II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem:
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NOTRE-DAME E A ARTE GÓTICA: O CONTEXTO POLÍTICO E
CULTURAL NA ARQUITETURA DO SÉCULO XII
CHAVES, Regina (G- UNIOESTE)
GALANTE, Camylla(G- UNIOESTE)
SCHULTZ, Benilde Socreppa. (UNIOESTE)
RESUMO: Victor Hugo, autor do romance Nossa Senhora de Paris, vulgarmente
conhecido como O corcunda de Notre Dame, traz considerações arquitetônicas acerca
do edifício onde se passa a estória de Quasímodo e Esmeralda. O autor considera a
igreja como um documento histórico, no qual é possível identificar registros dos
períodos pelos quais a construção do edifício passou, mas que, devido a traços da
modernidade na arquitetura, dados históricos se perderam. A obra, ao mesmo tempo em
que fala das alterações causadas ao prédio original, expõe os prejuízos trazidos por ela.
Hugo repassa os elementos que compõe a igreja e a insere no contexto político e
cultural do período de sua construção. No presente artigo, pretendemos demonstrar que
a arquitetura, como expressão artística, pode ser analisada criticamente sem que o belo e
o estético possam ser questionados. Este é nosso objetivo ao apresentar a beleza artística
e cultural da Catedral de Notre-Dame de Paris como um dos expoentes arquitetônicos
do movimento gótico no qual se revela, além do concreto como forma e do abstrato
como espaço religioso, um instrumento na arte humana de dominar e deixar-se dominar
através de um método didático de ensino cultural. Nosso trabalho será feito com
embasamento histórico de nomes como Williamson (1998), Tavares (1978) e Gombrich
(1993) apresentando características físicas e históricas da arte gótica.
PALAVRAS-CHAVE: Catedral de Notre-Dame; Arquitetura Gótica; Religião;
Política.
Deus, ao criar o homem à sua semelhança, tornou-o partícipe da criação. Desta
forma, e não com essas mesmas palavras, o cristão tem sido ensinado através dos relatos
Bíblicos. Bastides, no seu trabalho sobre arte e sociedade estende seus estudos revendo
a arte advinda dos segmentos religiosos desde os totens australianos, perpassando pelos
mitos até chegar à organização sistemática da religiosidade humana. Ele, ao citar
Durkhein, coloca a religião em primeiro plano como a instituição humana que rege todo
espírito artístico e estimula o homem a criação, pois “dos mitos e das lendas que saíram
a ciência e a poesia; foi da arte de ornamentação religiosa e das cerimônias do culto que
derivaram as artes plásticas”. (BASTIDE, 1971, p.42). Hênio Tavares, em seu estudo
sobre teoria literária no capítulo II, discorre sobre como conceituar arte, cita Geraldo
Rodrigues:
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A arte, qualquer que seja sua definição, é uma causa profunda, mais
inconsciente do que consciente, mais instintiva do que racional,
qualquer coisa que repercute no lado noturno e desconhecido de nós
mesmos, que lança ecos e ressonâncias desde as profundezas do nosso
oceano interior (in TAVARES, 1978, p. 17).
A definição, embora muito bem elaborada, não abrange toda complexidade do
que realmente significa arte, pois se a concebemos mais da inconsciência e mais do
instinto, delimitamos sua existência como obra do mero acaso. Fato irrelevante, já que
objetivamos descobrir na arte gótica a criação intencional da beleza. Neste foco de
análise, citado também por Henio Tavares, reflete Alceu Amoroso Lima quando cria a
dicotomia ciência e arte. Para Amoroso, “o homem pode assumir perante o universo,
duas atitudes básicas: ou considera o mundo para o conhecer ou o encara para agir sobre
ele”. (LIMA apud TAVARES, 1978, p. 24) Para Amoroso, ambas as atitudes têm uma
mesma finalidade e são indissociáveis e do qual chega à conclusão de que “todo
conhecimento essencialmente científico é acidentalmente artístico” (Idem, p.24).
