qwertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwerty uiopasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopasd fghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklzx cvbnmqwertyuiopasdfghjklzxcvbnmq wertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwertyui opasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfg hjklzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklzxc vbnmqwertyuiopasdfghjklzxcvbnmq wertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwertyui UNIVERSIDADE ESTADUAL DE opasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfg MATO GROSSO DO SUL hjklzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklzxc Revista de Estudos Literários da UEMS vbnmqwertyuiopasdfghjklzxcvbnmq Ano 5, Número 8 wertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwertyui opasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfg hjklzxcvbnmrtyuiopasdfghjklzxcvbn mqwertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwert yuiopasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopas dfghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklz xcvbnmqwertyuiopasdfghjklzxcvbnm qwertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwerty Campo Grande, julho de 2014 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 5, v.1, NÚMERO 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Campo Grande REITOR Fábio Edir dos Santos Costa VICE-REITORA Eleuza Ferreira Lima GERENTE DA UUCG Kátia Figueira COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS Eliane Maria de Oliveira Giacon COORDENADOR DA REVELL Danglei de Castro Pereira EDITORA DO NÚMERO Lucilene Soares da Costa GRUPOS DE PESQUISA “Literatura, História e Sociedade” “Historiografia, Cânone e Ensino” - HCEns COMITÊ CIENTÍFICO - REVELL Ana Aparecida Arguelho (UEMS) André Rezende Benatti (UEMS) Antonio Rodrigues Belon (UFMS) Benjamin Abdala Junior (USP) Cilaine Alves (USP) Danglei de Castro Pereira (UEMS) Daniel Abrão (UEMS) Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP) Fábio Dobashi Furuzato (UEMS) Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL) Eliane Maria de Oliveira Giacon (UEMS) Gisela M. Lima. B. Penha (UFAC) Gregório Foganholi Dantas (UFGD) José Batista Sales (UFMS) Lucilene Soares da Costa (UEMS) Lucilo Antonio Rodrigues (UEMS) Milena Magalhães (UNIR) Paulo Custódio de Oliveira (UFGD) Rauer Rodrigues (UFMS) Ravel Giordano Paz (UEMS) Regina Zilberman (UFRGS) Rogério da Silva Pereira (UFGD) Rosana Nunes Alencar (UNIR) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Sandra A. F. Lopes Ferrari (IFRO) Susanna Busato (UNESP) Susylene Dias Araújo (UEMS) DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO Lucilene Soares da Costa TÉCNICO RESPONSÁVEL Joab Cavalcante da Silva O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos autores. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS, ano 5, n. 8. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: UEMS, 2014. Semestral ISSN: 2179-4456 1. Literatura. 2. Teoria literária. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 5 DOSSIÊ ................................................................................................................................................ 7 Profano, maldito e marginal: o conto fantástico na literatura brasileira ........................................................ 8 Tal mestre, qual aprendiz? - (des)constituição da experiência em Selva trágica ........................................ 23 Nove noites: a escuridão do outro................................................................................................................ 37 El árbol: um ensaio sobre a mulher e suas relações em família .................................................................. 46 A voz na peça radiofônica de Artaud e sua linguagem subversiva marginal .............................................. 55 O poeta e a cidade - da Paris de Charles Baudelaire ao Rio de Ramon Mello ............................................ 65 SEÇÃO DE TEMA LIVRE ............................................................................................................... 74 O narrador em Jorge Luis Borges: interfaces do leitor ................................................................................ 75 Duas mulheres sob o olhar de Hitchcock: Os filmes Notorious (1946) e Marnie (1964) e as mulheres perigosas de uma época ............................................................................................................................... 86 A fuga da miséria e da fome no romance Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos ............................. 104 APRESENTAÇÃO A REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - dá a conhecer ao público acadêmico e geral seu 8º número, o 5º temático. Ligada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e aos grupos de pesquisa “Historiografia, Cânone e Ensino” e “Literatura, História e Sociedade”, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a publicação resulta de pesquisas e discussões decorrentes das atividades desses grupos no ano corrente. A fim de aprofundar o debate com pesquisadores de outras instituições, esta 8ª edição traz colaborações de autores de várias IES do Brasil, o que contribui para a consolidação da REVELL como espaço plural de reflexão dentro da área de Letras. A partir do Dossiê Temático “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação”, a edição procura discutir de forma ampla o conceito de marginalidade na literatura e cultura brasileira. Abrindo o Dossiê e o número, Karla Niels em “Profano, maldito e marginal: o conto fantástico na literatura brasileira” se propõe a esclarecer como e por que grande parte da produção fantástica do Brasil ficou esquecida até a segunda metade do século XX, quando do surgimento das primeiras antologias de contos fantásticos que resgataram essa vertente marginalizada da literatura brasileira. Na sequência, Elanir França Carvalho em “Tal mestre, qual aprendiz?” revisita o romance Selva trágica, de Hernâni Donato, abordando as apropriações que a obra utiliza de elementos da epopeia grega e da literatura medieval e à luz das conceituações de W. Benjamim em “O narrador”. “Nove noites: a escuridão do outro”, de autoria de Victor Leandro da Silva, analisa o romance de Bernardo de Carvalho sob o aporte da antropologia e da literatura comparada, estabelecendo um diálogo entre o romance brasileiro e Coração das trevas, de Joseph Conrad a partir da representação do delírio dos respectivos protagonistas. A temática da loucura reaparece em “El árbol: um ensaio sobre a mulher e suas relações em família”, de Cristina Aparecida Rossi, que se debruça sobre o conto “El árbol”, da chilena Maria Luisa Bombal (1910-1980), que problematiza a condição da mulher em uma sociedade de contornos nitidamente patriarcais. Submetida às ordens do pai e do marido, o estigma da loucura é imposto à protagonista a fim de mantê-la alienada de si. Danielli Rodrigues, no artigo “A voz na peça radiofônica de Artaud e sua linguagem subversiva marginal”, discute a experiência limite empreendida pelo escritor francês Antonin Artaud, que buscava configurar uma linguagem genuinamente subversiva marginal a partir do trabalho com a voz e, consequentemente, com a palavra. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Encerrando o Dossiê, Vagner Rangel, em “O Poeta e a cidade: da Paris de Charles de Baudelaire ao Rio de Ramon Mello”, se lança à leitura de alguns poemas dos autores, procurando captar a inter-relação entre o sujeito e a cidade, a partir de alguns conceitos do filósofo Giorgio Agamben. Três artigos integram a Seção de Temas Livres. No primeiro, Genival Mota, em “O narrador em Jorge Luis Borges: interfaces do leitor”, analisa a construção da metalinguagem no conto “Biblioteca de Babel” a partir do diálogo entre as instâncias do narrador e do narratário, que explicita a importância da leitura no texto borgiano. Em seguida, Adriana Falqueto Lemos, em “Duas mulheres sob o olhar de Hitchcock: os filmes Notorius (1946) e Marnie (1964) e as mulheres perigosas de uma época”, realiza uma leitura de duas figuras femininas de dois longa metragens do diretor Alfred Hitchcock. O ensaio faz um questionamento sobre os modos como homens e mulheres se relacionavam em sociedade e sobre os comportamentos femininos esperados. Finalizando a Seção de Temas Livres e o presente número, Gracineia dos Santos Araújo e Marta Mendes Araújo, em “A Fuga da miséria e da fome no romance Vidas secas, de Graciliano Ramos”, revisitam o clássico romance de 30, analisando-o a partir de leituras notáveis da obra como a de Antonio Candido e Alfredo Bosi, como também de novas e insuspeitadas fontes teóricas como a do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. A todos os leitores da REVELL, votos de uma excelente leitura. Comissão editorial. 6 DOSSIÊ “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” PROFANO, MALDITO E MARGINAL: O CONTO FANTÁSTICO NA LITERATURA BRASILEIRA PROFANE, DARN AND MARGINAL: THE SHORT STORIES FANTASTIC BRAZILIAN LITERATURE Karla Menezes Lopes Niels (PG - UERJ) RESUMO: Os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, têm sido considerados como aqueles que inauguram uma produção de cunho fantástico no Brasil que se deu à margem do cânone. A publicação dos contos, em 1855, ensejou uma série de narrativas que foram igualmente consideradas como fantásticas e que na impossibilidade de se circunscrever em determinada escola ou corrente literária foram deixadas de lado. É o caso, por exemplo, d’ A trindade maldita: contos de botequim, de Franklin Távora e dos contos “As ruínas da Glória”, “A guarida de pedra” e “As bruxas”, de Fagundes Varela – obras que esteticamente se afastaram do projeto nacionalista iniciado pelo Romantismo e levado a cabo pelas escolas posteriores. O artigo então se propõe a esclarecer como e por que grande parte da produção fantástica do Brasil ficou esquecida até a segunda metade do século XX, quando do surgimento das primeiras antologias de contos fantásticos que resgataram essa vertente marginalizada da literatura brasileira. Palavras-chave: fantástico, crítica, historiografia, literatura marginal. ABSTRACT: The short stories of the Noite na taverna, of the Álvares de Azevedo, have been considered as those who inaugurate a production of fantastic nature in Brazil that gave the margins of the canon. The publication of short stories, in 1855, gave rise to a number of narratives were also considered as fantastic and unable to be limited in certain school or literary trend were ignored. This is the case, for example, of the A trindade maldita: contos de botequim, Franklin Távora and he short stories “As ruínas da Glória”, “A guarida de pedra” and “As bruxas”, Fagundes Varela works that are aesthetically away from the nationalist project initiated by Romanticism and carried out by the later schools. The article then proposes to clarify how and why much of the fantastic production of Brazil was forgotten until the second half of the twentieth century, when the emergence of the first anthologies of fantastic short stories that have rescued the marginalized aspect of Brazilian literature. Keywords: fantastic, criticism, historiography, marginal literature. Uma literatura marginal1 O jovem Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi sempre considerado como poeta genial. Sua prosa, no entanto, jamais gozou do mesmo espaço e prestígio dispensados a sua poesia. 1 O termo marginal surge na década de 1970 para designar uma literatura que afronta o cânone por romper com qualquer modelo estético e cultural vigente. Muitas vezes o termo é usado simplesmente para qualificar o trabalho de artistas que, contrários às regras de produção e circulação da literatura, partem para uma produção e venda independente. No cenário contemporâneo o termo tem sido utilizado para qualificar a literatura produzida por autores das periferias das grandes cidades brasileiras e que abordam em seu discurso o universo do crime, da violência, das drogas e da miséria urbana. Aqui, usamos o adjetivo marginal com um outro sentido, mais amplo, o de literatura que se faz à margem do cânone. Assim retroagimos o uso do termo ao século XIX e ao início do século XX. