imprensa 16 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM REPORTAGEM ESPECIAL Na fase da globalização, diante dos desafios lançados pelo emprego de novas tecnologias, as empresas jornalísticas estão buscando o de sempre: saídas conservadoras O negócio da notícia Tânia Caliari 1. RECUPERAÇÃO OU PRELÚDIO PARA UMA GRANDE CRISE? A moça sentada à mesa de uma cafeteria olha ardentemente para o rapaz na mesa ao lado, entretido na leitura do jornal. Ele percebe o olhar, disfarça e procura se concentrar na leitura. Ela então levanta-se e caminha em sua direção. Ele, entre surpreso e perplexo, só reage quando ela começa a escrever, com o batom, seu número de telefone nas páginas do jornal. Ele então retoma o exemplar das mãos dela e o usa para fustigar a paqueradora, que sai correndo… Ao fim da exibição desse filme publicitário de um jornal da Romênia num dos auditórios do Hotel World Trade Center, em São Paulo, a abertura do 6º Congresso Brasileiro de Jornais prossegue com o comentário um tanto despeitado do presidente da Associação Mundial de Jornais (World Association Newspaper - WAN), Timothy Balding. “Imaginem se o rapaz estivesse lendo a versão on line do jornal em seu laptop... Teríamos um incidente um tanto sério…”, disse. A seguir, Balding projeta numa tela os dados do desempenho da indústria de jornais impressos no mundo, dizendo que aqueles números apurados em 2005 em 215 países refutam a revista britânica The Economist, cuja capa daquela semana, no final de agosto deste ano, indaga: “Quem matou o jornal?”. Em sua edição, a revista aponta três tendências de mercado que podem ter muita importância para o futuro da mídia impressa: a queda da circulação de jornais pagos nos grandes mercados editoriais do mundo; a migração de leitores, sobretudo os jovens, para veículos na Internet, o que desper- tou a atenção dos anunciantes; e o crescimento da onda do jornal distribuído gratuitamente. Embora reconheçam que essas mudanças estejam em curso, os representantes da WAN e da Associação Nacional de Jornais (ANJ) ali reunidos acreditam que a salvação de seus negócios está na adaptação de seus produtos para a rede mundial de computadores e na possibilidade de aumentar a circulação em mercados com baixos índices de leitura de jornais, como é o caso do Brasil. Em sua palestra, Balding demonstra que a circulação de jornais impressos cresceu nos cinco primeiros anos desta década. Os mercados que mais puxaram para cima a circulação foram os da China e da Índia, os dois países mais populosos do mundo. Nas nações onde o mercado editorial já está consolidado, como Japão, EUA e Inglaterra, as taxas de crescimento da circulação de jornais pagos foram negativas. No Brasil, no mesmo período, também houve queda. Quanto à publicidade, um dos itens essenciais para a sustentação dos jornais, ocorreu um aumento mundial do valor gasto com anúncios destinados a várias mídias. Mas, com exceção da Internet, que quase dobrou sua participação, todas as demais mídias tiveram suas fatias diminuídas no bolo das receitas com publicidade. Isso, no entanto, não alterou a posição ocupada pelos jornais impressos, que só são superados pela TV (embora, se sua participação for agregada à das revistas, supera a da própria TV). Ao exibir os dados que compõem esse quadro utilizando gráficos e tabelas, Balding celebra o que seria, segundo ele, o estancamento da queda da circulação mundial de jornais, destacando que a indústria jornalística ainda tem muito o REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 17 A força dos gratuitos Entre 2001 e 2005, a circulação total de jornais impressos cresceu quase 8%, enquanto a parte dos que são distribuídos gratuitamente aumentou bem mais, 65% total 450.000 EVOLUÇÃO DO Nº DE EXEMPLARES DISTRIBUÍDOS DE JORNAIS IMPRESSOS [2001-2005] pagos 500.000 Leitores asiáticos Japão (1º lugar) e Coréia do Sul (6º) são exceções ente os países que tem as maiores taxas de leitores entre sua populações adultas 400.000 350.000 300.000 2001 2002 2003 2004 2005 Fonte:Associação Mundial de Jornais (WAN, na sigla em inglês) Explosão na Índia e na China Os países emergentes tiveram as maiores taxas de crescimento de circulação de jornais impressos, com destaque para as duas nações mais populosas do mundo Balding (acima, no Congresso de Jornais Brasileiros): combate à idéia de que o jornal diário impresso está agonizando, como sugere a revista The Economist * dado referente ao crescimento de 2001 a 2004 Fonte:Associação Mundial de Jornais (WAN, na sigla em inglês) Fonte:Associação Mundial de Jornais (WAN, na sigla em inglês) que crescer nos mercados emergentes. No Brasil, segundo a ANJ, a recuperação da circulação de jornais começou somente em 2005, após anos consecutivos de baixa. Além disso, de 2000 até o ano passado a participação dos jornais no bolo publicitário também caiu. Como na média mundial, os jornais tiveram a segunda maior fatia do bolo, só que de maneira absurdamente desproporcional, já que a TV ficou com 59,6%. Os números mundiais e brasileiros parecem indicar uma desaceleração da crise empresarial do setor e podem ser lidos de forma otimista, como fez a WAN e a ANJ. Ou pessimista, como fez The Economist. “Ainda não há um grande número de jornais fechando as portas, mas isso é só uma questão de tempo”, diz a revista. “Ao longo das próximas décadas, metade dos jornais correntes dos países ricos vai encerrar suas atividades. Os empregos já estão desaparecendo. Segundo o Newspaper Association of America, o número de pessoas empregadas na indústria caiu em 18% entre 1990 e 2004”. 2. SEDUÇÃO PELA TECNOLOGIA E DELÍRIO NOS NEGÓCIOS dão tende a ficar aquém dos padrões exigidos dos profissionais de imprensa. O que então, apesar de limitações como essa, a imprensa na Internet tem de tão atraente, a ponto de roubar audiência e recursos do jornal impresso? Essa questão envolve o tipo de suporte e o conteúdo possível de ser reunido em cada meio. O jornal diário impresso tem limitações de tempo e espaço: suas edições são produzidas a intervalos de várias horas e estão sempre limitadas a uma quantidade restrita de páginas. Na Internet, limitações dessa natureza não existem. Os serviços jornalísticos na rede mundial tendem a ser atualizados constantemente, praticamente em tempo real. O tempo de publicação depende só da fase de elaboração e edição do material, já que não há necessidade de impressão e praticamente não há perda de tempo com a distribuição. As publicações virtuais também levam vantagem em relação ao volume de informações que podem tornar acessíveis ao público, já que o meio de armazenamento eletrônico é prati- O advento da Internet é apontado como uma das maiores causas das dificuldades vividas pelos veículos impressos. Além da