Amoroso retoma, neste trabalho, a mesma classificação feita pelos gregos sobre arte
menor e arte maior, quando inclui vários tipos de trabalhos como arte. Embora não use
os mesmos termos e nem hierarquize a arte em níveis que vão do humano ao quase
divino, ele cita que a arte que precise trabalhar “materiais brutos ou trabalhar para
adaptar o Espaço e o Corpo como a arquitetura torna-se uma intervenção” humana “na
natureza” (Idem, p.24). E relembra também a questão sobre o dom ser “elemento de
seleção” quando Platão responde a pergunta: “O que é o dom?” Tavares reforça dizendo
que “para ser artista não basta querer, pois é preciso poder” (Idem, p.24).
Desta forma herdamos a arte e a conceituação sobre arte. Dos gregos, recebemos
a história, a política, as leis, a gramática, a oratória, a sistematização dos métodos de
estudo, assim como a elitização dos dons artísticos. Para Platão, apenas uma classe
especial de homens poderia ter dons especiais, ou ser agraciado com a luz divina da
sabedoria. A teoria de Platão se confirmou nos séculos que se seguiram. Poucos foram
os revelados artistas. No entanto, Bastide (Idem, p.113) analisando sob olhar da
sociologia, revela que “não basta dizer que a religião influi na arte. É preciso ver ainda o
mecanismo sociológico dessa ação”.
Partindo desses apontamentos, e seguindo, quase à risca os enunciados,
elencaremos, neste trabalho, uma breve exposição histórica, econômica e política do
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século XII, século das construções das maiores e mais importantes catedrais do estilo
gótico, em particular, a Catedral de Notre-Dame.
Antes, porém, é importante relembrar: Roma ao consolidar seu império e eleger
como religião estatal, o cristianismo, toda produção artística, literária, escultural e
arquitetônica limitou-se ao novo estilo romano agregado às influências gregas enquanto
tematizava, uma crença judaica mesclada ao sabor romano. Esse era o contexto na qual
a cultura tenta, harmonizando conflitos, emergir com força e beleza. Williamson
historiciza este momento retratando a importância cultural e social que os mosteiros e a
classe clerical assumem diante da sociedade medieval:
Em meados do século XII, o prestígio dos grandes mosteiros era
incontestável. Os religiosos e intelectuais mais influentes eram
monges, como o abade beneditino Surger e o organizador da Ordem
Cisterciense, São Bernardo de Clairvaux. Os empreendimentos
artísticos eram totalmente dominados e controlados pelos principais
hierarcas monásticos, e era nos mosteiros que se encontravam as
melhores oportunidades de trabalho. (WILLIAMSON, 1998,
introdução).
Gombrich retrata a imagem de um cristianismo primitivo ao descrever como os
lugares de culto eram concebidos até o século IV e como transcorreu a mudança:
Até o ano de 311 d.C. As igrejas eram salas de reunião insignificantes,
mas a igreja passou a ser o supremo poder do reino, os lugares de
culto não podiam adotar os modelos antigos. As igrejas não usaram o
templo pagão, mas adotaram o tipo amplo de salão de reuniões que
nos tempos clássicos eram conhecidos por Basílica “pórtico real”
antes mercado e recinto para audiências públicas de tribunal.
(GOMBRICH, 1993, p. 94)
Os romanos adaptavam os costumes dos povos que dominava inculcando na
nova cultura, um estilo próprio. Assim o cristianismo foi adotado através do foco e da
necessidade de Roma. Bastide faz uma ressalva importante nessa última afirmação:
Há uma confusão a se evitar. [...] Existem dois tipos de (artistas): os
que desejam por sua arte ao serviço da sociedade em geral [...] ou dum
grupo particular. Assim o artista deve dedicar-se apenas á realização
de coisas belas sem se preocupar com a repercussão que sua obra
possa ter sobre a vida social. BASTIDE (1971, p.182)
A arte não é a sociedade, nem um grupo social, ela se destaca ao mesmo tempo
em que é agregada como resposta do todo. É aceita, admirada e “abordada através duma
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filosofia social. Uma linguagem, [...] um fator de solidariedade social”. BASTIDE
(1971, p.183-184) E como característica de toda linguagem, está pronta para se rebelar,
se transformar, buscar novos caminhos, mesmo que para isso tenha que voltar no tempo
para saciar sua essência de nuances antigas para compor a nova.
