitude igualmente constrangedora. O carioca não
pretende dizer onde mora. É apenas uma forma cordial de comentar que, apesar de
paulista, você é um ser humano.
O horário de uma festa sempre é falso. Chegue no mínimo duas horas
depois. Vista-se e veja um bom programa de televisão. Ao final, tome mais um
banho e troque de roupa outra vez. Será o primeiro a chegar.
A cidade é movida a ar condicionado. O seu corpo precisa se habituar a
deixar um escritório a 10 graus e enfrentar um calor de 40 em exatos três segundos.
É lastimável que a Nasa não tenha estudado os cariocas. Seria ótimo para
destrinchar as condições de vida em planetas selvagens. Ah! Leve tapa-ouvidos. Em
boa parte dos hotéis e apartamentos, o velho e trabalhador aparelho resfolega a
cada golfada de ar. Parece que o apartamento está aquecendo as turbinas para
decolar. No táxi, tire os óculos. Não verá o taxímetro, mas que fazer? Ao sair do
carro fresquinho parado asfalto flamejante, seus óculos vão embaçar. Paulistanos
podem ser atropelados simplesmente porque os óculos nublaram.
Séria é a questão do traje. Um amigo meu encontrou famosa escritora da
paulicéia correndo no calçadão de Ipanema de tênis e collant preto. Parecia um
ninja. A desditosa imaginou que o traje a emagreceria. Isso não vale para um lugar
onde se usa o mínimo de roupa. Um paulista se veste para ir à praia. Bota
horrendas meias com tênis, bermuda, camiseta. O carioca se despe. Tira a camisa,
as calças, usa no máximo uma havaiana. Moças pegam ônibus de biquíni com o
dinheiro dobradinho na barriga. (E naturalmente molham quem está do lado, ao
voltar.) Talvez você fique sem jeito, ao expor o tom de pele branco-esverdeado,
fruto da exposição a luzes (fluorescentes. Não há alternativa. Praia com meia é o
supra-sumo da cafonice. Também pode ser da inocência. Tente sorrir para a
barraca do lado:
— Dá pra você tomar conta enquanto dou uma nadadinha?
Tudo que você encontrará na volta serão expressões angelicais, enquanto
você grita atrás do seu tênis de palmilha especial para pé chato.
E... atenção! Muitas praias no Rio são especializadas. Existe a praia de
surfistas na Barra; a dos praticantes de asa-delta, em São Conrado; a de quem quer
ver e ser visto, em frente ao Country. E as gays, em Ipanema e Copacabana. Há um
acordo tácito, pelo qual ninguém interfere na onda dos outros. Escolha a praia que
preferir. Mas depois não reclame, se for convidado a brincar de casinha.
Seguindo essas fáceis regras de etiqueta, você poderá desfrutar uma das
mais belas cidades do mundo. Será um passeio "maneiro". Ah, eu não disse ainda?
Esqueça palavras como bonito,.formoso, excelso. Tudo que é bom no Rio é
"maneiro". Se alguém lhe fizer esse elogio... puxa, aos olhos do carioca você não é
um paulistano tão detestável assim!
Delírios de Honestidade
OUTRO DIA EU ESTAVA pensando em como seria o mundo se as
pessoas fossem realmente honestas. Inclusive no mais prosaico cotidiano. Eu me
imagino entrando em uma dessas churrascarias de luxo. Sento-me à mesa e peço
um filé bem passado ao garçom. Ele me alerta:
— Não aconselho. O filé hoje está uma sola de sapato.
— Peço o quê?
— Peça licença e vá para outro lugar. Olhe bem o cardápio. Pelo preço
de um bife o senhor compra mais de 1 quilo no açougue. Quer jogar seu dinheiro
fora?
Vou para outro e escolho: salmão. O garçom:
— Se o senhor quiser, eu trago. Mas salmão, salmão, não é. E surubim,
alimentado de forma a ficar com a carne rosada.
Ainda quer?
—Nesse caso fico com escargôs.
— Lésmas, quer dizer? Por que não vai catar no jardim?
Ou então entro numa butique de grife. Experimento um jeans, que está
apertadinho na barriga. O vendedor aproxima-se:
— Ficou bom? Ah, não ficou, não, está apertado e não tenho um número
maior.
— Acho que dá... ando pensando em fazer regime.
— Pois compre depois de obter algum resultado. Se bem que não sei,
não... essa barriga parece coisa consolidada.
-— Eu quero o jeans. Quero e pronto!
— Não vou deixar que cometa essa loucura. Aliás, falando francamente,
o que o senhor viu nesse jeans, que nem cai bem nas suas adiposidades? Só pode
ser a etiqueta. Meu amigo, ainda acredita em grife?
Corro à casa de chocolates e peço um dietético. A mocinha no balcão:
— Confia nessa história de dietético? Ou só quer calar a sua consciência?
— E se eu quiser confiar, estou proibido?
— Pois saiba que engorda. Menos que o chocolate comum, mas engorda.
E o senhor não me parece em condição de fazer concessões a doces. Não vou
contribuir para o seu auto-engano, jamais poria esse chocolate nas suas mãos. Vá à
feira e peça um jiló.
Resolvo trocar de carro. Passeio pela concessionária, escolho:
— Este vermelho, que tal?
— O motor funde mais dia, menos dia — alerta o vendedor.
— Parece tão bonitinho...
— Desculpe, mas você acha que a lataria anda sozinha? Já alertei o dono
da loja, este carro está péssimo. Fique com aquele.
— Mas é velho e horroroso!
— Pode ser, mas anda. Está decidido, leve aquele. E não discuta!
O embate com a honestidade absoluta também poderia ser numa galeria de
arte.
— Gostei daquele -— aponto o quadro à marchande.
-— Está precisando de pano de chão?
— Não... é que... bem, posso não entender de arte, mas achei bonito.
—
Sinceramente, o senhor não entende mesmo. Isto aqui é um horror.
Não vale a tinta que gastou. Está exposto porque o dono da galeria insistiu. Leve
aquele, é valorização na certa.
— Aquele? É muito sombrio... eu queria alguma coisa alegre e...
— Não insista. Sombrio ou não, vou embrulhar. Faça o cheque, é melhor
pra você.
E numa loja de móveis? Mostro as cadeiras que me interessam. O
decorador:
— É amigo de algum ortopedista?
— Está precisando de um? Posso indicar...
— Você é quem vai precisar. Essas cadeiras vão desmontar na terceira
vez em que alguém se sentar. Fratura na certa,
— Caras assim e desmontam? Eu devia chamar o Procon.
— Se quiser, eu chamo para o senhor!
Pior seria alguma vaidosa querendo fazer plástica. O cirurgião examina:
— Hum... hum...
— Meu nariz vai ficar bom, doutor?
— Se a senhora se contenta em trocar uma picareta por um parafuso,
fica! Agora, se ambiciona uma melhora significativa, o melhor é morrer e
reencarnar de novo. Pode ser que tenha mais sorte.
A paciente sai chorando. Eu, que vivo me irritando com vendedores, chego
a uma conclusão: quero comprar o jeans que me oprime a barriga, o chocolate que
não emagrece e o quadro colorido. Deliciar-me com as pequenas fantasias. Feitas as
contas, delírios de honestidade podem transformar-se em pesadelos cruéis. Os
pequenos enganos abrem as comportas dos pequenos sonhos e adoçam o dia-a-dia.
O Drama da Gorjeta
NUNCA SEI QUANTO dar de gorjeta. Nem se devo dar. Às vezes, sintome constrangido porque dei pouco. Na maioria das ocasiões me revolto. Com
manobristas de restaurante, por exemplo. Até algum tempo atrás, ninguém cobrava
pelo serviço. Quando eu entrava no carro ou saía, o manobrista ficava segurando a
porta. Se não colocasse uma cédula na sua mão, seria obrigado a partir com a porta
aberta, arrastando o sujeito pelo asfalto. Soltar o carro sem gorjeta, ele não soltava!
Agora os restaurantes resolveram cobrar pelo estacionamento. Adianta? O
manobrista continua de pé, com a porta escancarada, aguardando. Vou pagar duas
vezes? Podem me chamar de sovina, mas nunca! Entro e parto com altivez,
enquanto ele me atira dardos com os olhos!
Nunca me recusei a pagar o serviço em restaurante. Dia desses estava com
dois amigos no Esplanada Grill. Veio a conta, calculamos a parte de cada um. O
garçom insinuou:
— Os senhores bem que podem caprichar mais um pouco no cheque.
Pago os 10% do serviço e ainda devo dar por fora? Nem tinha sido
atendido com tanta presteza assim! Meu amigo Ricardo ficou em dúvida:
— Venho sempre aqui. E se quando voltar não for bem tratado?
— Você chama o gerente e reclama! — aconselhei.
Partimos com uma sensação ruim! Também vi, no supermercado Santa
Luzia, uma senhora dando gorjeta ao açougueiro para comprar um bom corte de
carne. Quer dizer que eu, por nada oferecer, vou levar o pior?
Em hotel, sempre é uma saia-justa. O sujeito carrega as malas, mostra o
quarto, liga a televisão, explica o funcionamento do ar-condicionado e sorri, como
se estivesse diante do Tom Cruise. Vasculho os bolsos. Raramente encontro
alguma coisa. Em geral, o dinheiro miúdo ficou com o motorista de táxi, que jamais
tem troco! Abro a boca e digo:
— Ih... sinto muito, mas...
É como se eu tivesse me transformado em uma aranha-caranguejeira. O
mocinho se afasta e sorri, arreganhando os dentes como um serial killer:
— Não tem importância!
Oh, céus! Nada é mais terrível que a raiva contida de quem não ganha
gorjeta e acha que merece. O mesmo vale para quem leva gorjeta pequena. Havia
uma padaria nos Jardins onde sempre tomava café da manha. Certa vez um senhor
comeu seu pão com manteiga e deu o troco ao rapaz do balcão:
— Isso é para você tomar um café.
A resposta foi rápida:
— O senhor desculpe, mas para um café está faltando.
Envergonhadíssimo, o homem completou o valor. Eu, por mim, arrancava
as moedas da mão do ingrato!
De flanelinhas, nem se fala. São capazes de ataques de fúria, se dou pouco
dinheiro. O jeito é pedir desculpas:
— Olha, sinto muito, não vi que estava sem dinheiro quando saí de casa,
mas outro dia dou mais, prometo...
Só falta assinar uma promissória!
Seja dita a verdade. Há lugares onde as pessoas são treinadas para
agradecer. No mesmo Santa Luzia, no Santa Maria, nos supermercados Pão de
Açúcar que contam com esse serviço, os empacotadores são capazes de receber um
real com a expressão de quem ganhou um bilhete de loteria. O Almanara não cobra
serviço na conta e lembra que a pessoa será sempre bem-vinda, dando ou não
gorjeta. Basta oferecer um pouco a mais para ouvir um sonoro "muito obrigado"!
Mas são exceções.
Digo a verdade: isso não é coisa só de São Paulo, não! Duas vezes, em
restaurantes de Nova York, tive de correr atrás das garçonetes para conseguir o
troco. Simplesmente se faziam de desentendidas para ver se eu, um turista
selvagem, passaria pelo constrangimento de exigir o meu!
E irritante. A maioria das pessoas que conheço recebe seu salário e olha lá!
Fazer o serviço com qualidade é obrigação. Não conheço nenhum professor que
ganha gorjeta dos alunos se a aula é bem dada! Decidi: posso levar fama de pãoduro. Mas gorjeta, comigo... só quando eu achar que merecem!
Más Intenções
ENTRA ANO, SAI ANO, é sempre a mesma coisa. Começo a delirar com
as boas intenções para 1996. Não adianta refletir que se trata de uma data simbólica
e que a vida não vira de cabeça para baixo de uma noite para outra. A passagem do
ano mexe com a gente. Vejo meus amigos em torno, repletos de resoluções.
Lembro do ano passado e tento me acalmar. Um deles me garantiu, na noite do 31,
que até o final do ano (este que termina) faria seu primeiro milhão de dólares
vendendo ações. Quando o ouvi, fiquei com os neurônios verdes de inveja e
pensei: "Por que nunca aprendi a vender ações para também ganhar meu
milhãozinho?".
Meu amigo está, realmente, próximo dessa quantia. Em saldo negativo no
banco. Não passou para a frente uma ação sequer e economiza até nas bitucas de
cigarro. Outra amiga, atriz iniciante, falava comigo animada, em fevereiro:
— Li meu mapa astral. Este será o meu ano. Vou ter grande projeção na
tevê. Tenho a intuição de que vou virar estrela de novela.
De fato, apareceu na tevê. Como vítima de um assalto, chorando histérica e
dando declarações aos gritos. Ganhou, é verdade, seus cinco segundos de fama.
Tem crises de nervos cada vez que ouve falar em mapa astral. Há pessoas mais
modestas. O sonho de uma amiga é tão simples quanto irrealizável: emagrecer. Já a
encontrei, neste final de ano, com um copo de cerveja na mão e um prato repleto
de lombo de porco com molho de ameixa. Espantei-me:
— Na semana passada você estava de regime estrito!
— E só desta vez. O ano está acabando mesmo. Fica para o próximo.
Aguarde!
Aguardo, sim! Aguardo o dia em que, em vez de andar, ela vai sair rolando.
(Regimes quebrados nas festas são um capítulo à parte. As pessoas nunca se
enganam tanto como nesta época.) O aspecto mais trágico dessas resoluções é a
despedida. A pessoa resolve deixar de fumar a partir de janeiro e manda ver em dez
maços cotidianos até o réveillon, para dar o adeus definitivo. Fica à beira de um
ataque e volta a fumar no dia 2. Outra promete nunca mais usar o cheque especial,
a partir do Ano-Novo. Corre aos shoppings e torra o que pode, com um fantástico
sentimento de autoconfiança. Afinal, aquela fase da vida está terminando e nunca
mais ela gastará tanto. Quase é presa por calote. E, logo depois do réveillon,
lembra-se de que esquecera de comprar só mais uma coisinha.
Certo ano despenquei numa loja prestes a fechar, batalhei com o gerente e
consegui levar um despertador digital. Tudo porque estava decidido a acordar às 6
da manha para correr no Ibirapuera. Era importante iniciar o ano com o pé direito.
Ou melhor, com o relógio certo, começando a correr na exata manha do dia l.. Já
me vi atlético e bronzeado, veloz como um puro-sangue, vencendo a próxima São
Silvestre. Saí do réveillon de madrugada, preocupado, com a camisa branca
marcada de vinho. Senti que não estava na melhor forma para cumprir a resolução.
Recorri a um estratagema. Adiantei o relógio quatro horas: "Quando ele tocar,
pensarei que são 10. Na verdade, serão 6. Levanto e saio correndo sem tomar café,
para não atrasar".
Despertei com o barulho horrendo. Vi que eram 10, mas lembrei que
talvez fossem 6. Fiquei em dúvida. Desliguei o relógio com um argumento: "Se já
são 10, significa que não cumpri a promessa. Sou um crápula comigo mesmo.
Assim nunca serei atlético". Suspirei, virei para o lado e ronquei docemente.
Um fato é inegável: resoluções de Ano-Novo são mais frustrantes do que
panetone sem passas. Desta vez, tirei a máscara.
Decidi não virar o ano garantindo que serei tão afável quanto um poodle.
Confesso: meu coração pulsa repleto de deliciosas más intenções para 1996. É que
as boas intenções de Ano-Novo só servem para provar uma coisa: que ninguém é
de ferro. Felizmente. Se todo mundo cumprisse as promessas torturantes desta
época, o planeta seria tão chato quanto um réveillon com menu dietético.
Por Água Abaixo...
HÁ ALGUNS MESES eu corria na esteira quando aconteceu uma coisa
surpreendente. Um amigo observou o marcador do ritmo cardíaco e comentou.
— O seu ritmo está diminuindo, em vez de aumentar! Devia ser o
contrário! .
Respondi, já me sentindo um superesportista:
— Sou um alienígena.
-—Só se guardar a nave na barriga!
Cautelosamente, abaixei os olhos para minha cintura roliça. Pela milésima
vez, fiz o voto:
Vou emagrecer!
Bem, o fim de ano se aproximava. Transformei a decisão na minha
principal promessa, além das usuais: ser bom, me apaixonar e escrever um grande
livro. Entretanto, há uma grande contradição entre as promessas de Ano-Novo e o
advento do próprio. Falando claramente: quem faz regime na ceia de Natal, por
exemplo?
Fui para a casa de meu irmão, em Campinas. Quando nos encontramos,
notei que o próprio estava com uns quilinhos a mais do que da última vez. Mau
sinal. Eu estava decidido a me comportar frugalmente. Foi só deixar a valise no
quarto de hóspedes para minha cunhada anunciar.
— A fogazza está pronta!
Deliciosa fogazza, feita em casa. Meu irmão acendia o forno a lenha.
Abandonamos seu filho embaixo da árvore de Natal e corremos para a mesa. Eram
sete horas. Só saímos à meia-noite, depois de devorarmos a. fogazza, um vidro de
conserva de pimentões, quatro pratos de gaspacho cada um (para quem não
conhece, uma sopa fria de tomate, espanhola), três de risoto de escarola e umas
oitenta fatias de pernil de cordeiro assado, completados por pratos de frutas secas,
uma torta de maçã, um bolo de pistache e outro de damasco. O pobre garoto
tentou nos interromper algumas vezes para mostrar os presentes e falar sobre Papai
Noel.
Nós o calávamos enfiando pedaços de pão em sua boca.
Voltei no dia seguinte, com .o coração sereno.
— Foi uma exceção... porque a partir do Ano-Novo tudo vai mudar!
Na estrada, parei para comprar três quilos de lingüiça, três salames e dois
queijos. Evitei o doce de leite, que engorda muito.
Bem, o fato é que não podia deixar as compras estragarem. Passei os dias
seguintes chafurdando em lingüiça frita, fazendo sanduichinhos rápidos de salame
etc. Quando a noite de ano se aproximou; prometi:
— Agora começo o regime!
Mas existe um menu das boas-entradas. Itens essenciais no cardápio, sem o
qual o ano pode se tornar um desastre. Lentilha, por exemplo. Fica deliciosa
quando preparada com pedaços de carne de porco. Doces são essenciais, para que
o ano seja ameno. Uvas. Champanhe, e quanto mais taças, melhor! Ou seja. Já
estava quebrando a promessa na própria virada do ano. Não durou um mísero
segundo!
Há um fator psicológico importante nos dias que se seguem ao Ano-Novo.
Muitas das compras estão lá, intatas. Panetones. Bolos. Doces. Bebidas. Também
há quem nos presenteie com mais... panetones, bolos, doces... bebidas! Começar o
ano desperdiçando, nem pensar!
Dediquei as últimas duas semanas a aproveitar! Sempre decidido a começar
o regime no dia seguinte. Porque, afinal, promessa de Ano-Novo é sagrada! Além
do mais, minha vaidade também conta. Havia prometido a mim mesmo estar
esbelto para ir à praia. Realmente, há algo de irreconciliável entre fazer bonito no
verão e se divertir nas festas!
Suspiro. O carnaval está aí. Carnaval sem cerveja não dá. Cerveja sem
batata frita, não dá. Batata frita sem lingüiça fritinha no prato para acompanhar... E
para que começar agora, se é para quebrar daqui a pouco?
Adiei minha promessa de Ano-Novo para depois do carnaval. Dizem que
o país só funciona depois da passagem das escolas de samba. Farei o mesmo com
todas as minhas promessas. Incluindo o tal grande livro, que nem comecei a
escrever. Depois de tal orgia gastronômica... só agüento dar um cochilo!
Enquanto isso, minha barriga... Se antes abrigava uma nave alienígena,
agora é capaz de guardar um aeroporto inteiro!
O Império do Silicone
ANDO ESPANTADO com o número de pessoas que vem fazendo
plástica e lipoaspiração. Conheço uma senhora que deve ter sido pioneira das
operações. Pelos meus cálculos, tem uns setenta anos. A aparência é absolutamente
indefinível:
— Quando sua família veio do Japão? — perguntei gentilmente, dia
desses.
Momento constrangedor.
.— Sou quatrocentona — respondeu. — Não há um oriental em minha
família!
Seus olhos são tão puxados que eu juraria... Faz parte da época em que se
esticava tudo. Os olhos chegavam às orelhas. Uma atriz, certa vez, ficou sem fechar
os olhos seis meses. De tão esticada, não conseguia. Dormia com máscara.
Atualmente a plástica avançou. É mais sutil. Mas no passado, tudo isso era feito
discretamente. Senhoras de mais idade se recusam a confessar as plásticas.
— Nunca precisei — garante minha conhecida, embora suas orelhas, de
tão puxadas, já estejam se encontrando atrás da cabeça.
O grande fenômeno dos últimos tempos não está na medicina, mas na
sociedade. Tornou-se chique falar em botar silicone, fazer lipo. As mais famosas
anunciam aos quatro ventos:
-— Vou fazer o peito, o braço, os joelhos, as coxas...