migração de antigos leitores para os sites jornalísticos da rede, há uma legião de jovens que estão começando a cultivar o hábito de se informar diretamente na Internet. Esse público, consumidor de noticia e entretenimento produzidos por grandes conglomerados de mídia, começa a se envolver também com a produção de páginas particulares na rede, os blogs, cada vez mais utilizadas na elaboração do chamado jornalismo-cidadão. Trata-se de um jornalismo feito não por profissionais, mas por pessoas comuns, que registram e denunciam questões freqüentemente muito restritas ao seu universo local. Sendo uma produção amadorística, do ponto de vista da apuração e da investigação das notícias, o jornalismo-cida- 18 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM REPORTAGEM ESPECIAL Arquivo pessoal camente infinito. Se a impressão exige uma formatação mais ou menos rígida, na Internet é como se tivéssemos uma folha de papel que podemos “desenrolar” sem parar. Além disso, a Internet proporciona o recursos do hipertexto, que dá ao leitor possibilidades ainda mais amplas: é como se, com o hipertexto, as publicações adquirissem três dimensões, contra apenas duas dos textos impressos. No Brasil, as perspectivas associadas a essas novas tecnologias chegaram num momento de tremenda excitação empresarial diante das oportunidades surgidas com o processo de privatização do sistema Telebrás. “Em meados dos anos 1990, a partir do Plano Real e da chegada da Internet, as empresas jornalísticas tiveram a pretensão de investir recursos e energia em atividades que não eram sua atividade-fim, que até então era correr atrás da notícia e apresentá-la da melhor maneira possível dentro dos limites de seus suportes de rádio, jornal ou televisão”, avalia Luiz Egypto, jornalista e editor do site Observatório da Imprensa. “Com as novas tendências tecnológicas, muitas empresas, sobretudo as maiores, se aventuraram nos negócios de TV por assinatura e telefonia, aproveitando a privatização das teles. Foi como que um encanto pela tecnologia”, diz ele. Segundo Egypto, a partir de suas escolhas comerciais, as empresas do setor tiveram que enfrentar dois momentos de crise. O primeiro foi quando, após a relativa popularização da Internet no Brasil, entre 1998 e 1999, foram criados modelos de negócios “delirantes”, com salários astronômicos pagos a executivos de provedores e produtores de conteúdo. Apesar dos investimentos, o mercado anunciante não reagiu como era esperado e não houve retorno financeiro. O segundo momento da crise foi quando a Internet possibilitou que se ampliassem as fontes de informação disponíveis – veículos internacionais consagrados, agência de notícias, sites de busca, enciclopédias virtuais, blogs, sites oficiais de instituições, empresas, governos e ONGs, portais de imprensa alternativa – tudo ao alcance de um clique do mouse, para concorrer com as publicações impressas. E, nesse momento, lembra Egypto, “os jornais se limitavam a fazer uma transposição de seu conteúdo impresso para a rede, sem saber ainda como usar as ferramentas da Internet”. Esse comportamento é até natural num primeiro momento, diz ele, até porque estávamos numa etapa em que não havia ainda a conexão em banda larga, que viria mais tarde, proporcionado velocidades de acesso muito maiores. “Esse processo de se explorar os recursos da Internet está começando agora e a linguagem da rede ainda vai mudar muito”, diz Egypto. Entre as aventuras mal-sucedidas das empresas jornalísticas nos novos negócios está a das Organizações Globo, que se endividaram a partir de 1995 com os investimentos feitos em TV a cabo (com a Net), em TV por satélite (com a Sky, em parceria com Rupert Murdoch) e com a Globosat. Além disso, em julho de 1998, a Globopar, holding que agregava várias empresas do grupo, tentou entrar no ramo de telefonia celular em parceria com a Telecom Itália e o Banco Bradesco, mas recuou antes de colocar dinheiro no empreendimento, em dezembro de 1998. Outros grandes veículos também embarcaram na mesma onda. O Grupo Abril, por exemplo, fez investimentos ao se tornar o acionista majoritário da TVA (sistema de TV paga com transmissão por cabo e por microondas) e acionista da DirecTV (TV paga via satélite) e registrou uma dívida de R$ 926 milhões no balanço financeiro de 2002. O Grupo Folha também buscou diversificar sua atuação. Umas das iniciativas nesse sentido foi a criação, em 1996, do Universo On Line (UOL), provedor de Internet, em sociedade com a Abril. O UOL operou muitos anos no vermelho e teve que enfrentar forte concorrência dos norte-americanos da América On Line e dos espanhóis da Terra/Telefónica. Já o Grupo Estado tentou entrar no ramo da telefonia participando como acionista minoritário da empresa de telefonia celular BCP. Segundo um balanço sobre a crise que atingiu o setor feito em 2004 pela repórter Elvira Lobato da Folha de S. Paulo, o grupo teria tomado empréstimos de US$ 120 milhões no exterior para renovar seu parque gráfico e participar da BCP e, ao vender sua parte nessa empresa para o grupo mexicano Telmex em 2003, os acionistas teriam perdido 95% do capital investido. “Havia um cenário estratégico que quase te obrigava a tomar essas decisões, mas as projeções foram frustradas depois da desvalorização cambial, da queda da economia brasileira e do ataque terrorista de 11 de setem- Egypto, do Observatório da Imprensa: grandes empresas se aventuraram para aproveitar a privatização das teles. “Foi como que um encanto pela tecnologia” REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 19 bro”, disse o ex-diretor-superintendente do grupo Francisco Mesquita Neto a Lobato na ocasião. Entre as grandes corporações que entraram em novos negócios está um forte grupo regional, a RBS (Rede Brasil Sul de Comunicação), do Rio Grande do Sul. Segundo seu diretor Nelson Sirotsky, a RBS foi o primeiro grupo de mídia a apostar em TV a cabo (Net Sul) e em telefonia – foi acionista da telefônica CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) e da empresa de telefonia celular BCP, mas vendeu sua participação nas teles em 1998 e passou o controle da Net Sul para a Globo Cabo em 2001. Para financiar esses investimentos, o RBS lançou US$ 175 milhões em títulos de dívida no exterior. Como se vê, os compromissos das empresas com moeda estrangeira eram pesados e seus acionistas vislumbraram o caos quando da desvalorização do Real no início de 1999. 