Marcella, uma amiga que veio de longe Lúcia desceu a escada a correr e com grande alarido. Certamente pelo barulho que fez, a mãe olhou para ela e disse-lhe: — Não vás lá para fora tão pouco agasalhada. — Oh! mãe, não está frio! A Lúcia respondeu assim porque não gostava nada de usar muita roupa. Mas, temendo ser obrigada a vestir aquele casacão que, apesar de muito bonito, era bastante pesado, concordou: — Está bem, vou vestir outra coisa. Não fosse a mãe lembrar-lhe o tal casacão, subiu, na mesma pressa com que há pouco a descera, a escada que dá para o andar onde ficam os quartos de dormir. Imediatamente pensou em vestir a camisola azul que lhe fizera a avó Joana, porque era muita quentinha e leve. Feita de uma lã tão macia que, quando lhe tocava, lembrava-se logo do seu já velhinho mas sempre fofo ursinho de peluche. — Vês como assim estás melhor? — disse a mãe, quando de novo Lúcia desceu do quarto. E só depois lhe perguntou: — Aonde vais? — Vou até ao fundo do quintal ver os aviões. Como a mãe não disse mais nada, a menina compreendeu que ela estava de acordo. Saiu de casa, meteu pelo estreito passeio que atravessa o jardim e o pomar, e foi entregar-se ao seu passatempo favorito. Realmente, o que Lúcia mais gostava de fazer era ir até ao fundo do quintal, mesmo ao lado do aeroporto. Atrás da sebe feita com rede de arame, ficava horas sem fim a ver os aviões que a toda a hora chegavam e partiam. — Afinal, a mãe até tinha razão — pensou. — Mesmo com o sol a espreitar, o tempo está um pouco frio! Encostou-se à rede e, apesar de o arame lhe arrefecer o rosto, não o descolou dela, tão grande era o fascínio que lhe causava o vaivém no aeroporto. Ao olhar tudo aquilo, sonhou com o dia em que iria viajar num daqueles aviões e conhecer novas terras. Depois, e porque esse sonho ainda estava longe de se realizar, desejou que, pelo menos, um deles lhe trouxesse algo muito importante e bonito, para maior alegria do seu coração. A imaginar coisas fantásticas, da forma que só nós, os mais pequenos, sabemos fazer, ficou ali muito tempo encostada à sebe. Despertou-a dos sonhos o ruído de mais um avião que se preparava para aterrar. Desde o momento em que este parou até à saída de todos os passageiros, Lúcia não tirou os olhos daquele grande pássaro de aço pensando alto, como se falasse para si mesma: — Quem virá lá dentro? Reis? Princesas? Gente importante, certamente! — E continuou a dar largas à sua imaginação carregada de fantasia: — Doutores! Poetas! Mágicos! Inventores! A certa altura, teve de interromper a festa dos seus pensamentos, pois um choro miudinho fez-se ouvir muito perto de si. Apanhada de surpresa – sim, porque não esperava que surgisse alguém por ali! – olhou na direcção de onde vinha esse choro. Ficou, sem palavras, maravilhada a olhar uma linda borboleta. Esta flutuava, como se buscasse um raio de sol, um pouco acima da sua cabeça. Era realmente a mais bela borboleta que já tinha visto, e só o facto de ela estar a chorar e a tremer muito lhe quebrou o prazer de contemplar tão formosa criatura. — Por que choras? — perguntou-lhe. A borboleta nem lhe respondeu, e Lúcia não conseguiu perceber se era porque o choro lhe travava a voz, ou se não sabia falar. Talvez fosse surda! Ou muda! Ou as duas coisas! Devagarinho, estendeu-lhe a mão. Como ela não fez o mais leve movimento de receio, pegou-lhe mansamente nos minúsculos pés e puxou-a para si. A borboleta, sem sombras de querer fugir. Por fim, muito a custo, respondeu: — Tenho frio. — Ah! — compreendeu a menina. — Por isso tremes tanto! Percebendo o seu problema, Lúcia não esperou por mais nada. Juntou as mãos e fechou-as como uma concha, guardando dentro delas aquela pequenina e colorida criatura. Depois, correu para casa. Quando lá chegou, perguntou muito alto: — Mamã, o fogão da sala está aceso? — Está — respondeu a mãe como se estivesse a repreendê-la. — Tens frio, não é? Bem disse para te agasalhares. Mas Lúcia nem se justificou e, na sua habitual correria, dirigiu-se ao seu quarto. Quando lá chegou, poisou a borboleta em cima da cama. — Não fujas, está bem? — pediu-lhe. — Trato já de ti. Abriu o guarda-roupa, revolvendo o seu interior em busca de qualquer coisa. — Está aqui! — exclamou, com satisfação, ao encontrar aquilo que procurava. — Aqui dentro estavam as minhas