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Hoje, no entanto, sua prosa tem sido objeto de muitos artigos, ensaios, teses, dissertações e apreciações críticas diversas – um aumento considerável de estudos acadêmicos acerca dessa parte de sua produção literária. Grande parte desses estudos consideram os contos de Noite na taverna como aqueles que inauguram uma produção de cunho fantástico em nossas letras. Por exemplo, Maria Cristina Batalha, em artigo de outubro de 2010, ao traçar um percurso de uma possível literatura fantástica brasileira, aponta o escritor em questão como o primeiro e mais representativo autor desta vertente literária nacional ainda pouco estudada pelos especialistas. Para a autora, os contos de Noite na taverna e o drama Macário inaugurariam, na literatura brasileira, uma espécie de “estética da incerteza”. (BATALHA, 2010, p. 4). Homero Pires (1931) e Jefferson Donizete de Oliveira (2010) também vislumbraram nos contos do jovem paulista o ponto de partida da produção do gênero fantástico no Brasil. Nesse sentido, apontam uma série de emulações de Noite na taverna que, ao nosso ver, serviriam como indicativo da produção do gênero fantástico nas letras brasileiras ainda no século XIX e início do XX. Dentre elas estão A confissão de um moribundo (1856), de Lindorf Ernesto F. França; Cartasromance (1859), de Américo Brasílio de Campos; Conto Misterioso (1860?), de Antonio L. Ramos Nogueira; Poverino (1861), de Américo Lobo; Ruínas da glória (1861), A guarida de pedra, crenças populares (1861), Esther (1861), Inak (1861), de Fagundes Varela; Conto à mesa de chá (1861), de Antônio Manuel dos Reis; Uma noite no cemitério (1861), de João Antônio de Barros Júnior; Gennesco: vida acadêmica (1862), de Teodomiro Alves Pereira; A Trindade Maldita: contos no botequim (1862), de Teodomiro Alves Pereira; Uma noite de vigília, romancete (1863), de Félix Xavier da Cunha; Dalmo, ou Mistérios da noite (1863), de Luís Ramos Figueira; D. Juan ou A prole de Saturno (1869), de Castro Alves; Favos e Travos (1872), de Rozendo Moniz Barreto; Meia-noite (1873), de João de Brito; Um esqueleto (1875), de Machado de Assis; D’ A Noite na taverna (1889) de Medeiros e Albuquerque; O esqueleto (1890), de Vítor Leal (pseudônimo de Pardal Mallet e Olavo Bilac); O medo (1890), de Vivaldo Coaracy; Meia-noite no cabaré (1901), de Leandro Barros; Misérias, contos fantásticos (1910), de Altamirando Requião; Misérias (1931), de Amadeu Nogueira e Os donos da caveira (1931), de Ernani Fornani. A maior parte destas obras, assim como os contos de Noite na taverna, durante muitos anos estiveram (e alguns ainda estão) à margem do cânone. Nossas historiografias omitem essa parte de nossa produção literária. Até mesmo os contos fantásticos de Machado de Assis permaneceram obscurecidos até a década de 1970 quando Raimundo Magalhães Júnior reuniu alguns desses contos – “A vida eterna” (1870), “Óculos de Pedro Antão” (1874), “O Anjo Rafael” (1869), “A decadência de dois grandes homens” (1873), “Um esqueleto” (1875), “O capitão Mendonça” 9 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 (1870), “A mulher pálida” (1881), “A chinela turca” (1882), “Sem olhos” (1876), “O Imortal” (1882) e “A segunda vida” (1884) – para publicação do título Contos Fantásticos de Machado de Assis chamando assim atenção para essa vertente ficcional também praticada pelo Bruxo do Cosme Velho. Pouco se comentou sobre essa vertente literária machadiana até vir a lume a antologia de Magalhães Jr, talvez porque, como argumenta o próprio antologista, sua produção de cunho fantástico esteve diluída em diferentes títulos de sua obra publicada, sem contar os contos que só contaram com publicação em jornal como expõem Ricardo Gomes da Silva em estudo posterior (Cf. SILVA, 2012). Além da omissão, ou desconhecimento, por parte da crítica dos contos fantásticos machadianos até aquele momento, houve ainda um certo juízo negativo a sua verve fantástica que teria condicionado o esquecimento destes contos. O antologista no prefácio do volume chama atenção para o juízo nefasto de Sílvio Romero aos contos fantásticos de Machado: [...] num livro injusto e tendencioso, o seu Machado de Assis (Estudo Comparativo de Literatura Brasileira), Sílvio Romero anotara, na página 133, que o grande escritor "hoje tem veleidades de pensador, de filósofo, e entende que deve polvilhar os seus artefatos de humour e, às vezes, de cenas com pretensão ao horrível". A isto acrescentava: "Quanto ao humour, prefiro o de Dickens e de Heine, que era natural e incoercível; quanto ao horrível, agrada-me muito mais o de Edgar Allan Poe, que era realmente um ébrio e louco de gênio, ou o de Baudelaire, que era de fato um devasso e epilético." Achava Sílvio Romero incrível que um pacato diretor de Secretaria de Estado, no caso o Ministério da Viação e Obras Públicas, condecorado com a Ordem da Rosa, pudesse dar-se ao luxo de abordar o que chamou de horrível, como se um verdadeiro escritor não fosse capaz de dissociar sua vida cotidiana das criações de seu espírito. E disso ninguém foi mais capaz do que Machado de Assis, o cidadão perfeito, o burocrata exemplar, que era, no entanto, um escritor profundo, audacioso, irónico e, não raro, satírico e corrosivo. Foi, também, um cultor do fantástico. Às vezes, de um fantástico mitigado, que não ia além dos sonhos que temos não só adormecidos como ainda acordados; outras vezes, de um macabro ostensivo e despejado. Excepcionalmente, ia buscar na realidade, mais arrojada do que a ficção, os temas de alguns desses contos macabros, como é o caso de Um Esqueleto (JÚNIOR, 1973, p. 8). O crítico Romero é tão negativo ao juízo que faz ao introdutor do gênero no Brasil, Álvares de Azevedo, quanto o foi com autor de Memórias de Brás Cubas. Reconhece que o jovem paulista arrancou-nos de vez da influência portuguesa por buscar sua inspiração e influência em outros países europeus (Cf. ROMERO, 1888, p. 903). Ele, que foi um produto da academia brasileira, como afirma o historiador, influiu, mais tarde, em Portugal, fazendo o fluxo inverso: Há nele páginas de um objetivismo completo: “Pedro Ivo”, “Teresa”, “Cantiga de sertanejo”, “Na minha terra”, “Crepúsculo do mar”, “Crepúsculo nas montanhas”, e muitas outras. Em “Glória moribunda”, “Cadáver de poeta”, “Sombra de D. Juan”, “Boêmias”, “Poema do Frade”, e no Conde Lopo, recentemente publicado, há muito desse satanismo, desse desprazer da vida em que veio acabar o romantismo. Há apenas mais talento do que em Baudelaire; porque, de envolta com os desalentas e extravagâncias do gênero, em Azevedo aparecem manifestações de lirismo que não possuía tão eloquentes o poeta francês. Essa parte da obra do poeta brasileiro. Neste sentido um dos precursores do desmantelo do romantismo 10 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 veio a influir muito em Portugal, chegando até a Guerra Junqueiro, cuja “Morte de D. João” tem muita coisa que possui a sua inspiração primitiva em poesias do autor da “Noite na taverna” (ROMERO, 1888, p. 918). Mas quando se trata de sua prosa, que como dissemos abriga características do gênero fantástico, não vê um Álvares de Azevedo tão genial quanto o poeta porque, como afirma, “o drama, o romance e o conto exigem muita observação, muita análise, muita tensão no espírito, a par de muita imaginação criadora. Não creio que aquelas qualidades predominassem no espírito do poeta” (Ibid., p. 923). A produção em prosa, para Silvio Romero, devia ser o resultado da observação e do registro documental de realidades naturais e sociais. A imaginação criadora não cabia ao drama, ao conto e ao romance, por isso, o historiador não se estende em seus comentários sobre as extravagantes histórias de Noite na taverna, opta apenas por afirmar que Azevedo não gozava das qualidades necessárias à boa produção em prosa. Os juízos negativos de Sílvio Romero aos contos fantásticos de Machado de Assis e Álvares de Azevedo servem-nos de exemplo de como a crítica da época encarava esse tipo de literatura. Juízo que contaminaria outros historiadores como José Veríssimo (1900) que, se não julgaram mal a produção fantásticas desses literatos, se abstiveram de quaisquer julgamentos. Na impossibilidade de circunscrever tais narrativas em determinada escola ou corrente literária, a historiografia e a crítica especializada puseram-nas de lado, como se não fossem dignas de sua apreciação crítica. Outro exemplo desse movimento seria o dos contos fantásticos de Fagundes Varela que quase desapareceram. “As ruínas da Glória”, cuja publicação data de 1861, teve sua republicação em livro somente cem anos depois, em 1961, quando selecionado por Edgar Cavalheiro e Mário de Silva Brito para compor o segundo volume do Panorama do conto Brasileiro, O conto romântico. “As bruxas”, de autoria também de Varela só foi republicado em 2011, quando resgatado por Maria Cristina Batalha para compor a antologia Fantástico Brasileiro: Contos Esquecidos. E que dizer ainda, d’A Trindade Maldita, de Franklin Távora que contou apenas com a edição folhetinesca que saiu pelo Correio Paulistano de 9 a 12 de abril de 1862, não gozando de publicação posterior em livro. Obras de dois autores canônicos, mas cuja produção não erudita foi completamente deixada à margem do cânone da literatura brasileira pela historiografia e pela crítica especializada de outrora. Nas histórias da literatura Fagundes Varela é reverenciado pela sua poética e Franklin Távora por sua obra naturalista. Suas investidas no fantástico foram obscurecidas. Mas não seria por muito tempo. O momento pós-modernista seria crucial para o redirecionamento dos estudos sobre a produção de cunho fantástico no Brasil, momento que coincide com o amadurecimento da crítica 11 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 brasileira. O pós-modernismo é caracteristicamente aberto, plural e dado à transgressão do real (ou melhor das múltiplas realidades), fator que teria propiciado o resgate de uma literatura de questionamento do real como é o fantástico. Além do mais, é justamente entre as décadas de 1950 e 1970 que surgem os primeiros estudos de peso sobre o fantástico: Le conte fantastique (1951), de Castex; o prólogo a Anthologie du fantastique (1958), “De la féerie à la sience-fiction” e A couer du fantastique (1965), de Callois, além de L’art et La Littérature fantastiques, de Louis Vax (1960) cuja edição traduzida para o português seria publicada e editada pela editora Arcádia de Lisboa, em 1972, que impulsionariam os estudos. No Brasil, os estudos acerca do gênero são inflamados pelo lançamento de As estruturas narrativas (1969) da tradução de Indroduction à la littérature fantastique (1970), de Tzvetan Todorov – Introdução à literatura fantástica (1975) – pela Editora Perspectiva. A despeito das lacunas e dos problemas conceituais da obra do estruturalista, seus estudos acerca do gênero propiciaram uma grande efusão de outros estudos sobre o fantástico no Brasil. Foi graças principalmente a Todorov que a academia voltou-se para essa vertente que aqui andava um tanto esquecida. Após essas décadas começam a surgir inúmeros estudos acadêmicos sobre o fantástico em nossas letras; artigos, ensaios, dissertações e teses que paulatinamente redirecionaram a visão sobre essa produção narrativa a priori renegada. A partir dos anos 50 do século XX empreendeu-se, portanto, um grande esforço no resgate dessa parte da literatura brasileira que se manteve oculta por tanto tempo, literalmente à margem do cânone. Tal esforço resultou, além do resgate dos contos fantásticos de Machado de Assis por Magalhães Jr, na década de 1970, na reunião de contos de natureza fantástica de autores de diversos momentos literários em coletâneas ou antologias como O conto fantástico, oitavo volume da coleção Panorama do conto brasileiro, de 1959, organizada por Jerônimo Monteiro; Maravilhas do conto fantástico – antologia de contos estrangeiros, que contém três narrativas brasileiras –, de 1960, organizado por Fernando Correia da Silva e José Paulo Paes; Obras primas do conto fantástico – antologia de contos estrangeiros que traz cinco narrativas nacionais –, de 1961, organizado por Jacob Penteado; Histórias fantásticas – antologia que abriga contos de Lima Barreto, Moacyr Scliar, Murilo Rubião e Modesto Carone junto a nomes como Edgar Allan Poe e Franz Kafka –, de 1996, organizado por José Paulo Paes; Páginas de Sombras: contos fantásticos brasileiros, de 2003, organizado por Bráulio Tavares; Os melhores contos fantásticos – antologia de contos nacionais e estrangeiros (alguns até então inéditos em português) que traz seis contos de brasileiros –, de 2006, organizada por Flávio Moreira da Costa e prefaciada por Flávio Carneiro; O fantástico brasileiro: contos esquecidos, de 2011, organizado por Maria Cristina Batalha. Um esforço que certa12 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 mente tem contribuído para o aumento do interesse dos pesquisadores brasileiros na literatura que explora temas sobrenaturais. É imperativo ainda ressaltar o pioneirismo de Jerônimo Monteiro ao organizar a primeira antologia de contos fantásticos brasileiros, lançada apenas oito anos após a publicação do ensaio de Castex e um ano após o prólogo de Callois na França. Ao organizar o volume Monteiro colocouse diante de uma complicada empresa pois, como comenta na introdução, deparou-se com grandes dificuldades para encontrar e ter acesso a contos de autores brasileiros que praticaram o fantástico. Diante da dificuldade encontrada na reunião dos contos que comporiam o volume, o antologista arrazoa que o que se lê desse gênero no Brasil é, senão, literatura traduzida, especialmente do inglês. Seu argumento é o de que a literatura inglesa e norte-americana forneceria aquilo que não se tem na realidade. O homem precisa dos horrores ficcionais para ajudá-lo a suportar os horrores da vida real. O imaginário humano se apodera de elementos sobrenaturais, polêmicos e destrutivos e transforma-os em ferramentas que desmantelam estes mesmos elementos, provocando instabilidade e incerteza quanto às realidades que o cercam. Para Monteiro, portanto, é interessante que numa cultura como a nossa, em que as superstições, as lendas e as crendices são tão afloradas, a produção de uma literatura de cunho fantástico tenha sido, até aquele momento tão improfícua. De acordo com a sua lógica, deveríamos gozar de uma produção de literatura fantástica ainda maior que os ingleses e os americanos, pois teríamos ainda mais material a explorar (Cf. MONTEIRO, 1959). Na verdade não é que não tivéssemos a prática do fantástico aflorado em nossas letras até então, mas que, como já comentamos aqui, a produção do gênero foi obscurecida pela crítica por não se enquadrar perfeitamente no projeto nacionalista empreendido durante o romantismo e levado a cabo pelas escolas posteriores. Seja como for, o organizador conseguiu reunir em seu livro um bom número de contos de autores brasileiros do século XIX e da primeira metade do século XX, vinte e seis ao todo; dentre eles constam contos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Afonso Arinos, Gastão Cruls, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa e Viriato Corrêa. O fantástico frente ao realismo