Tornou-se maravilhoso ser transformado em uma experiência cibernética!
Meu vizinho já entrou na lipo umas seis vezes.
Arranca as adiposidades. Mal convalesce, vai na churrascaria. Enche o
bucho com quindins. Dali a pouco, a calça não fecha de novo.
— Está na hora de fazer uma recauchutagem — avisa.
Aconselho:
— Lipo não é para emagrecer. Só deve ser feita depois do regime!
Ele concorda, sorrindo. E se interna no dia seguinte.
Claro que não resisti. Fui fazer uma consulta. Tirei a camisa e mostrei a
barriga. Parecia um barril. Mas a plástica não faz milagres?
-— Quero ficar mais ou menos como o Reynaldo Gianechini — expliquei.
O médico me observou. Por um instante, pensei que fosse prescrever uma
camisa-de-força. Apalpou-me.
— Bem que eu gostaria de tirar sua barriga — explicou. —
Nesse caso saberia o que fazer com a minha, que é bem pior.
Abriu a camisa. O umbigo derramou-se para fora. Oh, horror!
Explicou que temos o mesmo tipo de abdome, com gordura espalhada.
Lipo não adiantava. Só uma operação. A barriga ficaria esticadíssima. Eu teria de
ficar dobrado em dois durante alguns meses, até a barriga recuperar a flexibilidade.
— Tem garantia contra torresmos? — perguntei.
Olhou-me dolorosamente. Não, não havia. Bastavam algumas picanhas
bem gordurosas para eu voltar a ser o que sou!
Fui visitar uma amiga, conhecida pelos decotes. Estava murcha.
— Tirei o silicone -— revelou.
— Por quê?
— É mais ou menos como mudar de corte de cabelo. Uma hora a gente
põe, outra hora tira. A semana que vem, faço o rosto.
Tenho um crédito. Qualquer hora boto os seios de novo!
Um amigo trouxe a solução definitiva para minha barriga. Uma prótese.
Inventaram placas para ser colocadas no peito e no abdome. A do tórax simula
músculos de atleta. A outra faz a gente ficar com barriga de tanquinho, como
qualquer surfista.
— Mas escute... e minhas medidas? A tal barriga de tanquinho vai ser
projetada para a frente. Vai ficar parecendo uma máquina de lavar.
Silêncio. Ninguém havia pensado nisso.
Desisti. Será que daqui a alguns anos vamos esquecer como eram os
narizes, as orelhas, o jeito do rosto, antes de todo mundo querer atingir
determinado padrão de beleza? Orelhas grandes não têm charme? Nariz torto?
Tudo bem, querer ficar mais bonito. Mas ainda não consigo entender por que as
pessoas andam fazendo tanta plástica. O que era segredo, tornou-se motivo de
ostentação.
Cada Um por Si
QUANDO APRENDI A DIRIGIR, ouvi o conselho.
—- Fique na pista da direita, até ter segurança no volante. Bem que tentei.
Preferia dirigir devagar, sem atrapalhar o trânsito. Mas a pista da direita era, e
continua sendo, uma tortura. Já perdi a conta do número de vezes que fiquei
parado atrás de um ônibus ou van. Passageiros sobem e. descem, eu espero. Às
vezes, misteriosamente, o ônibus liga o pisca-alerta. Fica imóvel. Boto a seta à
esquerda, pedindo passagem. Alguém deixa entrar? Respondo: jamais! Aceleram! Se
boto o braço para fora implorando compaixão, corro o risco de que me levem o
cotovelo! E carros que subitamente estacionam na pista da direita para alguém
descer? Outro dia, em plena avenida Água Espraiada, tive de ficar esperando uns
dez minutos! A mulher ainda bateu um papinho e depois desembarcou. Ao sair, me
encarou! Simplesmente, eu me senti um paspalho.
Tem mais: motos costumam cortar pela direita. E preciso tomar mais
cuidado com quem está à direita do que à esquerda. Motoqueiros e motoristas
agem como se fosse uma pista de ultrapassagem rápida. Cortam subitamente minha
frente! Pior: quando tento ir calmamente pela direita, sempre alguém encosta e me
força a ganhar velocidade. Sem falar nos carrinhos de sucata, lentíssimos, ou nas
bicicletas que surgem inesperadamente na contramão. Tudo à direita! Não entendo!
Quem quer ir devagar, na pista de baixa velocidade, passa por mais riscos e
contratempos do que os apressadinhos!
Pedestres jamais respeitam mãos de direção. Gostam de ocupar o espaço
todo. Outro dia, no shopping, eu tinha pressa para chegar a um encontro. Três
pessoas andavam calmamente na minha frente, sem deixar passagem em nenhum
dos lados. Se eu tentava ultrapassar, mexiam-se como ondas, cortando minha
passagem. Um amigo foi passear na praça Buenos Aires. Três mulheres iam à
frente, bem devagar, conversando. Tentou se esgueirar pelo muro. Só dando
cotoveladas. Acabou descendo para a rua e andou no meio dos carros para
ultrapassar os pedestres. Tudo bem, elas têm o direito, de passear. Mas é justo
ocupar a calçada inteira?
O metrô é terrível. Muitas vezes, quem está entrando não quer deixar os
outros sair. O correto é esperar todo mundo desembarcar. Nas estações mais
tumultuadas, é uma guerra. Um grupo se atira sobre o outro. Engalfinham-se. É um
sufoco. Já me aconteceu de não conseguir descer na estação!
Em elevador, nem se fala. Entro. Dois passageiros vêm logo atrás e ficam
bem na porta. Só que vão para o último andar.
Quando chega minha vez de descer, tenho de gritar:
— Um momento.
Mergulho entre braços e pernas, até ser expelido para fora. Por cortesia,
quem vai para os andares mais altos deveria ir para o fundo. Mas não. Como se
ficando na frente chegassem mais depressa!
Sem falar em avião! Na ponte aérea para o Rio de Janeiro, que uso sempre,
os lugares são marcados. Que adianta? Basta o aviso de embarque para os
passageiros correrem como uma manada selvagem. Já vi gente com criança
esperando para evitar atropelos. O desembarque é ainda pior. Ultimamente, faço
questão de viajar na janela. Não só por conta da paisagem. Mas para não ser
obrigado a me levantar e ficar parado no corredor do avião! Basta a aeronave parar.
Todo mundo se ergue, pega as malas e fica se espremendo à espera de que as
portas sejam abertas!
Não seria mais fácil dar espaço, cumprir as leis do trânsito? Enfim, viver
em sociedade? Por mim, continuo na pista da direita. Posso ficar atrás de ônibus.
Mas sofro menos estresse
Medo da Velhice
HÁ POUCOS DIAS EU ESTAVA no aeroporto, prestes a pegar a ponte
aérea. Carregava a maleta um tanto pesada, com livros, agendas, remédio para o
colesterol e tudo aquilo que dá medo de despachar e perder. Andei até o avião. Meu
ombro doía. De repente me veio a sensação.
— O que farei quando for idoso e não der conta de levar este peso?
Foi desconfortável. À medida que fico maduro, tomo consciência de que a
cidade é feita para quem está no auge da saúde, com força total. Não gosto de
chover no molhado, e cair em saudosismo romântico, dizendo que antes era bem
melhor. Mas há uns trinta anos eu quebrei o braço direito e andei de tipóia um bom
tempo. Nunca havia imaginado que as pessoas pudessem ser tão simpáticas e
solidárias. Sempre havia alguém para me ajudar a subir no ônibus ou carregar meus
livros escolares. Ofereciam-me o lugar para sentar. Uma colega copiava
as.anotações da universidade no meu caderno. Agora parece que esse tipo de
solidariedade automática, desinteressada, anda em extinção. São freqüentes as
reportagens sobre as peruas que não param para idosos. Quando saiu a lei do passe
livre, minha mãe e minhas tias se divertiam visitando-se mutuamente. Sentiam-se
especiais, bem-cuidadas. Hoje me dói o coração quando passo em frente a um
ponto de ônibus e vejo um grupo de velhas, muitas vezes no vento e no frio,
esperando um tempo absurdo pelo transporte — como se fosse uma esmola. Pior:
nem que queiram pagar conseguem. Muitos motoristas fogem diante dos cabelos
brancos.
Se entro em uma loja vejo uma senhora idosa examinando um artigo em
promoção, invariavelmente a vendedora está com ar impaciente. Prefere atender
gente com vontade de comprar mais depressa. Pessoas idosas são muitas vezes
solitárias. Gostam de conversar um pouco mais, de ter uma conversa amigável com
o vendedor, com o garçom. Soube de uma senhora, de origem norte-americana,
que ficou sozinha no mundo. Mudou-se para um hotel médio, no centro da cidade,
para sentir-se mais segura e protegida. Eu costumava jantar no restaurante desse
hotel. Invariavelmente ouvia queixas de que ela era chata, impaciente, que
reclamava muito. Ninguém parecia entender que se tratava de uma mulher sem
parentes, em um país estranho, provavelmente assustada. Necessitando,
simplesmente, de um pouco de calor humano. Acabou se mudando, nunca soube
para onde.
Conversando com um amigo dedicado a causas sociais, descobri que
existem muitos voluntários para programas ligados à infância. Um número
expressivamente menor para idosos. Como se pelo fato de já terem idade, não
tivessem tanta importância assim. Mesmo nas famílias. As pessoas estão o tempo
todo muito ocupadas. São poucas as com disposição para passar uma tarde ou uma
noite batendo papo, preparando um jantarzinho melhor, trocando afeto. O velho é
obrigado a entender que a vida do neto corre depressa, e que ele não tem paciência
para seu ritmo mais lento, para suas recordações, para seu modo de ver o mundo.
Talvez diferente, talvez conservador, mas nem por isso a troca de experiências seria
menos válida.
Penso que nossos ancestrais sabiam lidar melhor com a velhice. Viviam em
cidades menores, os vizinhos se conheciam, e um ajudava o outro. Sempre havia
alguém para fazer uma sopa, para pedir ajuda em caso de doença. Na cidade
grande, é sempre uma correria onde freqüentemente se esquecem os valores
humanos. É duro olhar para esse mundo e se perguntar:
O que será de mim, quando for velho?
Talvez, se todos se fizessem a mesma pergunta, as coisas poderiam
melhorar a partir de agora.
A Vida no Mato
REALIZEI UM SONHO! Tenho uma casa de campo. É cercada de
árvores enormes, restos de uma floresta! Uma delícia, é o que diz quem me visita.
Bem... às vezes! Mal comprei, ordenei ao recém-contratado caseiro.
— Erga aquele pedaço da cerca e jogue aquele monte de madeira velha.
Depois, desocupe as caixas da mudança.
— Sim, senhor.
Voltei no fim de semana. A cerca igual, as caixas fechadas e a madeira
apodrecendo. Suspirei. Três semanas depois, uma camada de poeira se depositava
sobre as caixas. Cogumelos cresciam na madeira, e a cerca caiu de vez. Formigas
passeavam no sofá. Rugi. Surpreendeu-se.
— Mas o senhor não disse que tinha pressa.
Partiu bravíssimo! Veio um novo. Rapaz jovem, paranaense. Um dia
cheguei, ele não estava. Liguei para uma conhecida.
— Ah, falei com ele. Saiu para cortar o cabelo.
Reapareceu três dias depois, surpreso com meu nervosismo.
— E que aproveitei para comprar cigarros.
Deve haver algum tratado de psicologia que ensine a entender a mente dos
caseiros. Mais alguns dias, ele me telefonou.
— Ganhei um galo e uma galinha!
Sorri. Imaginei minha futura granja. Eu, cercado por cestas de ovos
brancos e pintinhos piando. Tudo começaria com o casal! Seria o Rei do Frango!
Fui ver as duas preciosidades.
Estavam trancadas na lavanderia. Meu cachorro husky uivava do outro
lado da porta. A máquina de lavar tinha virado poleiro! São assim os cães
caçadores! Ficam pirados com o cheiro das penas.
De madrugada acordei com o interminável canto do galo. Adeus, Rei do
Frango!
— Bote os dois na panela! — uivei.
Decepcionado, meu ex-futuro sócio, o caseiro, depenou galo e galinha.
Dois dias depois, apareceu com um vira-lata filhote.
— Deixaram aqui em frente, em uma caixinha. Fiquei com dó.
Eu queria ter a mesma capacidade de sedução de um cachorro! Bastou ele
lamber minhas mãos, e me apaixonei. Botei no colo e assumi a paternidade! No dia
seguinte, senti coceiras. Carrapatos! Chamei o veterinário, que examinou o
cãozinho inocente. Tinha tudo que se pode imaginar.
— Vou botar um remédio, e ele vai ficar livre de pulgas e carrapatos!
— Seu veterinário, o senhor não pode me tratar também?
Rejeitado, dedetizei a casa de campo e o apartamento.
— Agora estou livre?
— Carrapatos ficam na grama — explicou o dono da dedetizadora,
depois de receber o pagamento.
Passei semanas indo ao campo, mas andando de botas, meias e calças
compridas. Belo jeito de aproveitar o verão! Mas, enfim... a paz!
Paz? Acordei com os ganidos lancinantes do husky. Havia atacado um
porco-espinho. Nunca tinha, visto esses espinhos de perto. Que farpas! Nem se via
o focinho do cachorro, pois parecia uma almofada de alfinetes! Prendi a boca do
bicho, segurei a lanterna e o caseiro foi retirando espinho por espinho com um
alicate enquanto o herói da noite tentava escapar e nos morder!
.
A luz já acabou por conta das chuvas, o transformador da rua estourou e
arrasou com vários aparelhos, o telefone ficou com chiado, o cabo da parabólica
arrebentou, a bomba do poço fundiu, o motor da piscina deu problema, e a água
parada quase criou dengue... enfim, tudo rotina! A cada item, o fornecedor da hora
me consola:
— Pelo menos agora está tudo novo. Nunca mais vai dar problema!
Finalmente, tudo arrumado! De preocupação, só a mania do husky de
nadar na piscina e deixar flocos de pêlo boiando. Sento-me para ouvir as cigarras ao
entardecer. Começa uma ensurdecedora música caipira.
E o caseiro do vizinho. Aproveita para botar o rádio no último volume
quando os patrões estão fora! Respiro fundo! E digo:
— Ah, como é bom estar no mato!
Dá para acreditar?
O Ponto X
MASSAGEM VIROU MODA na cidade. Todo candidato a ser
massageado se imagina como um imperador romano em fita de Hollywood.
Deitado, com belas escravas núbias tocando suas costas, dá ordens para invadir um
pedaço do mundo. Ai de mim! Nem sempre funciona desse jeito! Boa parte dos
massagistas prefere é me dar uma boa surra!
Tive um fantástico, de Osasco. Eu morava na Granja Viana, e ele, de
origem nipônica, ia em casa. Do-in. Dedões fortes, apertava todo o meu corpo,
segundo afirmava, para "reequilibrar" as energias. Na terceira semana pediu
algodão, álcool e uma toalha. Concedi. Ligou uma máquina cheia de bulbos de
vidro. Prendeu vários deles em minhas costas e pernas.
— São ventosas — explicou.
Acionadas eletricamente, as ditas cujas aspiraram o ar, formando bolhas na
minha pele. Ele as retirou e picou o círculo marcado. Quando ia gritar, botou as
ventosas de novo!
— Estou retirando seu sangue velho. Fiz isso em um cavalo contundido
e foi muito bom.
Retribuí com um sorriso eqüino. Seria a solução dos meus problemas de
ciático? Quando terminou, eu parecia uma jibóia, cheio de marcas redondas.
Adorei. A cada quinze dias, me aplicava as ventosas. Até no dedo mindinho! Minha
vida social rareou, pois, reconheço, tornei-me uma figura muito esquisita! Minha
alternativa teria sido virar punk. Parei quando insistiu em vir às 7 horas da manha.
Nada me faz acordar tão cedo nem mesmo a perspectiva de ficar tão ágil quanto
um cavalo do Jockey.
Outro decidiu me tornar uma pessoa melhor dando um soco no meu peito.
— Isso vai abrir o seu coração. A dor que está sentindo é por ser uma
pessoa muito fechada.
Profissionais decididos a tratar a vida emocional não são raros. Houve um
que na segunda sessão só conversou. — O que está sentindo?
— Cansaço. O trânsito está horrível. Ainda por cima, a chuva...
— Você precisa se transformar.
— Preciso? Você... bem.... será que eu... o que fiz?
— Tem de se tornar uma nova pessoa. Acabou o horário.
Não deu tempo de tocar o seu físico, mas foi importante para o seu astral.
Acerte com minha secretária e marque nova consulta.
Saí carregado de culpa. Transformar, transformar... sem dúvida. Mas e a
espinha cansada? E o ciático? Fugi.
Houve um ótimo, no Sumaré. Não podia contar onde estava doendo, pois,
nesse caso, usava os cotovelos.
— Deixa eu desfazer esse nó.
— Aiiiiiiiiiiii!
—- Depois você vai se sentir melhor.
Quem não se sente? E o alívio do fim da surra. Outro aplica moxabustão.
E uma técnica indiana. Aproxima um bastão de incenso aceso da área dolorida. Vai
esquentando o local até que...
— Está queimando, queimou, queimou!
Retira o incenso com ar sábio e aplica mais além. No ar, resta o cheirinho
dos meus pêlos chamuscados!
Já ousei até a tal de "massagem express"'. Há uma tenda em frente ao
Edifício Itália, aos domingos. É a massagem rápida, feita no torso, em uma cadeira
especial. Fico de camiseta. Ele aperta, aperta. Quase durmo. Quando me levanto,
um grupinho observa, curioso. Por falta do que fazer, resolveram assistir à sessão?!
Que raiva!
O mais recente usa técnicas de shiatsu. Comprime pontos de tensão ou dor
com os dedos.
— Veja, é como um botão. Eu aperto aqui e...
— UüUüUi!
-— Fica quieto, só estou ajudando. Agora só faltam os pés. Segundo
afirma, na planta dos pés estão concentrados todos os pontos necessários para as
curas. E lá vai o dedo! Urro. —- Relaxa, Relaxa!
— Como vou relaxar com um alicate no meu pé?
Queria ver se alguém tratava assim um imperador romano!
Mas... que vida! Reclamo da boca pra fora. Entra ano, sai ano, e estou
sempre nas garras de um novo massagista!
Invasão na Chaminé
UM DOS MEUS MAIORES DESEJOS era acender a lareira. Tenho uma
na chácara. Sou apaixonado pelo fogo. Pelas chamas tremulando. Pelas cores. A
maior parte do ano tenho de me contentar em observar um resto de cinzas. Meses
atrás estava deitado no sofá, lendo um policial. Um dos meus vícios é gostar de
mistério. O livro pode ser horrendo, mas vou até o fim, mesmo descobrindo na
primeira página o final da história. Nessa noite, justamente quando o serial killer
estava prestes a assassinar sua nova vítima em um mar de sangue, ouvi ruídos na
chaminé.
— Será impressão? — disse para mim mesmo, sabendo perfeitamente
que não era.
O barulho aumentou. Pareciam pés raspando no duto. Só Papai Noel tem
o hábito desconfortável de entrar nas casas pelo telhado e não pelas portas. Mania
que, certamente, só Freud explica. Estava longe do Natal. Que poderia ser? Um
serial killer entrando pela chaminé, com um facão erguido? Por que se dar a tanto
trabalho se a casa estava inteiramente aberta? Bem, assassinos de romances e filmes
americanos têm essas originalidades. Arrepiei. Um serial killer de Nova York estaria
prestes a pular dentro de minha sala? A troco do quê? Os ruídos aumentaram ainda
mais. Corri a chamar o caseiro. Quando veio, expliquei o mais calmamente
possível:
— Há alguém na chaminé. Entre na lareira e veja quem é.
Por que ele e não eu? Pelo simples motivo de que ele é ele e eu sou eu!
Horrorizado, arriscou:
— E se for o Conde Drácula acordando, agora que escureceu?
Refleti. Que mau gosto! Se eu fosse um vampiro, encontraria acomodação
melhor. Um túmulo bem quentinho. Ou o cofre de um banco com cédulas
confortáveis para deitar em cima! Mano, o caseiro, resolveu acender a lareira.
— Seja o que for, a gente espanta com fogo e fumaça.
Meu sonho de contemplar as chamas finalmente realizado?
Não exatamente. Era uma noite de verão. Mal a lenha começou a queimar,
meu cérebro já estava derretendo. Segundos depois, um, bando de morcegos saiu
voando pela chaminé. Bateram as asas que nem loucos pela sala. Eu e o caseiro
corremos, enquanto os morcegos tentavam fugir das lâmpadas. Era óbvio. A
chaminé se transformara no lar dos voadores!
— Viu só? Não era o Drácula. Só seus filhos! — comentei.
No dia seguinte fiscalizei o caseiro enquanto ele despejava os restantes.
Minha amiga Lalá reclamou:
— É um absurdo. Os morcegos são fundamentais para o equilíbrio
ecológico.