3. MILHÕES EM INVESTIMENTOS NOS PARQUES GRÁFICOS dia’’. As palavras presidenciais pareciam casar bem com o momento: as Organizações Globo estavam investindo na Infoglobo, segundo a revista Forbes Brasil, o equivalente a US$ 600 milhões, dos quais, US$ 250 milhões em empréstimos externos. À saída do evento, o presidente fez questão de afirmar aos repórteres, ansiosos por esclarecer a veracidade dos boatos sobre a desvalorização da AE Em 12 de janeiro de 1999, às vésperas da desvalorização do real, o presidente Fernando Henrique Cardoso participou da inauguração em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, do novo parque gráfico da Infoglobo, o braço de jornais impressos das Organizações Globo, projetado para imprimir mais de 1 milhão de exemplares de O Globo e Extra aos domingos. Durante a cerimônia, referindo-se a Roberto Marinho, FHC disse que empresário “é aquele que inova, que cria, que acredita, que ousa, que se joga. (...) O empresário pode ganhar ou pode perder. O que ele não pode é perder a confiança, a determinação e a ousa- 20 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM A Globo apostou no crescimento da circulação dos jornais e tomou US$ 250 milhões emprestados para investir na Infoglobo (abaixo, Fernando Henrique e Roberto Marinho, na inauguração do novo parque gráfico) moeda nacional, que ‘’o real não será desvalorizado”. No dia seguinte, ao contrário do que disse FHC, o real – cuja cotação em relação ao dólar norte-americano fora mantida na base de 1 para 1 desde 1994 – foi desvalorizado. Assim, literalmente da noite para o dia, a dívida feita pela família Marinho, parte atrelada ao dólar, aumentou consideravelmente. Como se não bastasse, os efeitos recessivos que se seguiram à desvalorização ajudaram a frustrar as metas de aumento de circulação dos jornais impressos, e nos anos seguintes, as máquinas da Infoglobo tornaram-se cada vez mais ociosas: a tiragem dominical combinadas de seus jornais passou de 960 mil exemplares em 2000 para menos de 700 mil em 2002. A queda não se limitou às Organizações Globo: entre 1995 e 2005, a circulação dominical da Folha de S. Paulo caiu de 1,4 milhão de exemplares para 386 mil e a de O Estado de S. Paulo, de 517 mil exemplares para 304 mil. O Globo não tinha sido o único jornal a aproveitar a época de bonança cambial para renovar seu parque gráfico. A partir de 1995, os jornais passaram a investir pesado na informatização de suas redações e, principalmente, na modernização de suas máquinas de impressão, nas quais, segundo a ANJ, foram gastos entre US$ 600 milhões e US$ 700 milhões. A Folha, por exemplo, inaugurou sua nova gráfica em 1995. O Estado de S. Paulo comprou maquinário novo em 1997 e novamente em 2001. Grandes jornais regionais também investiram, como o Zero Hora, em Porto Alegre, O Tempo e o Estado de Minas, em Belo Horizonte, e O Liberal, em Belém. Além do endividamento com os equipamentos, o setor, tradicionalmente dependente de insumos importados como tintas e o próprio papel imprensa, viu seu custo operacional aumentar com a alta do dólar, com a restrição de créditos e encurtamento dos prazos. O investimento na modernização das redações e dos parques gráficos correspondeu não só a uma expectativa de aumento da circulação dos jornais, mas também à oferta de serviços gráficos mais sofisticados. Aos leitores foi proposto um jornal colorido, com um ganho extraordinário na informação veiculada pela fotografia. E aos anunciantes foi oferecida uma maior alta qualidade gráfica na impressão de seus anúncios. É o que explica José Martinez, um veterano do ambiente gráfico, que há 42 anos vive o cotidiano da impressão de jornais. No parque gráfico da Infoglobo em São Paulo, no quilômetro 16 da Via Anhanguera, Município de Osasco, está em andamento a impressão do Diário de São Paulo do dia seguinte, uma quinta-feira de setembro. São 22h00. Martinez explica que os jornais têm quatro fontes de receita e que é preciso cortejar e disputar cada uma delas com os concorrentes: a venda em bancas, a venda de assinaturas, a venda de classificados e a venda de anúncios publicados em meio às notícias. “Há algum tempo os jornais acharam uma quinta fonte de renda, que começou como brinde para cativar o leitor e que agora já dá margem de lucro: são os produtos agregados. Isso come- Tania Caliari REPORTAGEM ESPECIAL Martinez, da Infoglobo paulista: impressão a cores para atrair anunciantes como o Bradesco, com o “vermelho lindo” de sua logomarca çou com o Atlas da Folha de S. Paulo, e depois vieram os dicionários, as Bíblias, os DVDs, as coleções de livro em todos os jornais”, diz. O peso de cada fonte de receita no total do faturamento varia de jornal para jornal, conforme seu público e alcance de venda. O Diário de São Paulo, por exemplo, tem como sua principal fonte de receita os classificados. A segunda são as bancas, seguida dos anúncios e das assinaturas. Martinez pondera que, em jornais como a Folha e o Estadão, a receita com assinaturas é alta, assim como a obtida com anúncios. Nesse sentido, a modernização do parque gráfico é fundamental para atender os anunciantes. “Uma máquina de jornal hoje tem que imprimir 40 páginas coloridas. A do Estadão imprime 48, a do Globo lá no Rio, 28, e aqui nós temos só 12. Quer dizer, nossas máquinas imprimem 56 páginas, 12 delas coloridas e o resto em preto e branco. Mas nos superamos, fazemos várias rodadas para ter mais cor no jornal. Ou você acha que o Bradesco vai pôr um anúncio em preto e branco? Com aquele vermelho lindo deles?” Em função dos altos investimentos e da queda da tiragem, hoje a maioria das gráficas de jornais de todo o País tem na prestação de serviços a terceiros uma importante REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 21 fonte de renda. É o caso do Diário, de cujas rotativas saem jornais como o Diário do Comércio (da Associação Comercial de São Paulo) e o Ipiranga News, jornal semanal de um bairro paulistano. É início da madrugada e nas várias portas do enorme galpão da gráfica os veículos de distribuição começam a receber os primeiros exemplares completos do Diário, que estampa entre as manchetes “Eletropaulo dá geladeira para quem desligar ‘gato’” e “Pesquisas dizem que Lula leva no 1º turno”. À essa altura está saindo também outro produto da empresa, o Valor Econômico, diário de economia lançado em 2001 numa parceria entre as Organizações Globo e a Folha da Manhã (empresa que edita a Folha de S. Paulo). A impressão do Valor é dividida pelos acionistas. Os exemplares que circulam no Rio de Janeiro e no Nordeste são impressos na Infoglobo do Rio. Os que vão para São Paulo e Sul saem da gráfica da Folha em alguns dias da semana, e às segunda e quartas-feiras são impressos nas rotativas do Diário. A edição da quinta-feira desfilava velozmente na esteira da máquina com a manchete “União perde R$ 814 milhões com a nova redução na TJLP”. O coordenador de impressão, o técnico Marcos Verde, controla o serviço das duas impressoras Newsline que, de tão grandes, parecem navios ancorados. Subindo e descendo pelos quatro “andares” das máquinas, Verde fala da impressão offset, introduzida nos jornais do País pela Folha em 1967 e que já não é a tecnologia mais moderna, embora seja a mais usada por jornais do mundo todo. Fala também de novas tecnologias que estão surgindo. Para acompanhar essas novidades, resta saber como se dará e o quanto custará o próximo salto tecnológico na indústria brasileira de jornal. 