Mesmo com o atual aumento do interesse da academia na literatura que explora o onírico e o sobrenatural, não há dúvidas de que falar em gênero fantástico numa literatura predominantemente realista como a literatura brasileira é caminhar por terreno movediço. Lucia Miguel-Pereira (1973) argumenta que somos pouco imaginativos e pouco dados a abstrações, o que explicaria a nossa predileção pelo realismo. Os poucos títulos fantásticos, de aventura, de horror ou mesmo novelas policiais seriam um sintoma, segundo a historiadora, de uma literatura marcada pelo desejo de 13 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 trazer a realidade para dentro da ficção. Ora, a nossa literatura, como sistema (Cf. CANDIDO, 2013), surge num momento em que precisávamos nos afirmar como nação independente. Uma independência que não podia ser só política, mas também cultural. Como adolescentes mimados que se rebelam contra os ensinos dos pais, nos rebelamos contra Portugal, renegando a herança cultural herdada. O movimento de independência política durante o século XIX firmaria, portanto, o compromisso de, por meio da literatura, afirmar-se essa nova identidade brasileira e, em consequência, inventariar nosso passado cultural através da expressão de nossa “cor local”, a natureza, o índio, a sociedade. A vontade de negar a tradição lusitana em nome da criação de uma identidade própria resultou, portanto, no abandono inconsciente da tradição de uma literatura imaginativa, a que Carlos Fuentes (2000) denominou “Tradição de La Mancha”. Essa, que se inicia com Cervantes, trabalha a ficção com o fim de fundar uma realidade outra através da imaginação, da estruturação da linguagem, da ironia e da mistura de gêneros. Nós, como toda a América Latina, seguimos uma outra tradição, a de “Waterloo” – corrente realista cujas obras baseam-se sobretudo no relato da experiência e na representação de realidades. Por causa dessa tendência, durante muitos anos a literatura que não era pautada na realidade foi, de certo modo, marginalizada pela crítica e pela historiografia brasileira, o que fez parecer que não tivemos a prática de outro tipo de literatura que não a realista. Por isso, segundo Pereira (1973), temas fantásticos só teriam se refletido em um único título – Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. O que não é uma verdade, haja vista que após os contos do jovem paulista tivemos um bom fluxo ininterrupto de contos fantásticos, alguns de altíssima qualidade como “As ruínas da Glória” (1861), de Fagundes Varela, “O imortal” (1882), de Machado de Assis, “A casa sem sono” (1923), de Coelho Neto, “Os olhos que comiam carne” (1932), de Humberto de Campos, “Moça, flor, Telefone” (1951) de Carlos Drummond de Andrade, “A escuridão” (1963), de André Carneiro, “O edifício” (1965) de Murilo Rubião, “As formigas” (1977) de Lygia Fagundes Telles, “Alguém dorme nas cavernas” (1994) e “Um certo tom de preto” (1994), de Rubens Figueiredo, “O voo da madrugada” (2003), de Sérgio Santana; só para citar alguns. A despeito dessa produção contínua, o gênero parece ter sido sufocado, ainda no século XIX, pelo sucesso editorial dos primeiros romances de José de Alencar e pelo realismo emergente. O fracasso, ou insucesso, de uma ficção fantástica nacional se deu principalmente por causa da concorrência esmagadora do projeto alencariano iniciado com a publicação dos primeiros romances do autor, Cinco minutos, A viuvinha e O Guarani, somente dois anos após o surgimento da prosa do jovem Azevedo (Cf. GABRIELLI, 2004). O modelo proposto pelos romances de Alencar influenciaria até mesmo os movimentos 14 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 literários posteriores ao romantismo – o realismo e o naturalismo –, bem como a crítica e a historiografia que ganhavam forma naquele século, obstruindo qualquer possibilidade do surgimento de um fantástico brasileiro profícuo. As duas vertentes da ficção alencariana – a regional e a urbana – deram origem a duas linhas hegemônicas da nossa ficção – a regionalista e a psicológica. O caminho que nos conduziria à tradição de um fantástico à brasileira foi obstruído, portanto, pelo sucesso do modelo de uma mais pautada na realidade, conforme o promovido por Alencar e seus contemporâneos, conduzindo nossa literatura a uma tradição mais realista que a dos demais países latinoamericanos, em especial nos séculos XX e XXI. Em meio a tão forte predomínio de uma ficção em que se buscava a reduplicação de realidades naturais ou sociais, a estética proposta pelo jovem Azevedo enfrentou, desde o início, o descrédito da crítica, que interpretou tal projeto ora como manifestação de seu espírito melancólico e de suas afecções, ora como afetação byroniana descompromissada com a literatura pátria. Assim, a via apontada pela obra de Álvares de Azevedo teve reduzidas suas possibilidades de frutificar entre nós, primeiro por sua prematura morte, segundo por causa da postura adotada pela crítica, que “escusou-se de uma análise que situasse os procedimentos do escritor no âmbito de um fantástico que teve em Hoffmann, Poe e Gautier alguns de seus mais destacados praticantes do período romântico” (GABRIELLI, 2004, p. 80). Permitindo que a análise da sua prosa recaísse sobre a mítica personalidade do jovem paulista, mas que não impediu que Noite na taverna servisse de inspiração para seus predecessores. Em nosso tempo, no entanto, a literatura que explora temas não realistas ganha cada vez mais espaço entre a crítica especializada, bem como entre o público leitor. Quando se trata do fantástico, não é incomum encontrar nas prateleiras das livrarias antologias de contos fantásticos brasileiros, além das que mencionamos, algumas resgatando contos de autores consagrados que foram esquecidos justamente por causa de sua temática fantástica, outras regatando contos de autores menores. Quando comparamos, porém, a nossa produção de cunho fantástico à da literatura latinoamericana, em especial a do século XX, vemos que a nossa literatura “fantástica” ainda engatinha. Segundo o antologista Bráulio Tavares (2003) apesar de nossos autores terem reinventado os temas do fantástico, a prática desse tipo de literatura não foi suficiente para a consolidação do gênero no Brasil, haja vista que ainda continuamos desenvolvendo tentativas de domesticar o realismo. Ainda que pouco difundida e estudada nos séculos precedentes, é possível falar em uma tradição não-realista oculta em nossa literatura, que fora marginalizada justamente por causa da supervalorização das narrativas de “cor local”. Autores que não são reconhecidos por uma produção maciça do gênero fantástico, como os que comentamos ao longo do artigo ensaiaram suas narrativas 15 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 de cunho fantástico. Outros como Murilo Rubião e J. J. Veiga consagraram-se com uma literatura que se distancia, programaticamente, de um modo ou de outro, do real; o que não consolida o gênero entre nós, mas permite vislumbrar o seu florescimento e crescimento contínuo e progressivo a despeito do obscurecimento do gênero neonato no XIX. O gênero fantástico Para entendermos como o gênero fantástico tem se manifestado no Brasil é imperativo entender como o termo fantástico foi aplicado durante o século XIX e início do século XX. Qualquer narrativa que não fosse realista poderia ser considerada como fantástica. Além do mais, o termo fantástico foi muitas vezes usado como sinônimo de excêntrico, mirabolante e exagerado (cf. VOLOBUEF, 1999, p. 199) principalmente quando aplicado pela fortuna crítica de Álvares de Azevedo. Antes dos estudos de Todorov sobre o gênero, na década de 70, “a crítica designava como fantástica toda narrativa de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a realidade que nos cerca” (BATALHA, 2011, p.13), caracterização pois bastante abrangente, que englobava desde o onírico ao sobrenatural, e assim o que não fosse realista era enquadrado na condição de fantástico. Por isso, ter sido o termo em alguns autores, tomado como equivalente a fantasia e vice e versa. O termo foi usado, e ainda é, para designar as mais diferentes manifestações literárias, às vezes de gêneros não afiliados entre si, dificuldade que remonta às “diferentes concepções filosóficas do final do século XVIII” (ibid., p. 12) que atribuíram ao termo diversos sentidos. Sem contar os problemas relacionados à tradução do termo de uma para outra língua europeia. Cristina Batalha (2011) argumenta que os românticos franceses ao se apropriarem do termo tentaram desvinculá-lo do gótico, gênero que dera à luz ao fantástico. O termo “fantástico”, para os franceses, portanto, estaria associado, sobretudo, ao alemão E.T.A. Hoffmann, embora não tenha sido ele o criador do gênero. Cabe lembrar que os franceses foram bastante influenciados por Hoffmann em sua produção fantástica atrelada ao romantismo. Posteriormente a grande influência entre os franceses teria sido Edgar Allan Poe. Ora, autores que também exerceram influência entre nós! É perceptível, por exemplo, traços de E.T.A. Hoffmann em contos de Fagundes Varela, Machado de Assis e Lygia Fagundes Telles, assim como é possível encontrar traços de Edgar Allan Poe em Álvares de Azevedo e Franklin Távora. Além do mais, se Machado traduziu O corvo, de Poe, não teria ele tido contato com os Contos do grotesco e arabesco (1840), senão no original na tradução para o francês por Baudelaire? 16 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Fortemente influenciados por Edgar Allan Poe, os escritores franceses do gênero do último quarto do século XIX produziram narrativas cuja necessidade de resolver o fantástico e a evocação psicológica do elemento fantástico por meio da sugestão são bastante evidentes – características que os distanciam do fantástico clássico como considera Todorov. Essa racionalização do evento sobrenatural que configura o fantástico também parece ocorrer em grande parte dos contos nacionais considerados como de cunho fantástico, principalmente se considerarmos aqueles do mesmo período. Em “Solfieire”, de Álvares de Azevedo, a questão da sobrevida é explicitada por uma explicação científica, uma catalepsia. Em “As ruínas da Glória”, de Fagundes Varela se permite uma leitura pela via da alucinação; o narrador estaria louco e toda a sobrenaturalidade por ele presenciada seria fruto de sua fértil imaginação Em “Um esqueleto” de Machado de Assis, o elemento macabro se desfaz quando o narrador diz que toda a história era só um passatempo. Tudo isso mostra-nos que mesmo que quiséssemos renegar a Lusitânia e todo o alémmar, deixamo-nos influenciar fortemente pela França tanto na literatura como na política, na moda e nos costumes. A França foi a nossa via de acesso mais rápida às ideias do velho mundo. No que diz respeito à literatura, é importante ressaltar que muitos romances ingleses e alemães chegavam através de tradução francesa. Ora, até mesmo o feuilleton que tanto sucesso fizera entre nós durante o período romântico é uma criação francesa (cf. MEYER, 1996)! Assim é de se esperar que nossos escritores tivessem tido contato com a literatura de cunho fantástico que se produzia na Europa e que se deixassem influenciar por ela. Ainda é importante destacar que o introdutor do gênero fantástico no Brasil, Álvares de Azevedo, sofreu alguma influência de Lord Byron, e também de E. T. A. Hoffmann, como é não só atestado pela sua fortuna crítica, como também pelas cartas deixadas pelo jovem paulista. O próprio Lord Byron teria sido influenciado pela mestre da literatura gótica inglesa Anne Ward Radcliffe. O alemão, como é sabido, bebeu do romantismo gótico inglês e o superou dando origem à literatura fantástica que chegaria até nós via traduções francesas. Se sofrera alguma influência de Poe não nos é permitido afirmar. Não há indícios em sua fortuna crítica de sua influência. Os contos do americano só circulariam entre nós após a morte do paulista, mas as relações que são possíveis de traçar entre os contos de um e outro (cf. NIELS, 2012) nos possibilitam entrever que Álvares de Azevedo e outros literatos, como Fagundes Varela e Machado de Assis estavam a par da literatura de seu tempo; aqui, nas américas e no além-mar. Uma literatura maldita e profana O gênero fantástico entre nós parece ter surgido como uma literatura de entretenimento 17 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 maldita e profana. Maldita, por explorar temas sobrenaturais e tabus. Profana, por macular o sagrado altar do nacionalismo. Literatura de entretenimento é aquela que compõe uma cultura de massa. Um tipo de literatura que para satisfazer o gosto do público que a consome se contrapõe à literatura canônica porque se abstêm de usar recursos de expressão que, por demasiado originais ou pessoais, se afastem do gosto médio, frustrando-lhes as expectativas. Daí que ela se limite, na maioria dos casos, ao uso de recursos de efeito já consagrados, mesmo arriscando-se a banalizá-los pela repetição. [...] Se preocupa em poupar-lhes [aos leitores] no ato de consumo, maiores esforços de sensibilidade, inteligência e até mesmo atenção e memória. Para tanto reduz a representação artística dos valores a termos facilmente compreensíveis ao comum das pessoas e os conflitos entre esses valores à dinâmica de um faz-de-conta que não chega a perturbar a cômoda digestão do pitoresco, do sentimental, do emocionante ou do divertido. (PAES, 1996, p. 26) Talvez, a princípio, não seja esse o caso da literatura fantástica, haja vista que é uma literatura que trabalha com recursos de efeitos bastante engendrados. Basta lembrarmo-nos dos contos “A queda da casa de Usher”, de Edgar Alan Poe, “Aurélia” de Gerard de Nerval ou “O homem de areia” de E. T. A. Hoffman, que são considerados