— Por isso não. Boto todos em uma gaiola e mando para 'sua casa —
ofereci.
Ela silenciou, estrategicamente.
Finalmente, nas últimas semanas, esfriou! Voei para a chácara. No
caminho, comprei um saco de lenha.
— Acenda a lareira, Mano! — ordenei ao caseiro.
Deitei-me, pronto para desfrutar o calor. A sala ficou cheia de fumaça.
— E lenha verde! — explicou ele. — Não queima, só...
— ...faz fumaça! — completei tossindo, enquanto corria para a varanda.
O.pobre Mario ficou abanando a sala. Duas noites depois, encontramos
lenha seca. Convidei uns amigos.
— Vamos tomar um vinho diante da lareira.
Sentamos. O fiel Mano botou fogo. As chamas se elevaram, majestosas.
Imediatamente, ouvi... piu, piu!
— Morcegos de novo? Mas morcego pia?
Um bando de andorinhas voou para dentro da sala. Tinham tomado posse
da chaminé, que devia estar obstruída no alto! Uma delas queimou algumas penas
no fogo e caiu. Minha amiga Vera gritou.
-— Salvem, salvem! Apaguem o fogo!
Pegou a andorinha na mão. Gorjeou, para fazer amizade. A pobre ave
parecia mais aterrorizada. Atravessar as chamas e ainda ter de ouvir uma mulher
daquele tamanho piando devia ser demais.
-— Como você pôde acender a lareira com as andorinhas dentro? —
brigou Vera.
— Mas eu... eu... — quis argumentar.
Pegou o marido pelo braço e partiu com a andorinha. Soube que está
sendo tratada melhor que um beija-flor. Já foi ao veterinário. Acabará em um
cabeleireiro para arrumar "as penas queimadas. Quem sabe vai botar peruca!
Quanto à lareira, desisti. Continuo olhando as cinzas. Leio romances
policiais e ouço ruídos aterrorizantes. Minha chaminé foi invadida outra vez. O que
pode sair voando, se eu acender de novo? Um pterodáctilo? Melhor não saber. Que
vença a vida
Pequenos Abusos
ACONTECEU EM UM SÁBADO, a uma da manha. Eu havia saído com
alguns amigos. A carona me deixou em frente o meu prédio, onde há uma banca de
revistas. Estava aberta. Aproveitei para entrar. E uma banca grande, com caixa e até
máquina que preenche cheque. Espantei-me ao ver, espalhados sobre o balcão,
vários montinhos de dinheiro, alguns de moedas. Troco pequeno:.notas de um,
dois reais. O caixa contava o total. Ao lado, um engraxate. Moleque. Na idade em
que já deveria estar em casa, e não solto pelas ruas do centro da cidade. Trouxera a
féria do dia, em dinheiro picadinho, para trocar por notas de maior valor.
Nesse instante, um policial entrou na banca. Alto, fardado. Olhou para o
garoto. Estendeu o pé, mostrando o sapato. O garoto quis explicar.
— Estou sem material para engraxar.
— Lustre — ordenou o policial.
Confesso que fiquei chocado. Ninguém é obrigado a trabalhar à uma hora
da manhã. Ainda mais de graça. Obviamente, o policial nem sequer cogitava pagar.
Também, confesso, fiquei sem ação. O garoto, já acostumado à dura vida na rua,
ajoelhou-se. Tirou um pano da caixa de engraxate. Lustrou ambos os sapatos. Mas,
ao abrir a caixa, subiu um cheiro de cola no ar.
— É cola? — disse o policial.
Percebi uma acusação a caminho. Lembrei-me dos meus tempos de
criança, quando havia um sapateiro perto de casa. Às vezes a sola do meu sapato
soltava, e ele colava novamente. Não sou ingênuo a ponto de achar que o garoto
fosse completamente inocente. Mas, segundo acredito, até qualquer prova em
contrário ninguém é culpado. Talvez carregar cola fosse normal para um engraxate.
Comentei:
-— A cola pode servir para consertar uma sola solta, por exemplo.
O policial me encarou e não respondeu. Olhou o garoto, ameaçador.
Decidi permanecer na banca. A vítima ali era o garoto. Por que motivo um policial
acha que tem o direito de usufruir trabalho gratuito? Ainda mais de madrugada? Já
vi isso acontecer várias vezes. E comum um policial entrar em um bar e consumir
sem botar a mão no bolso. Não acho correto. E o mais interessante é que estou do
lado dos policiais. São mais do que necessários, com a violência de hoje em dia.
Não têm vida fácil, não. O salário é baixo. Pequeno, para o risco que todo policial
corre diariamente. Uma vez conversei com um policial e ele desabafou:
— Imagine o que é .sair para trabalhar todo dia sem saber se vou voltar
vivo para casa.
Além de ganhar pouco, muitos até têm de esconder a profissão, para não
sofrer hostilidades na vizinhança. Mas é justamente por isso que sua atitude deveria
ser completamente outra. O policial deve ser visto como um amigo. Por todos nós.
Mas fundamentalmente pelos mais pobres, mais carentes, que só têm a eles para
recorrer. Pequenos abusos, como espichar o pé para lustrar o sapato de madrugada,
levam à desconfiança. Ao medo. À perda de confiança necessária para fazer
denúncias. A polícia precisa do apoio da população. Como conquistá-lo com
atitudes nesse estilo?
Certamente, o pequeno engraxate estava apavorado. A presença da cola na
caixa de trabalho talvez merecesse uma conversa. Um encaminhamento. Talvez eu
estivesse errado em sair tão prontamente em sua defesa. Mas o que havia lá era
apenas ameaça. Terror.
O rapaz da banca terminou de contar o dinheiro e deu duas notas de dez
reais ao garoto. Seu faturamento no dia, provavelmente. Ele partiu. O policial saiu
em seguida. Voltei para meu prédio sentindo uma grande tristeza. Enquanto
continuarem os pequenos abusos, muita coisa grande vai ficar sem solução.
Striptease no Inverno
Já começaram as liquidações de inverno. Antes mesmo do início oficial do
frio, recebi vários avisos de vendas promocionais, sales e outros epítetos chiques
para denominar as boas e velhas liquidações. Para variar, não resisti. Como perder a
oportunidade de comprar uma malha de lã pela metade do preço? Mesmo grossa a
ponto de abrigar um esquimó em uma tempestade de neve? A esperança é a última
que morre, neste inverno tropical. Explico: quem gosta de andar de barriga de fora
é surfista, personal trainer, corredor de maratona. Um pobre mortal como eu,
obrigado a pedir perdão ao endocrinologista cada vez que come uma torta de
chocolate, sonha com o frio. Sim, eu me lembro de quando era jovenzinho. Certa
vez fui ao Teatro Municipal com a turma da escola. As garotas de minissaia (bons
tempos, hein?) e camisetinha olhavam com desprezo as damas da sociedade que
chegavam cozidas dentro de casacos de pele.
— Que exibicionismo! — dizia uma.
— Onde já se viu, pele em país tropical? — concordava eu.
Nada a ver com a luta para salvar as espécies ameaçadas. As peles ainda
não estavam no índex do politicamente correto. Era o puro desprezo de quem não
precisava pendurar nada sobre os ossos para desfilar como um pavão. Mas o tempo
passa. Passou para mim, e passará para você, que está rindo da minha barriga
agora. A estação mais elegante é o inverno. Quanto mais frio, melhor! Um bom
casaco, a malha folgada, os tons escuros... dão charme e elegância. Convenhamos: o
verão revela. O inverno disfarça!
Saí da loja com duas sacolas. Acordei no dia seguinte, abri a janela,
esperançoso. Sim, havia um ventinho... Botei camiseta. Camisa. Malha cinza bem
grossa. Casaco. Meia de lã. Desci. Na rua, algumas pessoas andavam em mangas de
camisa.
— São loucas — pensei. — Então não sabem que chegou o inverno?
Fui à luta. Banco. Dentista. Ao me ver abrigado como um alpinista do
Everest, o doutor Sérgio aumentou o ar condicionado até transformar o
consultório em uma geleira. Notei a assistente tremendo de frio, enquanto ele
escarafunchava minha boca. Ao sair, ouvi suspiros de alívio, enquanto o ar era
desligado rapidamente. Já no corredor, fui bafejado por uma onda de ar quente.
E horrível ter de arrancar o casaco. A malha novinha em folha! Que
remédio? Tirei. Dali a pouco, foi a vez da camisa. Passei a tarde suando e
carregando a tralha. Olhando na rua, percebi que não era o único. Senhores
arrancavam os paletós. Mulheres, as blusas. Encontrei uma amiga. No carro, um
guarda-roupa completo.
—- De manha boto tudo que posso. Faço uma espécie de striptease
durante o dia. Tiro casaco, blusa, echarpe, meias... troco sapatos por sandálias... —
confidenciou.
Carrega uma capa de chuva no banco de trás. E que o dia começa no
inverno, continua no verão e às vezes pode terminar com uma garoazinha. Se hoje
faz frio, amanhã será calor. Só mesmo se vestindo no estilo cabide, iniciando o dia
cheio de roupas e terminando seminu. Na televisão, o meteorologista explica:
— E o fenômeno El.Nino.
Que nino? Há tanto tempo infernizando o clima, já deve ser bem adulto!
Arrumo desolado minha pilha de malhas no armário. Todas, sem uso.
Compradas ano após ano, liquidação após liquidação. Espirro.
— Será alergia?
Dou mais um. Dois, três. Dúzias de espirros! Céus! O inverno, não sei não.
Mas a gripe... ah... já chegou com tudo!
Adoráveis Felinos
SOU UM CASO ÚNICO. Dizem que os gatos jamais abandonam o lar.
Mas eu tive uma gata branca que partiu sem dar satisfações. Encontrei-a em frente
à casa de um amigo, de noite, miando com ar sofredor. Não tive dúvidas. Botei no
carro e levei para casa. Nunca vou esquecer como era gostoso passar a mão em
seus pêlos, horas e horas, meditando sobre a vida. Às vezes me lambia com sua
lingüinha cor-de-rosa, o que eu considerava um privilégio. Ficou por lá três meses.
Um dia desapareceu. Sofri. Imagino que voltou a seu antigo lar, utilizando seu
absoluto senso de direção. Ou, pior, foi miar em outra freguesia com a mesma
aparência de abandonada. Desde então passei a me dedicar aos cães. Nem por isso
deixo de admirar os felinos. Têm personalidade. Só fazem o que querem. Mas
quem ama os gatos faz qualquer coisa por eles. Um amigo separou-se da mulher.
Sofria como doido. Por causa da gata, que ficara em seu antigo lar. Finalmente,
ligou exultante:
— Agora está tudo certo. Acabou-se o drama.
— Que bom! Voltou com ela?
— Não... mas trouxe a gata pra viver comigo.
Em outra oportunidade fui a uma gravação de um programa de televisão
que exigia um gato azul. O gato devia ser perseguido, correr e pular para cima de
uma árvore. Quanto otimismo! Ao chegar, vi um gato gordo pintado de azul —
com uma rinçagem especial para pêlos de animais. Mais adiante, em outra gaiola,
outro gato, também pintado. Era o duble. Puseram o primeiro gato no chão. Todos
os atores saíram correndo, espantando. Ele continuou imóvel. Botaram o segundo.
Mais imóvel ainda. Eram gatos gordos e peludos, que preferiam ficar deitados
enquanto todos se esgoelavam em torno. Voltaram ao primeiro. A veterinária
encarregada amarrou suas patas com umas cordinhas e puxou, para ver se ele
andava. O bichano deixou-se arrastar no chão. Decidiram gravar por partes. Assim,
os atores ficaram correndo de um lado para o outro, gritando.
— Olha o gato!, olha o gato!
Enquanto isso, o astro observava a gritaria placidamente, certamente
imaginando que os humanos são uns bichos muito esquisitos. Chegou o momento
final. Bastava colocar o felino em cima da árvore. Todos olhariam para o galho e
gritariam. Quem conseguiu? Tomado de fúria, o gato arranhou a todos que
tentavam tirá-lo de seu cantinho confortável. Começou a chover e o gato desbotou.
Exaustos, todos transferiram a gravação para outro dia.
Há alguns anos eu ia passando pelo Itaim. Em uma casa de esquina havia
bem uns cem gatos no jardim. Parei para admirar. A dona, encantada, comentou.
— Quer um filhotinho para começar sua coleção? Esse é o problema.
Quem começa com um termina com vinte. Ou trinta, ou mais. Os filhotinhos são
tão bonitos, tão graciosos! Dá dó de oferecer, a não ser que já se tenha chegado à
centena.
São também bons gourmets. Gostam do que é bom. Conheci uma garota
que tinha o hábito de comer latinhas de ração para gato. Dizia ter um sabor
delicioso de peixe. Nunca tentei experimentar. Ainda! Pois um guloso como eu
pode chegar a tudo.
Muita gente discute o amor felino.
— Gato não serve para guardar a casa.
De fato. Nunca ouvi dizer que um bichano tenha atacado ladrões, ou
miado para prevenir o dono. Mas possuem uma fidelidade exemplar. São uma
companhia silenciosa mas cálida. Ninguém se sente realmente sozinho quando tem
um gato. E quem disse que um gato não tenta contribuir para o orçamento
familiar? Observe. Basta caçar uma ratazana das bem grandes para atirá-la na porta
da cozinha, de presente. Como se dissesse.
-— Trouxe o jantar!
Por mais que eu ame os cães, sou obrigado a reconhecer. Quando se diz
que alguém é um cachorro, bem... tome cuidado. Gato ou gata é elogio. E pura
sabedoria popular. Isso deve significar alguma coisa.
Arroz-Doce
CERTOS SABORES FICAM guardados em um canto onde a lembrança
se mistura com a emoção. Eu nunca vou me esquecer do arroz-doce com canela da
minha mãe. Simplesmente arroz cozido no leite, polvilhado com canela em pó. Não
era doce de festa. Mamãe tinha um bazarzinho no interior, e pouco tempo para a
cozinha. Empregada, nem pensar, naqueles tempos difíceis. Morávamos em uma
casa atrás da loja, e a porta da cozinha dava justamente para o balcão. Botava a
panela no fogo e ficava com um olho na receita, outro na loja. Às vezes chegava
uma freguesa, desatava a conversar. Que lugar melhor para saber as novidades do
bairro, quem vai casar ou quem separou, . do que o balcão de um bazar de cidade
pequena? O leite fervia, derramava. Muitas vezes, depois do jantar, vinha o arrozdoce passado do ponto, com um gostinho de açúcar queimado. Meu pai se divertia.
— Esqueceu no fogo?
Eu gostava assim mesmo. Repetia.
O pudim da minha avó paterna também está entre minhas recordações
prediletas. E uma receita antiga, espanhola. Pudim de leite com queijo parmesão
assado no banho-maria. Vovó era mestra na cozinha. Orgulhava-se. Quando vinha
nos visitar, mamãe avisava.
— Não esqueça de pedir o pudim.
E não? Era a primeira coisa que eu falava.
— Vovó, faz pudim?
Feliz pelo reconhecimento, voava para a cozinha.
Muitas anos depois, o pudim seria o tema de um ato de generosidade de
minha mãe. Eu já era adulto. Morava fora de casa. Vovó, velhinha. Fui visitar a
família. Cumpri o ritual. Pedi o pudim. Vovó foi para a cozinha. Passou horas; Mais
tarde, confessou, desanimada.
— Desandou.
Olhou para as mãos, triste, sentindo que já não era a mesma. Dali a algum
tempo, mamãe apareceu orgulhosa com um pudim, ainda quentinho.
— Mas não tinha desandado? — estranhei.
— A culpa era minha, que tirei antes do forno. Botei para assar mais um
pouco e ficou bom! — explicou ela.
Vovó estranhou. Mas sorriu.
Mais tarde, quando estávamos sozinhos, mamãe confessou.
— Fiz outro escondido, para ela não ficar triste.
Já começando a ficar doente, vovó precisava daquela pequena vitória.
Nunca mais pedi o pudim. Muito tempo depois, consegui achar a receita,
idêntica, em um antigo livro de cozinha. Também não tive coragem de fazer, pois
só de pensar nele lembro desse dia, do desencanto de vovó, de seu sorriso e do
gesto de mamãe. Sinto uma estranha emoção.
E ovos fritos, com a gema mole? Quem não gosta? Quem não sente
saudade, depois que o colesterol começa a subir? Quando como ovos fritos,
sempre me lembro da infância. Para muitos amigos é assim. Pratos simples
remetem a sensações do dia-a-dia, quando a família toda sentava-se em torno da
mesa. O jantar era, simplesmente, o momento de estarem juntos. Uma amiga se
lembra com emoção das festinhas de aniversário. Cada ano a mãe escolhia uma cor.
Uma vez rosa, outra azul, verde... Bolo, docinhos, vestido, tudo do mesmo tom!
Balas de coco em cascata. Quem não tem as balas de coco guardadas na memória?
Já vi senhores comportados atirarem-se sobre bandejas de docinhos de brigadeiros.
Quem sabe revivendo a alegria dos tempos de infância!
É fato. A lasanha ao forno, o frango assado, o prato feito do jeitinho que
só a mãe sabe, é inesquecível! Com a passagem dos anos, a vida muda, A gente se
distancia. Ou as pessoas se vão para sempre. Ou então, ela já se foi. O sabor de
uma receita, de um doce preferido, mexe com a gente. Dia das Mães. É uma
excelente data para eu fazer uma panela de arroz-doce. E trazer de volta a sensação
dos abraços, dos gestos de carinho, e de tudo que eu nunca perdi, porque continua
vivo dentro de mim.
Casa Própria
SER DONO DO PRÓPRIO teto é um sonho. Dá segurança morar no
que é seu. O caso é que a residência equivale ao casco da tartaruga. Ou seja, é uma
extensão do corpo. Aí começam as loucuras. É impressionante o número de
pessoas que constroem casas delirantes. Certa vez um corretor me ofereceu uma
que imitava um navio. Em vez de janelas, escotilhas. A estrutura de concreto,
curva, semelhante ao casco. Era um barco encalhado. No terreno e na imobiliária.
Uma amiga resolveu construir o lar na Granja Viana. No alto de um morro. A vista,
deslumbrante. Todo o dinheiro foi gasto em concreto. Parecia um viaduto pela
metade. Aconselhei:
— Use o que você ainda tem para comprar o material essencial para
terminar a obra.
-
Encomendou boxes de Blindex e o motor da piscina. Detalhe: não havia
piscina. Nem o buraco. Acabou ela mesma pintando quilômetros de chão de
cimento da sala. Descobriu-se que o concreto a transformava em um forno no
verão. Uma geladeira nó inverno. Comentei:
— Pelo menos, daqui a séculos, a casa vai estar de pé. Os arqueólogos
vão achar que era um templo. E você, a deusa.
Vendeu para um casal apaixonado, por menos do que as sacas de concreto
gastas no empreendimento. Os amigos correram a aconselhar:
— Compre alguma coisa feita, que só exija uma pintura.
Em segredo, arrumou um terreno no meio da Mata Atlântica. No
momento, discute o corte das árvores com o Ibama. Outro amigo, advogado,
apaixonou-se por uma mansão no Pacaembu. Mal comprou, descobriu: a casa tinha
sido usada como escola de tiro ao alvo. Todas as paredes sofreram intervenção. Os
alicerces. O telhado. A piscina. Só a cozinha estava ótima. Ele fez questão de
quebrar porque queria uma parede curva. A obra foi estimada em seis meses. Faz
dois anos. Pensam que está angustiado? De jeito nenhum. Está realizando um
projeto de vida, apesar dos cabelos um tanto mais brancos.
Eu poderia dar um martelo de presente para vários conhecidos. Adoram
derrubar paredes. Uma atriz passou anos economizando para ter seu cantinho.
Conseguiu um apartamento antigo com terraço, na Vila Buarque. Pagou com
esforço. Chamou os pedreiros e resolveu dar umas mexidinhas. Prometeram
terminar em um mês. Um ano depois, ela conta, sem perder o sorriso de felicidade:
— Abri tudo, ficou um salão. Agora o jeito é arrumar grana para cobrir o
terraço e fazer o quarto, senão vou ter de dormir embaixo da pia.
Certas pessoas têm até consciência do delírio. Uma corretora que conheço
recebeu um cliente. Queria um terreno no campo para fazer um paredão com uma
porta de alumínio, e um único quarto. Tipo galpão. Ela aconselhou:
— Olha, esse é o tipo de casa que se um dia você quiser vender, não
consegue.
A resposta, com os olhos brilhando.
— Claro. Eu vou construir um mico.
Meus miolos também não funcionam bem quando o assunto é moradia.
Faço o gênero nômade. Vivo numa chácara há dois anos. O excesso de paz me
enerva. Volto para a cidade.
Reclamo do trânsito. O dono da transportadora já
me propôs abrir uma conta corrente. Cada vez, eu prometo.
— Agora é para sempre!.
Em seguida, começo a empacotar os trastes.