4. A SAÍDA ESTRANGEIRA PARA A CRISE DO ENDIVIDAMENTO “a indústria de radiodifusão tem de ter uma linha de financiamento. Não somos diferentes de uma fábrica de sabonetes, mas sou contra financiamento para recomposição de dívidas, pois o BNDES é um banco de fomento. O SBT não tem dívida externa”. Já o presidente da TV Record em São Paulo, Dennis Munhoz, disse que a ajuda oficial teria sentido somente se fosse para “gerar emprego, para estimular o setor e para ele se defender do capital estrangeiro”. Entre os dirigentes de jornais, parecia haver controvérsias até dentro de um mesmo grupo. Luís Frias, diretor do Grupo Folha, dizia que “a posição da empresa e do jornal é favorável à participação da mídia nos programas de financiamento do BNDES”. Na mesma época, seu pai, Octavio Frias de Oliveira, disse, numa de suas raríssimas entrevistas, concedida à AOL que com o empréstimo do BNDES “interessava ao governo a mídia de joelhos”. Além desse desencontro entre os barões, houve também a Quatro anos depois da inauguração da gráfica da Infloglobo, no Rio, o reflexo da ousadia do empresariado de mídia em investir em novos negócios e em tecnologia gráfica foi bater no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em outubro de 2003, já no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o então presidente do banco, Carlos Lessa, recebeu a visita de dirigentes das três grandes entidades que representam a indústria de comunicação no Brasil: Francisco Mesquita (O Estado de S. Paulo), presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Domingo Alzugaray (Editora Três), presidente da Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e Paulo Machado de Carvalho Neto (Rádio Jovem Pan), presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT). O assunto que levou esses e outros dirigentes de empresas de mídia ao BNDES foi o pedido de uma linha especial de crédito para o setor. O pedido foi acompanhado de um estudo feito por uma consultoria independente que diagnosticava uma grande crise financeira no setor, que em 2004 acumularia uma dívida de R$ 10 bilhões. O plano de salvamento da mídia com os recursos do BNDES, o Pró-Mídia, como ficou conhecido na época, acabou não saindo. Lessa chegou a dizer que parte da dificuldade para atender a reinvindicação vinha da falta de consenso entre os empresários sobre o pedido de crédito. De fato, entre as TVs, emissoras se posicionaram contra o refinanciamento de dívidas, medida que beneficiaria a Globo. Luiz Sandoval, presidente do Grupo Silvio Santos, disse que O Naspers, grupo de mídia sul-africano (ao lado, a sede da empresa), adquiriu 30% do capital da Editora Abril, líder do mercado nacional de revistas 22 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM REPORTAGEM ESPECIAL pressão de representantes de entidades como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que entregou ao governo uma carta aberta exigindo que os recursos do BNDES fossem liberados somente com critérios claros e mediante uma profunda discussão pública sobre a mídia no País. Mesmo sem o Pró-Mídia, em 2006 os empresários de comunicação já respiravam mais aliviados devido a um conjunto de fatores: suas dívidas em dólares ficaram mais baratas graças ao fato de o real ter se valorizado nos últimos anos, as empresas realizaram profundos cortes de pessoal e custos, a circulação de jornais melhorou, as receitas de publicidades cresceram e muitas empresas conseguiram refinanciar suas dívidas por outros meios. Foi o caso da Globo Comunicação e Participações (Globopar), que em julho de 2006 fez um comunicado ao mercado anunciando o pagamento antecipado de US$ 200 milhões de uma parcela de sua dívida (cujo montante deveria cair para US$ 650 milhões, depois de ter atingido US$ 1,9 bilhão). Mas, a explicação essencial para a redução do endividamento do setor está na venda de ações para grupos estrangeiros, operação que se tornou possível a partir da aprovação e regulamentação da Emenda Constitucional nº 36 em 2002. A emenda modificou o Artigo 222 da Constituição, que vetava a participação societária estrangeira em empresas de comunicação. Essa proibição já estava em parte anulada pela legislação que rege a TV paga e a telefonia. O Grupo Abril, por exemplo, que em 2001 afastou seus acionistas do controle empresarial e entregou a administração a executivos profissionais, encarregados de coman- dar um processo de reestruturação e a negociação da dívida da corporação, vendeu, em 2004, 13,8% de suas ações para a Capital Internacional, uma gestora norte-americana de fundos de investimentos. Em maio de 2006, essas ações foram compradas pela Naspers, empresa de comunicação da África do Sul, por US$ 177 milhões. Além disso, o grupo sul-africano – fundado em 1915 e profundamente identificado com o regime do apartheid – comprou outros US$ 86 milhões em ações e mais US$ 159 milhões em papéis lançados pela Abril. Com isso, a Naspers ficou com 30% do capital da Abril, que detém 54% do mercado brasileiro de revistas e 58% das receitas de publicidade em revistas no País. O Grupo Folha (que reúne a Empresa Folha da Manhã – que edita a Folha, o diário Agora e tem participação de 50% no Valor Econômico –, a Folha Online, o instituto de pesquisas Datafolha, a Agência Folha, o Publifolha e o UOL) fez sua captação estrangeira em diversas operações que contornaram as restrições do artigo 222 da Constituição. Primeiro, em 1997, vendeu 49% das ações da Plural Editora e Gráfica Ltda, gráfica comercial que atende a terceiros, para o grupo norte-americano Quad/Graphics, o terceiro maior do setor de impressão dos EUA. Dois anos depois, vendeu por US$ 100 milhões para a Embratel a empresa AcessoNet, criada para desenvolver a infraestrutura de acesso do UOL. Depois vendeu 45% das ações do UOL para a Portugal Telecom e em 2005 promoveu a abertura de capital do UOL na Bolsa de Valores de São Paulo, com a oferta de ações fora do Brasil a grandes investidores institucionais, como fundos de investimentos e de pensão. 