ícones do gênero, para verificar que o fantástico trabalha com recursos estéticos que visam desafiar o leitor. O horror ficcional oriundo desse tipo literatura, no entanto, apresenta-nos uma resolução momentânea, que ameniza, por um curto tempo, nossos horrores mais profundos. Podemos experimentar o perigo sem que a fonte do medo represente um risco real; podemos sentir um frio na barriga, ou um arrepio na espinha sem nos arriscar. Colocamo-nos na pele do personagem, compartilhamos as mais diversas sensações e, quando diante da ambiguidade dos acontecimentos, hesitamos junto a ele. A mesma sensação sentida pelo leitor que acompanha as desventuras da mocinha do romance sentimental, é sentida leitor que treme diante da possibilidade de um homem metamorfosear-se em lobo e se auto exilar em uma caverna, como acontece ao narrador de “Alguém dorme nas cavernas” (1994), de Rubens Figueiredo; Ou pela possibilidade de ter seu corpo ocupado por outra pessoa como acontece a narradora de “Um certo tom de preto” (1994), também de Figueiredo. Montaigne fala do medo como um sentimento que pode nos dar “asas” ou nos imobilizar, e, “principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que ele nos tirara contra o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação mais intensa” (MONTAIGNE,1991, p. 40). Ora, não nos sentimos aterrorizados pela simples ideia de presenciar um evento sobrenatural? Se o personagem é imobilizado ou impulsionado pelo medo, o leitor pode e, é até mesmo condicionado pelas estratégias narrativas a compartilhamos isso com o personagem. A experiência advinda da experimentação dessas sensações impulsiona o processo ca18 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 tártico no ato de leitura. O conceito aristotélico de catarse, como é sabido, está relacionado à produção e à expurgação das emoções através da ficção, o que é de suma importância para a consideração dos efeitos de recepção. Para o ficcionista americano Stephen King o medo na literatura poderia ser visto como um fator de educação sentimental em que o leitor entende a sua vulnerabilidade através da vulnerabilidade do personagem (KING, 1978, 2007). A experimentação dessas sensações talvez tenha propiciado que os contos de Álvares de Azevedo que não teriam sido bem recebidos pela crítica dos séculos XIX e XX (Cf. NIELS, 2013a), tivessem grande receptividade entre o público leitor, especialmente, entre os mais jovens. O que é corroborado por afirmações de José Veríssimo na virada do século. Segundo o historiador os “meninos de colégio [...] saturavam-se dos horrores de Bertram e Solfieiri”, mesmo que se tratasse de uma prosa “que certamente não merece o apreço e sobretudo a estima, que [esses jovens] lhe deram.” (VERÍSSIMO,1977, p. 26-32). Ao comentar a recepção de Noite na taverna, o mesmo Veríssimo dirá que na década de 1870, apenas quinze anos após a publicação do segundo volume das Obras Completas (1855), “fizeram-se várias edições separadas [de Noite na taverna], muito mais do que da Lira dos vinte anos” (VERÍSSIMO, 1977, p. 26-32). Para o historiador a obra teria influenciado, mesmo que indiretamente a literatura nacional, pois os horrores relatados pelos boêmios da taverna entretiveram os estudantes “dados à poesia e às letras” (Ibid., p. 26-32) antes do surgimento da escola naturalista. O que ele não podia saber é que o tipo de literatura proposta por Azevedo frutificaria à margem do cânone mesmo após a escola naturalista, proporcionando o mesmo prazer estético peculiar aos leitores brasileiros dos séculos XX e XXI que os contos da taverna proporcionaram aos jovens do XIX. Convém lembrar ainda que os temas relacionados com a morte e com a sobrevida têm gerado uma infinidade de narrativas que produzem esse efeito receptivo muito particular: o medo. Se a literatura de cunho fantástico é capaz de provocar medo e sentimentos semelhantes em seus leitores, naquela que se dedica a temas relacionados à morte e à sobrevida, o efeito estético é ainda mais intenso. Talvez por isso tão explorado nas letras brasileiras. Até o modernista Carlos Drummond de Andrade trabalhou com maestria a temática da vida após a morte em “Flor, moça e telefone” (1951). O mistério envolto em tudo que se refere à morte eleva a imaginação humana à sua máxima capacidade e permite ao leitor vivenciar a morte sem ter que carregar-lhe o fado. Fator que permite vislumbrar a literatura fantástica no Brasil não só como uma literatura esteticamente distante do projeto nacionalista, mas sobretudo, como uma literatura de entretenimento. Dois fatores que conjugados contribuíram para a marginalização das narrativas de cunho fantástico em relação ao cânone. 19 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Ao invés de discutir as belezas e as mazelas do país em construção – o Brasil –, o fantástico preocupou-se com as inquietações da mente humana e da vida após a morte. Seus temas surgem do embate entre o racional e irracional, entre o conhecido e o desconhecido, entre o real e o irreal. Para Ana Luiza Camarani a exploração de tais temas na literatura fantástica tem razão de ser no romantismo – momento literário em que surge o gênero –, pois as narrativas que procuraram explorar temas relativos à percepção humana, e ao inconsciente, como as narrativas de caráter sobrenatural, seriam somente um desdobramento “do pensamento romântico da totalidade do ser, da unidade do eu”, ou seja, do individualismo romântico que se firmou entre os autores da 2ª geração romântica, a geração de Álvares de Azevedo e Fagundes Varela. (CAMARANI, 1992, p. 54). Infelizmente o individualismo romântico segundo os críticos da época cabia à poesia não à prosa. A prosa devia ser documental. Por isso, o obscurecimento da prosa de cunho fantástico dos dois ultrarromânticos e de toda produção fantástica subsequente. Segundo os estudiosos contemporâneos do gênero, como David Roas (2014), o trabalho com tais temas ainda tem razão de ser na contemporaneidade porque esse tipo de narrativa se configura como um lugar para relativizar a maneira como nossos sentidos percebem o mundo. O fantástico dialoga, portanto, com uma questão que vai além do literário e por isso torna-se atemporal: há ou não um universo sobrenatural paralelo ao mundo que concebemos como real? Considerações finais É justamente por manter-se entre o real e o imaginário que a literatura de cunho fantástico brasileira foi, de certa forma, marginalizada pela crítica especializada de outrora. Por isso, nunca chegaram até nós os contos fantásticos produzidos pelos autores menores do XIX, e nem mesmo pelos canônicos. Esses têm sido resgatado aos poucos por pesquisadores como José Paulo Paes e Maria Cristina Batalha. Nos séculos posteriores houve aqueles que em meio às obras realistas, naturalistas e mesmo de vanguarda, ensaiaram seus contos fantásticos, mas cujas narrativas nem sempre foram consideradas como narrativas pertencentes ao gênero, ficaram perdidas em meio a textos de outras vertentes literárias. Seja como for, o que percebemos é que nossos autores têm conseguido produzir um tipo de narrativa fantástica que, independente do enquadramento teórico, sabe manterse na tênue linha do real e do imaginário, do crido e do não crido. Nossos autores, em especial os contemporâneos, têm reinventado os temas do fantástico, às vezes explorando áreas específicas dele – o mítico, a fantasmagoria, o eixo do mal, o inconsciente, a existência de uma ordem oculta, a ciência gótica. Assim produzem um fluxo contínuo de 20 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 literatura de cunho fantástico que segue seu curso à margem do caudaloso cânone literário brasileiro construindo assim um “fantástico à brasileira” (Cf. NIELS, 2013b) profícuo e singular. Referências BATALHA, Maria Cristina. “A literatura fantástica seu lugar na série literária brasileira”. In: Actas del Coloquio Internacional Fanperu. Centro de Estudos Antonio Correjo Polar, Lima, 2010. __________. (org). O fantástico brasileiro; contos esquecidos. Rio de Janeiro: Ed. Caetés, 2011. CAMARANI, Ana Luiza. “O conto fantástico no romantismo”. In: MACHADO, Guacira Marcondes (org). O Romantismo francês, seus antecedentes, vínculos e repercussões. Araraquara: UNESP, 1992. FUENTES, Carlos. “O milagre de Machado de Assis”. Folha de São Paulo (Caderno +mais!), 01 out. 2000. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/inde01102000.htm, acesso em: 08/07/2013. GABRIELLI, Murilo Garcia. A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na literatura brasileira. UERJ, 2004 [tese de doutorado] JÚNIOR, Raimundo Magalhães. “Prefácio” In: ASSIS, Machado de: Contos fantásticos. Seleção e apresentação de Raimundo Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Bloch, 1973. KING, Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. KING, Stephen. Sombras da noite. Tradução de Luiz Horácio da Matta. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1978. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia das letras, 1996. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. São Paulo: Nova Cultural, 1991. MONTEIRO, Jerônimo. O conto fantástico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959. NIELS, Karla Menezes Lopes. “Medo e morte em Álvares de Azevedo, Guy de Maupassant e Edgar Allan Poe”. In: Revista Trama. Vol. 8, nº 15, 1º semestre de 2012. Cascavel: Edunioeste, 2012. ________. Noite fantástica: um percurso pelos estudos críticos e historiográficos sobre a obra Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. UERJ, 2013a. [dissertação de mestrado] ________. “Manifestações do medo numa literatura fantástica à brasileira”. In: ___ Anais do IV Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, XII Painel Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional: vertentes teóricas e ficcionais do insólito e VI Fórum de Estudos em Língua e Literatura Inglesa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013b [no prelo] OLIVEIRA, Jefferson Donizete de. Um sussurro nas trevas: uma revisão da recepção crítica e literária de Noite na Taverna de Álvares de Azevedo. USP, 2010. [dissertação de mestrado]. 21 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 PEREIRA, Lúcia Miguel. História da Literatura Brasileira - prosa de ficção de 1870 a 1920. V. 2-4. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed. / MEC, 1973. PIRES. Homero. “Influência de Álvares de Azevedo” Revista Nova, ano I, n. 3, 1931. ROAS, David. A ameaça do fantástico: Aproximações teóricas. Trad. de Julián Fuks. São Paulo: Editora UNESP, 2014. ROMERO, Silvio. História da Literatura brasileira, tomo II. Rio de Janeiro: Garnier, 1888 SILVA, Ricardo Gomes da. “Um esqueleto”, de machado de Assis e outros contos parodicamente fantásticos. UEL, 2012. [dissertação de mestrado] TAVARES, Bráulio. Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura brasileira, 2ª série. Belo Horizonte, Itatiaia, 1977 [1900]. VOLOBUEF, Karin. Frestas e Arestas: A Prosa de Ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo, Editora da Unesp, 1999. 22 TAL MESTRE, QUAL APRENDIZ? - (DES)CONSTITUIÇÃO DA EXPERIÊNCIA EM SELVA TRÁGICA1 LIKE MASTER, LIKE APPRENTICE? - THE (DES) CONSTRUCTION OF EXPERIENCE IN SELVA TRÁGICA (TRAGIC JUNGLE) Elanir França Carvalho (DCR - UFMS) RESUMO: Esta incursão por Selva Trágica (1959), romance do escritor paulista Hernâni Donato (1922 – 2012), procura deslindar alguns aspectos temáticos e formais do enredo, que prima por particular arranjo literário evocando índices e elementos da tradição literária clássica e antiga e do respectivo universo sócio-cultural, todos anteriores à forma do romance burguês. Como parte do jogo analítico, acatam-se as explícitas e implícitas indicações que transcorrem pela obra. Ressalta-se, entretanto, o caráter de deslocamento e de anacronia produzidos, bem como a impossibilidade da realização da forma e da temática evocadas, no gênero moderno. Tal procedimento na ficção de Donato deixa de ser sutil e insurge-se pleno de significação irônica. O mote do recorte parte de termos, como “épico”, “epopeia”, “gesta”, inscritos na abertura do livro, e segue por outros índices relativos a trocas de experiências e constituição da sabedoria. Com isso, aponta-se para uma leitura e interpretação da obra a partir da tomada desses indicadores. A base de fundamentação teórica é a discussão suscitada por Walter Benjamin, em seu texto acerca do narrador, em que trata de questões dessa ordem. Palavras-chave: Selva Trágica - reificação - ironia - experiência - violência. ABSTRACT: This study of Selva trágica (Tragic Jungle) (1959), a novel by the São Paulo writer Hernâni Donato (1922-2012), investigates certain thematic and formal aspects of the plot that are guided by a literary organization evoking references and elements of classic and ancient traditions and their respective social and cultural universe, that is, characteristics from before the bourgeois novel, including implicit and explicit references present in the text. It is also necessary to emphasize the displacement, anachronism and impossibility of realization of the form and theme of the novel theme in the modern genre. In Donato’s fiction this is deliberate and full of ironic meaning. The choice of words such as “epic” “epopee”, “gest” can be seen at the beginning of the book and continues with other signs related to the changes in experience and growth of knowledge. This reading will examine these elements using Walter Benjamin of the narrator as a theoretical basis. Keywords: Selva Trágica - reification - irony - experience - violence. 