botas de cano alto — explicou, enquanto mostrava uma caixa de cartão vazia — mas, com um agasalho, fica uma boa cama. Da primeira gaveta da cómoda tirou um cachecol igual à sua camisola azul. Dobrou-o em três partes e colocou-o dentro da caixa de cartão. Depois, envolvendo-a de calor e carinho, disse à borboleta: — Vais sentir-te tão quentinha nesta cama que até esqueces o frio que faz lá fora. Deitou a amiga no colchão azul e, dirigiu-se à sala, transportando com todo o cuidado aquele improvisado leito que, antes disso, era a casa de umas botas de cano alto. Quando lá chegou, poisou-a no chão junto à lareira, onde ardiam pinhas secas. Sentiu vontade de continuar a conversar com a borboleta, mas ela já dormia. Talvez de cansaço. Talvez feliz por não sentir frio. Era já dia, mas mais cedo do que o costume, quando Lúcia saiu da cama. Enquanto se vestia lembrou-se de que, na véspera, tinha deixado a pequenina criatura a dormir perto do fogão da sala. Antes de se deitar ainda fez algum barulho, para ver se ela acordava e lhe contava coisas da sua vida. Mas qual quê! A amiga dormia um sono tão profundo que nem foi capaz de a despertar. — São horas de ires para a cama, Lúcia. Vai, que a tua borboleta já dorme. Amanhã brincas com ela — disse-lhe a mãe, nessa altura. E a menina lá teve que ir dormir. Muito lhe custou, pois estava com um receio escondido no peito de que o silêncio da borboleta não fosse do sono, mas sim que tivesse morrido de frio. No entanto, esse receio fora inútil, pois, pela manhã, quando regressou à sala, já a sua amiga borboleteava perto da janela com o olhar fixo no exterior, mostrando-se ansiosa par sair dali. — Bom-dia, borboleta — cumprimentou Lúcia. — Dormiste bem? — Dormi — respondeu a outra — mas quero ir embora. — Embora? Não vês que faz frio lá fora? — perguntou a menina, muita decepcionada, pois já gostava da sua nova amiga. — Eu quero ir para a minha terra. Lá nunca está frio. — Ah! — exclamou Lúcia com o espanto de quem faz uma grande descoberta. — Não és de cá!? — Não. Sou de um sítio onde há sempre calor. — Mesmo quando chove? — Mesmo quando chove — confirmou a borboleta. — E onde fica esse sítio? — Não sei. Mas creio que é muito longe. Lúcia insistiu nas perguntas: — Então, como vieste cá parar? — Acho que foi porque adormeci. Aí, a menina não entendeu mesmo nada! — Adormeceste? Explica-te melhor, pois não percebo o que queres dizer com isso de “adormeci”. A borboleta sentiu-se muito importante. Era a primeira vez que alguém lhe pedia explicações sobre qualquer coisa! A verdade é que também era a primeira vez que tinha uma pessoa como amiga. Sem mais demoras, contou o que lhe tinha acontecido: — Tudo começou lá longe, na minha terra. Estava tão cansada e cheia de calor que nem conseguia voar e, por isso, caí em cima do chapéu de renda de uma velha senhora. Adormeci imediatamente. — E depois? — insistiu Lúcia. — Depois? Depois, quando acordei, ainda descansava no chapéu da tal senhora — continuou, agora muito preocupada — mas já não estava na minha terra. Encontrava-me dentro de uma casa muito comprida, que tinha janelinhas redondas e filas de cadeiras com pessoas comodamente sentadas. Ainda tentei sair, mas não consegui abrir nenhuma das janelas! Finalmente, quando uma porta se abriu, vi que já me encontrava aqui, na tua terra. — Mas...tu vieste num avião! — exclamou Lúcia, ao perceber o que tinha acontecido. — Quer dizer que realmente és de muito longe! Embora por razões diferentes, as duas amigas ficaram tristes quando a menina fez esta descoberta. A borboleta, por sentir que, se não regressasse à sua terra, morreria de frio e também de saudade. A Lúcia, por saber que era urgente devolver a amiga ao sítio de onde veio e, ao consegui-lo, nunca mais a veria. Dos pequeninos olhos azuis da borboleta nasceram duas lágrimas às quais se seguiram outras e outras, até se transformarem num choro um bocadinho ruidoso. Só um bocadinho, pois, como era pequenina não podia chorar muito alto, não é verdade? Ao vê-la assim, o coração de Lúcia ficou apertado pela tristeza. Na esperança maior que conseguiu, animou a amiga com uma promessa: — Não chores. Havemos de encontrar forma de regressares à tua terra. Ainda a soluçar, mas, acreditando que isso era possível, a borboleta perguntou: — Como? De avião? — E porque