Só conheço uma pessoa que não se importa com casa. E o único de meus
amigos que realmente posso dizer que é rico. Prefere pagar aluguel. Perguntei,
surpreso, o motivo.
— Existem maneiras melhores de investir o dinheiro —- comentou.
Pode ser. Mas certamente nenhuma mais gostosa do que enlouquecer com
a casa própria, quebrar umas paredes, trocar o piso e imaginar que o sonho está
prestes a ser realizado!
O Trauma dos Carecas
NUNCA ENTENDI O HORROR que os carecas têm da própria calva.
Talvez porque meus cabelos cresçam como capim. Já constatei o sofrimento de
quem, devido aos lances da genética, ostenta a cabeça reluzente. Conheci um
senhor bem-posto na vida que só andava de terno e gravata. Finíssimo! Mas
também, carequíssimo. Para disfarçar, penteava o topete de um extremo
da
cabeça até o outro. Ficava muito estranho. A risca do cabelo ficava na altura da
orelha. Para mantê-los no lugar, mergulhava os fios em um gel gosmento. Se batia
um ventinho, o cabelo todo se erguia, que nem um tapete! Ao conversar com ele,
meus olhos se fixavam na careca. Um brilho de fúria surgia em suas pupilas. Eu
tentava disfarçar. Dali a pouco, estava de olho na careca. Que constrangimento!
E quando o careca usa peruca? Nada é mais óbvio do que peruca com
franja. A franja costuma ter uma aparência juvenil. Depois de uma certa idade,
ninguém usa franja. Só os carecas. Ou seja, a peruca não serve como disfarce.
Equivale a botar um cartaz anunciando: "Debaixo deste cabelo falso tem aeroporto
de mosquito!".
Às vezes, com o hábito, o dono nem presta muita atenção na própria
peruca. Bota torta. E o tom dos cabelos? O. loiro é parecido com pelagem de
cavalo. O castanho, rebrilhoso. Ainda se salvam as pretas, que disfarçam mais.
Existem técnicas modernas. Uma delas é uma espécie de tela, colada sobre a calva.
Mistura-se com o cabelo. Parece normal até que os cachinhos começam a se
espalhar. O cabelo cresce que nem samambaia. O topo continua curto!
Mas ninguém cometa a gafe que eu já cometi, com minha delicadeza
peculiar.
— Ah, você usa peruca?
Terá um inimigo pelo resto da vida!
Há algum tempo encontrei um amigo em um bar. Parecia ter se tornado
um... ex-careca! O topo da cabeça absolutamente preto. Sem franja. Peruca não era.
Já estava prestes a perguntar qual o tratamento miraculoso. Quando descobri: era
uma espécie de tinta! Tinha pintado a calva de preto! De longe, parecia cabelo. De
perto, era horroroso. Agora, o pior é a situação de constrangimento em que esses
carecas botam um sujeito que tenta ser bem-educado. Eu não podia agir como se
tivesse percebido! Passei a noite inteira fingindo que ter o topo da cabeça asfaltado
era absolutamente normal!
Outro amigo, Carlos, um arquiteto, era um sujeito charmoso. Fazia o maior
sucesso com as mulheres. Estranhei quando começou a economizar para comprar
frascos e mais frascos de uma substância americana recém-lançada. Tinha uma
careca lustrosa, mas nunca imaginei que fosse problema. Até que fui jantar em sua
casa. Mostrou, orgulhoso.
— Veja, já cresceram três fios!
Bem, ele tinha dois. Com os três davam cinco. Todos os cinco espetados
no alto da cabeça, que nem as palmeiras da avenida Faria Lima! Brinquei:
— Daqui a pouco você vai poder fazer maria-chiquinha!
Quem disse que careca tem senso de humor? Emburrou, e emburrado
continua!
Outro amigo confessou.
— Usei peruca anos e anos. Até o dia em que fui para o mar. As ondas
levaram, a peruca! Foi um deus-nos-acuda para tentar salvar, enquanto todo mundo
ria. Que situação!
Hoje passeia a carequice para cima e para baixo. Feliz. Mas reconheço. Ser
careca deve causar um sentimento de horror, que ninguém mais é capaz de
compreender. Ainda bem que a moda mudou. Há quem raspe a cabeça por gosto!
Muitos carecas raspam tudo e fingem que é para ser fashion. Mas grande parte
continua atrás da peruca ideal, aquela tão perfeita... que até pareça de verdade!
O Casamento
ENTRO NA SACRISTIA embalsamado em um terno preto. O botão está
perigosamente apertado sobre minha barriga. Tremo à idéia de que possa estourar
como uma rolha de champanhe quando eu estiver sobre o altar. Serei padrinho de
casamento de meu amigo Rodrigo. Sou o primeiro a chegar. Precavido, corro para
o toalete. Ando fazendo uma dieta sem sal: Diurética. Ai, que medo! Busco o
masculino. Só encontro o feminino. Tranco-me lá dentro, já que ninguém está
vendo. Quando saio, há uma fila de mulheres na porta. Disfarço. Os outros
padrinhos chegam. Todos estão de camisa branca. Menos eu, que vim de azul.
Sinto-me horrível. O noivo também chega. Abraça a todos, visivelmente
emocionado. Meu amigo Murilo comenta.
— Está pingando sangue do seu queixo.
Verdade! Havia me cortado ao fazer a barba. Um grupo de madrinhas
apressa-se a resolver meu problema.
— Bote o lenço!
— Tire o lenço!.
— Jogue água fria!
É duro transformar-se no centro das atenções enquanto todo mundo
espera! Finalmente, estanca por si mesmo. Respiro aliviado.
Uma senhora nos chama. Deveremos entrar em cortejo, em uma ordem,
definida. Dá instruções.
— Padrinhos do noivo devem subir para o lado direito do altar!
— Ahn?
Minha dama resolve:
— A gente segue o casal da frente. Se ele errar, erramos juntos!
O noivo confidencia:
.
— Estou nervoso. Você não está?
— Quem vai casar é você — respondo. — E por que eu estaria?
Não sei por quê, todos riem. Acho que de nervosismo. A mãe do noivo
pede um momento. Está chorando tanto que deve refazer a maquiagem. Todos
aguardam.
Saímos em cortejo. Na porta da igreja a tal senhora dá um empurrãozinho
no meu cotovelo. Entro. Oh! Toda a igreja, de pé, me observa. Penso em sorrir.
Mas também não posso ficar arreganhando os dentes. Tento fazer uma expressão
de beatitude. Que horror! Eu e minha dama somos mais largos que o corredor!
Tento manter a dignidade enquanto caminho batendo o nariz nos arranjos de
flores. Subimos ao altar. Erro meu lugar, é claro. Minha amiga, Rosana, a madrinha
da frente, me puxa para o local adequado. Ainda bem que não derrubei um castiçal,
incendiando os vestidos das madrinhas. Mas quase.
O noivo, trêmulo. Ouve-se a marcha nupcial. Ouve-se a marcha nupcial.
Ouve-se a marcha nupcial. Ouve-se.... sim, a marcha nupcial continua sendo ouvida
e nada de a noiva entrar. Deve estar dando os últimos retoques na porta da igreja.
Finalmente, as portas se abrem. E uma das noivas mais belas que já vi.
Nervosíssima! É entregue ao noivo. Começa a cerimônia. Sermão. Minhas pernas
latejam. O padrinho do outro lado está olhando exatamente atrás de mim. Olhar
fixo. Será que o teto está prestes a despencar na minha cabeça? Quase viro o
pescoço. Consigo me conter. Tenho uma certa dificuldade em parecer um senhor
sério e bem-comportado. Entra uma menininha com as alianças. Chorando! O
noivo corre para pegá-la. Entrega-a à mãe, também presente no altar.
Ouço os "sins". As alianças são trocadas. O padre canta, em Um belo
momento. Os noivos choram. A cerimônia termina. Cada um deles vem nos
cumprimentar. Sinto uma emoção inesperada. Quando o noivo me abraça, me
chamando de amigo, o meu aperto é forte também. Vejo o quanto estão
emocionados. As lágrimas escorrem. Percebo, então, como esse ritual tão antigo
nos toca, e como os votos adquirem maior valor. Lá do fundo do meu coração
brota o desejo sincero de que sejam muito, muito felizes!
Cuidado com o Dono
PINSCHER. A mãe de um amigo tinha um cãozinho dessa raça. Tamanho
mínimo. Tormento máximo. Ficava solto na sala. Bastava eu chegar para uma
visita, começava a latir. Passava horas soltando latidinhos estridentes. Mordia meus
dedos com os dentinhos afiados. A dona sorria.
— Não é uma gracinha?
Eu tinha vontade de morder a tal senhora.
Quando morava em uma chácara tive um vizinho cujo cachorro latia a
noite toda. Adoro cães, tenho três. Mas aquele! Mudei de quarto. Coloquei algodão
no ouvido. Um dia, a surpresa.
— Levaram o barulhento para o sítio — contou a empregada.
Aliviado, suspirei. Alívio inútil. Na mesma noite iniciou-se uma sinfonia de
ganidos. Não um, mas vários cãezinhos juntos! O número parecia aumentar
diariamente. Achei que fosse psicológico. Impressão? Exagero? Estaria
endoidando?
— Ih! Ele montou um pet shop — contou minha funcionária.
Exatamente. Trazia os filhotes para dormir em casa. Um número crescente
de cachorrinhos, todos ganindo de saudade da mãe. Eu tinha vontade de abrir a
janela e uivar. Foi quando descobri que a vida no campo nem sempre é tão
repousante quanto apregoam. Voltei para a cidade.
Uma amiga possui cinco cachorros. Basta um carro passar a duzentos
metros para dispararem latindo furiosamente. Com freqüência, fogem. Atacam os
calcanhares alheios. São pequenos e peludinhos. Machucar, não machucam. A dona
sai no portão e grita.
— Voltem, voltem!
Se alguém reclama, fica brava.
-— Imagine, eles não fazem nada.
Além de ser mordida, a pessoa quase é obrigada a pedir desculpas. Os
vizinhos já puseram as casas à venda várias vezes. E o maior movimento de
corretores da região. Eu me pergunto: cachorros não se cansam de latir? Tento,
para fazer a experiência.
— Au, au!
Em cinco minutos estou rouco!
No elevador do meu prédio é freqüente, dar de encontro com algum
cachorrão. O proprietário sempre avisa:
— Não se preocupe, é manso.
Será? Fico encolhido em um canto. E se justamente agora resolver
experimentar o sabor de uma mordida? Donos adoram dizer que seu bichinho de
estimação é angelical, mesmo com provas em contrário. Tive uma amiga carioca
com uma cadela dobermann. Nas poucas vezes em que me hospedei em sua casa
acordava com a princesa me farejando. Eu, deitado em um colchão no assoalho. O
focinho molhado na minha nuca. Rígido. Não mexia nem os cílios. Horas depois a
moça ouvia meu gemido e vinha:
— Está com medo do quê?
— Medo, não. Apavorado — eu respondia sem voz.
— Que bobagem!
Atirava um osso. A bonitona agarrava no ar e saía mastigando que nem
chiclete.
Eu punha as mãos no pescoço, pensando quantas horas faltavam para
pegar o ônibus.
Mais me dói verificar que volta e meia são os cães que levam a culpa. Está
no auge o tema da proibição de criar certas raças, como o mastim-napolitano, o
pitbull e o rottweiler. Um ator que conheço foi atacado por um pitbull, Teve de
fazer plástica. Ficou anos fora da televisão. Mas um casal de amigos tinha um
rottweiler chamado Xico. Um doce. Abanava o rabo. Pulava e lambia. E triste
pensar que o Xico não existiria. Não sou um especialista em raças. Se autoridades
da área garantem que algumas são perigosíssimas, sou o primeiro a aceitar. Tudo
bem que se limite a criação das feras. E os portões abertos, o descaso, a
imprudência? Muitas vezes é preciso cuidado com o dono! Nas mãos de alguém
imprudente, até um pinscher é capaz de enlouquecer meio mundo!
Absurdos Natalinos
MINHA MÃE SEMPRE DIZIA, antes do Natal, aniversário ou Dia das
Mães:
— Este ano quero presente para mim, não para a casa!
O Natal era a época escolhida para a troca de geladeira. Comprar um
aspirador de pó. Talheres, pratos. Quando a tralha chegava, papai sorria:
— E para você!
Muitas vezes surpreendi em minha mãe um olhar assassino. Para ela como,
se todo mundo ia desfrutar a água gelada? O sorvete? Servia, sim, para atrapalhar a
vida da velha.
— Mãe, faz musse de maracujá?
— Como? Você esqueceu de pôr o guaraná na geladeira?
-— Cadê o gelo? Ninguém pôs água nas forminhas? É o fim! Ela sonhava
com uma viagem. Roupa nova. Algo que fosse só dela. Ano após ano, alguém
aparecia com um pacotinho.
— Não sabia o que dar.
E vinha um jogo de copos. Xícaras. Bules. Luvas térmicas. Malintencionado, certa vez ofereci um livro de receitas.
— É para você cozinhar melhor.
Ela sorria. Aposto que teve vontade de atirar o Dona Benta na minha
cabeça. Mas o que pode fazer alguém senão sorrir diante de um presente errado?
Natal é uma época excelente para exercitar a hipocrisia. Certa vez, em um.amigosecreto, recebi duas toalhinhas rendadas.
— Não tive tempo de comprar coisa melhor.
Sorri, como se estivesse diante do enxoval de Cleópatra. Também é um
susto ganhar enfeites.
— Adooorei estes cavalinhos de barro. Trouxe dois para você.
Sorri. Onde botar as duas maravilhas? No nariz de quem trouxe? E quando
o amigo é artista?!
— Olha! Pintei em sua homenagem!
Desembrulha a tela. No centro, um sujeito gordinho, terno verde, com a
cara semelhante a uma beterraba de óculos. Sorri cautelosamente.
— Quem é?
O artista assumiu um ar de desapontamento.
— Você!
— Eu?
Sorri, mas agora de susto! Era um bom momento para cortar relações. Mas
Natal não é época de fraternidade? Disfarcei a gafe.
— Sim... agora estou vendo... é a minha cara! Só não reconheci no
primeiro olhar porque nunca boto roupa verde.
— Não? Ah... mas eu já vi você de verde, sim!
Será que ele me confundiu com o Louro José? Suspiro.
— Sim... pode ser... uma vez. Eu... eu vou dependurar.
— Deixa que eu ajudo.
Nada mais trágico do que acordar meses e meses encarando minha versão
artística! Quase perdi a compostura quando, em uma ceia, uma conhecida chegou
com um pacote gigantesco. Até estranhei, porque a dita-cuja era conhecida como
unha-de-fome. Abri e me deparei com um ursinho de pelúcia cor-de-rosa! Ela se
assustou quando encontrei um envelopinho com um cartão e abri. Li uma
mensagem delicada: "A você, querida, para fazer companhia nas suas noites sem
sono". Assinado por... um homem!
:
Ela ficou completamente sem jeito. Era óbvio. Havia recebido o presente
de alguém e, sem abrir, me entregou. Só não imaginou que poderia haver um cartão
dentro, e não fora, como é hábito. Diante do meu espanto, riu:
— Ih, acho que dei um fora! Deixa eu ver o cartãozinho!
— Ah, mas você até acertou! Que incrível ganhar um ursinho de pelúcia
cor-de-rosa! Incrível!
Dessa vez não ri. Gargalhei. Quase cantamos Jingle Bells em dueto. Era
isso ou atirar a árvore de Natal em cima da malandra. Ela confessou:
— Nunca compro nada. Passo para a frente os presentes que me dão!
Presente virou obrigação. Por isso, sempre acontece algum absurdo. Afinal, nem
todo mundo compartilha do tal espírito natalino! Posso odiar o que ganhei. Mesmo
assim, acho melhor sorrir. Ao menos, fico com a alma mais leve!
Cabeças-de-Vento
UM DOS MAIORES SUSTOS de minha vida aconteceu exclusivamente
por culpa minha. Trabalhava em um escritório em uma pequena travessa do bairro
dos Jardins. Recebi um amigo, conversamos. Saímos de noitinha. Chuviscava;
Corremos até o carro. Tentei abrir, não conseguia. Um carro entrou na rua em
disparada. Brecou rangendo os pneus. Quatro rapazes mal-encarados saíram às
pressas, deixando as portas abertas. Não tive dúvidas: íamos ser assaltados. O
escritório fechado. Rua vazia. Gelei. Um dos sujeitos parou a dois metros. Os
outros formaram um arco atrás dele.
— Boa noite — rosnou.
— Boa noite — gemi de volta.
— Largue o carro — gritou ele.
Tremi. Era mesmo um bando de ladrões. Eu e meu amigo imóveis de
medo.
— Vamos, largue o carro! — insistiu o mal-encarado.
— Mas... é meu -— consegui dizer, quase em lágrimas, abraçando o capo.
— E seu coisa nenhuma. É meu.
Ergueu o punho, ameaçador. Já ia responder quando olhei para o lado. Lá
estava meu carro, estacionado a poucos metros. Quem estava tentando levar o
automóvel alheio era eu! Constrangidíssimo, tentei explicar:
— Ih! Acho que me enganei. O meu é aquele lá.
Quem poderia acreditar? O meu era azul, o dele marrom. Pior: de modelos
completamente diferentes. Meu amigo babava com o vexame. Fugimos às pressas,
antes de levarmos uma surra. Certamente o sujeito e a turma vão contar a vida toda
como certa vez afugentaram dois perigosos ladrões com a boca na botija.
Carros são um prato ótimo para distraídos. Dia desses um amigo entrou na
garagem do prédio, que tem dois pavimentos. Horrorizado, descobriu que seu
carro estava todo enlameado.
— Alguém deve ter usado escondido! Só pode ser o garagista!
Cheio de raiva, pegou uma mangueira. Lavou. Arrumou pano velho para
enxugar. Quando chegou na frente, notou parte da pintura descascada.
— Ainda por cima devem ter raspado na parede. E muita safadeza.
Já estava prestes a chamar o síndico. De repente descobriu que tinha
lavado o carro de outra pessoa. Pior, de um modelo diferente do seu! Simplesmente
errara o pavimento da garagem, caminhara até onde julgara ser sua vaga e o resto
ficou por conta da distração. Tenho uma amiga experta em distrações culinárias.
Convida para um churrasco e esquece de comprar a carne. Certa vez preparou um
jantar para dez pessoas. Só eu fui. Ficou arrasada. Lá pelas tantas, ligou para um
convidado.
— Por que você não veio no meu jantar?
— O quê? Você não avisou!
Tinha esquecido de convidar. Tenho um amigo tão distraído que, em certo
dia de chuva, ficou de dar carona a uma companheira na saída do trabalho.
Ofereceu.
— Vou até o estacionamento, tiro o carro e pego você na porta.
A amiga sorriu, agradecida. São raros os cavalheiros hoje em dia. Pois bem:
o "cavalheiro" chapinhou até o estacionamento. Pegou o carro e saiu. A moça
aguardava na porta. Ele passou por ela distraidamente, deu tchauzinho e foi
embora. A coitada pensou que fosse brincadeira. Quarenta minutos depois
percebeu que havia algo errado. Foi obrigada a sair na chuva, no escuro, até um
ponto de ônibus Só no dia seguinte, quando estava prestes a levar uns tapas, ele
percebeu o engano. — Ih... eu esqueci que você estava me esperando! Se dirijo, às
vezes viro na rua errada, sem pensar. Principalmente quando estou acostumado
com um caminho e esqueço que vou para outro lugar. Levanto para dar um
telefonema urgente, paro para tomar um café e quando lembro passou o horário
comercial. Meu amigo Cláudio, um distraído contumaz, jura que é genético. Certa
vez, nos bons tempos do centro da cidade, seu avô e sua avó foram assistir a uma
ópera no Teatro Municipal. Ela, com casaco de peles e jóias, elegante como era de
praxe. O casal saiu caminhando. A rua Xavier de Toledo estava em obras, cheia de
tapumes e buracos bem fundos. A avó caiu dentro de um deles. O marido nem
percebeu. Distraído, foi para casa, sentou-se para ler o jornal. Horas depois a
mulher apareceu. Suja de barro até os cabelos. O casaco de pele destruído. Ele
espantou-se: — Onde é que você estava?
Hoje em dia daria divórcio. Na época, ela contentou-se em rugir. De tudo,
uma lição se aprende. Quando se fala em distraídos, sem dúvida a tragédia anda ao
lado da comédia.
Muambas de Luxo
HÁ DUAS SEMANAS FIZ as malas e parti para os Estados Unidos.
Férias! Ainda sou do tipo caipira, que quando vai pegar um avião anuncia aos
quatro ventos. Nunca mais farei isso. Mal contei, começaram as encomendas:
— Você me compra creme de barbear? — pediu um.
— Aqui existem tantas marcas...
— O que eu gosto é americano. Nas lojas, cobram 7 reais.
No free shop, só 4!
.
.
Nos dias seguintes recebi uma enxurrada de telefonemas:
— Eu uso um perfume que é caríssimo no Brasil.