A Itália é o berço do cristianismo, assim como era também o berço da política
romana. Um império que dava sinais de desmoronamento causado pelo “vigoroso
ressurgimento da vida urbana” (JANSON, 1994 p.304). O país era, até então, um
aglomerado de antigos feudos pertencentes à poderosas famílias, que foram se
organizando como cidades a partir das catedrais. As famílias que eram vassalas
tornaram-se mais poderosas que as tradicionais; “o avanço tecnológico, como a criação
do arado e do moinho de vento” (WILLIAMSON, 1998, p.), propiciou uma agricultura
profusa, fortalecendo o comércio na região e fora dela trazendo a riqueza necessária
para as cidades, e, por conseguinte, poder e influência para a construção das catedrais,
enquanto religiosidade e enquanto símbolo poderoso dessa sociedade que emergia.
O Abade Suger torna-se o principal administrador desta nova empreitada,
“conselheiro principal de Luis VI” (Idem, p.301), de raiz normanda, de família pobre,
mas sempre ligada aos fazeres eclesiásticos, conseguiu, através da diplomacia, da
inteligência, da persistência e da disciplina ao seguir seus planos até a execução, aliar as
cidades ao imperador, e, por conseguinte, o papado ao imperador. O fato de fazer parte
da classe clerical abriu possibilidades às expectativas do Abade, que primeiramente, ao
construir a catedral de St. Denis homenageou o patrono da sua cidade atraindo,
conseqüentemente, para si o louvor. Duby confirma essas palavras:
Por definição, a catedral é a igreja do bispo, portanto, a igreja da
cidade, e o que a arte das catedrais significou primeiramente na
Europa foi o renascimento das cidades. Estas, nos séculos XII e XIII,
não param de crescer, de se animar, de estender os subúrbios ao longo
das estradas. Captam a riqueza. Após um longuíssimo apagamento,
tornam a ser [...] o foco principal da mais alta cultura. Mas a
vitalidade que as penetra vem, quase toda, dos campos circundantes.
[...] em parte alguma o impulso de prosperidade rural foi mais vivo
nesta época do que no Noroeste da Gália. [...] Por isso a nova arte foi
reconhecida por todos os contemporâneos como sendo propriamente a
arte de França. (DUBY, 1978, p. 99)
A igreja deveria ser imponente para atender a todos os segmentos da sociedade.
Olhando por este prisma, podemos antever o dualismo humanista nesta concepção,
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enquanto Williamson expõe com clareza este momento como “um dos resultados mais
importantes do chamado Renascimento do século XII foi a mudança de atitude do
homem comum perante Deus” (WILLIAMSON, 1998, introdução).
A reputação de cada catedral dependia do status de suas
relíquias ou de seu santo padroeiro, e era do interesse de
qualquer bispo estabelecer fortes vínculos entre sua igreja, as
autoridades civis e a população (Idem, p.).
Deus já não era mais um Deus de miséria e sim um Deus de prosperidade. A
riqueza e a busca pela perfeição no ato de construir e de esculpir tinha um objetivo
humano, além de um espiritual: satisfazer o ego humano e estabelecer, mesmo que
ainda com restrições, um novo caminhar na busca do próprio homem como ser
integrado e responsável pela sociedade e por seus atos.
Sobre o abade Suger, Janson concorda com DUBY (1978) no lado positivo e
aponta um lado negativo: “No caso negativo, pode atribuir-se-lhe algum merecimento
pelo estilo que ele chama tão orgulhosamente, a „sua‟ nova igreja” (JANSON, 1999, p.
303). Nova igreja porque apresentava uma estrutura diferenciada do pesado românico.
Uma arquitetura elaborada, rica nos detalhes. Causa de estupefação aos que as admiram
e reconhecem o grau de dificuldade e de disciplina que foram empregados para atingir o
resultado observado, num tempo em que a tecnologia de ponta era o arado manual. Se
até o século XI o homem se preocupou em oferecer a Deus o que havia de melhor em
pedras preciosas e ouro, a partir desse tempo ele começa a se preocupar em oferecer
também o que ainda não há, mas o que pode ser criado de melhor na estrutura artística
da engenharia da construção. Embora a terminologia „engenharia da construção‟ só
passa a existir a partir do século XVIII, conforme cita a revista de engenharia
EngWhere, designa o momento em que a necessidade de expandir conhecimentos
através da prática se torna possível. O ideal expansionista atrelado aos ideais de fé e de
política propiciou um ambiente satisfatório para o surgimento da estética do gótico.