1. Flora selvagem – o panorama humano-social de Selva Trágica Nel mezzo del cammin di nostra vita Mi ritrovai per una selva oscura, ……………………………………… esta selva selvaggia e aspra e forte Che nel pensier rinova la paura (Dante Alighieri, La divina commedia – Inferno) O romance Selva Trágica “constitui um dos momentos mais altos da novelística de con1 Esta análise do romance, com algumas reformulações, compõe parte de capítulo da dissertação de mestrado, Do épico ao trágico – uma leitura do romance Selva Trágica, defendida em 2003. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 teúdo social no Brasil”. A declaração é do crítico Fábio Lucas. O argumento do livro ficcionaliza, articulando elementos romanescos e dados de cunho histórico, a exploração da erva-mate em região do estado de Mato Grosso do Sul, então Mato Grosso, à época. A atividade, no período focalizado, era realizada por determinada empresa detentora do monopólio da extração da matéria-prima e fabricação do produto. Embora inominada ou presentificada em todo o enredo, os caminhos geográficos, as balizas temporais e os conteúdos humano-sociais da matéria tratada desvelam a atuação da Companhia Mate-Laranjeira2. Na ficção, as condições impostas pela empresa impelem pessoas a um sistema de trabalho aviltante, equiparado ao da escravidão. A homens e mulheres são impostas condições de vida degradantes. O autor toma a atitude ética da denúncia. A propósito, em pequeno texto localizado na abertura da obra, ele declara sua posição: “Nem ataque nem defesa do acontecido nas regiões ervateiras durante os anos áureos da extração da erva. Relato da vida e do trabalho sob o ângulo dos que a suportaram mais rudemente: mineiros, changa-y, marginais, pequenos funcionários.” (DONATO, 1959, p. 07. Em itálico no original)3 E o narrador toma o ponto de vista do contingente humano explorado. A resolução do autor para expressar a “complexa conjuntura de dados históricos/literários/linguísticos/humanos” (COELHO, 2011) foi mesclar a língua portuguesa com sotaques do linguajar guarani, falado na região. A miscigenação das falas reproduz, nela mesma, o embate do contato humano-social nas regiões fronteiriças do Brasil. O expediente exigiu o acompanhamento de um glossário dos termos utilizados na obra, que segue com um rol dos verbetes e respectivas definições na parte final do romance, e na última edição, em notas de pé de página. A cidade real de Ponta Porã, fronteiriça do Brasil com o Paraguai, é o local onde homens são aliciados por funcionários da empresa, encarregados dos “contratos” e de encaminhá-los às “minas ervateiras”, conglomerados de selvas nativas da planta. O funcionário nessa função chama-se aconchavador, e é nas casas de prostituição (bailanta) que desempenha a tarefa. Neste recinto, os homens são levados a gastar e a beber o quanto podem, e ao amanhecer, endividados e bêbados, o dono da casa ameaça chamar a polícia. Nesse momento, entra o aconchavador e aponta como melhor possibilidade à prisão a assinatura de contrato de trabalho nos ervais – para aqueles que ainda restam em pé, pois muitos, desmaiados, são tombados na carreta e levados sem maiores explica2 A Companhia Mate-Laranjeira deteve o monopólio de extração da erva mate na região, num período que se denominou de “Ciclo da Erva-Mate em Mato Grosso do Sul”. Comandada por Thomaz Laranjeira, a Companhia obteve a concessão para monopolizar a extração de erva-mate em 1882 e iniciou a exploração no Brasil em 1883, atuando por mais de seis décadas e marcando profundamente a história do estado. 3 Deste ponto em diante, todas as notas do romance Selva trágica reportam à edição de 1959, sendo indicado apenas o número da referida página. 24 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 ções. A partir daí estão, indefinidamente, presos à Companhia e com a respectiva dívida transferida a ela. A dívida muito dificilmente pode ser quitada, enquanto tiverem braços fortes para a ceifa da erva. Além disso, nos limites do erval, a prática é a do “armazém do patrão”, esquema que os enreda ainda mais, num sistema de débito impagável, forma de segurá-los no local. No contexto ficcional, surge um binômio antinômico: trabalho escravo e sistema capitalista – para falar nos termos em que Alfredo Bosi discute a questão, no período colonial brasileiro (2003) – dois princípios organizadores da produção nos ervais. O trabalho escravo extemporâneo ao da escravidão institucionalizada, do período colonial, assume gravidade mais extremada. Em Selva Trágica, os trabalhadores não são de direito escravos, sendo-os de fato. A denúncia que a ficção encerra é contundente: nossa época, na qual já não existe mais o amparo “legal” para a prática escravista, oferece, entretanto, outros mecanismos que possibilitam sua existência. Na representação, desvelam-se os meandros de má-fé e de aliciamento da Companhia e de seus funcionários. A situação agrava-se, sobretudo, pela conivência da sociedade (cidadãos e governantes) que faz, por assim dizer, “vista grossa” para este tipo de prática, que, infelizmente, não se limita apenas ao universo ficcional. Ou a um passado remoto. Esse tipo de sujeição ganha agudeza se considerado o fato de que, uma vez nos domínios dos ervais, o sistema se realiza às claras. A desumanização, de que o trabalhador escravo seria o exemplo mais acabado, não mais precisa de mediações como a feita pelo aconchavador no ambiente da cidade, em que, através da ilusão de uma dívida adquirida pelos homens, simulam-se regras contratuais, ainda que forçadas, e somente mostra-se o engodo quando já estão aprisionados. Internamente, o espaço do erval se regula com regras e leis próprias que permitem, inclusive, a compra e a venda de pessoas (no caso mais explícito, o das mulheres) sem qualquer tipo de simulacro. A elaboração narrativa engendra um ambiente opressor e esgotante, de ar rarefeito, onde homens e mulheres perambulam extenuados e sob constante tensão. Nesse aspecto, o espaço ganha importância na composição do enredo. O meio sufocante faz com que a imagem do inferno seja constantemente atualizada, manifestando-se explicitamente: “(...) Afogamos em canha da boa, as mágoas deste inferno” (p. 23), ou em subentendidos: “O calor, o dia inteiro andado no mato de sapé e de caraguatá, não eram coisas de se pedir duas vezes a Deus.” (p. 14). A narrativa, organizando-se precisamente em sete capítulos, reproduz no formato os sete dias da semana. Os sete dias de trabalho. No campo da simbologia deste número, as significações se ampliam. O número tem relações com o mundo ínfero, com os seus sete círculos infernais. O sete também se refere ao Satanás, “a besta infernal do Apocalipse tem sete cabeças” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, 828). E vale acrescentar que é no sétimo círculo o dos violentos. 25 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 O tempo infernal é um tempo sem tempo, como nos ervais em que o mineiro anda “cansado da véspera e das muitas vésperas trabalhadas”. Remete a uma temporalidade circular que em tudo lembra o tempo infernal: repetição incessante que caracteriza o inferno e mitos como o de Sísifo, “o trabalhador inútil dos infernos”. (CAMUS, 1989) É também significativo que a Companhia esteja afastada, de certa forma, daquele espaço, como numa esfera superior: ela nunca aparece de fato, é sempre referida e age através de seus funcionários; as “ordens” são dadas através de notícias enviadas por mensageiros: “De Ponta Porã mandaram recado. Querem mais produção.” (p. 38). Nessa perspectiva, a Companhia está distanciada daquele mundo inferior, mas que ela o sustenta e é sustentada por ele. No plano narrativo, o enredo estrutura-se em núcleos dramáticos, envolvendo personagens ligadas sempre de alguma maneira à erva-mate. A ambientação geral são as selvas ervateiras nativas; e o erval Bonança é o lugar principal dos eventos do enredo. A organização da produção se realiza em agrupamentos humanos, compostos pelos mineiros, os que lidam diretamente apanhando a planta, suas mulheres e crianças. Os funcionários são encarregados de gerenciar os trabalhos. Há ainda aqueles que realizam o trabalho de exploração das regiões em busca de novas reservas da planta. Fora do controle da empresa, atuam os apanhadores clandestinos, os changa-y, que extraem a erva sem ter o direito de o fazer, ilegalmente; ao mesmo tempo trabalham e se escondem. O espaço urbano também constitui um dos núcleos, e restringe-se às proximidades dos ervais, como a cidade de Ponta Porã. Cada núcleo dramático constitui um veio narrativo, arranjado em fragmentos, que justapostos, embaralhados, montam em mosaico a história. Os cortes no avanço dos acontecimentos cria efeito de simultaneidade, ao passo que um quadro se interrompe dá abertura para que outro se inicie e ou continue. As rupturas, por vezes ocorrendo em momentos de grande tensão e tragicidade, acarretam retardamento da ação. Por um lado, coloca em suspense o destino da personagem ou do evento, e de outro, as expectativas do leitor. Os núcleos espaciais parecem “ordenar” ou “organizar” os núcleos dramáticos, fazendo com que o enredo se desenvolva em torno dos deslocamentos espaciais. Os recursos estilísticos dão dinâmica à narrativa, que avança em compasso ágil e tenso, como exige a perspectiva adotada pelo autor. O trabalhador que chegou aos ervais, iludido com a promessa do aconchavador de vida de fartura e da possibilidade de enriquecer, não pensa em outra coisa senão fugir ou, de alguma forma, escapar ao “inferno” da jornada de trabalho, com o “dia começado na madrugada e decorrido debaixo de duzentos quilos de erva” (p. 106). Não há no grupo qualquer organização coletiva de reivindicação por melhores condições de trabalho; e nem há espaço para tal arranjo. O “velho Lui26 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 são” faz as vezes de um líder sindical. Afastado dos ervais, ele vive em Ponta Porã. De extração e interesses nebulosos, parece ter alguma influência política, que a usa para incitar, nos centros do poder, as capitais Cuiabá e Rio de Janeiro, a discussão pelo fim do monopólio. Enquanto isso, a fuga é o único meio de que dispõe o mineiro para se livrar do “contrato” de trabalho. Na trama, o evento é elaborado com precisão e fortes lances de tensão, pois, para os que ousam tentar se desvencilhar das amarras da Companhia, o “mandamento” era captura e morte. O cotidiano do trabalho é explorado no corte da luta que os homens travam com o fardo de erva (raído) sobre os ombros, chegando a pesar até mais de duzentos quilos. A vida trágica e irremediável no erval é examinada a expor cruamente a desumanização: “o dia do mineiro, peão cortador de erva, começa no meio da noite (...). A mata, os bichos, os caminhos, as aves dormem ainda e o mineiro estremunha. Cansado da véspera e das muitas vésperas trabalhadas” (p. 21). O caminho (tapê-hacienda), ligando a mina de erva ao local onde o fardo é pesado e depositado, e pelo qual o trabalhador atravessa, “bestializado”, carregando o raído, configura uma espécie de calvário, de via crucis, por onde passa, dia após dia. No caminho, às vezes, acontece de o mineiro não suportar o peso sobre seus ombros, neste caso o resultado é sempre a coluna partida. Quando a morte não lhe é instantânea, a bala para o tiro de misericórdia é necessária e solicitada ao administrador, que a cede, não sem regateá-la com avareza e cinismo: “É só aborrecimento! – resmungou o administrador (...). Me faltam mineiros e esse se deixa quebrar.” (p. 27). Sistema tão aviltante não se sustentaria sem uma trégua, providencial, de tempos em tempos. Quando o “mau humor” acirra-se, prepara-se um baile para aliviar o “ano comprido do erval” e acalmar o ódio: “As festanças desbragadas eram respiradouro que mantinha os mineiros vivos e arejados.” (p. 142). Nas festas, embriagar-se era quase uma obrigação, do mesmo modo que divertir-se com as mulheres. Nessas ocasiões, elas “empalidecem”, pois são “arrebanhadas” e obrigadas a festejar. Todas deviam comparecer, saudável, doente, velha, feia ou grávida. As filhas mais novas dos mineiros são “promovidas a mulheres”. Para completar o quadro, contratam prostitutas (quilomberas). O evento ganha feição orgiástica, ao som de muita música, bebida e sexo, em que, ao fim, restam todos exauridos. O sexo, que é realizado às pressas nos arredores do galpão de festa, compara-se a apenas mais uma “contradança”. Como núcleo romanesco central, a história de amor entre Flora e Pablito constitui o fio que conduz o desenvolvimento do enredo. Ele é obrigado a deixar a amada, pois é incumbido, propositadamente, da tarefa de descobrir novas minas ervateiras para futuras extrações. Com isso, a mulher fica vulnerável às investidas dos outros homens, principalmente de Izaque, um dos funcionários da empresa, que a deseja e por isso arma a separação do casal. Ao lado dessa história de a27 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 mor, outros casais pontuam o enredo, como Curãturã e Zola, Aguará e Anaí, Osório e Nakyrã. No processo de produção da erva, a etapa mais importante é o preparo das folhas no barbaquá. A torrefação delicada e precisa ao fogo, feita pelo uru, definem a qualidade do produto. Do bom procedimento dessa fase resultam as melhores propriedades da folha para se saborear a bebida. Consequentemente, a função de Curãturã, o uru do erval Bonança, ganha importância e dálhe autoridade. Por essa tarefa de destaque, ele também é encarregado, como “mestre”, de formar um aprendiz. Junto a ele, o rapaz Aguará aprende as técnicas de preparo. O aprendizado vai além do trabalho, ele aprende também sobre coisas de outros âmbitos da vida. Os descontentes, que arriscam à fuga, podem se juntar e receber ajuda de outros trabalhadores que vagam pelas redondezas e também se opõem à Companhia: são os clandestinos, embrenhados nas selvas. Há ainda os que desejam, ingenuamente, deixar a empresa por vias “legais”, tentando saldar as dívidas e acreditando nessa possibilidade. É o caso de Pytã, que não quer fugir, pois pensa acertar legalmente o que deve e partir. Para isso se resguarda de confusões e conta o tempo: “Mais uma lua! Mais uma lua e me boto na estrada!” (p. 138). Por fim, será surpreendido com a impossibilidade de se libertar por esta via, o que o colocará num impasse: continuar a se sujeitar ou enfrentar os riscos de uma fuga. Num outro plano, com a responsabilidade de gerenciar e comandar os trabalhos e os homens nos interiores das matas, há o grupo de funcionários da empresa, dispostos hierarquicamente. No topo da hierarquia, figura o administrador, Curê; abaixo dele seguem-se os capatazes e os comitiveros – estes últimos o braço armado da organização. O grupo é a sombra onipresente e assustadora da Companhia no erval, que tem as prerrogativas do mando e do controle da violência. No entanto, não estão resguardados de uma vida também degradante. Usufruem de poder para arbitrar sobre tudo e todos ali, e cometem toda sorte de violência permitida pelas regras do erval e a bel prazer. Eles dispõem de aparato para conter, e também praticar, a violência, trazendo os revoltosos sempre “debaixo de pontaria” (p. 209). Muito embora as condições de vida sejam, em certa medida, menos opressoras, o que lhes restam em termos humanos não é muito mais do que o dispensado ao comum apanhador de erva. Além do mais, dissipam a rudeza, paradoxalmente, na embriaguez e jogatinas. 