não? — respondeu Lúcia a sorrir, porque aquela era uma boa sugestão. — Se vêm aviões de lá para cá, também vão de cá para lá. Só precisamos de descobrir onde é a tua terra. Ficou a pensar nesse enigma. Bem grande, por sinal, pois a sua amiga apenas sabia que era de um país longínquo onde havia muito sol e raramente chovia. Mas a Lúcia nunca foi menina para se atrapalhar pela falta de ideias e, por isso, logo teve uma que lhe pareceu extraordinária: — Já sei! Vamos falar com o senhor João, que mora na casa em frente. Como ele sabe de tudo, decerto saberá onde fica a tua terra. Sem esperar por mais nada pegou na amiga, encostou-a ao peito, de encontro à sua fofa camisola, e dirigiu-se a casa do senhor João. É claro que a Lúcia tinha quase a certeza de que o vizinho havia de descobrir a origem da borboleta. — Pois! — pensou a menina — para que lhe servia ter uma sala cheia de livros se não aprendesse o que eles ensinam? E não é que tinha razão?! Quando o seu vizinho, senhor já idoso e com os cabelos todos brancos, olhou a amiga de Lúcia, disse: — Vou confirmar ali numa enciclopédia, mas parece-me que esta borboleta é uma Marpesia Marcella, originaria da América do Sul, habitando principalmente no Amazonas. Enquanto a borboleta se sentia orgulhosa por ter um nome tão complicado e a menina admirava a sabedoria do velho senhor, este dirigiu-se a uma estante, de onde tirou um grande livro de capa vermelha com inscrições a ouro. Num segundo encontrou o que procurava. — Aqui está! — confirmou vitorioso. — É realmente uma Marpesia Marcella. Como a conseguiste? — perguntou, intrigado. Lúcia contou ao senhor João a viagem da sua amiga e como as duas se conheceram. — Vais emoldurá-la? — continuou ele. — Emoldurá-la?! — Sim. Colocá-la dentro de uma moldura que se pendura na parede! Como se faz com as pinturas e fotografias. — E porque iria eu fazer uma coisa dessas? — interrogou a menina, muito admirada. Aí, o senhor João fez um gesto largo de impaciência com os braços e respondeu: — Ora, ora! É o que toda a gente faz com as borboletas raras e bonitas! Ou vais vendê-la a algum coleccionador de borboletas? — Vender a minha amiga?! — gritou Lúcia, assustada. — Não quero que lhe aconteça mal algum. Apenas desejo que regresse à sua terra. Nesse momento, o senhor João compreendeu que, para a menina, a borboleta era já uma grande amiga para quem só queria o melhor. Apesar da sua fama de rabugento, mostrou que era um homem bondoso, pois imediatamente se interessou pelo caso da Marcella. — Então temos aqui um grande problema — disse. — Não queres que a tua amiga morra, mas ela não resistirá por muito tempo ao nosso clima. — Por isso eu queria saber onde é a sua terra — justificou a Lúcia. E contou-lhe a sua ideia em procurar no aeroporto um avião que devolvesse a borboleta ao seu país. Pela primeira vez desde que o conhecia, a menina viu a senhor João sorrir, enquanto lhe dizia: — Bom... Vamos já tratar da viagem desta doce criatura, antes que seja tarde. Lúcia aconchegou mais a borboleta à camisola azul com a mão esquerda, enquanto o senhor João pegava na sua mão direita como se fosse o seu melhor amigo. E se calhar já o era! Confiantes de que tão brilhante ideia tivesse bom resultado, dirigiram-se ao aeroporto. Como sempre, àquela hora do dia, a sala de passageiros apresentava grande movimento, pois era a altura em que chegavam e partiam muitas pessoas nos enormes aviões. Os nossos amigos, muito juntos, encaminharam-se para um balcão onde estava escrito “Informações”. — Faça o favor de me informar: quando segue um avião para o Amazonas? — perguntou o senhor João à senhora que ali se encontrava. Esta logo lhe respondeu: — Mais ou menos daqui a uma hora segue um para o Brasil, com escala em Manaus, que, como deve saber, fica no Amazonas. — É que — continuou o senhor João — a nossa amiga tem de seguir para lá, urgentemente. A senhora olhou para Lúcia e perguntou: — E vai acompanhada por quem? — Por ninguém — respondeu o velho senhor com o mau humor por que era conhecido. — Exactamente como veio para cá: num chapéu! — Num chapéu?! — quase gritou a senhora com cara de quem não estava a gostar nada daquela conversa. Foi então que o senhor João percebeu a confusão dela e, numa grande risada explicou: — Quem tem de ir para a Amazonas não é a menina! — Pegou na