— Uma vez eu ganhei um relógio com um cachorrinho que late ao
despertar. Da Disney. Arruma um para o meu sobrinho?
É um constrangimento. As pessoas se comportam como se estivessem no
interior da selva amazônica, ávidas por gotas de civilização. Há pedidos
completamente estapafúrdios. Meses atrás, um ator de voz afinada pediu a um
amigo meu que ia a Nova York: "Não poderia trazer partituras musicais para um
show?". O turista passou duas tardes correndo a cidade e achou algumas. Ao
entregá-las, ouviu um rosnado:
— Só essas? Se tivesse procurado com vontade teria encontrado mais.
O show nunca foi montado. A amizade esfriou. Muitas vezes tentei
recusar, explicando:
— Vou a trabalho, nem sei se terei tempo...
A pessoa sempre insiste. Age como se fosse desfeita. Entre . o pedido e a
entrega existem várias armadilhas capazes de acabar com uma amizade. Como a
questão do preço. Certa vez um rapaz insistiu para que eu trouxesse um
gravadorzinho. Comprei na primeira loja. Ainda me lembro do sorriso do chinês do
balcão. Ao chegar, entendi o porquê de tanta alegria.
— Aqui no Brasil é muito mais barato!
— Você ainda queria que eu pechinchasse? -— admirei-me.
Ele me olhou torto, como se eu estivesse tirando algum por fora. Algumas
situações ficam muito desagradáveis. Um advogado, conhecido meu, esqueceu-se
de procurar um xampu. Ao voltar, comprou num shopping e o entregou à colega
de escritório como se fosse trazido do exterior. Cobrou metade do que pagou. Só
para não ficar chato. Foi pior: agora vai viajar de novo e a moça lhe deu uma lista
enorme, para aproveitar o preço.
Pavoroso é o amigo que encomenda pôster. Não adianta bater o pé, dizer
que não cabe em mala nenhuma, que serei obrigado à trazer na mão.
— E leve, qual o problema de carregar? — ouço de volta.
Nem sei como reagir diante da observação. Carregar tralha é horrível até
em viagens curtas de ônibus, como de São Paulo a Santos. Quanto mais em
aeroportos, onde se deve chegar duas horas antes, esperar para embarcar etc, etc.
Será que ninguém pensa que em vez de fazer compras eu quero aproveitar a
viagem? Bem, minha mãe dizia que pimenta nos olhos dos outros é refresco.
A frase mais terrível certamente é:
— Você traz que depois a gente acerta.
Por causa dela, cheguei a dar calote. Há alguns anos uma produtora teatral
me pediu para encontrar um diretor em Nova York e pegar um texto com ele.
Pagaria as despesas, explicou. Esperei no hotel, o homem não chegava. Eu tinha
um compromisso, saí correndo. Voltei, encontrei o texto e um bilhete com a conta.
Era um livro caríssimo, fora dos catálogos. Telefono para ele, não encontro. Ele
liga de volta, deixa recado. Acabei partindo sem pagar. Foi a sorte. A produtora
pegou o livro, sorriu, agradeceu, disfarçou e nem perguntou quanto custara. Ou
seja: eu também não iria receber.
Finalmente aprendi. Ao desembarcar em Cumbica, fui ao free shop tratar
das encomendas. Fiquei uma hora escolhendo licores, chocolates, latinhas de patê,
telefones sem fio. Cheguei aos perfumes. De todos, só não havia o meu. Senti-me
injustiçado. Estava lá, camelando com as compras, e para mim nada? Podem me
chamar de egoísta. Abandonei o carrinho.
Os amigos fazem de tudo para transformar o turista em ás do contrabando.
Decidi: encomendas, não mais. Sei de gente que ficará de nariz torcido. Assumo:
odeio peregrinar pelas lojas, carregar malas, esfalfar-me nos aeroportos. Para
muambeiro de luxo, nunca tive vocação.
A Praça
NO FINAL DA ADOLESCÊNCIA, meu sonho era ser ator. Até fiz
pontas no teatro. O salário era baixo, mas eu cumpria o ritual de todos os
candidatos a astro. Ia religiosamente ao restaurante Gigetto, onde famosos e
aspirantes se cruzavam. (Por sinal, o Gigetto mantém até hoje a tradição.) Eu
pertencia à turma do couvert. Espécime que, por falta de fundos, contentava-se em
filar o couvert alheio. Puxava uma cadeira e me pendurava era mesas lotadas.
Tomava rio máximo um refrigerante. Surrupiava azeitonas e pedaços de pão com
manteiga. Tipos como eu eram comuns. A ponto de, em certa época, o Piolin,
outra meca de aspirantes a ator, exigir que pelo menos alguém na mesa pedisse um
prato. Entrava.no restaurante e espreitava mesa por mesa, até achar algum
conhecido com emprego suficiente para encomendar um frango a passarinho. As
horas passavam, com longas conversas sobre testes, espetáculos a ser montados
etc. Onde estavam procurando um magricela loirinho e tão míope a ponto de ser
capaz de cair do palco?
Havia um problema de horário. Invariavelmente, a chamada "classe teatral"
ia ao restaurante depois dos espetáculos. Eu morava no bairro da Lapa, e -o ônibus
parava à meia-noite, para voltar a circular ao amanhecer. Eram bons tempos. Para
mim, ao menos. Embora não certamente para meus pais, que viviam descabelados,
olhando a cada quinze minutos pela janela. -— Não veio ainda — murmurava
minha mãe.
— Já está na hora dele tomar jeito! — rosnava meu pai.
Se não pintava nenhuma festa, só havia uma maneira de chegar em casa.
Ficar conversando até o amanhecer. Eu e meus amigos, a pé como eu,
caminhávamos pelas ruas, batendo papo. Um casal de amigos vivia em uma
quitinete da rua Caio Prado. Era comum receberem meia dúzia de visitantes às duas
da manhã. Acordavam e ficavam conversando até o sol raiar. Ou nos
acomodávamos no chão, para esperar o fim da madrugada. Isso quando não
éramos impedidos de entrar pelo porteiro do prédio, que fiscalizava o excesso de
bagunça.
Mas, na maioria das noites, andávamos. Não bebíamos, como pode
parecer. Só caminhávamos, falando sobre a vida, sonhos, arte, projetos. Ou sobre
ávida alheia, porque ninguém é de ferro. Lembro especialmente de uma noite em
que, junto com um amigo, Cândido, sentei em um banco da praça da República.
Absolutamente vazia. A não ser por uns patos que viviam no laguinho. Cândido
não era ator, mas adorava a noite. Vivia em uma pensão no raio que o parta. A
família, do interior. Esperava a decisão de um inventário. Nunca mais o vi, e às
vezes tento imaginar o que aconteceu com ele. Soube, há anos, que a tal fortuna
saiu. Já é uma vantagem. Passamos a noite batendo papo naquele banco. Ele se
lamentava. Acabara de romper com a namorada, trocado por um baiano que ela
conhecera no carnaval em Salvador. Falamos longamente sobre a vida. Às vezes
passava alguém, nos olhava. Ou até cumprimentava de longe, e continuava seu
caminho. O dia amanheceu, e nem sentimos o tempo passar. Ainda fomos tomar
uma média com pão e manteiga. Fui ao ponto, peguei o ônibus. Quase dormi no
banco, mas cheguei em casa leve, após uma boa noite de conversa.
Hoje, por uma dessas coincidências da vida, moro em um apartamento que
dá frente para a praça da República. Patinhos no lago, nem pensar. Não resistiriam
mais de meia hora, até serem levados, depenados e assados. Quando quero
atravessar a praça, evito passar.por cima. Prefiro ir por baixo, pela estação do
metrô, que é mais seguro. Outro dia estava com um vizinho, pronto para voltar à
superfície pela escada rolante. Um rapaz aproximou-se, chocado.
— Fui cercado por seis pivetes. Queriam minha carteira, nem sei como
estou aqui.
Meu vizinho recuou, com medo. Eu ainda conversei. O rapaz só queria
desabafar, ainda tremia. O síndico do meu prédio participa de um grupo que tenta
fazer tai chi na praça. Pouca gente vai, mas ele insiste a duras penas. Há sujeira. Há
uma coisa pesada no ar. Nunca mais sentei em um banco, nem mesmo de dia.
Juro, tenho saudade daquele tempo em que ficar conversando na praça
podia ser uma coisa normal. Não só nela. Não conheço ninguém capaz de cometer
a ousadia de sentar em uma praça, mesmo em um bairro, e passar a noite batendo
papo. Parece que o centro, com tanto policiamento, ainda é o lugar mais seguro.
Pois em muitos bairros assaltam-se até prédios inteiros. Havia menos linhas de
ônibus. Menos projetos disso e daquilo. Mas o laguinho podia ter patos.
Sinto que perdi alguma coisa essencial. Hoje, tenho meu apartamento,
carro. Não preciso esperar o horário do ônibus.
Mas, no fundo, sou proprietário de muito menos. Antes, eu era dono da
cidade.
Palavrinha Perigosa
VISITO UMA AMIGA, dona de um antiquário. Detalhe: ela mora na
parte de cima da loja. Para minha surpresa, nesse sábado, meio da tarde, parece
haver uma festa no pátio. Várias pessoas bebem cerveja e comem bolinhos de
bacalhau, fritos por uma senhora portuguesa, vizinha da loja. Um rapaz faz
drinques e sucos. Minha amiga se apressa a me receber.
— Aceita uma cerveja? Ou prefere um suco?
Aceito, é claro. Um suco geladinho, delicioso. Como alguns bolinhos de
bacalhau. Entro no papo. Dali a algum tempo, resolvo me despedir. Sorrio, grato
pela tarde deliciosa.
— Bem, vou indo....
Imediatamente, ela saca um bloquinho, a caneta, e começa a fazer as
contas.
— Deixa ver. Você tomou um suco... ou foram dois? Quantos bolinhos
de bacalhau?
A senhora portuguesa grita:
— Seis! Ele comeu seis!
:
Bem, eu comi seis pensando que fosse de graça! Arranco algumas notas do
bolso, desenxabido. Ela recebe, feliz da vida.
— Volte sábado que vem.
É o drama da palavra "aceita". Ah, palavrinha perigosa!
Conheci uma jovem que veio do interior estudar. Vida difícil, morando em
pensionato. Um dia resolveu fazer uma extravagância. Saiu com umas amigas,
estudantes como. ela, para jantar fora. Sentaram-se no restaurante. Nenhuma tinha
experiência de cidade grande. Veio o garçom.
— Aceitam uma entrada?
—Aceitamos!
— Aceitam um vinho?
— Oh, sim, aceitamos!
E foram aceitando. Certas de que fosse uma gentileza, já que ninguém
estava falando em dinheiro. No final veio a conta. Quase morreram de susto.
Passaram o mês comendo ovo com pão.
O
verbo aceitar acabou se tornando uma forma disfarçada de empurrar a
mercadoria sem discutir o preço. O correto seria o garçom ter oferecido a carta de
vinhos.
Em tempos bicudos, as coisas ficam ainda mais difíceis. Recentemente fui
à casa de um amigo na Vila Madalena. Artesão. Mal entrei, ele lembrou.
— Ainda não dei seu presente de aniversário! Está guardado.
Foi para dentro, voltou com uma caixinha de madeira enfeitada com flores
do tipo que detesto. Sorriu e disse:
— Que acha? Gosta?
-— É... linda!
— Quer ficar com ela?
— Claro!
Afinal, o que se diz diante de um presente? Mas a coisa não era bem assim.
Saltitante, ele entrou no quarto. Voltou com um pacote.
— Este é seu presente.
— Ahnnn?
Desembrulho uma camiseta, atônito. Ele continua:
— Pela caixinha, vou fazer um preço especial!
E manda ver! Que tática, hein? Como voltar atrás, ainda por cima sendo
uma obra assinada pelo próprio? Deu vontade de atirar a caixinha na cabeça dele.
Uma amiga, que mora em um bairro de classe média tradicional da cidade,
anda apavorada. Diante da crise que assola as melhores famílias, a maioria das
vizinhas partiu para negócios domésticos. Uma faz massas em casa. Outra, doces e
bolos. As visitas amigáveis de antigamente transformaram-se em armadilhas.
—- Não quer levar uma lasanha para casa?
A ingênua caiu na conversa algumas vezes. Logo depois de embrulhada a
massa, ou a bandeja de docinhos, vinha o preço.
— Mas... mas...
Nos bons tempos, bastava devolver o prato com outra gulodice. Minha
amiga desenvolveu uma tática.
— Estou de regime.
Ninguém acredita, é claro. Continua gordíssima. Mas com o dinheiro no
bolso.
Eu optei pela franqueza.
— Não aceito não.
— Mas está tão gostoso.
— Não quero, não quero e não quero!
Vou acabar passando por mal-educado. Mas do jeito que as coisas vão,
ficou perigoso aceitar até presente de aniversário.
Vítima das Embalagens
ENTRO NO CHUVEIRO. Relaxo na água quentinha. Pego o xampu. É
novo. Tento virar a tampa. Não cede. Aproximo meus olhos míopes. Está envolta
em um plástico duro, transparente. Puxo. Minhas unhas curtas resvalam. A batalha
demora alguns instantes. Minhas investidas não produzem resultado algum. Tenho
cabelos oleosos. Sem um bom xampu, fico tão charmoso quanto um tapete de pele
de carneiro. Ataco a tampa a mordidas. Meus dentes rangem. Mal arranco uma
lasquinha. O xampu cai da minha mão. Abaixo-me. Tropeço. Caio sentado. O
frasco continua invicto.
Recentemente, também fui vítima de uma lata de patê de fígado. Era
daquele tipo que vem com uma chavinha. O segredo é enrolar a chavinha bem
devagar em torno do topo, até que a parte de cima se solte. Teoricamente. Como
sempre, fiquei com a chavinha inútil numa mão e a lata fechada na outra. Os
amigos bebiam cerveja na saía. Quis enfiar a chavinha de novo. Impossível. Tentei
com o abridor. Não havia ângulo para apoiar. Peguei uma faca e um martelo. Fui
esfaqueando a lata pela parte de cima. Cavava um buraco, em seguida outro do
lado, e assim por diante. Quando achei que dava, puxei. Abri.
Mas a lata, cheia de pontas metálicas, bateu na minha mão.
Espalhei patê pelo piso. Eu me cortei. Um cortezinho ridículo, mas corte.
Os amigos vieram correndo. Falaram em tétano e pronto-socorro. Jurei nunca mais
comprar patê de fígado com chavinha. Frascos, latas e semelhantes levam qualquer ser humano à beira da loucura.
Remédios e vitaminas são hors-concours. Só provam uma coisa: quem conseguir
abrir está perfeitamente saudável. As aspirinas têm vindo com uma tampa na qual
há uma setinha minúscula em relevo. A tal setinha tem de encaixar com outra
marquinha. Algo tão minucioso quanto abrir um cofre sem o segredo. Para quem
está estalando de dor de cabeça, uma delícia. Alguns sucos vêm em embalagens de
papelão com um recorte picotado. "Aperte aqui", diz um aviso. Aperto e não
acontece nada. Depois de inúmeras tentativas, arrebento o papelão no lugar errado.
O suco esguicha para o copo pelo lado. Um horror.
Engoli derrotas até de embalagens de produtos de limpeza. Algumas vêm
com uma tampa simples. Aberta, descobre-se uma nova tampa. O lugar onde devia
haver um furinho está tapado com plástico resistente. Tudo bem. E uma medida
natural do fabricante para impedir que o detergente alague o caminhão de entrega.
Mas a tampa é planejada numa medida tal que nada consegue fazer o furinho. A
ponta das facas não penetra. Nem a da tesoura de cozinha. Tento com um garfo. A
dimensão é perfeita. Quase consigo. Empurro um dente do garfo no plástico.
Entorta para o lado, mas não faz o furinho. Fico com o garfo destruído e a
embalagem fechada. Paro alguns segundos. Tomo um café. Cravo chaves de fenda
de tamanhos variados. Nenhuma serve. Lembro-me do abridor de vinhos. Tenho
um superchique, de design italiano, que reservo para os dias de visita. Quase acabo
com o abridor, mas consigo. Furinho feito, vou lavar os pratos. Espremo a
embalagem e o produto sai por todos os lados. As várias tentativas criaram
pequenas aberturas. Espirra até no armário da cozinha. Minha orelha fica cheia de
detergente.
Estou consciente de que os fabricantes têm sólidas razões para me torturar
dessa maneira. Proteger o produto é uma delas. Impedir que crianças abram frascos
indevidos é outra. Nesse último caso, trata-se de pura ilusão. Petiscos em saquinhos
metálicos indevassáveis e bugigangas eletrônicas treinaram a meninada. Para minha
humilhação, qualquer garotinho abre uma embalagem complexa em segundos. Eu
me sinto como se fosse um alienígena, ainda não adaptado para conviver com os
progressos da civilização. Tenho saudade das embalagens do passado. Quando
bastava um pouco de firmeza para torcer tampas ou usar o abridor de latas. Força,
só para estourar a rolha da garrafa de champanhe. Mas, aí, sempre valia a pena, por
conta da comemoração.
A Vida é Falsa
ESTOU EM UMA CHURRASCARIA. Termino de devorar pedaços
variados de alcatra, de picanha, de costela. Sinto um pedacinho de carne infiltrado
entre meus dentes. Tento arrancar com a língua, de leve. Inútil. Aspiro. Um ruído
sai da minha boca. Shieeeeee! Os companheiros de mesa levantam os olhos.
Estendo a mão para pegar o paliteiro. Sim, em churrascarias ainda existem
paliteiros. Nos restaurantes mais finos, eles vêm encapsulados. Ou nem mesmo são
colocados na mesa. Agarro um palito. A moça na minha frente me olha
horrorizada. Lembro-me de todos os manuais de etiqueta. E proibido palitar os
dentes em público. No máximo pode-se palitar trancado no toalete, como se fosse
um segredo inconfessável. Abandono o palito na mesa. Em seguida, penso: "Por
que é proibido palitar os dentes?".
Não há motivo lógico para tornar o ato tão vergonhoso. Enfio o palito nos
dentes, sob o olhar constrangido da mesa. Sorrio, deliciado. Existe coisa melhor do
que palitar os dentes após uma refeição?
Dizem que é feio fazer isso, fazer aquilo. Já não sei. Outro dia estava
andando no condomínio. Um cachorrinho saiu de uma casa, correu, mordeu e
rasgou minha calça. A moça — por sinal veterinária, como soube depois —, em
vez de perguntar se eu estava machucado, gritou, furiosa.
— Desculpa.
— Rasgou minha calça! -— respondi.
— O que você quer que eu faça, já pedi desculpas?! — revidou a dama.
Exigi uma calça nova. Não só por ser do meu direito. Mas pela atitude
dela, que nem se preocupou em saber se eu estava ferido. Dias depois, insisti em
receber a calça. Um amigo torceu o nariz.
— Mas pode parecer mesquinharia.
— E daí se estou sendo mesquinho? — respondi. — Então é feio exigir
o que é justo?
Acontece sempre. Basta a gente pedir alguma coisa que é do nosso direito;
e que envolve uma pequena quantia, para receber cara feia. Quantas vezes, em
restaurantes, são esquecidas as moedas, ou as notas mais baixas? Sem. nenhuma
explicação. Outro dia, no shopping D&D, paguei o estacionamento. De troco, um
real. O rapaz nem se mexeu. Foi preciso dizer: — Pode me dar o troco, faz favor?
Atirou a nota nos meus dedos, como se eu fosse um monstro. Há uma
infinidade de coisas banidas da vida social. Comer frango com a mão, por exemplo.
E delicioso agarrar uma coxa com as mãos! As regras de etiqueta até permitem, mas
ninguém tem coragem. Ficam cortando pedacinhos com a faca, enquanto o osso
rola no prato. E chupar q tutano? Quem nunca provou não sabe o que está
perdendo. E uma delícia. Já me avisaram:
— Você vai ficar com a boca lambuzada.
— Lambuzou, lavou! — respondo.
Na trilha do frango, vai a manga. Cravar os dentes no caroço de uma
manga bem madura é inesquecível. Todo mundo serve a fruta cortadinha. Existem
frutas que nem são servidas diante de convidados. Jaca, por exemplo. Impossível
comer jaca de garfo e faca. Resultado: ninguém mais oferece. Tem gente que acha
feio até comer sanduíche com a mão. Já recebi muitos olhares de acusação ao
agarrar um cheesebúrguer e meter os dentes, enquanto a pessoa na minha frente
corta os pedacinhos. São tantas as falsidades que já nem sei como me comportar.
Outro dia cheguei a uma festa de aniversário e perguntei, alegre. Quantos anos?
A aniversariante virou a cara. Na hora do bolo, só uma vela solitária.
Acabei comentando:
— Se ela botasse todas as velinhas, provocaria um incêndio!
Quase fui expulso.
Alguém me responda: como dar festa de aniversário sem que perguntem a
idade?