2. A (des)constituição da experiência e as formas de intercambiá-las No plano da construção do enredo de Selva Trágica destaca-se uma trama cuidadosa de conexões e arranjos da matéria narrada. Do procedimento, depreende-se certo recurso de referência em que se alude de maneira recorrente a um contexto diverso daquele representado. Da atualidade 28 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 da situação dos ervais acena-se ao universo arcaico da antiguidade e da era medieval. A força obstinada do recurso alusivo sobreleva-se na obra. Este traço é o motivo da análise que se segue. As referências podem ser notadas desde o paratexto. Na capa do livro, na “orelha”, os termos “épico” e “epopéia” são mencionados. Estas são as primeiras indicações remetendo a um tempo anterior e a sua respectiva narrativa produzida em verso, o poema clássico épico. O subtítulo do livro reforça essa tradição, na utilização sugestiva do termo “gesta”4, forma que, em seu tempo, cantava os feitos guerreiros de um herói. São essas notificações, de certa forma incisivas, que propiciam e dão abertura à identificação do arranjo de referências no cerne do enredo. Na prática, os diversos núcleos dramáticos guardam, cada um, certo grau de relação com a organização de mundo bem anterior ao narrado. Distingue em cada núcleo um par de personagens emblemáticos dessa relação, em torno do qual se configuram as referências. Primeiramente, para exemplificar, destaca-se aqui o par central do enredo, Flora e Pablito. O casal configura certo vínculo com o clássico par épico, Penélope e Ulisses, da Odisseia. Flora, com a proeminência de ser a personagem principal no romance, perpassa-o de ponta a ponta, com nome sugestivo, fundindo-se, na alusão vegetal de seu nome, à selva ervateira. É das figuras femininas mais marcantes de Donato. Ela e Pablito vivem um amor impossível de se realizar no mundo do mate, lugar onde as mulheres pertencem à categoria mais baixa entre todos e entre todas as coisas. Os dois, apaixonados, tentam, inutilmente, viver esse amor. Separada do amado, levado a lugares distantes à procura de novas minas de erva, sozinha, ela luta contra o assédio de Isaque. Ao resistir às investidas de outro homem, recebeu de Artur Neves a definição de “triste Penélope cabocla”. Em outra vertente do romance, a referência avança no tempo e marca um contraponto com período posterior, a Idade Média. Há certa conformação em parte do enredo de Selva Trágica que se esforça na reconstituição de certa ambiência do medievo de trocas de experiências. A análise ancora-se na discussão de Walter Benjamin (1994), que define duas figuras basilares constitutivas desse meio como sendo seus tipos fundamentais: o “camponês sedentário” e o “marinheiro comerciante”. E segue-se que “da interpenetração desses dois tipos arcaicos” (p. 199) derivam as figuras do mestre e do aprendiz. A forma da narrativa oral, depreendida da organização dessa sociedade, ligava-se organicamente à experiência e às formas de intercambiá-la. A narrativa oral floresce pelo entrelaçamento das duas figuras balizadoras, o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro era celeiro que guardava “o saber do passado”, da tradição, e o segundo arejava a atmosfera da comuni4 Na última edição da obra, em 2011, o subtítulo foi suprimido. 29 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 dade trazendo “o saber das terras distantes”. A Idade Média, através do sistema corporativo, uniu essas duas figuras e engendrou o par mestre/aprendiz, que representa a forma mais acabada de produção da narrativa oral e de transmissão de experiência. No mundo moderno, a narrativa perdeu seu ambiente propício, o que fez Benjamim observar a consequência dessa transformação: a dissolução da arte de narrar, resultado da transformação da natureza da experiência: o que antes era sabedoria – harmônica com o mito e, portanto, com o mundo – hoje, adquire especificidade dramática porque está em conflito, tensão, com esse mundo. Em Selva Trágica distinguem-se traços que reconstituem uma ambiência de trocas de experiências equiparada ao que se pode encontrar na era medieval dos mestres artesãos e seus aprendizes. Diversos pares de personagens prefiguram esse arranjo. Para a análise desse modelo, pinça-se aqui, dentre outros possíveis do enredo, o par Curãturã e Aguará. O ambiente e atividades dos dois aludem à forma do sistema corporativo da Idade Média, que tinha como base o trabalho artesanal. A função de Curãturã no barbaquá, além do preparo da erva, pressupõe a formação de um aprendiz, que continuará na atividade. O mestre lhe deve ensinar as “coisas da erva, do fogo, e de como deve remexer, precaver-se contra o tempo, a noite, a luz. Quais as lenhas (...) preferir e quais as que valia a pena evitar.” (p. 40) Entretanto, a formação dada não se restringe apenas à instância prática da função de uru, indo além. O mestre deve revelar as coisas “a respeito dos homens e das mulheres, (...) e do amor.” (p. 40). As cenas dispensadas ao par Curãturã e Aguará tratam dos ensinamentos do mestre e as formas de apreensão de seu aprendiz a respeito de três balizas da experiência humana: a do trabalho, a do amor e a da morte. A atividade de Curãturã, como uru – torrar as folhas da planta da erva no barbaquá até secarem –, é apresentada como um esforço árduo, realizado por turno de quarenta e oito horas seguidas e, depois, com um momento de descanso, para tudo se recomeçar. Ele fica exposto ao calor médio de 100º C, e no período noturno, à proporção que recebe no peito o calor, é resfriado nas costas, pela aragem fria da noite: “atenção, fogo, fumaça, calor no peito e friagem nas costas.” (p. 39). Acontece um duplo processo de secagem: da folha e do homem que a maneja. Desidratam-se mutuamente: a vitalidade, a seiva da folha, evapora-se com o calor do fogo, à proporção que as substâncias humanas vitais escorrem ao longo do corpo do homem. Curãturã revela-se consciente do processo de destruição que a função lhe causa. Quando é chamado de “rei do rancho” pelo rapaz, ele lhe explica o processo de aviltamento humano do seu trabalho, numa gradação que acaba por findar na morte. É a forma de dizer que “(...) quer bem ao menino a quem criou” e, assim, “(...) vai ensinando o que sabe”: 30 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Rei? Sei lá! Quando o patrão lhe põe nas mãos a forquilha e lhe dá o piso do barbaquá, diz que ele é senhor. Então começa a respirar fumo e resina, a ser defumado em suor e fumaça. Primeiro a gordura, depois as carnes, a saúde, escorrem pelo corpo, dia e noite, feito suor. Nenhum pêlo lhe fica grudado no corpo, nem saliva na boca, nem dentes nas gengivas, nem lágrimas nos olhos. Vai sendo cozido dia a dia; os intestinos acabam secos e mortos, envenenando o corpo; o estômago ácido, os pulmões cavernados, as veias saltadas, os olhos afundados. E dia e noite, com a forquilha nas mãos, revolvendo erva. No fim da primeira safra desce um fantasma do piso onde subiu um homem. Na segunda é um mecanismo. (...) (p. 39-40). Em seu desabafo, são os traços de uma caveira que se delineiam. Há uma escala do homem para o fantasma e, finalmente, para o mecanismo. O que estabelece também a relação com a máquina: o trabalhador se diz mecanismo e apenas isso. É apenas mais uma peça na engrenagem da Companhia e não vale mais do que o que possa produzir. E não sendo mais produtivo, ela o abandonará como abandona o erval quando este também não pode mais oferecer as árvores necessárias. Continuando a descrição, Curãturã explica a Aguará o destino que o trabalho no barbaquá reserva ao homem já reduzido a “mecanismo”: “Começa a sofrer uma sede tão grande que até faz dor, queima, atordoa. O remédio é beber. Quanta bebida queira, tanta lhe dão. Também querem que ele se engane devolvendo em álcool a umidade que o barbaquá rouba de seu corpo” (p. 40). Desidratado como a erva, a bebida alcoólica, oferecida em abundância, é uma forma de iludir o corpo e também o espírito. O engodo do álcool, que mais desidrata, só lhe agrava o estado de aniquilamento. O tempo que pode suportar um homem nessas condições é de dez anos. O narrador é categórico ao sentenciar o destino do mestre: “um uru jamais chega à idade madura.” (p. 39). Depois das quarenta e oito horas seguidas no barbaquá ele ganha um período de descanso. Nesse intervalo de folga, o mestre, em companhia do pelo aprendiz, busca distensão do corpo, ao lado da mulher amada. E nesse momento que surge a oportunidade para outro ensinamento ao rapaz: o do amor. Ao perceber a casa de prostituição (bailanta), Aguará não contém a excitação e explode de alegria: “Bailanta?! Pois você vem descansar numa bailanta?!” (p. 70) Mas quando vê o uru “entregue às mãos da Zola”, sente repulsa daquilo. Para ele, o “rei do rancho” não poderia precisar de alguém. A visão do mestre é filial e idealizada. O ensinamento de Curãturã, entretanto, é sobre outro valor para as mulheres, diferente daquele reificado do erval, em que elas são apenas objeto de prazer sexual. A cena em que mostra os três – Curãturã, Zola e Aguará – é emblemática da vicissitude constituição/destituição de um grupo familiar tradicional. O quadro é construído com nuanças líricas e idílicas: o casal deitado numa relva sob uma árvore frondosa, enquanto o menino resta um pouco afastado, à margem do rio. Motivados pela presença do rapaz, os amantes passam suas vidas 31 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 a limpo. Falam do filho que não tiveram, e do amor que poderiam ter vivido e não viveram. Contrapondo-se à atividade extenuante do trabalho, esse é um momento de introspecção reflexiva de rememorações e nostalgias. O núcleo Curãturã, Zola e Aguará, por um lado, afirma a constituição de uma família, pai, mãe e filho, mas, por outro, nega-a, pois, a mulher não é a mulher oficialmente, e mais, é de todos, pois é prostituta, e Aguará, que constitui uma espécie de herdeiro, não é filho de fato do casal. E mais, se recusa a “imitar” o pai. Quebra, por assim dizer, a sentença “tal pai, tal filho”. Neste instante em que Aguará está presente na fala de Curãturã e Zola, ao mesmo tempo ele se encontra afastado espacialmente. Destaca-se ainda, nesse sentido, o fato do movimento de certa forma nômade no erval – quando uma mina ervateira se esgota, muda-se para outro local não explorado. Não há uma situação propícia à agregação das pessoas e de constituição de um círculo de relações mais coeso. Os grupos que se agregam, como os casais, o fazem na informalidade e sob as contingências e os percalços de uma vida degradada. O evento da festa da Semana Santa no erval é um momento carregado de significações, com os sete dias de festa pontuados dia a dia. Na simbologia da festa cristã está a ideia da morte, que é também mais um prenúncio do fim de Curãturã. A consciência premonitória o deixa com a “angustiosa certeza de que vivia a sua última Semana Santa” (p. 143), e quer viver com a mulher amada, Zola, o máximo da festa. Ao deixar livre o menino, ele sugere mais um conselho “arrisque o seu dia”. Como indicação de que ele já estaria formado, “Aguará sentiu que alguma coisa havia se acabado, para sempre, entre ele e o seu velho uru.” (p. 145) A moça Anaí que surge na festa será para ele a possibilidade de compreender o aprendizado do amor e do sexo. Ele “sentia que ela poderia lhe mostrar o que o Curãturã encontrara na Zola e os mineiros e capatazes encontravam nas outras mulheres.” (p. 146) assim, mistura-se o sentimento de amor que Curãturã sentia pela Zola e as formas de satisfação sexual que muitos mineiros e os capatazes procuravam nas prostitutas do local. Aguará parece resistir ao aprendizado do amor para além do prazer sexual que Curãturã quis lhe ensinar. A implacável ideia da morte após a festa, e guardadas as devidas proporções, remete Curãturã a um parentesco com outro personagem da literatura brasileira, criado por Guimarães Rosa: Manuelzão, na novela “Uma estória de amor”. Com a mesma certeza de Curãturã, ele vive em sua festa o pressentimento de seus últimos momentos. O casal Zola e Curãturã vive o idílio amoroso afastados da festa e de Aguará. Nostalgicamente, sob a “copa do arvoredo que porém não ocultava as estrelas”, os “urros dos galistas”, “o 32 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 sussurro