Gombrich, no capítulo intitulado “A Igreja Triunfante”, expõe as características
marcantes do novo estilo arquitetônico do qual o Abade Suger trabalhou como mestre
de obras, primeiro em St. Denis e depois a Catedral de Notre-Dame de Paris. Construída
desde 1163 até 1220, o que indica um período de 57 anos de construção, na qual se
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envolveu um exército de trabalhadores munidos de força bruta e dons necessários para
compor um dos primeiros expoentes da arquitetura gótica.
Era o aparecimento do estilo gótico. [...] Era principalmente uma
invenção técnica; contudo, em seus efeitos, tornou-se muito mais do
que isso, foi descoberta de que o método de abobadar uma igreja por
meio de arcos transversais podia ser desenvolvido de maneira [...]
sistemática e com objetivos mais ambiciosos do que arquitetos
normandos sequer chegaram a imaginar. [...] era possível erigir uma
espécie de estrutura de pedra para manter o edifício coeso. Bastava
empregar pilares leves e costelas estreitas nas arestas da abóbada. [...]
Não havia necessidade alguma de pesadas paredes de pedra, pelo
contrário, nas paredes podiam ser abertas grandes janelas. Essa era a
idéia dominante das catedrais góticas desenvolvidas no norte da
França [...]. O princípio de cruzamento de “nervuras” não era bastante,
por si só, para esse estilo revolucionário de construção gótica foi
necessário um número de outras invenções técnicas para tornar
possível o milagre. (GOMBRICH, 1993, p. 137)
Notre-Dame, na sua fachada ocidental (Fig. 1), conserva o estilo “românico
normando, a nave de abobadas sexpartidas, os tramos quase quadrados [...] e as grossas
colunas das arcadas da nave” (JANSON, 1994, p.304).
Fig. 1. Portal Sul da Catedral de Notre-Dame de Paris.1
Na fachada à sudoeste se percebe o estilo gótico com suas agulhas elevadas a
rosácea maior e a menor na torre central e os arcos de sustentação nas paredes laterais
confirmando a visão estereotipada pelos historiadores dos contrafortes em forma de
“esqueleto. Gótico é, também, o verticalismo do espaço interior” (Idem, p.304). São
ricos os detalhes da fachada Oeste, que serão analisados no decorrer do trabalho.
Para a visão de um admirador de arte, Notre-Dame (Fig.1) apresenta em sua
estrutura concreta os movimentos estilísticos que um crítico literário observa em séculos
de obras produzidas por diversos autores. É a concretização de dois tempos num só. De
1
As imagens foram obtidas diretamente do site da igreja de Notre-Dame de Paris, que tem seu acesso
livre, e nenhuma restrição ao uso dos textos ou imagens.
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dois ideais num só. O homem na escuridão e sem conhecimento e depois o homem em
busca da luz e do conhecimento, ampliando seus espaços. Estendendo nossa visão
otimista da história, podemos contar aproximadamente quatrocentos anos, entre
romanismo e goticismo, estatizado na estrutura principal da catedral, além de outras
possibilidades culturais ainda mais remotas.
A abertura de grandes janelas supriu a necessidade de ampliar o interior da igreja
e libertá-la do peso e da arte românica; o objetivo era inundar a igreja com a luz divina
criadora do universo. A relação entre função e forma, estrutura e aparência compõe a
verdadeira harmonia na estética geométrica, a essa relação Janson chama de beleza e
harmonia aliada à proporção, assim como avalia o objetivo aliado à linguagem e à
educação. É nesse olhar que percebemos um cristianismo fortemente estimulado pelos
mitos da crença pagã helênica e grega.