5. A FOLHA, DO APOIO AO GOLPE AO PULO DO GATO NA ABERTURA missos, mas freqüentemente enfrenta problemas. “Nesse momento de cobertura eleitoral, aponto quando há desequilíbrio na cobertura. Em relação ao pluralismo, apontei recentemente que o jornal não deu espaço equilibrado para um dos lados da discussão sobre cotas para negros nas universidades...”, diz. Em sua coluna de 17 de setembro, comentando pesquisa feita com assinantes da Folha pelo Datafolha, que apurou que 86% dos entrevistados estavam satisfeitos com a cobertura eleitoral do jornal, Beraba disse que, na sua avaliação “o jornal tem dificuldades para manter o noticiário equilibrado e o mais comum é ser mais investigativo e crítico em relação a Lula e ao PT do que a Alckmin e ao PSDB”. Avaliando a representatividade da pesquisa, Beraba destacou o universo pesquisado e o perfil dos leitores consultados. “Não foram ouvidos os leitores do interior de São Paulo, 31% dos assinantes, nem do resto do Brasil, 21% (os leitores de banca representam apenas cerca de 10% dos leitores da Folha). O resultado final representa, portanto, a opinião de no máximo 48% dos leitores”. Dos 339 assinantes ouvidos, 72% tinham nível superior (28% tinham até o 2º grau), 70% ganhavam até 20 salários mínimos (30% ganhavam mais do que isso) e 53% tinham O jornalista Marcelo Beraba é o oitavo da dinastia dos ombudsman da Folha de S. Paulo, o jornal pioneiro no País na adoção dessa figura, uma espécie de ouvidor. Além de receber, encaminhar e comentar as críticas dos leitores, o ombudsman faz uma crítica interna diária do jornal e publica suas observações principais em sua coluna dominical. No final de setembro, Beraba conversa por telefone com Retrato do BRASIL/Reportagem sobre a imprensa e o jornal para o qual trabalha. “A Folha de S. Paulo não se define politicamente”, diz Beraba. “Ela tem uma série de compromissos: com a democracia, com a economia de mercado, com a distribuição de renda e com a inclusão social. É um jornal crítico, faz um trabalho de observação dos governos, é apartidário e pluralista. Tem um quarto ponto ainda: é um jornal moderno, que apresenta discussões sobre temas da atualidade, da modernidade”. Todos os pontos destacados por Beraba são definidos como os princípios editoriais do Projeto Folha, uma série de seis documentos de intenções e diretrizes para o jornal, elaborados desde 1981. Segundo Beraba, o jornal procura cumprir seus compro- REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 23 Folhapress / Reprodução / Folhapress 50 anos ou mais. E 41% se declararam eleitor de Alckmin, contra 13% de Lula. “De qualquer forma o jornal é mais pluralista e equilibrado do que outros”, conclui Beraba. Uma das críticas recorrentes ao desempenho dos jornais – e no caso da Folha não é diferente – refere-se a algum tipo de favoritismo político-partidário, sobretudo em época eleitoral. Mas, pouco é dito sobre a influência das grandes empresas ou mesmo de setores empresariais sobre o material editorial e o ponto de vista das publicações. Sobre isso, Beraba diz que a transparência é um fator fundamental nas empresas jornalísticas e que o leitor tem o direito de saber como a empresa que faz o jornal está estruturada, quem são seus sócios. “Como ombudsman eu sempre me preocupei com isso e quando a Folha tentou colocar parte de suas ações numa negociação com a Portugal Telecom, eu questionei a direção do jornal porque o fato não estava sendo divulgado, não havia clareza do que estava acontecendo. Mas a direção não respondeu. O ombudsman não tem acesso a tudo”. Segundo Beraba, falta uma melhor cobertura da mídia no Brasil. “Ainda há a idéia de que a mídia e os jornalistas não são notícia. Já nos Estados Unidos essa cobertura é forte. Não há nada que os grandes jornais façam que não seja noticiado. Assim como as redações têm repórteres de economia, política e cultura, têm alguém especializado na cobertura de mídia. E com isso fica mais fácil acompanhar os conflitos de interesses que envolvem a empresa jornalística”. Além de ter sido vanguardeira com a criação do posto de ombudsman no Brasil, a Folha se considera pioneira também na introdução de um tipo de administração empresarial num universo de empresas jornalísticas de gestão familiar. A compra da Folha pelos empresários Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho em 1962 é apontada como o início da profissionalização da administração de jornais no Brasil. Na introdução do livro A trajetória de Octavio Frias de Oliveira (Editora Mega Brasil, 2006), do jornalista Engel Paschoal, Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha, diz que seu pai, à semelhança de Roberto Marinho e Victor Civita, “ajudou a trazer uma mentalidade de empresa ao ambiente senhorial, pré-capitalista, da imprensa na época”. Até meados dos anos 1970, Frias e Caldeira se concentraram em reorganizar e fortalecer o jornal, que encontraram combalido financeiramente. A partir da fase de declínio da ditadura militar, teve início a etapa de fortalecimento editorial da Folha, até então um veículo de segunda linha Beraba (ao alto), ouvidor da Folha de S. Paulo: “o ombudsman não tem acesso a tudo”. O jornal apoiou o golpe militar de 1964 e a empresa que o edita praticamente entregou a Folha da Tarde a porta-vozes da repressão política. Mais tarde, Frias (acima, cumprimentando o general Castello Branco em maio de 1964) e Abramo (ao lado) iniciaram uma mudança editorial que fez a Folha adquirir prestígio entre as camadas intelectualizadas 24 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM REPORTAGEM ESPECIAL nesse aspecto. Foi a fase na qual se destacou Cláudio Abramo, jornalista de formação marxista, que fora diretor de redação do Estadão e assumiu a secretaria de redação da Folha em 1965. A partir daí o jornal começou a crescer em circulação e prestígio. Segundo depoimentos recolhidos no livro de Paschoal, o pulo do gato da Folha começou a ser vislumbrado pela direção do jornal em 1974, depois do crescimento da oposição nas eleições daquele ano, quando o MDB elegeu 16 dos 24 senadores. Até ali a trajetória política da Folha era de alinhamento com o regime: o jornal apoiou o golpe de 1964 e, após o AI-5, Frias e Caldeira entregaram a redação da Folha da Tarde, o jornal vespertino da empresa, para setores ligados à repressão. Abramo e Frias avaliaram que a vitória da oposição em 1974 apontava para uma mudança no regime militar. Abramo viu aí a oportunidade de uma abertura editorial do jornal e Frias percebeu que “essa ação política importante significaria prestígio e, numa mudança de cenário, significaria uma ampliação de mercado para a Folha em cima da prática de um novo tipo de jornalismo, que apostasse na redemocratização”. O passo seguinte foi apoiar e ajudar a promover a campanha das Diretas-Já em 1984. Ironicamente, o jornal que inaugurou a administração profissional na imprensa brasileira foi assumido pelos filhos de Frias. Otávio Frias Filho, assumiu a direção da redação da Folha em 1984, quando implantou o Manual de Redação para impor formalmente um tipo de texto impessoal e descritivo aos jornalistas. Luis Frias começou se empenhando em buscar classificados para o jornal que praticamente não existiam. Faturando o prestígio das Diretas-Já e da abertura política, em 1986 a Folha finalmente assumiu a liderança do mercado paulista e nacional, batendo o Estadão. 