dos casais”, e as “dezenas de canções descompassadamente cantadas por dezenas de bêbados” ecoavam longe, não alcançando forças para quebrar o encanto dos dois. A festa não era mais para Curãturã, nem “o baile, o jogo, as aventuras de amor. Trocara tudo isso pelo colo da Zola onde descansava a cabeça (...)” (p. 154 ). Assim como não era para Manuelzão: “Festa de Manuelzão, todos se divertem, ele não... não queria.” (ROSA, p. 213). A festa pode carregar a ideia emblemática de exaustão das forças vitais. O êxtase total que precede o fim. Assim, está anunciada a morte do uru. O fim da festa prenuncia também o seu fim. A morte do uru coincide exatamente com o esgotamento (morte) do erval Bonança. Os dois têm a morte, fim, anunciada desde a primeira cena da narrativa. Para Curãturã, o sinal definitivo de seu declínio coincide com o fim do baile: ele gemera de dor nos rins, ao mesmo tempo em que já “(...) a orquestra tocava lento e baixo.” Era “o baile que esfriava.” (p. 40). Era também o corpo que esfriava. O evento marca a mudança para o novo erval. É também os últimos momentos de Curãturã, que fica para trás, pois já não pode seguir com o grupo. A articulação entre espaço e personagem é plena de significação: erval e uru, esgotados, são abandonados, pois não têm mais o que oferecer à Companhia. O erval Bonança chegara ao fim: a mina de erva está consumida e é trocada por outra. Também o uru está consumido e morrendo, assim como o erval. Ele é abandonado e trocado por outro. O grupo segue para o novo erval e terá um novo uru – Aguará. A festa marca a passagem: esgotamento e morte. No ambiente desolado que se tornara o erval Bonança, duas únicas pessoas, Zola e Aguará, restam junto a Curãturã, já quase morrendo. O menino que anteriormente já havia recusado a lição do amor, agora resiste à lição que a experiência da morte pode lhe proporcionar. Ele se mantém afastado do leito de morte e “[e]sforçava-se por não admitir o que havia de aborrecido em perder tantas horas com um defunto.” (p. 204). Em outra ocasião, quando da morte de uma menina no erval, Aguará “teve arrepios”. À visão da garota, “quieta e pálida”, incomoda-lhe a gélida sensação da morte: “correu ao barbaquá. Havia calor de fogo e vida lá dentro (...)” (p. 107). Curãturã, que vira “muitos e muitos” mortos, inquire Aguará para saber se este já vira algum. Nesse momento do enredo, joga-se com imagens do calor e do frio remetendo, simbólica e respectivamente, à vida e à morte. O fogo do barbaquá aceso que simboliza a vida nesta ocasião de morte, paradoxalmente, já havia assumido feições infernais. Assim, o barbaquá alcança significado ambivalente. Benjamim (1994) fala do caráter “público” e “altamente exemplar” que o episódio da morte continha. E que a sociedade burguesa, com suas “instituições higiênicas e sociais” produziu o distanciamento do “espetáculo da morte”. É tomado dessa repulsa que Aguará se afasta do mestre 33 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 no momento em que este morre. O paralelo entre personagens, distinguindo-se relações de mestre e aprendiz, ocorre em outros pares do romance. Assim como Curãturã está para Aguará, como ficou visto, Bopi para Pablito, Curê para Isaque e Luisão para o jornalista. Em cada um dos pares, os quais não serão desenvolvidos aqui, esboça-se trocas de “experiências” diversas. O vínculo mestre/aprendiz se dá, supostamente, na dimensão da experiência de vida dos que estão na primeira parte da clave e da inexperiência dos da segunda parte. Os que estão antecedidos são homens mais velhos, “experientes”, vividos, que aprenderam com a vida (não raro, amargurados), e no segundo plano são homens apaixonados, “inexperientes”, ingênuos e, portanto, que têm algo a aprender. Não por acaso, o termo “ensinar” aparece reiteradamente e pleno de significação, atualizando e reafirmando a relação mestre/aprendiz e da “experiência que passa de pessoa a pessoa”.. 3. Vidas trágicas Os índices apontados nesta análise e que pontuam sugestivamente ao longo de Selva Trágica conduziram à aproximação de contextos distintos. Muito embora os laços que estreitam esses universos distantes, apresentados na contemporaneidade do enredo de Donato, revelam-se, por fim, como realização às avessas dos elementos e das figuras arcaicos evocados. O traço central destacado na obra para esta análise, o binômio mestre/aprendiz do autor paulista, delineia-se num ambiente de degradação humana e social. O aviltamento humano no trabalho, a prostituição da mulher amada, os vícios e a suspensão dos direitos marcam as trocas de experiências nessa comunidade. O mundo representado, moderno, capitalista, já não pode mais engendrar o mesmo sentido de trabalho artesanal de tempos antigos, produzindo mestres e aprendizes e trocas de experiência, absorvidas da “sabedoria”, do período arcaico de que se reporta Walter Benjamin. Se a gênese do conjunto mestre/aprendiz remonta à Idade Média, a sobrevivência do par foi sendo dissolvida na medida em que o modo de produção secular foi se estabelecendo, até chegar a sua forma mais definida, o alto capitalismo. A despeito dessa conformação histórica, o enredo de Selva Trágica apresenta agregação de personagens que remetem, de algum modo, à configuração de trocas de experiências entre pessoas, configurando relação mestre/aprendiz. O que em princípio sugere um retorno aos elementos arcaicos, não se pode confirmar como tal na realidade atualizada, opressora e dramática, do universo plasmado. Nem a própria forma do romance moderno pode engendrar esses elementos. No contexto narrado por Donato, o sentido mestre/aprendiz na acepção da discussão “benjaminiana” esvazia-se, realizando-se com sentido irônico. Na Idade Média, o artífice artesão (mestre) detinha conhecimentos e autoridade (experi34 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 ência) transformados em “sabedoria”. Portanto, era capaz de dar “conselhos”. O trabalho, amalgamado à vida, constituía-se de uma integralidade. Essa situação se altera ao longo da história, e os moldes do trabalho artesanal medieval não são mais praticáveis. A modificação no modo de produção transforma também a relação com a experiência. Diante disso, Benjamim observa que tem ocorrido uma “baixa nas ações da experiência”. A referência em Selva Trágica desse tipo de organização no trabalho e nas relações pessoais no contexto atual, e daquele mundo posto no romance, reforça a ideia de impossibilidade de retorno e realização, na atualidade, de valores do passado antigo. O procedimento ganha no contexto do romance o poder de crítica ao universo retratado, na medida em que, revoltando a situação original, pelo deslocamento, pela anacronia, transforma-se em ironia. Veja-se o exemplo de Flora. Com sua resistência ao assédio de Isaque alcança o codinome de “Penélope”. Entretanto, seu esforço, por três vezes, é frustrado. Isaque não a respeita e a toma à força. E mais: ela já havia sido de outros homens antes de Pablito. Por fim, não resta outra comparação que não seja por contraste, e daí Flora estaria mais para uma anti-Penélope. Com isso Flora também não guardaria também certa identidade, afinidade, com Sísifo? Como esse “trabalhador inútil dos infernos”, que simboliza o esforço repetido e ineficaz, ela não luta em vão? A narrativa, finalizando-se com a voz de Flora, através do discurso indireto livre, parece fechar as perspectivas de um futuro diferente para si. É justamente com ela, que estava na fala de Pablito na ponta inicial do enredo, num discurso indireto livre, resignada, que a história se fecha. Flora se rende: O futuro era o que era - não o que gostaria de fosse. E se o mundo rodava nesse rumo, asnice era atestar no contra rumo. Poderia tropeçar e fazer-se mal. Melhor seria acertar o passo com o passo do mundo. Vivia no país da erva e assim era a vida por ali. Sentiu o Isaque deitar-se ao lado e procurar a sua mão. Não se esquivou. (p. 236) Muito emblematicamente, a primeira nota de Selva Trágica é justamente uma pergunta. “Hein, velho Bopi? Silencioso assim você quer dizer que eles abusaram da minha mulher, não é?!” (p. 13). Do ponto de vista benjaminiano, bastante significativo, pois no universo arcaico “aconselhar é menos responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história (...)” (p. 200). Referências BENJAMIN, Walter. “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov)”. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, vol. 01, p. 197 – 221. 35 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo (ensaio sobre o absurdo). Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. CHEVALIER, Jean, e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1989. COELHO, Nelly Novaes. In: DONATO, Hernâni. Selva Trágica. Taubaté/SP: LetraSelvagem, 2011. DONATO, Hernâni. Selva Trágica. São Paulo: Autores Reunidos, 1959. ______. Selva Trágica. Taubaté/SP: LetraSelvagem, 2011. GOLDMANN, Lucien. “A reificação”. Revista civilização brasileira. Trad. Luiz Fernando Cardoso, ano III, nº 16, Nov./dez., 1967, p. 119 - 158. LIMA, Luiz Costa. “A reificação de Paulo Honório”. In: Por que literatura?. Petrópolis: Vozes, 1969. LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Quíron, 1976. NEVES, Artur. “Selva trágica”. Revista Anhembi. São Paulo, fevereiro, 1960, p. 597 - 601. ROSA, Guimarães. “Uma estória de amor”, in: Corpo de Baile. Ed. Comemorativa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”, in: Ao vencedor as batatas: forma literária nos inícios do romance brasileiro. 5 ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. 36 NOVE NOITES: A ESCURIDÃO DO OUTRO NINE NIGHTS: THE DARKNESS ON THE OTHER Victor Leandro da Silva (PG-UFAM) RESUMO: Em Nove noites, Bernardo Carvalho conta a história de um narrador e sua busca por relatar os fatos da vida de Buell Quain, antropólogo estadunidense que realizou pesquisas entre os índios brasileiros na primeira metade do século XX, vindo a suicidar-se no país, em 1939. O presente estudo visa analisar de que modo o romance constitui-se numa tentativa de compreensão das origens da cultura brasileira, ao passo que procurará estabelecer as relações entre a trajetória do pesquisador e o diálogo com a alteridade. Palavras-chave: Cultura brasileira, Antropologia, Literatura, diálogo, Povos Indígenas. ABSTRACT: In Nine nights, Bernardo Carvalho tells the story of a narrator and his quest for reporting the facts of life Buell Quain, American anthropologist who conducted research among Brazilian Indians in the first half of the twentieth century, come to commit suicide in the country, 1939. This study aims to examine how the novel constitutes an attempt to understand the origins of Brazilian culture while seek to establish relations between the researcher´s trajectory of the dialogue with otherness. Keywords: Brazilian Culture, Anthropology, Literature, dialogue, Indigenous Peoples. A narrativa de Nove Noites (2009) traz consigo uma dupla investigação. De um lado, temos a busca por refazer a aventura brasileira – e verídica – de Buel Quain e os acontecimentos que o conduziram a seu fim prematuro. De outro, tem-se uma tentativa, ainda que um pouco implícita, de compreender o Brasil a partir de suas origens. Após ler um artigo no jornal, o narrador fica intrigado com uma passagem do texto, que menciona o antropólogo Buel Quain e o suicídio cometido por este em terras brasileiras. A sonoridade do nome pareceu-lhe familiar, o que foi suficiente para instigar sua curiosidade em saber de quem se tratava. Acima de tudo, interessava-lhe o motivo que o teria levado a tirar a própria vida. Com isso, passou a refazer os passos do cientista, indo desde o local da morte de Quain, no Tocantins, até os Estados Unidos, sua terra natal. Nesse momento, a narrativa se bifurca temporalmente, apontando ora para a vivência de Quain entre os índios, ora para a experiência investigativa do narrador. Contudo, ambas possuem o mesmo objetivo: esclarecer as causas do suicídio de Quain. De boa aparência e conduta discreta, Buel Quain não possuía qualquer traço ou conduta em especial que o destacasse, afora o fato de esforçar-se muito para não parecer ser rico. Como pesquisador, adquirira, apesar da pouca idade, um lugar de destaque, o que contribui ainda mais para a perplexidade diante de sua morte voluntária: “ninguém podia esperar que um antropólogo REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 americano da melhor escola, trabalhando no Brasil, fosse se suicidar aqui, moço e já consagrado” (CARVALHO, 2009, p. 37)1. Sua imagem era a de um jovem promissor, um estudioso comprometido com a missão de decifrar cientificamente o Brasil. Contudo, para além dos relatórios apresentados oficialmente, há, à medida que avançam as investigações do narrador sobre a vida pessoal do antropólogo, o desvelamento de uma série de observações pessoais feitas por ele e que dão conta de uma relação nada objetiva com seu “objeto” de pesquisa, expondo um olhar muito mais denso e significativo do país do que pretendem seus textos científicos, ao passo que são também reveladores de seus próprios dilemas e inquietações. Embora tenha desenvolvido estudos no Brasil, Quain não parecia nutrir nenhuma admiração pelos que aqui habitavam em seu tempo. Suas cartas dão conta de uma relação costumeiramente conflituosa, marcada por relatos irônicos e provocadores, o que se evidencia mesmo antes de sua chegada entre os índios: Carolina é um lugar tedioso – analfabetos e intelectuais. Os intelectuais são os que usam ternos brancos e gravatas e pertencem a uma sociedade literária. Me juntei a eles numa reunião para homenagear Humberto de Campos, grande poeta do Maranhão. (...) Tudo isso podia ser muito simpático se não fosse pela pompa ridícula. (p. 26) Aqui, o que parecia incomodar Quain era o aspecto ridículo como os brasileiros se apresentavam a ele. Os ditos intelectualizados enchiam-se de uma erudição completamente artificial e frágil, do mesmo tipo observado por Lima Barreto e parodiado por ele em seu conto O homem que sabia javanês, homens sérios e de pretensão culta, porém responsáveis pela formação de um país “imbecil e burocrático” (2010, p. 71), e cuja leitura de meia dúzia de livros não os impedia de serem enganados por qualquer um que se passasse por erudito ou poliglota. Já com os índios, a sua relação era ainda mais hostil, e manifesta-se desde o primeiro contato: “Encontrei um grupo de índios Krahô e eles parecem pavorosamente obtusos. Têm cortes de cabelos engraçados, furam as orelhas e continuam sem usar roupas na cidade” (p.26), levando-o a descrições de seus hábitos totalmente subjetivas e permeadas de juízos, como nas suas observações da tribo Trumai: Dormem cerca de onze horas por noite (um sono atormentado pelo medo) e duas horas por dia. Não têm nada mais importante a fazer além de me vigiar. Uma criança de oito ou nove anos parece já saber tudo o que precisa na vida. Os adultos são irrefreáveis nos seus pedidos. Não gosto deles. Não há nenhuma cerimônia em relação ao contato físico e, assim, passo por desagradável ao evitar ser acariciado. Não gosto de ser besuntado com pintura corporal. Se essas pessoas fossem bonitas, não me incomodaria tanto, mas são as mais feias do Coliseu (p.48). 