Fig.2. Gárgula
“Os monstros mitológicos (Fig. 2) se enroscam em torno dos capitéis do século
XII e no século XIII são desterrados para o cimo da catedral, servindo ao escoamento
das águas da chuva (carrancas)” (BASTIDE, 1991, p.100). A Bíblia não relata figuras
de carrancas e nem faz menção ao aspecto do diabo como sendo uma entidade cuja
presença causasse medo ou pavor. Ao contrário, embora o diabo tenha a característica
de opositor e de inimigo de Deus, sua aparência está retratada na Bíblia como um anjo
de luz, pois antes de ser lançado fora do éter, ele realmente era anjo de luz. No entanto,
em termos de escultura educativa a Catedral de Notre-Dame de Paris apresenta, em suas
paredes exteriores, a sacra família, os santos e profetas, as virtudes e os vícios
personificadas e as esculturas representando relatos bíblicos, e, principalmente, o que
nos chama a atenção, a gárgula, e no Portal do Juízo Final,
algumas esculturas de
aspectos amedrontadores, seja para usá-los como elemento coercivo, ou como
representação do que seria um diabo segundo os ensinos da época. Janson descreve este
método pedagógico como remanescente do pensamento medieval.
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Tudo o que pertencia à igreja tinha sua função definida e expressava
uma idéia precisa relacionada com os ensinamentos da igreja. Os
ensinamentos da igreja sobre o objetivo último da nossa vida terrena
foram consubstanciados nas esculturas do pórtico de uma igreja. Essas
imagens perduraram no espírito das pessoas ainda mais
poderosamente do que as palavras do sermão do pregados. François
Villon, poeta Francês que vivei no final do Idade Média, descreveu
esse efeito em comoventes versos dedicados a sua mãe: /Sou uma
pobre velha e velha mulher/ Muito ignorante, que nem sabe ler./
Mostraram-me na igreja da minha terra/Um paraíso com harpas
pintadas/E o inferno onde fervem almas danadas;/Um enche-me de
júbilo, o outro me aterra.(Idem, p.130)
Fig.3. Portal Oeste
O Portal Oeste (Fig. 3), também chamado de Portal do Julgamento, traz
esculturas impressionantes, de um trabalho minucioso. As imagens esculpidas,
diretamente na pedra, retratam o destino das almas depois do juízo final. Umas se
apresentam á direita, logo abaixo de uma imagem central de Cristo juiz, são as almas
dos redimidos protegidas pelo anjo Gabriel com uma balança de medir. O símbolo da
justiça grega nas mãos do anjo cristão que também era judeu. A estética reforça a
intenção do autor, quando elaborou cada imagem com seus trajes lisos, com semblantes
que caracterizam um estado de graça, de humildade e de fé. Ao contrário dos redimidos,
se alinham ao lado esquerdo, também logo abaixo do Cristo, as almas dos condenados
acorrentados a uns carrancudos seres de rabo e chifres, suas vestes amassadas e seus
semblantes de dor impressionam, pois os semblantes estão cabisbaixos diante da
vergonha pela punição. As correntes também trazem à tona um mito da tragédia grega, a
de Prometeu acorrentado por Zeus.
Cada uma dessas imagens foram produzidas seguindo um rigoroso controle de
qualidade. Os artesãos eram ensinados durante determinado tempo, para então poder
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esculpir as imagens e decorar a igreja. Tais normas nos são dadas por Williamson, na
introdução de sua pesquisa:
Artesãos de imagens trabalhavam em pequenos ateliês, com um único
aprendiz. As regulamentações incluíam [...] regras para o aprendizado
dos iniciantes na profissão, (por exemplo, que devia durar no mínimo
sete anos) e davam conselhos sobre o procedimento corretos para se
esculpirem imagens e crucifixos: ninguém pode e nem deve trabalhar
em dia santo [...] nem à noite [...] nem deve fazer imagens ou
crucifixo [...] se não com material apropriado [...] se para outra pessoa
que não seja um clérigo, ou homem da igreja ou cavaleiro, ou nobre
para seu uso. [...] imagem que não seja esculpida numa única peça[...].
Nenhum pintor de imagens pode ou deve vender um trabalho no qual
o ouro [...] tenha sido aplicado ao estanho [...]o trabalho lhe é
imperfeito (WILLIAMSON, 1998, p. ).