6. O GRUPO ESTADO EM BUSCA DE SEU FUTURO anos. Ele foi o responsável pela criação do Jornal da Tarde em 1966, vespertino marcado por inovações formais que marcaram o jornalismo brasileiro. Além da mudança de comando administrativo, as reformas nas empresas do Grupo Estado – Estadão, Jornal da Tarde, Rádio Eldorado e Agência Estado – também resultaram numa reorganização das atividades propriamente jornalísticas e em corte de pessoal na redação. Apesar dessa redução da equipe, a imagem da redação do Estadão, no sexto andar do edifício, ainda causa impacto: num imenso salão, iluminado por lâmpadas fluorescentes, cerca de 300 pessoas trabalham em “baias”, lidando com seus terminais ou falando ao telefone. Numa segunda-feira do final de setembro, a redação trabalha em relativo silêncio, a tal ponto que o editor-chefe mantém aberta a porta de seu “aquário”, a salinha de vidro onde ficam os chefes. Roberto Gazzi não parece tenso no meio do expediente, mesmo depois de acender um cigarro. Ele tenta explicar sua nova função no jornal, de chefe-adjunto: além de seu trabalho de coordenar a edição e o fechamento do jornal como editor-executivo, ganhou funções administrativas para “gerenciar” a redação. Trabalha com oito jornalistas que o auxiliam a tocar a edição. Diante de um papel com o esboço das páginas do jornal que circulará no dia seguinte sobre sua mesa, Gazzi fala sobre a atual fase do Estadão. “Estamos olhando para o futuro e o nosso norte é ser uma grande empresa de informação seja em que meio for. Mas a informação impressa, o papel, é ainda o principal motor da empresa. Somos um dos líderes da imprensa escrita, somos tidos como um veículo de muita credibilidade. Então, o movimento que vivemos hoje é de À beira da marginal do rio Tietê, no bairro do Limão, na Zona Norte paulistana, se destaca o pesado edifício do jornal O Estado de São Paulo, ali localizado desde os anos 1970. Nessa época o Estadão era o líder inconteste dos jornais brasileiros. Pouco mais de duas décadas depois, o jornal está em 4º lugar no ranking de circulação nacional, mantém sua linha conservadora assumida, sofreu o caixote da maré de desvalorização do real e passa agora por uma drástica mudança administrativa e operacional. Diante da crise de endividamento do final da década passada, a família Mesquita, à frente do jornal desde 1921, foi afastada dos cargos executivos e a administração do dia-adia foi entregue a gerentes e executivos profissionais. Na direção editorial do jornal, porém, ficou Ruy Mesquita, sobrinho-neto do fundador do jornal, hoje com mais de 70 Tania Caliari Gazzi, do Estadão: aposta em temas específicos e esforço para resgatar a reportagem. O jornal dos Mesquita se reorganiza para tentar fazer frente aos desafios da Internet REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 25 26 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 27 Tania Caliari A redação do Estadão: salão amplo, iluminado por lâmpadas fluorescentes. Apesar dos cortes, cerca de 300 pessoas trabalham para produzir o jornal que hoje é o 4º no ranking nacional adequar as empresas do grupo ao que achamos o que será o futuro. O problema é que ninguém sabe com clareza como será essa futuro, vivemos um momento único da imprensa diária, com muitas interrogações, e todas as empresas jornalísticas estão buscando o seu caminho”. Gazzi diz que as demandas atuais sobre um jornal são contraditórias: há quem diga que não agüenta textos longos, outros reclamam das notinhas, dos textos picados. Tem quem reclame da quantidade de informação do jornal e quem diz que falta material... Uns dizem que a cobertura é superficial, outros gostariam que as abordagens fossem mais ligeiras... “O que nos parece claro é que temos que cada vez mais apostar em alguns assuntos e cobri-los bem, contar histórias, boas histórias. Estamos nesse esforço de resgatar a reportagem no jornal”. Segundo Gazzi, a chamada hardnews – termo em inglês que define os acontecimentos relativos sobretudo à política e à economia – vai ser consumido cada vez na Internet, quase em tempo real, minuto a minuto. O jornal impresso não terá mais a função de noticiar o acontecido e sim de tratar alguns dos temas de forma mais aprofundada. Nesse sentido, Gazzi diz que a direção da empresa decidiu unificar as redações dos jornais do grupo com a do portal da Internet no mesmo espaço físico, para que trabalhem 7. A NOTÍCIA-COMMODITY E O JORNAL CUSTOMIZADO No futuro próximo vislumbrado pelo Estadão, o jornal praticamente deixará de informar o ocorrido no dia anterior e se dedicará a analisar, investigar e contextualizar as ocorrências selecionadas pelos seus editores. O registro dos fatos, a ser consumido por quem quiser na internet, está 28 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM coordenadamente. “Agora estamos fazendo novos movimentos para acelerar a integração. Nesse instante estamos trabalhando na montagem de três ‘mesões’ de comando integrado, onde vão ficar as chefias de redação do Estado, do portal e do Jornal da Tarde”. Nesses “mesões”, os veículos vão ser representados pelo diretor de informação, os editores chefes de primeira página, os chefes de produção, de fotografia, de arte, o chefe de edição. O portal vai dar o tratamento inicial à informação e funcionar como informante dos demais veículos. Em meio a essas mudanças foi abolido o cargo de redator, função que havia sobrevivido à chegada do computador na redação, mas que agora a empresa avaliou não ser mais necessário. O redator era o responsável pelo acabamento dos textos, que depois eram enviados para o revisor, outro cargo que acabou na redação do Estado. “Os repórteres têm que ser formados para terem texto final, fazerem título e olho, e a revisão o computador faz”, diz Gazzi. Segundo Gazzi não é fácil achar a medida certa nesse processo. “Temos que ter a estrutura básica para buscar e tratar a hardnews, que é um dos pilares do jornal, mas estamos tentando fortalecer, inclusive financeiramente, a parte que faz um trabalho mais aprofundado, que poder fazer a diferença”. São 15h50 quando chega à mesa de Gazzi a edição do Caderno 2 (a seção cultural do Estadão) do dia seguinte, que estampa: “Punk made in Brasil”. “Fechamos esse caderno na redação às 14h30. Cultura é a parte do jornal menos dependente do que acontece no dia. O último caderno, o mais quente de política, fecha às 20h30”. sendo visto cada vez mais como matéria prima para a produção de textos analíticos