Já me conformei. Se é para deixar de ser espontâneo, prefiro ser chamado
de mal-educado. Pelo menos a vida se torna mais confortável.
O Cardápio do Medo
HORA DO ALMOÇO. À minha frente, um prato de frango grelhado com
berinjela à milanesa. Minha barriga canta de felicidade. Penso melhor. Deveria sair
correndo. Segundo soube, nada pior do que a pele do frango. E um depósito de
colesterol. E também a parte mais .gostosa. Puxa! O colesterol deve produzir um
sabor delicioso. Tudo que é bom tem colesterol às pampas, como torresmo e gema
de ovo frito. Suspiro. Ainda não inventaram o colesterol diet. Retiro a pelezinha. E
o frango em si? Uma reportagem na televisão revelou que os frangos podem estar
contaminados com hormônios capazes de produzir doenças pavorosas. A berinjela
à milanesa também não é inocente. A fritura vai poluir minhas artérias. Pego uma
goiaba com casca. Quem garante ter sido devidamente esterilizada? Entre outros
mimos, pode dar cólera.
Tornou-se complicado comer. Meu acupunturista sugeriu:
— O bom é ter sempre peixe na mesa.
Eu gosto de peixe. De frutos do mar também, mas o camarão (justamente
o camarão!) é um poço de colesterol. Os peixes seriam totalmente inocentes.
Seriam. Uma amiga médica avisou:
— Com a poluição, os peixes têm excesso de mercúrio.
Perigosíssimo!
Sempre achei queijo saudável. Ledo engano. São os novos vilões, devido ao
índice de gordura. Pior, mesmo, só hambúrguer com bacon e maionese. E como
sobreviver sem maionese, creme de leite, queijo parmesão? Aconselho-me
novamente com o acupunturista.
— Evite o leite comum. Tome bastante leite de soja e coma tofu.
Bem, uma vida à base de tofu não é exatamente uma versão do paraíso.
Abro uma revista. Um médico explica como tirar o leite da dieta é perigoso.
— Soja não é leite — adverte.
Estarei arriscado a várias doenças decorrentes da falta de cálcio, se evitar o
leite. Entre elas, osteoporose, artrite. Ah, se pelo menos eles concordassem entre si!
Adoro sal. Sou aconselhado a evitar. Pode causar hipertensão.
—- Minha pressão sempre foi ótima! — tento me defender. O amigo com
quem converso abana a cabeça, cauteloso.
— E melhor prevenir.
Termina explicando:
— A melhor dieta é a vegetariana.
Quando me vê com o nariz mergulhado em um prato de folhas de alface,
outro amigo adverte:
—As verduras estão contaminadas por agrotóxicos.
— E o que devo comer, grama?
Existem fazendas especializadas em produzir frutas e legumes sem
agrotóxicos. Vou à feira do Parque da Água Branca, conhecidíssima entre quem
gosta de comida natural. Vejo umas cenouras mirradinhas. São elas. Começo a me
conformar com uma existência à base de sopa de verduras e queijo de soja. Mas...
— O ideal é tomar um cálice de vinho por dia — aconselha o cardiologista.
— Não é melhor virar a garrafa inteira de uma vez? — interesso-me.
Ele ergue as sobrancelhas:
— Um cálice, como se fosse remédio.
Tomar vinho como remédio? Já perdeu a graça! Açúcar, nem pensar.
Dizem ser a raiz de todos os males. Tudo, absolutamente tudo, tem uma
porcentagem de glicose. Dá vontade de chorar. O sorvete mais inocente é um risco!
Um pedaço de mil-folhas, uma tentativa de suicídio!
Rebelo-me. Tornou-se impossível comer qualquer coisa sem uma
advertência médica. Tentei me refestelar na comida light. Avisaram-me de que nem
sempre é tão light assim! Resolvo ser feliz. Encho o carrinho com caixas e caixas de
bombons.
Em casa, abro o primeiro. Uma linda trufa de chocolate. Ao mesmo tempo
leio uma reportagem. Descobriram que o chocolate reduz o colesterol! Vitória!
Encho a boca de bombons! Finalmente posso me fartar em paz! Até, é claro, uma
nova descoberta aterrorizante!
.
Esplendor em Ruínas
SOU UM OTIMISTA. Acho que o paulistano tem vontade de viver numa
cidade bonita. O entusiasmo é maior agora, com a mudança na prefeitura. Mas,
entra ano, sai ano, eu vejo construções interessantes transformarem-se em ruínas. E
me pergunto: até quando? Cada casa antiga que cai é um pedaço do passado que
desaparece. Não estou falando em critérios técnicos. Talvez para mim seja linda
uma casa que não receba nenhum aval como monumento importante. Isso
aconteceu com a antiga (e demolida) mansão dos Matarazzo, na avenida Paulista. Li
várias reportagens em que criteriosos profissionais afirmavam que ela não tinha
valor arquitetônico. Nunca entendi essa opinião puramente técnica. Era um
belíssimo palacete, que remetia à São Paulo antiga, e guardava um pouco de história
em cada um de seus tijolos. Hoje e estacionamento. O que é melhor? O palacete ou
o estacionamento?
Tenho um amor especial pela Vila Itororó, na rua Martiniano de Carvalho.
Inaugurada nos anos 20, abrigou a primeira piscina pública da cidade. Quem vê de
perto fica surpreso. Erguida em um barranco, possui vários andares sustentados
por colunas altíssimas. Uma estátua de ferro da deusa da prosperidade enfeita a
entrada da casa ao nível da rua. Dois leões guardavam a entrada. Guardavam. Não
é a toa que usei o verbo no passado. Passei em frente um dia desses, e um dos leões
estava em cacos no chão. Em torno existe um belo conjunto de casas antigas. A
vila converteu-se, há décadas, em um grande cortiço. Tem lixo na frente. Nem sei
se está tombada. Mas, se estiver, de que adianta, se vai acabar como entulho?
Não é o único monumento abandonado, mas é simbólico.
Eu me pergunto: por que tantos governos preferem construir centros de
concreto, como o causticante Memorial da América Latina, em vez de recuperar o
que já existe? Recentemente procurei fazer um contato no governo estadual, por
causa de um antigo colégio japonês. E uma grande casa em estilo oriental,
construída no início do século passado para abrigar os imigrantes japoneses.
Ficaram de me procurar para que eu desse mais detalhes e a localização. Há meses.
Ninguém mais falou comigo. E o castelinho da São João? Foi cedido para uso de
uma instituição. Continua em decadência. Se possui o tal selo de valor
arquitetônico, não sei. Mas é uma obra original, com identidade. Vale a pena deixar
que um dia vire terreno baldio?
Nem tudo está perdido. Conheço o dono de uma editora de porte médio
que, ao buscar uma sede para sua empresa, teve uma ótima idéia. Resolveu comprar
uma casa tombada. Justamente por serem tombadas, essas casas acabam tendo um
valor de mercado menor, embora às vezes a localização seja excelente. Como a
idéia-padrão do empresário comum é comprar para demolir, ou revender pelo
triplo, boa parte delas termina ficando abandonada. Meu amigo editor comprou a
casa que pertenceu ao arquiteto Ramos de Azevedo na Liberdade. São 5.000 metros
quadrados de terreno, com jardim, cocheira, telhado de ardósia, grades de ferro
batido. Mesmo localizada no agitado bairro da Liberdade, quando entrei tive a
impressão de que estava fora da cidade. Passarinhos cantavam. Um belo jardim.
Árvores. Restaurada, ficou lindíssima, confortável, e os funcionários sentem
orgulho em trabalhar em um lugar tão agradável.
Não acredito que se deva largar o corpo à espera de soluções que venham
da prefeitura ou do governo, embora sua atuação seja fundamental. Mas quantos
casarões, colégios, prédios maravilhosos não se encontram a ponto de virar ruínas?
Se o paulistano está realmente interessado em viver em uma cidade mais agradável,
é preciso não perder mais tempo e tomar consciência do que ainda pode ser salvo!
Pequenas Virtudes
ACENO DESESPERADAMENTE para um táxi. É final de tarde. Estou
próximo da avenida dá Liberdade. Tenho os braços sobrecarregados com vários
pacotes, contendo quimonos, doces de feijão, molho de soja, peixes secos e outros
quitutes orientais. O carro estaciona. Atiro tudo no banco de trás e sento no da
frente. Dou o endereço. O melhor caminho seria à esquerda. Ele entra à direita.
Suspiro. Decido não reclamar. Como discutir e descer no trânsito caótico, com
aquela tralha toda? Sinto raiva. Para minha surpresa, ao entrar na avenida, o
motorista se surpreende.
— Pensei que pudesse virar aqui. Eu me confundi.
—: Tudo bem — respondo, mal-humorado.
Ele desliga o taxímetro. Não entendo.
— Que aconteceu?
— Eu errei o caminho. O senhor só paga a partir do lugar certo.
Protestei. Ele insistiu. A situação se inverteu: eu brigando para pagar, ele
dizendo que não. Rodou vários quarteirões. Ligou exatamente onde estaria se
tivesse entrado à esquerda e não à direita. Quando desci, ainda me ajudou a
carregar os pacotes.
Estou surpreso até agora.
Conservo também uma sensação de bem-estar. Verdade seja dita. Algo de
bom anda acontecendo. Ainda ouço histórias sobre pessoas que desembarcam na
rodoviária e caem nas mãos de motoristas desonestos, capazes de rodar horas a fio
para depenar o passageiro. Mas a categoria dos taxistas tem melhorado. Raramente
pego um que queira inventar caminho. Lembro até hoje de um táxi que tomei, na
época das compras de Natal, há poucos anos. Quando cheguei, o motorista queria
bem mais do que o valor da corrida. Brigou porque eu estava cheio de pacotes e me
ameaçou quando me recusei a pagar o extra. .Ultimamente, não tenho visto
acontecer esse tipo de coisa. A honestidade parece despontar em lugares
inesperados. Recentemente, estava na fila do caixa de uma grande locadora. À
minha frente, um cliente mostrou dois filmes ao atendente. Pediu a opinião. O
rapaz foi sincero.
— Este aqui é muito ruim. E óbvio.
Seguiu-se uma pequena conversa. Ao final, o cliente levou o vídeo. Era o
gênero que desejava. Podem argumentar que a locadora treina seus caixas. Mas em
outra, muito menor, sempre me aconteceu o mesmo. Clodô, misto de gerente, caixa
e supervisor artístico, me advertia:
— Muito chato. Este é melhor.
Nem sempre o meu gosto artístico coincidia. Clodô tinha um fraco por
filmes de ação. Muitas vezes acabei diante de metralhadoras enfurecidas, agentes de
espionagem rodopiando com carros, serial killers esfaqueando donas-de-casa em
cozinhas anti-sépticas. A intenção, porém, é o que conta. Esses pequenos toques de
honestidade tornam a vida melhor.
Restaurantes costumam me irritar com a questão do troco. Basta pagar em
dinheiro para que as moedas nunca cheguem à mesa. Muitos desenvolvem um
conjunto de pequenas mesquinharias para o cliente gastar mais. Como cobrar
caríssimo pelo converte enviar uns patês safados acompanhando rodelas de pão.
Dia desses fui com meu amigo publicitário João Paulo a um novo restaurante
asiático, na região dos Jardins. A dona é uma bonita ex-modelo. Veio até a mesa e
perguntou o que havíamos pedido. Arregalou os olhos:
-— É muita comida. Cada prato dá para dois. Como dois gordos gulosos,
insistimos. Comemos a ponto de ter dificuldade em levantar da mesa.
Também já ouvi, numa loja de sapatos do Shopping Eldorado, o conselho
de uma humilde vendedora, que provavelmente vive de comissão.
— Esse modelo não fica bem para o senhor. Diminui o pé. Era verdade.
Meus pés pequenos ficavam menores do que já são. Naquele dia não comprei nada.
Mas sempre que preciso de um sapato-, apareço. Vivo me defendendo das
desonestidades do cotidiano. Por isso dou tanta importância às pequenas virtudes.
Apesar da violência e dos tempos tão difíceis, o paulistano está aprendendo a ser
um cidadão melhor. Será que sou bobo?
Ando perdido em uma selva de palavras. Existem termos destinados a dar
a impressão de que algo não é exatamente o que é. Ou para botar verniz sobre uma
atividade banal. Já estão, sim, incorporados no vocabulário. Servem para dar uma
impressão enganosa. E também para ajudar as pessoas a parecer inteligentes e
chiques porque parecem difíceis. Resolvi desvendar algumas dessas armadilhas
verbais.
Seminovo — Já não se fala em carro usado, mas em seminovo.
Vendedores adorarn. O termo sugere que o carro não é tão velho assim, mesmo
que se trate de uma Brasília sem motor. Ou que o câmbio saia na mão do
comprador logo depois da primeira curva. E pura técnica de vendas. Vou guardá-lo
para elogiar uma amiga que fez plástica. Talvez ela adore ouvir que está
"seminova". Mas talvez...
Sale — É a boa e velha liquidação. As lojas dos shoppings devem achar
liquidação muito chula. Anunciam em inglês. Sale quer dizer que o estoque
encalhou. A grife está liquidando, sim!
Não se envergonhe de pedir .mais descontos. Pode ser que não seja chique,
mas aproveite.
Lofi — Quando o lofi surgiu, nos Estados Unidos, era uma moradia
instalada em antigos galpões industriais. Sempre enorme e sem paredes divisórias.
Vejo anúncios de lofts a torto e a direito. A maioria corresponde a um antigo
conjugado. Só não tem paredes, para lembrar seu similar americano. E preciso ser
compreensivo. Qualquer um prefere dizer que está morando em um lofi a dizer em
uma quitinete de luxo.
Cult — Não agüento mais ouvir falar que alguma porcaria é cult. O cult é o
brega que ganhou status. O negócio é o seguinte: um bando de intelectuais adora
assistir a filmes de terceira, programas de televisão populares e afins. Mas um
intelectual não pode revelar que gosta de algo considerado brega. Então diz que é
cult. Assim, se pode divertir com bobagens, como qualquer ser humano normal,
sem deixar de parecer inteligente. Como conceito, próximo do cult está o trash. E o
lixo elogiado. Trash é muito usado para filmes de terror. Um candidato a intelectual
jamais confessa que não perde um episódio da série Sexta-Feira 13, por exemplo.
Ergue o nariz e diz que é trash. Depois, agarra um saquinho de pipoca, senta na
primeira fila e grita a cada vez que o Jason ergue o machado.
Workshop — E uma espécie de curso intensivo. Existem os bons. Mas o
termo se presta a muita empulhação. Pois, ao contrário dos cursos, no workshop
ninguém tem a obrigação de aprender alguma coisa específica. Basta participar.
Muitas vezes botam um sujeito famoso para dar palestras durante dois dias
seguidos. Há alunos que chegam a roncar na sala. Depois fazem bonito dizendo
que participaram de um workshop com fulano ou beltrano. A palavra é imponente,
não é?
Releitura — Ninguém, no meio artístico ou gastronômico, consegue
sobreviver sem usar essa palavra. Está em moda. Fala-se em releitura de tudo: de
músicas, de receitas, de livros. Em culinária, releitura serve para falar de alguém que
achou uma receita antiga e lhe deu um toque pessoal. Críticos culinários e donos de
restaurantes badalados adoram falar em cardápios com releitura disso e daquilo.
Ora, um cozinheiro não bota seu tempero até na feijoada? Isso é releitura? Então
minha avó fazia releitura e não sabia, coitada. O caso fica mais complicado em
outras áreas. Fazer uma releitura de uma história não é disfarçar falta de idéia?
Claro que existem casos e casos. Mas que releitura serve para disfarçar cópia e
plágio, serve. Seria mais honesto dizer "adaptado de..." ou "inspirado em...", como
faziam antes.
Daria para escrever um livro inteiro a respeito. Fico arrepiado quando
alguém vem com uma conversa abarrotada de termos como esses. Parece que vão
me passar a perna. Ou a culpa é minha, e não sou capaz de entender a
profundidade da conversa. Nessas horas, fico pensando: será que sou bobo? Ou
tem gente esperta demais?
Loucuras de Verão
HÁ DUAS MANEIRAS DE conhecer bem uma pessoa. A primeira é
casar. A segunda é viajar junto. Ou pelo menos observar seu comportamento nas
férias. Todas as loucuras afloram como cogumelo. Um grupo de amigos trintões
alugou uma casa em Camburi, no litoral norte. Arrumaram as malas inundados de
felicidade. Pretendiam fortalecer a amizade de anos. Fizeram compras. Cada um
levou ainda petiscos variados. O mais madrugador acordou com o canto do galo —
sim, no litoral norte ainda há galo cantando, embora não se saiba por quanto
tempo. Fez café. Abriu a geladeira, repleta. Escolheu um potinho de patê. Passou
no pão e olhou pela janela para contemplar a natureza. Mordeu. O gosto era
estranho. Nada que pudesse identificar. Tentou ler a embalagem, em inglês.
— É alguma espécie de creme. Mas do quê? — preocupou-se.
Mordeu de novo. Ouviu-se um grito, Do alto da escada Marcolino, um alto
executivo, se desesperava:
-— Largue meu creme rejuvenescedor!
Fórmula importada, caríssima. O outro havia passado quase o pote todo
no pão. Um teve dor de estômago. O outro, no bolso. Pior: a geladeira estava
repleta de produtos de beleza, e a comida, de fora. Até camarão estava estragando.
Deu briga. O vaidoso mudou-se para um hotel. Nem se falam mais.
Minha amiga Lalá é outra que sabe surpreender. Passou meses planejando
sua estada nas areias quentes. Quinze dias antes iniciou um tratamento
rejuvenescedor à base de ácido retinóico. Mal chegamos à praia da Baleia, avisou:
— Não posso tomar sol.
— E a praia? E o mar?
— Estou gorda para pôr maio. Passear na praia, só de chapéu e protetor
solar 45.
Claro que no dia seguinte esqueceu chapéu e protetor. Quinze minutos
depois estourou uma bolha no rosto. Saiu correndo antes que a pele derretesse
como em um daqueles filmes de terror. A noite parecia um torresmo.
— Por que começar um tratamento desses justamente no verão?
— Você não compreende — ela rosnou.
Quem entende? É incrível o número de pessoas que correm para a praia e
passam o tempo todo se escondendo do sol.
Há um lado do paulistano que só surge no verão. Ele se torna, por assim
dizer, mais... carioca! Tão correto em sua agenda, perde a exatidão nas férias. Como
se o descompromisso fosse essencial nas férias. Já não suporto mais quando
telefonam:
— Olha, viemos fazer umas compras, depois vamos comer alguma coisa
e aí a gente passa na sua casa.
Observo o sol lá fora. O mar deve estar uma delícia. Devo ficar de plantão?
— Mais ou menos a que horas?
— Lá pelas 4 ou 5. Talvez 6 ou 7.
Suspiro fundo. Pego um livro. Duas páginas depois, adormeço. Acordo
com a noite escura e o telefone chamando.
— Oi, tudo bem? O restaurante estava cheio, ficamos exaustos. Voltamos
para casa. Não vai dar mais para passar aí. Acho que amanhã de manhã, lá pelas
10...
Começo a rugir. Meus amigos reclamam. Dizem que ando mal-humorado.
Mas há vantagens. Eu também me transformo quando vou ao litoral. Viro um
paranormal. Minha intuição fica exacerbada, principalmente no tocante à comida.
Tenho uma intuição precisa. Se vou visitar alguém, chego sempre na hora do
almoço. Em férias os hábitos mudam muito. Mesmo assim nunca perco uma visita.
Bato na porta e sinto o aroma da carne grelhada. Entro com ar surpreso.
— Ih... cheguei na hora certa!
As pessoas sorriem. Na praia ficam mais hospitaleiras. Às vezes alguém
comenta:
— Qualquer hora dessas a gente precisa ir almoçar na sua casa.
Quase engasgo com uma folha de alface.
— E, sim. A gente marca.
Espeto o garfo numa fatia de picanha e mudo de assunto.
Como disse, nada melhor para conhecer uma pessoa do que vê-la em
férias. A praia faz aflorar, inevitavelmente, meu lado bicão.
Pedestres à Vista!
ESPERO AO VOLANTE. O semáforo parece demorar horas.
Finalmente, vem o amarelo. Engato a primeira. Vira para verde. Boto o pé no
acelerador. Nesse instante, uma senhora pula da calçada para a faixa, correndo com
uma criança na mão. Breco ruidosamente. O carro de trás buzina, furioso. Ela corre
para aproveitar o último instante antes de os veículos darem a largada. Mostro a luz
verde. Olha-me como se eu fosse um alienígena. Pior ainda, um ser sem coração,
incapaz de compreender sua pressa em atravessar aquela faixa. Compreendo, sim.
É a mesma que eu tinha enquanto aguardava o semáforo. Dá vontade de sair do
carro e armar um barraco. Não foi só a vida dela e a do filho que ela botou em
risco. Como vou me sentir se atropelar alguém? Até poderia ser absolvido nos
tribunais. Mas me sentiria péssimo pelo resto da vida. O novo Código de Trânsito
tem ajudado a botar os motoristas na linha. E os pedestres?