Com o mesmo esmerado e delicado trabalho, tanto de teor pedagógico, quanto
ao de expressar beleza ao colorir de um tom translúcido que ilumina todo interior da
igreja, Notre-Dame traz expostas três rosáceas adornadas com vitrais, de coloridas
imagens, que nos remetem à tradição cristã.
O primeiro é a rosácea localizada no lado oeste, cujo tema principal é a vida
humana, cenas que mostram os signos do zodíaco e os trabalhos dos meses, que
representa também os trabalhos rurais referentes a cada mês do ano. A segunda, a
rosácea fica ao sul, tem como tema o novo testamento e o triunfo de Cristo, elaborados
sob a simbologia do número quatro (as quatro estações do ano, os quatro braços da cruz,
as quatro virtudes dos santos, que são a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança
etc.). Nessa rosácea estão esculpidos os doze apóstolos nos primeiro e segundo círculos,
algumas cenas do Velho Testamento e da vida de São Mateus. Na terceira rosácea,
fixada do lado norte da igreja, o tema central é o velho testamento, e ao centro,
encontramos a imagem da Virgem com o Menino. Sob esta rosácea, figuram, em
lancetas, 16 profetas No centro, os quatro grandes profetas: Isaías, Jeremias, Ezequiel, e
Daniel carregam sobre os ombros os quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João
numa ligação direta do Velho com o Novo Testamento. A essa imagem dos profetas e
dos apóstolos pertence à reflexão do bispo Bernardo de Chartres, do século XIII, que
dizia: “Somos todos anões sobre os ombros de gigantes. Nós vemos mais do que eles,
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não porque nossa visão é mais clara de lá ou porque somos mais altos, mas porque eles
nos elevaram até o nível de toda a sua gigantesca altura”2.
Victor Hugo, em Nossa Senhora de Paris, intercalado com a estória de
Quasímodo e Esmeralda, reflete acerca da catedral quanto às transformações sofridas
por ela com as mudanças de “modas” da arquitetura e o prejuízo que isto constituiu ao
monumento. No capítulo homônimo à obra, Hugo faz descrições detalhadas das
condições do edifício na época em que o livro foi escrito (1831) e como eram quando
foram construídos. Um exemplo dessa crítica é o trecho em que Hugo escreve sobre a
fachada de Notre-Dame. Primeiro o escritor dá uma descrição pormenorizada da
fachada e dos três pórticos que nela se encontram, e em seguida aponta as “mutilações”:
Voltemos à fachada da igreja de Nossa Senhora, tal qual se nos
apresenta ainda hoje. [...] Três coisas importantes faltam hoje àquela
frontaria; em primeiro lugar, a escadaria de onze degraus que
antigamente a elevava acima do solo; depois, a série inferior de
estátuas que ocupava os nichos dos três pórticos, e a série superior dos
vinte e oito reis de França mais antigos, que guarnecia a galeria do
primeiro andar, principiando por Childeberto até Filipe-Augusto, que
tinha na mão o "pomo imperial" (HUGO, s/d, p.142-143).
Em seguida o autor diz:
Os degraus fê-los desaparecer o tempo, elevando com progresso lento,
mas irresistível, o nível do solo da cidade [...]. Mas, quem derrubou as
duas fileiras de estátuas? Quem deixou os nichos vazios? Quem talhou
mesmo no centro do pórtico central essa ogiva nova e bastarda? Quem
ousou colocar essa insípida e pesada porta de madeira, esculpida à
Luís XV, junto dos arabescos de Biscornette? Os homens, os
arquitetos, os artistas de nossos dias. (Idem, p.143).
As preocupações do escritor francês não eram meramente com as alterações
estéticas sofridas pela igreja. Para ele, essas modificações não trariam prejuízo somente
no fato de descaracterizar o estilo da construção, mas também, quanto ao sentido, à
simbologia presente em cada elemento que constituía a igreja, já que nela se reflete as
condições do período em que se deu sua construção. Da preocupação à critica,
prossegue o autor:
Quer se lhe chame brâmane, ou mago, ou papa, nas construções
índicas, egípcias ou românicas, sempre se reconhece o sacerdote, e
2
“ We see more than they do, not because our vision is clearer there or because we are taller, but because
we are lifted up due to their giant scale” (tradução nossa) (http://www.notredamedeparis.fr/South-RoseWindow)
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nada mais do que o sacerdote. O mesmo não sucede nas arquiteturas
do povo [Victor Hugo considera Notre-Dame de Paris como uma
construção feita pelo povo]. Essas são mais ricas e menos sagradas.