que impulsionarão a venda do novo jornal. O grosso da produção do factual, feita por repórteres de agências de notícia, será vendido em pacotes de serviços para milhares de veículos para que a análise ou a investigação de um jornalista lhe agregue valor. Assim a notícia ficará cada vez mais parecida com um produto como a soja: será produzida com alta tecnologia e baixo REPORTAGEM ESPECIAL custo por empresas altamente especializadas, vendida e distribuída num mercado global por um preço padrão, e se destinará a compor produtos de valor agregado para o consumo final (rações ou jornais). Outra analogia possível que se pode aplicar ao trabalho jornalístico na economia de mercado é a da linha de montagem industrial, onde o trabalhador produz sob condições muito estritas, impostas pela empresa, e é alienado do fruto de seu trabalho. A jornalista Maria Urruzola, presente no Colóquio Latino Americano de Observadores de Imprensa, realizado em São Paulo em meados de setembro, chamou a atenção para o fato de que os jornalistas trabalham sob o mito da urgência, situação que de fato existe devido ao limite de tempo em que o jornal tem para ser feito. Mas, disse ela, o principal fator que determina a urgência é o grande número de pautas e assuntos que cada um tem de tratar. “Mas essas são as condições criadas pela indústria jornalística, que cria e impõe esse ritmo de urgência. Somos produtores de uma indústria que corresponde a parte importante do PIB mundial, trabalhamos como os operários do filme do Chaplin. E achamos que somos intelectuais!”, diz. Assim como em outros setores, no jornalismo esse modelo de produção alienante também está se radicalizando. Depois da terceirização da mão-de-obra da indústria e dos serviços, e da exportação de plantas de produção e empregos para países onde os salários e os custos trabalhistas são mais baixos, essas práticas chegaram ao jornalismo. É verdade que a legião de jornalistas free-lancer, que trabalham e recebem por empreitada sem vínculos empregatícios, já representa há tempos a mão-de-obra terceirizada. Mas a novidade é que empresas jornalísticas dos países capitalistas centrais passaram a utilizar a força de trabalho de jornalistas em países da periferia. Em 2004 a agência de notícias britânica Reuters, uma das maiores do mundo, contratou jornalistas na Índia para reescreverem materiais de divulgação de empresas para abastecer seu serviço de notícias econômicas. Com isso, a agência pode substituir jornalistas norte-americanos ou ingleses, que trabalham em seus países de origem, por profissionais que ganham até um terço do salário deles. Segundo artigo publicado no site Follow the Media, essa atitude é apresentada pelas empresas como uma estratégia semelhante à pregada pelo Estadão: permitir que seus jornalistas mais especializados tenham mais tempo para investigar e analisar os temas considerados mais importantes. Como lembrou o jornalista e professor Carlos Castilho no Observatório da Imprensa, esse passo só foi possível graças às tecnologias que “transformaram as distâncias numa abstração, como mostra a maciça transferência do telemarketing norte-americano para centrais instaladas, também na Índia, hoje cada vez mais um quintal tecnológico do Primeiro Mundo”. Tradicionalmente os ganhos das inovações tecnológicas vêm sendo apropriados pela indústria. “Eu me lembro de quando os computadores chegaram na redação. PensávaAE Reprodução Hawilla, dono de empresa de marketing esportivo e de retransmissoras da Globo: no ano passado, o empresário lançou a Rede Bom Dia, jornais “customizados” que circulam em cidades do interior paulista REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 29 mos que com as facilidades da informática iríamos ter mais tempo para trabalhar as informações, elaborar o texto... e não foi isso que aconteceu. Os jornais aproveitaram o ganho de tempo para antecipar o fechamento e favorecer impressão e a distribuição”, diz Luiz Egypto, que trabalhava no Estadão quando a redação foi informatizada. Um exemplo bem acabado de como a tecnologia, a compra de serviços das agências e a produção concentrada de material está sendo usada na expansão da indústria jornalística é a experiência da Rede Bom Dia de jornais, que atua no interior paulista. Em 2005, o empresário J. Hawilla, dono da empresa de marketing esportivo Traffic e da TV TEM – conjunto de cinco afiliadas da Globo – lançou quatro jornais nas cidades paulistas de Jundiaí, São José do Rio Preto, Sorocaba e Bauru, locais cobertos por suas emissoras de TV. O projeto editorial ficou a cargo do jornalista Matinas Suzuki Jr, que trabalhou na Folha de S. Paulo, no UOL, na Abril e, por fim, no portal iG. Segundo Marcos de Sá Nogueira, diretor comercial da rede, que apresentou o Bom Dia no Congresso Brasileiro de Jornais, o projeto foi lançado depois que uma pesquisa realizada no interior mostrou que havia espaço para um novo tipo de jornal. O novo modelo, inspirado no norte-americano USA Today, tem uma estrutura extremamente enxuta e uma política comercial agressiva. A impressão e a distribuição são terceirizadas. “Trata-se de um mesmo jornal customizado [adaptado para os clientes] para cada cidade”, diz Sá Nogueira. A maior parte do material publicado é produzida pela Central Editorial Compartilhada (CEC), uma redação central localizada em Jundiaí. As outras praças têm uma pequena redação e escritório comercial, mas é a CEC que se encarrega de padronizar o processo editorial e comercial dos quatro jornais, que têm uma produção de 80 a 90 páginas de conteúdo por dia. Uma das principais estratégias de venda é a oferta de produtos agregados. O material exibido na palestra de Sá Nogueira comemora: “Com apenas 9 meses de vida, o Bom Dia vendeu em bancas mais de 55.000 DVDs de shows diversos; mais de 15.000 livros infantis; mais de 20.000 ingressos para jogos de futebol, entre outras promoções!”