borboleta das mãos da Lúcia e mostrou-a à senhora das Informações, continuando a explicar: — É ela quem precisa de viajar! — A borboleta?! — Exactamente — informou ele. Depois, contou-lhe a história da pequenina criatura. Tal e qual como a Lúcia lhe tinha contado. A senhora, compreendendo a situação, mostrou logo vontade de colaborar. — Vamos arranjar alguém que leve a borboletinha de volta — disse. Pegou depois no telefone que estava mesmo a seu lado e marcou um número. — Álvaro? Podes chegar aqui, às Informações, por favor? Poisando de seguida o auscultador no seu lugar, disse aos três amigos que a olhavam com muita ansiedade: — Vem aí um colega meu. É o piloto do avião que vai para o Brasil. Com certeza não se importará de levar a borboleta de regresso ao Amazonas. Realmente, daí a instantes chegou o piloto Álvaro, a quem a senhora do balcão contou o problema da Marpesia Marcella. — Com que então queres regressar à tua terra! Terei muito gosto em levar-te — disse o piloto à borboleta, quando ficou ao corrente da sua história. Agora que a grande problema parecia resolvido, o olhar de Lúcia mergulhou no rio da tristeza. O senhor João, que se apercebeu disso, pegou-lhe no queixo. Olhando-a nos olhos, perguntou: — Não queres mesmo ficar com ela? — Como? Morta?! — exclamou a menina horrorizada. — Nunca! De repente teve uma dúvida que a levou a perguntar ao piloto do avião: — Não vai emoldurá-la, pois não? Nem vendê-la a algum coleccionador de borboletas? Ele deu uma risada simpática e respondeu: — Claro que não. Achas que sou capaz disso? Lúcia olhou-o mais atentamente e compreendeu que, na verdade, uma pessoa que sorria assim não podia fazer uma coisa dessas. Pediu-lhe desculpa. — Entendo a tua preocupação – continuou o piloto. — Ninguém gostaria que lhe maltratassem ou vendessem uma amiga de quem se gosta. Descansa, pois olharei por ela até estar a salvo, na sua terra. Pegou com muito cuidado na borboleta, colocou-a na pala da boné do seu uniforme e disse, sorrindo: — Vieste num chapéu, vais num boné. Olhando o relógio na parede continuou: — Já? — perguntou Lúcia, como se tivesse recebido uma má notícia. — Tem de ser — respondeu o piloto. — Antes de partir, temos que experimentar os motores do aparelho, o que leva algum tempo. Por isso, tens de te despedir da tua borboleta. Apesar de haver muito movimento no interior do aeroporto, à volta dos nossos amigos fez-se um grande silêncio. A borboleta Marcella mantinha-se em cima da pala do boné que o piloto segurava nas mãos. Ao olhar a amiga, agradeceu-lhe, reconhecida: — Obrigada por tudo, Lúcia. Nunca te esquecerei. E, para se mostrar forte pois a despedida também a deixava triste, pediu ao piloto: — Vamos embora, que se faz tarde. A menina tremia, mas não era de frio. Par isso, e para se sentir amparada, apertou com força a mão do seu vizinho. — Não estejas triste. Hás-de arranjar outra amiga. Uma que não tenha de partir — disse ele, tentando confortá-la. Mas Lúcia sentia que, quando sabemos gostar de alguém, ninguém o pode substituir no nosso coração. Depois de o piloto se afastar, os dois amigos da borboleta Marcella encaminharamse lentamente para o exterior do aeroporto. Lá fora fazia um sol gostoso, quentinho. — Nem está muito frio! — murmurou a menina. — Agora — respondeu o senhor João, que percebeu muito bem onde ela queria chegar. — Mas logo, ou amanhã… a borboleta não ia resistir ao nosso clima! Ficaram, durante algum tempo na varanda do aeroporto a ver os aviões desaparecerem lá longe, até ficarem do tamanho de um pontinho como este (.). A todos que levantavam voo dirigiam um olhar de despedida, por saberem que em algum deles ia a sua amiga. Estiveram ali muito tempo. Até terem partido todos os aviões que havia na pista. — Já foi! — suspirou Lucia. — Já! — concordou o amigo. — Mas continua viva, não é? — perguntou a menina, resignada. O senhor João percebeu que, apesar de lhe ter custado muito o adeus, a Lúcia sabia que tinham feito aquilo que estava certo. Seguiram para casa. De mãos dadas, na certeza de uma nova e grande amizade. Levavam no coração a tristeza da despedida de uma amiga, mas, ao mesmo tempo, a alegria de saberem que ela já não morreria de frio. Nem de saudade. Daniel Marques Ferreira Marcella, uma amiga que veio de longe V. N. Gaia, Edições Gailivro, 2002