Na fenícia, descobre-se o mercador; na grega, o republicano; na
gótica, o burguês. (Ibidem, p.232-233).
A arquitetura, para Victor Hugo, é a predecessora da imprensa. Antes do papel, o
homem escreveu suas histórias na pedra, e, ao agrupá-las num monumento era como se
um livro ou um documento fosse escrito, nele contendo a história e as estórias dos
homens que o construíram. Ao escrever das mudanças ocorridas no edifício da catedral,
a intenção de Hugo foi a de chamar a atenção para o fato de que a história não só de
Paris, como da França era apagada a cada modificação feita no prédio.
Victor Hugo, sem poder desferir suas críticas a uma só pessoa, desfere ao todo,
como se as alterações tirassem a autenticidade da obra, haja vista que não se pode
reconhecer apenas uma época nesta construção. Diante do olhar crítico do autor, o fato
de a burguesia ter assumido seu ápice não lhes dava o direito de transformar a história.
Embora em nosso entender, justamente essas mudanças, essas várias tentativas de tornála maior, ou melhor, deixaram os rastros que contam a história social e econômica de
cada tempo. Victor Hugo não sabia que, enquanto defendia uma arte escultural estática,
não permitia o fluir dinâmico da história.
A Catedral de Notre-Dame de Paris, assim como as outras igrejas desse período,
teve por fim, mais “utilidades” do que aquelas que o Abade Suger pretendia ao
“inventar” a arquitetura da luz. De mercado público à escola, estes monumentos
medievais São tais quais disse Victor Hugo: “[…]desde a origem das coisas até ao
século XV da era cristã, inclusive, a arquitetura é o grande livro da humanidade; a
expressão principal do homem nos seus diversos estados de desenvolvimento, seja
como força seja como inteligência” (Ibidem, p.226).
Concluindo nosso trabalho, percebemos que a arte tem função de embelezar e
de, como relata Platão, aproximar o homem de Deus. Percebemos o agir humano na
fabricação dos artefatos, na ciência tecnológica sendo ampliada para garantir uma
estrutura leve e segura por um lado, enquanto por outro, a vaidade humana se expõe e a
ganância rasteja por entre as sombras do fazer. Se Suger foi um excelente
administrador, foi também um político exemplar, soube como poucos, unir o útil ao
agradável. Fez mais, abriu espaço nas trevas. A burguesia mostrou sua força
construindo a arte juntamente com a igreja. Mas foi através das mãos dos artistas,
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chamados bárbaros e dos entalhadores, que concebemos na fé, a verdadeira arte. São
grupos que concorreram para uma mesma causa com objetivos diferentes. A catedral de
Notre-Dame se transformou no documento de uma sociedade e de um tempo, que
inundada com a vontade de liberdade, assinou e contribuiu para que algo realmente
grandioso fosse construído. Não importava ao povo sedento de liberdade, que as faces e
os cabelos das esculturas parecessem com os gregos, nem que o portal principal
devotasse glórias a Zeus. Suger, ao dar ímpeto à força criativa, deu ao homem do futuro
o poder de se reconhecer co-parceiro de Deus na construção dos espaços vazios vazados
de luz. Espaços que as trevas teimavam em preencher foram abertos, assim como o
caminho para o renascimento e para a razão. Notre-Dame além do grandioso espetáculo
que o homem deu-se a si mesmo, também se consagra como a arte de muitas mãos e de
muitos objetivos.
REFERÊNCIAS:
BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Tradução de Gilda de Mello e Souza. 2ª.ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, Editora da USP, 1971.
DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A arte e a sociedade, 980-1420, Lisboa:
Editorial Estampa, 1978.
ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Livraria Sá da
Costa Editora, 1972.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 15. ed. Tradução Ávaro Cabral. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogans S.A., 1993.
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NOTRE-DAME E A ARTE GÓTICA: O CONTEXTO