. O lançamento mexeu com os jornais locais. A tal ponto que a entidade que representa e organiza a mídia impressa no interior do Estado, a Associação Paulista de Jornais (APJ), que reúne 15 veículos, reagiu e não aceitou os novos jornais como filiados. Lançou em resposta o “Anúncio Paulista”, um plano para vender espaço publicitário de seus associados em bloco aos grandes anunciantes nacionais, oferecendo um mercado de 15 cidades sede e circulação em 321 Municípios do Estado. Apesar de bater de frente e concorrer comercialmente com jornais tradicionais que até então eram as únicas vozes em suas praças, o surgimento da Rede Bom Dia não significa exatamente a desconcentração da mídia no interior. Pelo contrário, o fato de os jornais pertencerem ao dono de emissoras de TV repetidoras da Globo evidencia o aprofundamento da concentração no País. 9. O NOVO JORNAL “POPULAR”, VELHA SAÍDA CONSERVADORA No Brasil, o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro são os Estados com maior consumo proporcional de jornais. Nesses mercados despontaram nos últimos anos alguns dos jornais “populares”, como o Diário Gaúcho, em Porto Alegre, o Extra, o Expresso da Informação e o Meia Hora, no Rio. Em São Paulo, lutam para se consolidarem o Agora e o Diário de São Paulo. Em Belo Horizonte, surgiu o Super Notícias; no Distrito Federal, o Aqui-DF, e por aí vai. São jornais que custam de R$ 0,25 a R$ 1,50, voltados para leitores cuja faixa de consumo é classificada como C e D. Em palestra no Congresso Brasileiro de Jornais, o consultor Julio Sampaio diz que além do preço de capa, mais baixo do que os R$ 2,50 dos chamados jornais premium ou quality newspapers, o que define um jornal “popular” é o conteúdo editorial voltado para serviços, dicas de economia popular, abordagem superficial e breve de assuntos de política e economia e forte ênfase na cobertura de assuntos policiais e esportivos, além da publicação de colunas de fofocas de celebridades e TV. Sampaio faz questão de dizer que o perfil desses jornais mudou e não tem nada a ver com, por exemplo, com o paulista Notícias Populares, editado até 1992 pela empresa Folha da Manhã. Para ilustrar sua comparação entre os “populares” de ontem e de hoje, Sampaio projetou num telão manchetes clássicas do NP, de sentido dúbio, provocativo e debochado, que faziam com que aquele produto não Se o modelo do jornal customizado é novo no Brasil, o vínculo empresarial dos jornais de J. Hawilla com suas emissoras de televisão não é um negócio original. Em 2001, o projeto “Os donos da mídia” apontou que, com raras exceções, como os gigantes Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, grande parte dos jornais impressos brasileiros já pertencia a empresas de comunicação encabeçadas por redes nacionais de TV. Segundo esse mapeamento, as seis redes nacionais de TV aberta do país (Globo, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e CNT) aglutinavam um total de 667 veículos de comunicação incluindo, além de 294 emissoras de TV em VHF e quinze em UHF, 308 emissoras de rádio e 50 jornais diários. Certamente esse quadro piorou com o assédio dos grandes grupos sobre a empresas locais – como a recente compra do jornal A Notícia que circula no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, pela RBS –, com iniciativas como a de Hawilla e com o lançamento de vários jornais voltados para as faixas da população de menor poder aquisitivo, chamados “populares”. Pelos números divulgados pela ANJ, foram o lançamento e o crescimento das vendas de jornais desse tipo que causaram o pequeno aumento da circulação de jornais no País nos últimos dois anos. 30 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM Reprodução REPORTAGEM ESPECIAL Reprodução Os jornais “populares” antigos (ao lado) e os novos (abaixo). Para consultor Julio Sampaio, os atuais jornais desse tipo são “uma “forma de fazer o bem ganhando dinheiro” Os segredos da eterna JUVENTUDE Aos 39 anos, Paula Burlamaqui está ANO 6 – Nº 2.028 – PORTO ALEGRE, QUINTA-FEIRA, 19/10/2006 – UM JORNAL DA RBS com tudo em cima PÁG. 17 ARTE DE ALEXANDRE OLIVEIRA SOBRE FOTO DE NANA MORAES/DIVULGAÇÃO R$ 0,75 SINDIMOTO DIZ QUE SÃO CINCO ASSALTOS POR DIA Corrida perigosa para os motoboys TUDOFÁCIL Usuários no prejuízo Motociclistas reclamam da falta de segurança em ruas escuras PÁGS. 28 E 29 LUIZ ARMANDO VAZ ECONOMIA POPULAR Filas são o anúncio de Olímpico LOTADO pudesse, segundo ele, entrar nas casas de família, sendo consumido na rua por um público majoritariamente masculino. “O novo jornal popular é um jornal digno”, diz Sampaio, que vê a conquista da audiência mais pobre, tradicionalmente afastada do hábito de leitura diária de jornais, como uma forma de inclusão social pela disseminação de informações. “Esses jornais são uma forma de fazer o bem ganhando dinheiro”, diz Sampaio. As manchetes de primeira página de alguns dos “populares” distribuídos no Congresso permitem avaliar a opinião de Sampaio: “Ciúme leva ex-marido a castrar rival”, “Briga por vaga de carro faz vigia cortar mulher em 4 pedaços”, “Corpo na baixada pode ser de menina seqüestrada”, “Fla e Flu vão a campo hoje à noite pelo Brasileirão”. Além disso, há a chamada para a promoção do dia, uma revista em quadrinho de super-heróis grátis e três destaques sobre artistas e personagens de novelas. A julgar pela amostra, mais do que prover o público com informação, ao oferecer crime e escândalos o novo jornal “popular” parece que continua se valendo da máxima do barão dos jornais “populares” norte-americanos do início do século 20, William Hearst. Segundo ele, não se perde dinheiro quando se subestima a inteligência do leitor. Os números de Sampaio apontam: se em 2000, 70% da circulação dos diários no Brasil era de responsabilidade dos jornais premium e 30% dos jornais “populares”, em 2006 essa relação passou a 57% e 43%, respectivamente. O crescimento dos “populares”, no en- Novas regras para a venda de PÃO Cambistas, acima, aproveitamse da grande procura por ingressos PÁGS. 10 E 11 ARTE DE ALEXANDRE OLIVEIRA SOBRE FOTOS DE LUIZ ARMANDO VAZ MARCELO OLIVEIRA Escadas rolantes não funcionam PÁG. 7 VIAMÃO Morador terá desconto no pedágio PÁG. 7 Cacetinho deve ser vendido só a peso MARCELO OLIVEIRA PÁG. 6 Torres: policiais presos por extorsão PÁG. 30 tanto, só aprofundou a concentração do setor, já que os novos títulos são produtos das empresas que editam os grandes e tradicionais jornais diários. O Diário Gaúcho (7º no ranking nacional de circulação, segundo o Instituto Verificador de Circulação) é do grupo RBS, que edita o maior jornal do Rio Grande do Sul, o Zero Hora (5º). O Extra (3º) e o Expresso (29º) são da Infoglobo, que já edita O Globo (2º), o Diário de São Paulo (16º) e o Valor Econômico. O Agora (12º) é do Grupo Folhas, da Folha de S. Paulo (1º) e o Jornal da Tarde (18º), do Grupo Estado, de O Estado de S. Paulo (4º). O Super Notícias (8º) é da mesma editora de O Tempo, que nem está entre os 35 diários de maior circulação no País. O fenômeno dos jornais “populares” pode ser visto como nada mais do que um empacotamento diferente do material produzido pelas mesmas empresas responsáveis pelos jornais mais tradicionais. O Expresso, por exemplo, tem o requinte de ter em suas páginas as colunas intituladas “Deu no Jornal Nacional” e “Deu na Rádio Globo”, com pílulas de notícias divulgadas por esses veículos na noite anterior. Como diz Sampaio, o veículo premium e o “popular” são produtos complementares de uma mesma empresa que alcança assim uma ampla cobertura do mercado leitor e de anunciantes. REPORTAGEM | Retrato do BRASIL | 31