Já se falou em multar quem anda a pé. Deve ser impraticável. O policial
sairia correndo atrás da pessoa, pegaria o número do RG? No cruzamento de
qualquer grande avenida, é uma loucura. Vendedores, pedintes, bichos da
universidade, distribuidores de folhetos se atiram na frente dos carros com o
semáforo fechado. Quando abre, saem em debandada, num salve-se-quem-puder.
A polícia multa os carros. Nem liga para o. que vê. Durante muitos anos morei
numa chácara próximo a São Paulo. Pegava a Raposo Tavares todas as noites. A
maior preocupação que eu tinha era evitar as pessoas que atravessavam a estrada no
escuro. Minha baixa velocidade funcionava como uma deixa. Sempre alguém corria
na minha frente, cruzando para o outro lado. Dava um frio na barriga! Detalhe: isso
acontecia nas áreas próximas a bairros onde existem passarelas. Sei muito bem que
passarelas são desconfortáveis. Mas é melhor correr risco de vida?
Sair da garagem também não é fácil. Outro dia, estava dando ré. Um casal
correu por trás do carro, como se não pudesse perder um único segundo. Brequei.
Botei a cabeça para fora, reclamei:
— Ei, não viram que eu estava saindo?
O rapaz revidou de boca cheia:
— A rua é de todos!
Continuou vitorioso, como se tivesse conquistado um campeonato. Eu me
pergunto: que pressa é essa? O que ganham com esse. mísero segundo? Dia desses
eu estacionava na rua Pamplona. Subida. Tráfego intenso. No exato momento em
que embiquei na vaga, um sujeito surgiu na traseira. Enfiei o pé no breque. O
motor morreu. Um carro que descia quase levou minha dianteira. Xingaram minha
mãe. O responsável nem notou o barulho.. Continuou adiante, feliz da vida. Muitas
vezes, ao embicar numa garagem em calçadas movimentadas, vejo um batalhão se
atirar no espaço mínimo entre o pára-choque e a entrada. Um amigo me
aconselhou:
-— Você é tonto. O negócio é acelerar, que eles saem correndo.
Sei que funciona. Também ando a pé. Já vi atirarem carros em cima dos
pedestres. Mas que é isso, uma selva? O motorista sempre é visto como agressor. O
pedestre, como vítima. No fundo, no fundinho, isso cheira à velha visão da luta de
classes. O rico, que tem carro, é o malfeitor. O pobre pedestre, a vítima. Não é por
possuir um automóvel que alguém deve ser encarado como um serial killer. Bem
que está na hora de os pedestres darem a contrapartida, tornando a vida na cidade
um pouco menos selvagem.
Guerreiros dos Malotes
QUATRO HORAS DA TARDE. Estou subindo a avenida Rebouças e
observo a montanha de carros à minha frente. Trânsito lento. Lentíssimo. Ouço
música. De repente, sinto uma pancada no carro. Um motoboy acaba de arrasar
com meu espelho. Nem se digna olhar para trás. Continua ondulando por entre os
carros paralisados. Dá vontade de descer e persegui-lo. Não seria nem para
reclamar o espelho de volta. Mas para exigir respeito. No mínimo, um pedido de
desculpas. Tarde demais. Ele está longe. Eu, sem retrovisor.
Já sei. Vão acabar dizendo que tenho obsessão pelos problemas de trânsito.
Que durmo pensando em semáforos, assim como tenho pesadelos com minha
barriga. Pode ser. Ando louco com os motoboys. Nada mais prático do que usar
moto numa cidade como a nossa. Motoboys são uma categoria à parte. Encolhemse para passar entre os carros, atravessam as ruas em diagonal. Pintura raspada é
detalhe sem importância. Outro dia uma amiga conversava comigo de janela aberta,
o braço para fora. Ouviu um barulhinho, instintivamente puxou o braço. Por um
triz não perdeu o cotovelo.
— Ei! Toma cuidado! — gritou.
Como sempre, o rapaz nem diminuiu a velocidade para conferir.
Quando o trânsito flui, também não é fácil. As motos parecem surgir do
nada. Cortam pela direita, atravessam na frente, empinam para a esquerda. Sair no
Itaim-Bibí domingo à noite é arriscadíssimo. O motivo: a maré de motoboys
entregando pizzas. Paulistano que se preza adora uma pizza aos domingos. O
Itaim-Bibi possui uma das maiores concentrações de devoradores de pizza do
planeta. Pelo menos é o que me contou um morador do bairro. É uma correria
total, para que as pizzas cheguem quentinhas. Enquanto isso, os transeuntes
correm para não ser atropelados pelas calabresas, margheritas e mussarelas. Às
vezes ocorrem tragédias. A família senta-se à mesa, os estômagos ronronam. Abrese a caixa. O presunto da meia portuguesa rolou sobre a meia mussarela. Â família
passa parte do jantar arrumando o presunto e capturando as azeitoninhas pretas
que se espalharam pela tampa toda.
Motoboys têm seus truques. Um deles me explicou:
— E mole cortar ônibus. Presto atenção ao motor. Se está baixinho, é
que ainda está pegando passageiro, e eu entro em cima. Se o barulho aumenta,
danou-se!
Bela filosofia de vida, não?
Um amigo teve o capo atingido por um apressadinho. Desceu do carro
pronto para pegar o número da chapa, fazer ocorrência. Todos os motoboys que
passavam por perto perderam a pressa. Pararam em torno, ameaçadores. Unidos.
— Que foi aí?
O motorista passou de vítima a agressor. Em cinco segundos a história era
outra. Começaram a ameaçar. Meu amigo refugiou-se no carro, antes que
apanhasse.
E uma profissão sofrida. Não se ganha muito, trabalha-se no sol e na
chuva. Existe uma complacência a respeito do assunto, devido à questão social. O
que se lucra com isso? Entre eles, defendem-se como se pertencessem a uma tribo
guerreira. Dirigir moto parece despertar esse tipo de reação. O sujeito se sente
cavalgando um corcel árabe pelas dunas do deserto. Mesmo que esteja apenas
entregando um malote de burocráticas cartas comerciais. Por baixo do capacete
vive um tuaregue. Um beduíno prestes a enfrentar a guarda do sultão e resgatar
uma odalisca do harém. Mas e eu, como fico? Só quero sair de um lugar e chegar
inteiro a outro. Meu sonho é dirigir sem ter um infarto em cada cruzamento. A
salvo dos guerreiros dos malotes.
A Sereia e o Mergulhador
AMOR PELA INTERNET? Nada mais comum hoje em dia. Meg Ryan e
Tom Hanks não se conheceram assim em Mensagem para Você. Por que eu não
posso ter a mesma sorte? Teclar e dar de cara (ou melhor, de teclas) com Meg
Ryan! Romeu e Julieta não se amaram em uma sacada de pedra? Muito mais
confortável descobrir a alma gêmea numa cadeira macia, comendo batatinhas fritas
e entrando nas salas de bate-papo da internet. Ouvi histórias. Uma jovem casou-se
dessa forma com um alemão. Só se viram em Berlim, um ano depois do primeiro
contato. Mandou um postal com letra trêmula, dizendo que estava muito feliz,
embora nunca mais tenha enviado nenhuma outra notícia. Como conhecer alguém
numa cidade onde todos são anônimos? Certa moça foi à luta pela internet. Buscou
o amor sob o pseudônimo de "Gata Amorosa". Recebeu cantadas com detalhes
impublicáveis da anatomia masculina. Tentou "Sereia". Entrou em uma sala de
conversa para casais. Choveram mensagens. Descartou imediatamente o
"Garanhão" e "Marido/SP", por oferecerem poucas perspectivas de amor eterno.
Foi quando o "Mergulhador 27/SP" respondeu:
— Tenho 1,80 metro, 71 quilos, cabelos castanho-claros.
Gosto de mergulhar. E você, como é?
Por prudência, inspirou-se em "A Pequena Sereia", a original.
— Sou do tipo mignon, 1,60 metro, loira e muito romântica. Tenho 23
anos. Adoraria trabalhar em um programa infantil.
Trocaram e-mails. Durante as semanas seguintes, escreveram-se todos os
dias. Dispararam confidencias. Falaram de amor.
Só faltava um detalhe: conhecerem-se pessoalmente. Hesitaram.
A hora da verdade sempre dá medo. Finalmente, marcaram o encontro, na
área de alimentação do Shopping Paulista. "Se for um estrangulador, é mais
seguro", pensou a romântica mas prática Sereia.
Foi de preto, como combinado. Passou vinte minutos à procura do
Mergulhador. Deveria estar com uma camiseta e casaco de couro. Finalmente,
bateu os olhos em um sujeito calvo, de bigodes grisalhos, tipo cantor de tango
aposentado. Quando ia fugir, ele ergueu a cabeça e... sorriu! Não de felicidade, mas
de susto.
Sereia????????????
— Mergulhador???????????? ,
— Pensei que você fosse mais magra.
— Eu era, mas andei comendo muito doce... Foram só uns quilinhos.
—
Não me leve a mal, é que a idade também...
— Ih, será que bati o número errado? — disfarçou, inocente.
Falsa, sim. Irritadíssima também. Aquilo era barriga de mergulhador? Só se
ele fosse a âncora dó barco.
— E você, não se atrapalha com os bigodes na máscara, quando
mergulha?
— Ah! Eu mergulhei uma vez, numa excursão em Cancún.
Gostei muito. Nunca esqueci.
— E os 27?
.
— Achei que fosse uma forma de começar a conversa. As pessoas são
muito preconceituosas quando a gente conta a ida de verdadeira. Não tenho ido
muito à praia por falta de grana.
Era gerente comercial, mas agora montei uma microempresa, estou
começando tudo de novo. Você gosta de praia? Quem sabe algum dia a gente vai
numa que eu conheço. Tem uma pensão que dá desconto.
Se a moça pudesse, faria um raio cair naquela careca. Ele também a
encarava com tristeza. Como ela ficaria de brilho e tiara da Pequena Sereia? Estaria
mais para Orca, a baleia assassina, do que propriamente para uma sereia. Tinham
vontade de chamar a polícia e acusar um ao outro de falsidade ideológica. Por
educação, continuaram conversando. Quando viram, estavam rindo. Sereia, hein?
Mergulhador? Pois sim!
Andam se encontrando até hoje. Ela comprou uma tiara da Pequena Sereia
só para fazer piada. Amor pela internet é assim. Escreve-se por linhas tortas. Mas
até acaba dando certo.
Reis do Consumo
TENHO MANIA DE COMPRAR livros. É uma fixação, pois acabo
levando para casa muito mais do que consigo ler. Freqüentemente, faço a promessa
de não adquirir mais nenhum. Não cumpro. Basta entrar em uma livraria para
descobrir títulos essenciais. Como se o simples fato de ter os livros pertinho de
mim aumentasse minha sapiência. (Nossa, há quanto tempo não via a palavra
sapiência! Deve ser de algum livro que não li.) Faço a festa de vendedores de livros.
Cida, a simpática gerente de uma livraria na Vila Madalena, sorri feliz quando me vê
entrar. Oferece cafezinho e começa:
— Olha o que saiu!
Já me convenceu a levar, certa vez, um catatau romântico de umas
quinhentas páginas só porque comentei estar procurando um livro para "me
distrair". Uma história tão melosa que botaria um diabético no hospital. Mas esse,
pelo menos, li, embora não devesse confessar a ninguém ter gasto tempo com tão
baixa literatura. (O pior é que torci pelos personagens!)
Lamentei-me com Cida. Segundo ela disse, meu caso não é dos mais
graves.
— Tive um amigo que comprava os dez volumes da obra completa de
Marx, por exemplo. Ficava sem dinheiro para pagar a pensão. Era despejado e
acabava deixando os livros. Ia para outra e, novamente, comprava a coleção. Era
despejado mais uma vez. Dava pena.
Minha loucura é especial, pois se restringe a livros e, pasmem, sabonetes
cheirosos. Não posso ver um sabonete diferente. Compro. Como sou alérgico,
jamais posso usá-lo. Jogar fora, nem pensar. Seria desperdício demais. Dezenas de
sabonetes empesteiam minhas gavetas. Um amigo é assim com roupas. Ligou-me
para avisar de uma liquidação numa loja elegante. Expliquei que não precisava de
nada.
— Mas você não pode perder as ofertas!
Recusei-me a ir. Ele me tratou como se eu tivesse uma grave falha
emocional. Na sua opinião, só uma personalidade problemática não aproveitaria a
chance de torrar uma grana em calças e camisas. Mais tarde veio me visitar feliz da
vida.
— Comprei uma calça preta!
— Outra?
Tem quatro ou cinco. Nem usa todas. E incapaz de, resistir a uma roupa
bonita. A mãe de outro amigo adorava sapatos. Mostrou-me o armário cheio. Nem
que fosse a pé daqui até as Cataratas do Iguaçu gastaria tanta sola. Era capaz de se
emocionar com um par de escarpins de couro de cobra.
— Não são lindos? — mostrava, os olhos marejados com tanta
formosura.
Alguns nunca punha, para não estragar. Adorava contemplá-los, como Ali
Babá ao tesouro.
A mania de comprar não tem nada a ver com classe social ou necessidade.
Já vi gente com pouquíssimo dinheiro entrar em um brechó e sair de sacola
carregada de inutilidades. A última loucura de consumo é a1 do sujeito que adora
vinhos. Não estou falando de conhecedores, que identificam uma safra pelo aroma.
Más de gente como eu, capaz de confundir qualquer vinagre mais encorpado com
um tinto especialíssimo. Tornou-se chique conhecer vinhos, ter adega. Fui visitar
um amigo em sua nova casa no Morumbi Lá pelas tantas me arrastou até um
armário repleto. Mostrou garrafa por garrafa.
— Esta custou tanto, esta tanto...
Observei, de olhos arregalados. Qual seria o sabor de vinhos daqueles
preços? Comentei, amigável:
Deve ser uma delícia tomar um vinho desses.
Assustou-se:
— Tomar? Nunca.
Não escondi minha surpresa. Explicou candidamente:
Tenho dó. São muito caros para ficar bebendo.
Dá para entender?
Meu Amigo Marcos
CONHECI MARCOS REY há mais de vinte anos, quando sonhava me
tornar escritor. Certa vez confessei esse desejo à atriz Célia Helena, que deixou sua
marca no teatro paulista. Tempos depois, ela me convidou para tentar adaptar um
livro para teatro. Era O Rapto do Garoto de Ouro, de Marcos. Passei noites me
torturando sobre as teclas. Célia marcou um encontro entre mim e ele, pois a
montagem dependia da aprovação do autor. Quando adolescente, eu ficara
fascinado com Memórias de um Gigolô, seu livro mais conhecido. Nunca tinha
visto um escritor de perto. Imaginava uma figura pomposa, em cima de um
pedestal. Meu coração quase saiu pela boca quando apertei a campainha. Fui
recebido por Palma, sua mulher. Um homem gordinho e simpático entrou na sala.
Na época já sofria de uma doença que lhe dificultava o movimento das mãos e dos
pés. Cumprimentou-me. Sorriu. Estava tão nervoso que nem consegui dizer "boa
tarde". Gaguejei. Mas ele me tratou com o respeito que se dedica a um colega.
Propôs mudanças no texto. Orientou-me. Principalmente, acreditou em mim. A
peça permaneceu em cartaz por dois anos. Muito do que sou hoje devo ao carinho
com que me recebeu naquele dia.
Continuei a vê-lo esporadicamente. Era alegre, divertido. Todo sábado, de
manhã, ia tomar cerveja e uísque com outros escritores na Livraria Cultura, no
Conjunto Nacional. As vezes nos telefonávamos para falar da vida. Escritores
costumam ser competitivos e ciumentos. Buscam defeitos nas obras alheias, como
mulheres vaidosas, comparando vestidos umas das outras. Marcos, não. Conheci
muitos autores beneficiados por suas opiniões. Era generoso. Quando deu uma
entrevista no programa do Jô Soares, a escritora Fanny Abramovich lhe telefonou.
Elogiou seu suéter, de uma bonita cor cinza. Marcos mandou-o de presente para
ela.
Sempre me senti orgulhoso por ser seu companheiro aqui na última página
de Veja São Paulo. Quando começamos as crônicas, fui visitá-lo. Ele acabara de
comprar um apartamento em Perdizes. Seus livros ficarão na história da literatura.
Mas, até poucos anos atrás, lutava com o aluguel. Não costumávamos nos telefonar
em aniversários ou datas especiais. Mas, em janeiro último, ligou para desejar feliz
ano novo. Chamou-me de colega. Emocionei-me:
— Tomara que você também tenha um ano maravilhoso.
Como é a vida, não?
Palma me- contou que tudo aconteceu muito depressa. Hospitalização,
operação. Os médicos foram francos. Ela o visitou na UTI.
— Marcos, não fique sofrendo. Pode partir em paz, meu amor.
Estava adormecido, mas ela tem uma certeza íntima de que ele entendeu.
Depois de 39 anos juntos, Palma tem o direito de ter certezas. Quando alguém nos
deixa, até as pessoas mais céticas sentem o desejo de acreditar no desconhecido.
Pessoalmente, nunca tive dúvida de que existe algo mais, em algum lugar. Ainda
bem.
Marcos, algum dia a gente se encontra por aí.
Elegância Escaldante
BOTO MEU NOVO paletó de lã. É marrom, com um corte superlegal.
Enfio as calças cinza, também de lã. Completo o traje com um par de meias bem
quentes. Ponho os sapatos e me admiro no espelho. Em dois segundos começo a
suar como se estivesse em uma sauna. Disfarço. Existem ocasiões em que a gente
tenta se enganar. Como agora. Comprei todas as roupas novas para aproveitar a
liquidação. Cinqüenta por cento, de uma grife sensacional. Pensei que o inverno
fosse durar mais um pouquinho. Não devia ter pensado. Vivo dizendo que "pensar
que...", "achar que...", "deduzir que..." são expressões que levam ao precipício.
Sempre que a gente "pensa que", alguma coisa dá errado. Deixei as calças para fazer
a barra e o paletó para encurtar as mangas. Sina de quem tem barriga: quando o
paletó abotoa, a manga fica comprida. Uma tragédia. Quando comprei, fazia um
friozinho. Eu me achei muito esperto por aproveitar a liquidação. Devia saber.
Espertos são os donos de loja, capazes de farejar a onda de calor com muito mais
precisão do que a moça do tempo. Quando entregaram, havia acabado o frio. Abro
a janela. Faço esforço para sentir a friagem. Um amigo chega para me dar carona.
— Você vai de paletó de Ia?
— Achei que pudesse esfriar... — digo, à espera de que ele me elogie o
traje.
O elogio não vem. Apenas um olhar de esguelha. Peço para ligar o ar do
carro.
— Não é melhor você tirar o paletó?
Estou quase sufocado, mas faço que não. Não vou levar um paletó
daqueles, com aquela grife, pendurado nas costas. Talvez ainda faça frio. Senti uma
aragem. Nunca se sabe. As calças de lã me pinicam. Chegamos ao Teatro
Municipal. Enquanto ele discute o preço com um flanelinha — que exige o mesmo
valor do ingresso do concerto —, fujo do carro. Preciso de ar. Talvez desmaie. Mas
não tiro o paletó.
Entramos, finalmente. Um sujeito de camiseta me observa surpreso. Será
minha elegância? Vejo uma conhecida com um casaco de pele. De longe, parece
uma ratazana branca. Qualquer dia desses será atacada com um spray. Nós nos
cumprimentamos como cúmplices. Afinal, ambos havíamos percebido que naquela
noite fazia frio, ao contrário do que diziam os termômetros. Ela deve ter posto cola
na maquiagem. Pois, apesar dos riachos que descem pela testa, o rimei continua
intato. O amigo que me deu carona se aproxima. Nós o contemplamos com
desprezo. Camisa de mangas curtas, coitado! Entramos. A jovem senta-se algumas
fileiras à frente. Mal começa o concerto, despe a pele, irritando todos ao lado.
Aproveito e tiro o casaco. Um alívio. Se pudesse, arrancava as calças também.
É o mal desta cidade. Não se pode confiar no clima. Muitas vezes de
manhã faz frio. Saio para trabalhar de suéter. No meio do dia começa o striptease.
À tarde chego em casa com a aparência de quem dormiu vestido. Calças amassadas,
gravata torta, suéter e paletó na mão, os cabelos idênticos a uma vassoura de
piaçaba. Vejo as mulheres. Retocam a maquiagem a cada dez minutos. O penteado
despenca. Mas o contrário também acontece. Às vezes o dia está lindo. Saio com
roupa de verão. Dali a pouco começa um ventinho. Finjo que não é nada. O
ventinho me corta os ossos. Continuo fingindo que não é nada. Passo dois dias de
cama com gripe. Dizem que é culpa da poluição. Na televisão, falam em frente fria
que não chega por causa de uns ventos que vieram da Argentina. Então é culpa dos
argentinos? Ou será o contrário? O caso se repete todo ano. Tempo de seca. Todos
ansiamos por chuva, para refrescar (e para usar as roupas de liquidação). Quando a
chuva vem, parece o dilúvio. Suspiramos pela seca.
Mesmo agora, quando estou escrevendo, temo que o tempo me engane.
Pode haver outra virada. Todo mundo estará batendo os dentes de frio, sem
entender por que falo de calor. Que coisa, hein? Decidi pendurar meu paletó de
inverno no armário, para um longo período de hibernação. No ano que vem, é
capaz de estar fora de moda. Com um tempo tão volúvel, é difícil até aproveitar
uma boa liquidação.
Vida de Cachorro
ANDO COM VONTADE de virar cachorro. Não pagam contas de luz
nem seguro de carro e ainda se dão ao direito de deitar de patas para cima,
oferecendo o corpo aos carinhos de quem querem. Comportamento que não atingi
em quase duas décadas de terapia.
Quem ama os cães enlouquece por eles. É uma vocação. Minha vizinha
não pode ver um filhote: leva para casa. Chegou a dez. Todos de raças diferentes,
mas com um ponto em comum: hoje são enormes. Decidida a transformar a paixão
em negócio, ela montou um pet shop. O primeiro filhote, trazido em consignação,
era um poodle de cor champanhe. Sem coragem de vender, aumentou a coleção. O
pai da moça anda preocupado: nesse ritmo, toda a ração da loja será consumida
pelos seus próprios cachorros.
Amigos do melhor amigo do homem não podem se encontrar sem passar
horas e horas descrevendo as qualidades dos bichinhos:
— O Gandhi entende o que eu falo. Outro dia eu estava na maior deprê.
Ele abanou o rabinho e deitou no meu colo, com um jeito triste, triste.
— O Fidel é apaixonado por mim. Cada vez que meu ex-marido chega,
ele rosna!
Atenção para um detalhe: o bom dono confere ao seu bicho o nome de
uma personalidade, nunca um nome de cachorro! Meus amigos Vera e Fúlvio são
donos da Cora Coralina, uma gigantesca cadela rottweiler. Da poetisa, ela ostenta o
olhar meigo, mas apenas quando quer conquistar um osso ou um pãozinho francês.
Venderam o sítio onde Cora vivia em liberdade e trouxeram-na para sua nova e
ampla residência, no Alto da Boa Vista. No primeiro dia Cora tentou devorar
Florbela, uma altiva cadelinha fox-terrier, já habitante da casa. Com o coração
partido, a rottweiler foi entregue a um criador da raça. No dia seguinte Fúlvio
pegou o carro, juntamente com um beneficiário, para buscar, também no sítio, o
companheiro da cadela, Pablo Neruda. No céu, percebeu algumas nuvens escuras. ,
— Vai chover — comentou Fúlvio. — E melhor voltarmos. —: Mas não caiu nem
um pingo!
Fúlvio entrou no acostamento, com o rosto transformado na máscara da
tragédia.
— Quando chove, á estrada inunda. Há batidas. As pessoas se afogam.
Acelerou até a casa do outro, no Morumbi. Desceu e pegou Cora Coralina de
volta. Resumindo: o casal recontratou os antigos caseiros do sítio. Alugou uma
casa' para os dois, na estrada. Paga um salário para que cuidem dos cães e os visita
regularmente, como pessoas da família. Pensaram até em comprar o sítio de volta.
Não são os únicos. Há um florescente comércio em torno dos peludos.
Outro dia houve uma feira funerária no Anhembi. Um dos grandes sucessos:
caixõezinhos para cães. O detalhe: tinham a forma de um Y invertido, para caber as
patinhas abertas. Quem é cachorreiro, como se diz no jargão, vive em busca de
veterinários melhores. Há um, na Vila Mariana, onde se formam filas de senhoras
com cachorrinhos do tamanho de luvas. Entre elas, comentam os espirros de cada
bichinho, o melhor corte de pêlo. Meu amigo Rogério levou o seu, da raça akita,
branco e magro como um varapau. Enfrentou, na fila, um macaco de circo com
boné, sentado, que fingia ler uma revista, e dez papagaios gripados, que tossiam
como gente, uma aflição. O diagnóstico: anorexia nervosa. Talvez causada porque o
cão fora proibido de entrar em casa e comer as almofadas do sofá.
As rações melhoram de sabor a cada dia. Um rapaz, recém-separado,
chegou a comprar um saco para comer no jantar. Alimentou-se durante um mês
com os biscoitinhos, e até me aconselhou:
— Para regime, nada melhor. E uma refeição completa.
Eu me imagino entrando no pet sbop e experimentando Bonzo, Purina,
Canadian...
— Levo dois sacos de vinte quilos daquela lá. — Está feita a compra do
mês.
E um caso raro em que a língua não evoluiu juntamente com a realidade. A
expressão "vida de cachorro" relaciona-se com uma existência desagradável. Agora
o significado está mais para o de mordomia. Vou ser franco: hoje em dia tornou-se
mais fácil para um cão encontrar um lar do que para uma criança abandonada.
Nada contra os amigos caninos, porque também amo os meus. Mas há alguma
coisa errada, não há não?
Família Unida
TODOS OS ANOS, MÃES E FILHOS se encontram para um novo
round. São os tais laços de família que, freqüentemente, se transformam em nós.
— Acho que a mamãe não está regulando bem. Fez tender para o
almoço. Está cansada de saber que estou de regime — geme a mais nova.
— E a idade... ela não é mais o que era — diz a mais velha.
Saltitante, a mãe mostra a mesa com um sorrisinho. Não só o tender
criminoso, adornado com pêssegos em calda. Mas também a maionese, que todos
adoravam quando meninos, e o quindim de sobremesa. Só falta uma garrafa de
colesterol puro. O mais velho, com uma ponte de safena, morre de pavor de ter
infarto à mesa. Mas come. Seja dito o que for, um dos grandes objetivos de
qualquer mãe é engordar os filhos.
— Está uma delícia, mamãe — suspira a mais nova.
A mãe não resiste:
—- Vai repetir? Pensei que estivesse de regime. Você não tem mesmo
força de vontade.
A filha quase atira o prato no chão. Se comesse pouco, a mãe reclamaria:
— Desse jeito você acaba doente.
Surgem as recordações dos bons tempos.
— Zelito, por que você chegou atrasado? Eu me lembro daquela noite
que passei acordada é depois soube que tinha batido o carro e quase foi preso. Fico
nervosa.
Por que ela tem de se lembrar sempre daquela noite em que ele dirigiu sem
carta? A única, ilegalidade em toda a sua vida de juiz!
— Mamãe, isso faz vinte anos. Eu tinha 15.
— Eu nunca esqueci. .
'
Quem disse que mãe esquece? A não ser, é claro, nos momentos
estratégicos.
— Gilda, me passe a salada.
Silêncio mortal. Choque. O filho do meio balbucia.
— Mãe, esta é a Soraia. Você trocou os nomes. A Gilda é minha exmulher.
— Desculpe, Soraia... eu sei que você não se importa. É a idade. Mas é
que eu adorava a Gilda!
Um neto bate com um martelinho no chão!
— Não faça barulho.
— Você está reprimindo o Arturzinho —- revolta-se a nora.
-— Gislaine, mamãe tem razão. É uma tortura — defende o caçula.
Gislaine se levanta, puxando o menino pela mão, e sai. O marido, irritado,
corre atrás.
-—Vocês atacam minha mulher só porque ela era manicure!
Todos contemplam a mesa desfalcada. A mãe, arrasada.
— Com ela por perto, não posso dizer um ah! O que será desse menino?
O grupo descasca a cunhada. Até que ela volta, com o filho e o marido.
Senta-se, um sorriso torto. Tocam a campainha, a mais nova vai atender. É o
namorado. A mãe suspira:
— Já casou duas vezes. Nem fala mais em noivo ou marido. Só em
namorado. Quando essa menina vai se acertar na vida?
— Mãe, ela já tem 34 anos. Não meta o bico — palpita a mais velha, esta,
sim, casada e atormentada com os filhos adolescentes, que fugiram do almoço.
— Eu não me meto em nada — avisa a mãe, feroz. — Mas, se isso é o
que chamam de liberdade, eu dispenso.
A mais nova entra com um sujeito de bermuda e cabelos de cantor de
reggae, dez anos mais novo. Todos trocam olhares venenosos. A filha avisa que já
vão. Surge o convite materno:
— Sente-se... coma um pouquinho... eu mesma fiz — murmura gentil.
Ele recusa educadamente. Ela insiste. Ele se senta e come metade do
pernil, dois terços da maionese e um naco do tender, acompanhado por três
cervejas. Depois, levanta-se:
— Desculpem por bancar o cachorro magro, mas tenho de ir.
Mal ele sai com a filha a tiracolo, a mãe geme:
— E um morto de fome. Imaginem só... criar uma filha, dar estudo, para
depois ela virar vendedora de bijuteria e arrumar um namorado desses.
Exalta-se o caçula:
— Mãe, será que você tem de criticar tudo?
Uma lágrima furtiva. A velha mexe humildemente o garfo no prato.
— Viu o que você fez? Magoou sua mãe — ataca a nora.
Olhos arregalados, ele dispara:
— Quem magoou foi você, quando brigou por causa de seu filho.
—
Artur, você vai deixar seu irmão falar assim comigo?
— Ela tem razão, Zelito... você...
Olhos cintilantes, a mãe pede, com voz angelical:
— Filhos, não briguem por minha causa. Tudo o que quero é uma família
unida!
Dia de Compras
ABRO A GELADEIRA. NEM OVOS! Nos armários, nem sabão! Rendome ao inevitável. Faço a lista. Parto. Supermercado sábado de manhã é a sucursal
do inferno! Mal entro, quase sou atropelado por um adolescente que corre com um
carrinho vazio, a irmãzinha dentro. Deveria haver semáforo para carrinhos de
compras! Cuidadoso, mantenho meu carrinho à direita, devagar. Uma senhora enfia
o dela nos meus calcanhares. Rosno. Ela pede desculpas e segue. Abro a listinha. O
problema é que a ordem dos produtos na lista nunca é a mesma em que estão
dispostos. Vou para um corredor e pego a lata de molho de tomate. Parto para
outro item. Ando quilômetros. O item seguinte está próximo de onde eu estava
antes! Logo tenho a impressão de que fiz o trajeto São Paulo—Rio a pé! Guardo a
lista. Decido andar entre as gôndolas, pegando o que deve estar em falta.
— Óleo, preciso. Arroz, preciso. Chocolate, não preciso. Mas quero!
Que fome! Atolo o carrinho de bolachas, salgadinhos, geléias, como se
fosse comer tudo imediatamente. Viro à direita e desembarco em um
congestionamento. Senhoras maquiadas passeiam pelas gôndolas, tranqüilamente.
Comportam-se como se estivessem pegando as crianças na escola, paradas na faixa
dupla. Ou seja, abandonam os carrinhos no meio do corredor. Empurro um deles.
A dona me encara, brava. Ergo a cabeça e continuo. Mais adiante, alguns casais. As
crianças comportam-se como se estivessem em um playground. Correm. Gritam.
Os pais sorriem, enquanto uma menina derruba uma lata de pêssegos em calda nos
meus pés. Atiro-me para o próximo corredor.
Uma senhora idosa pede para eu verificar a validade de um produto.
Sorrio, mas sei que caí numa armadilha. A validade é detalhe. Quer puxar papo. Em
supermercados é que se nota a solidão das grandes cidades.
— Como o preço do arroz subiu! — diz, entabulando uma conversa.
— Hum, hum.
-— Desse jeito não sei aonde vamos parar.
— Hum, hum.
— Eu venho sempre aqui porque a minha filha e a minha neta trabalham
fora. Minha neta é muito inteligente, já vai prestar vestibular!
— Hum, hum.
— Gosto de conversar com gente como o senhor para me atualizar. O
senhor é muito simpático!
— Hum, hum!
Consigo me esgueirar até a fila. É enorme. Vinte minutos. A minha frente,
um casal nervoso. Quando está terminando, a caixa pára.
— Este produto está sem código.
Vem um rapazinho. Some. Descubro que a fila do lado andou muito mais
depressa. Que raiva! Finalmente, vem o preço. Ele faz o cheque. Novo ritual,
enquanto é aprovado. Tenho vontade de abandonar o carrinho e sair correndo.
Chega minha vez. Esvazio o carrinho. Boto tudo em sacolas. Demoro. A
caixa me ajuda. Quem está atrás me encara com olhar assassino. Pago. Deu mais do
que eu previa, sempre dá mais! Encho o carrinho de novo. Na pressa, boto lataria
em cima de frutas, tudo vira uma confusão! Vou para o carro. Tiro as sacolas,
guardo. Chego ao prédio. Agora, retiro do carro. Boto no elevador. Arranco do
elevador. Entro no apartamento. Estou exausto, mas nada de descansar! Esvazio as
sacolas. Ovos se quebraram. Limpo as latas. Enfio tudo na geladeira, nos armários.
Desabo na cadeira. A lista cai do meu bolso.
Esqueci metade. Ah, que vida! Semana que vem, vou ter de voltar!
Tudo É Possível
QUANDO EU ERA PEQUENO, queria ganhar um cavalo de corrida.
Natal após Natal eu mandava cartinhas para Papai Noel. Não tinha muita idéia de
onde botar o cavalo. Morava em uma pequena casa no interior de São Paulo,
dividindo o quarto com meu irmão mais velho. Talvez pudesse acomodá-lo na
cozinha, se mamãe deixasse. Mas isso não parecia ser problema. Em todo Natal
mamãe vinha com uma desculpa:
— O cavalo ficou doente, e Papai Noel não pôde trazer.
— Ou então:
— Estava ,muito pesado para Papai Noel carregar.
Finalmente, exausta, revelou a verdade sobre Papai Noel.
Sofri. Não queria acreditar. Puxa, desde que eu me conhecia por gente fazia
esforço para ser bonzinho por conta do cavalo de corrida. Via o velhinho de barbas
brancas na porta da loja. Acordava de manhã e encontrava sempre um presente —
ou vários — junto à meia. Agora queriam que eu enfrentasse a realidade dos fatos?
O tempo passou, e a vida se encarregou de trazer outras fórmulas tão
mágicas quanto Papai Noel. Principalmente em relação ao Ano-Novo. Ultrapassar
a noite de réveillon tornou-se um foco de tensão. Qualquer errinho, por menor que
seja, é capaz de redundar em um ano inteiro de pavores!
A coleção de exigências para um Ano-Novo decente bota a crença em
Papai Noel no chinelo. Por exemplo:
— Usar roupa branca, de preferência nova. Minha amiga Lalá andou
matando cachorro a grito em uma fase da vida.
Acabou desistindo e entrou no ano novo de preto, na esperança de reverter
a situação. Bem... acho que este ano ela vem de vermelho.
— Comer muito na ceia, para ter abundância o ano inteiro. E desculpa de
guloso. Sinto imensa simpatia por essa idéia!
O único problema é o cardápio: não se pode comer ave, porque cisca para
trás, e isso atrasa a vida. Melhor comer porco, que chafurda para a frente. O risco é
passar o ano chafurdando. Depois, lentilha, que é sinônimo de sorte. Para
completar, romãs, para atrair felicidade. Com tanta romã, certamente as lavanderias
devem morrer de felicidade, tal o número de manchas nos trajes brancos!
— Dar três pulinhos com a taça de champanhe na mão.
Depois, jogar o champanhe para trás. É uma garantia de sorte. E talvez de
briga, porque sempre alguém acaba levando a bebida nas fuças. Pior ainda se eu
estiver em uma praia e tiver de pular as sete ondinhas. Nada mais difícil que contar
as ondas no meio do barulho, dos fogos (imprescindíveis), agarrando a taça em
uma mão, os chinelos na outra e recebendo abraços de feliz Ano-Novo! E
inevitável: acabo roubando na conta.
Vem uma ondinha, não consigo pular e digo: "Essa não vale!".
Ou seja, era mais fácil quando eu acreditava em Papai Noel! Agora, além de
comprar os presentes, tenho de labutar na noite de ano! Na esperança de que, sim,
aconteça alguma coisa mágica — não sei bem o quê — capaz de trazer algo de
maravilhoso para minha vida.
Este ano resolvi me dar um presente. Aprendi a não acreditar em Papai
Noel. Também não quero mergulhar em tantas fórmulas mágicas. Eu posso ter um
Natal e um ano maravilhosos se acreditar em mim! Não entra na minha cabeça que
uma noite iluminada pelos fogos vá determinar a minha vida, o meu ano, a minha
felicidade. E sim o meu íntimo, iluminado pela minha vontade. Natal e Ano-Novo
são simbólicos. Duas datas que despertam a vontade de ir à frente, de ser melhor,
de encontrar novos caminhos. Mas a magia, a capacidade de tornar a vida
maravilhosa, está, realmente, dentro de mim.
Agora, com essa certeza no meu coração, eu sei. Tudo é. possível!
O Dia do Ciúme
DESDE CEDO ELA OLHA PELA JANELA de cinco em cinco
minutos.
— Será que eles vêm?
Difícil, todos de uma vez. A filha também já é mãe. Costuma comemorar
com suas próprias filhas. Mas estas, por sua vez, precisam ver as mães dos
namorados. E tem a sogra da filha, que é italiana.
— O Ari é muito apegado à mamma — lamenta-se, todos
os anos, quando dá a desculpa pelo telefone.
O filho solteiro deve ter ido para a farra. Os dois casados . quase se
separam nessas datas, pois suas mulheres querem veias próprias mães. Discutem
sobre qual deve ter a preferência. Ela vive perdendo, pois mora em Santos.
— Se eu descer a serra, não vou poder visitar minha mãe.
Ela fica muito magoada — argumenta a nora belicosa.
— Ah, meu bem, mas a mamãe fez justamente aquele pernil com
maionese que você tanto adora! — ronrona a mais diplomática.
E um campeonato de ciúme. Quem for mais visitada sente-se mais querida.
Ela está apavorada.
— E se não aparecer ninguém?
Ouve os gritos de alegria da vizinha. Se nenhum dos filhos a visitar, no dia
seguinte não suportará o olhar das outras moradoras do prédio. Como se, no
campeonato do afeto filial, fosse desclassificada. A lasanha está no forno. Nunca
foi boa em massas. Como não sabe quantos vêm, encheu o maior pirex e botou no
forno.
— Faltar comida não vai.
E se não ganhar nenhum presente? Sempre garantiu que não liga para isso.
Mentira. Um presente é um troféu a ser exibido. Ostentado no elevador, na sala, na
cozinha!
— Viu só? Eles se reuniram para me dar um videocassete.
Aconteceu no ano passado. Veio com uma fita. Quando ligaram, um
bando de mulheres peladas corria em uma praia repleta de surfistas. Todos riram.
— Ih, mamãe, errei a fita — fingiu o mais novo.
— Estão rindo do quê? Pensam que nunca vi alguém pelado?
Duas da tarde. Bateu na vizinha do lado. Viúva. O único filho migrou para
a Austrália. Podiam fazer companhia uma à outra. Da porta, ouviu as risadas.
— Meu sobrinho veio com a família? Quer entrar?
Não quis. O coraçãozinho foi se enchendo de ciúme, enquanto ouvia o
prédio inteiro rir, enquanto sentia o cheiro dos pratos saindo do forno. De repente,
um carro chegou lá embaixo! Desceram a filha e o mais novo. Correu para abrir a
porta, tonta de felicidade. De quatro, dois! Um bom páreo.
— Cadê seu marido?
— Foi para a mamma. Discutimos — reclamou a filha, de cara amarrada.
— E a namorada?
— Está com os pais. Prometi comer a sobremesa na casa dela.
Tremeu. O filho era capaz de correr na estrada. Acidentar-se. Serviu a
lasanha rapidamente. Quando deram as primeiras garfadas, percebeu que tinha
virado borracha. Garantiram que estava uma delícia. Fingiu que acreditou. Aos
poucos, descontraíram-se, Fofocaram. Sobre as mães dos outros, é claro. A da
namorada estava na terceira plástica e no quinto marido. A sogra da filha usava uma
dentadura tão velha que às vezes quase caía da boca.
— No ano que vem, dê uma dentadura nova de presente — riu.
Comentaram longamente a vida das sogras dos filhos, umas egoístas. A
filha nem se dava mais com os irmãos, por conta das cunhadas. Entre os presentes,
divertiu-se com um CD de pagode. Fingiu dançar.
Quando partiram, sentou-se satisfeita. Dia das Mães é assim. Filhos que
visitam, filhos que fogem. Sogras versus sogras. Tensão. Ciúme. Fofocas sobre a
família. Até rixas. Mas seja dita a verdade: tanto mães como filhos adoram essa
doce confusão.
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Walcyr Carrasco – Pequenos Delitos e Outras Crônicas