1 A partir desta nota as referências ao romance Nove noites serão feitas apenas pelo número da página. 38 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Tal ponto de vista contrasta com o que sugerem seus estudos sobre essas tribos, que, a julgar pelos depoimentos registrados no romance, possuem características científicas, ou seja, obedecem às normas de objetividade e de observação isenta, sem indicar qualquer impressão pessoal acerca do que quer que tenha visto: “Seus relatórios e anotações (...) não têm outra utilidade senão a de propósito científico” (p. 32). A exposição dessas contradições, feita em Nove noites, embora não possa ser considerada comum no meio antropológico, não chega a ser nova. Já em 1967, haviam sido publicados postumamente os diários pessoais do etnógrafo polonês Bronislaw Malinowski, que, quando cotejados com as pesquisas publicadas por ele, evidenciam de forma contundente o conflito entre a posição do cientista e sua experiência individual do encontro com outras culturas. Se em Os Argonautas do pacífico Ocidental Malinowski faz uma defesa veemente da necessidade de contato com os povos estudados, de conhecer seus costumes, seu cotidiano, sua língua, a fim de que se possa retratá-los não como seres exóticos e afastados, mas como pessoas comuns tais quais aqueles que os pesquisam, lançando os fundamentos de uma observação participante, nos seus escritos íntimos, temos o reverso dessas orientações, evidenciando, conforme afirma o professor Vagner Gonçalves da Silva (2013), “a face menos ‘nobre’ do trabalho antropológico”. Do mesmo modo que Quain, mesmo ainda não estando junto aos povos autóctones que pretendia estudar, Malinowski registra impressões nada elogiáveis dos lugares e pessoas por onde passa, como em Cains, pequeno município da Austrália: “A cidade era pequena, desinteressante, o povo marcado pela presunção típica dos trópicos” (MALINOWSKI, 1997, p. 44). Tais observações conduziam-no a um estado depressivo que o acompanhava constantemente, além de muitas outras sensações incômodas. Dores, febres, inquietação, melancolia, crises de fraqueza: era esse o repertório que seguia o etnógrafo ao longo de sua pesquisa. Já com os povos primitivos, sua irritação se tornava ainda maior, a ponto de ter contra eles desejos de violência: “De modo geral, meus sentimentos para com os nativos decididamente tendem para ‘exterminar os brutos’” (p.103), o que fazia com que em muitos casos agisse, como ele próprio reconhecia, de forma “injusta e grosseira” (p.103), numa postura muito distante tanto do observador impassível quanto do cientista compreensivo e humanista que Malinowski idealizava em seus estudos. E, alternadas a essas considerações, figuram também relatos de acontecimentos de cunho estritamente particular e muitas vezes íntimo: “à noite fui tomado de um desejo amoroso pela Senhora N. Desci e procurei-a” (p. 127), os quais por vezes ocupam uma importância prioritária dentro dos textos. Obviamente, é de se imaginar que um diário pessoal possa conter esse tipo de 39 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 anotação. Porém, da forma como foram elaborados, os escritos de Malinowski não parecem ter uma pretensão intimista, e sim a de constituírem-se num relatório informal de trabalho. Portanto, a maneira como tais sensações ganham espaço e vão se entrelaçando com os registros ligados à pesquisa é uma demonstração de que, além do autor não estar totalmente voltado para o trabalho, suas inquietações individuais colocavam-se muitas vezes à frente de qualquer interesse profissional. Desse modo, os diários do antropólogo polonês, bem como as cartas de Buell Quain, são documentos essenciais para a desmistificação da imagem do cientista neutro, incapaz de emitir juízos sobre as sociedades que pesquisa, e que não permite a menor interferência pessoal em seu trabalho. A Antropologia, assim como qualquer atividade que envolva relações entre humanos, está sujeita às intervenções provocadas por preconceitos, empatias, confrontos étnicos, sociais, culturais, morais ou ainda todo tipo de pathos ou impressão pessoal. Logo, o contato entre pesquisadores e informantes é na verdade um encontro entre dois indivíduos de culturas em muitos casos absolutamente distintas, e que costumeiramente se dá de modo conflituoso e chocante para ambos os lados. Buel Quain detestava os índios brasileiros. Achava-os sujos, preguiçosos, “eles ignoram a idéia de trabalhar ou se esforçar para receber alguma coisa” (p. 96) e demasiado expansivos, além de sentir-se perturbado por sua licenciosidade erótica. “O sexo assombrava a solidão do meu amigo” (p. 49), escreveu Manoel Perna, que conviveu com o antropólogo no Xingu, e cujas cartas entrecortam a narrativa. Irritava-se costumeiramente com eles, muitas vezes demonstrando-o, e dizia que só assim conseguia ser atendido: “É muito difícil treinar nativos por aqui. A única forma de me impor a eles é ficando bravo, e então, por vinte e quatro horas, tenho todos os duzentos e dez deles aos meus pés, tentando desajeitadamente me satisfazer” (p. 96). Eram tantos os aspectos negativos observados nos indígenas, que ele desenvolvera um intenso repúdio a qualquer processo de identificação com as tribos: “nada podia lhe causar maior repulsa do que ter que viver como os índios, comer sua comida, participar da vida cotidiana e dos rituais, fingindo ser um deles” (p. 49). Além disso, Quain tinha dificuldade para compreender os aspectos próprios da cultura dos índios, como no caso das relações de parentesco, que confundiam tanto a ele quanto o narrador de Nove Noites: Aos poucos, fui descobrindo que a aldeia Nova era praticamente uma única família, que eram quase todos irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, e que o parentesco simbólico, classificatório, em grande parte maquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas. Não consegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólico entre os membros da tribo. Era muito complicado, e meus objetivos não eram antropológicos. O próprio Quain teve dificuldades em entender essas relações. (p. 87). Em O povo brasileiro (2004), Darcy Ribeiro aborda essa imbrincada relação, em espe- 40 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 cial a prática do cunhadismo, que consiste em estabelecer laços de parentesco com estranhos, integrando-os ao grupo, por meio da união destes com uma das moças da tribo. Segundo ele, foi por meio dessa instituição social que o Brasil se tornou possível, uma vez que permitiu a ligação entre brancos e índios, que, Se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório dos índios, uns com os outros, todos os membros de um povo. Assim é que, aceitando a moça, o estranho passava a ter nela sua temericó e, em todos os seus parentes da geração dos pais, outros tantos pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Nesse caso, esses termos de consanguinidade ou de afinidade passavam a classificar todo o grupo como pessoas transáveis ou incestuosas. (RIBEIRO, 2004, p. 81). Logo, a incompreensão perante esses traços tão importantes e significativos da cultura dos índios, e, mais ainda, a recusa que tinha em aceitá-los ou ver neles aspectos favoráveis, faziam com que se formasse um grande abismo entre Quain e os povos que estudava, tornando sua experiência entre eles extremamente penosa e traumática, fato esse que não escondia em seus escritos não oficiais. As admoestações de Buel Quain encontram ressonância no narrador da trama. Ele, que refaz os passos de seu investigado para tentar coletar informações sobre o mistério de sua morte, passa algum tempo entre os índios, a fim de conseguir ali alguém que se lembrasse do estudioso estadunidense e pudesse fornecer alguma informação relevante sobre ele. No entanto, a única coisa que obteve em relação a Quain foi a ideia do quanto deve ter sido penosa para ele sua estada no Xingu. Sua passagem durou três dias, todos tomados por uma imensa apreensão. Estava acompanhado de um antropólogo e seu filho, mas isso não o impediu de ser ridicularizado por não querer participar dos rituais promovidos, tampouco evitou que passasse fome por ser incapaz de tragar a comida que lhe ofereciam. Irritou-se várias vezes com os nativos. Teve vontade de xingá-los, gritar com eles. Sentiu dor de cabeça e febre. Mesmo quase no fim da visita, ainda experienciava o pior: “a terceira noite foi um inferno” (p. 95). E quando achou que estava distante o suficiente deles, ainda o perseguiam, telefonando para pedir coisas, pois achavam que isto era algo devido a eles justamente: “Assim como os índios o adotam quando o recebem na aldeia, eles esperam que você também os adote quando vão à cidade. É uma relação aparentemente recíproca, mas no fundo estranha e muitas vezes desagradável” (p.97). As ligações eram feitas a cobrar, e as solicitações realizadas de maneira ininterrupta e aberta: “Não faziam a menor cerimônia. Os pedidos não tinham fim. Agora eu era o eterno devedor” (p.97). Assim, o depoimento do narrador nada mais é do que a confirmação das sensações vi41 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 venciadas e descritas por Quain, as quais, mesmo após tanto tempo, continuam sendo possíveis de serem vivenciadas por qualquer indivíduo advindo de uma matriz cultural e um ethos conflitantes com os dos índios, pois, embora o narrador tenha sido criado no Brasil, tanto ele quanto Quain foram formados segundo os moldes da cultura europeia, centrada em valores bem diversos dos preconizados pelos habitantes mais antigos do país. Nesse ponto, é possível questionar, no caso de Buell Quain, se sua antipatia não era apenas um caso simples de elitismo cultural de um indivíduo que se vê como parte de uma cultura superior, que se intitula civilizada, e que despreza todas as outras por serem animalescas e bárbaras. Contudo, tal hipótese não se confirma, já que, ao falar de outros povos com os quais também trabalhou, o antropólogo assume uma postura totalmente diferenciada, exaltando-os como ícones de valores morais: “uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras” (p.41) e de virilidade: “o antropólogo comparava os mirrados Trumais aos homens musculosos de Fiji” (p. 48), rechaçando qualquer influência de um olhar colonizador sobre a forma de observá-los. Na verdade, o que Buell Quain detestava eram justamente os traços distintivos dos índios brasileiros, os quais ele via estenderem-se aos demais habitantes do país: “o Brasil, por sua vez, sem dúvida absorveu muitas das marcas mais desagradáveis das culturas indígenas” (p.108). Abominava a natureza “indisciplinada e invertebrada” (p.108) de sua cultura, sua preguiça, sua falta de ímpeto, e a impressionante capacidade de confiar no destino, de achar que o acaso sempre estará a seu favor. Também execrava a maneira despojada como estabeleciam contato com o outro, sua intimidade forçada, e o modo como as relações de amizade se estabeleciam da parte deles, sempre interesseiras, voltadas somente para a obtenção de favores. A trajetória de Quain no Brasil finda por ir ao encontro das hipóteses de Darcy Ribeiro sobre a influência indígena na formação da cultura brasileira. Contudo, isto é feito da maneira mais drástica, desvelando todas as possíveis implicações negativas do processo. Desse modo, o romance de Bernardo Carvalho acaba constituindo-se numa contundente reflexão acerca do ethos nacional e também numa tentativa de interpretação do Brasil por meio da investigação das raízes de sua cultura, que encontram-se nos valores e práticas dos povos originais do país, os quais foram observados e registrados na fonte, estando, assim por dizer, em seu estado mais selvagem e, talvez por esse motivo, menos aceitáveis aos olhares dos estrangeiros que os conhecem. Contudo, apesar da densidade das considerações feitas sobre esses problemas, a pergunta fundamental da narrativa permanece: que motivos levaram à morte Buell Quain? A primeira hipótese sugerida foi a de que Quain teria se suicidado por conta de alucina42 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 ções ou miragens, possibilidade essa logo descartada pelo narrador. Também não lhe parecia correto atribuir a causa a algum tipo de desencanto perante o mundo, pois, ainda que Quain tivesse uma atitude melancólica, não parecia ser isso motivo suficiente para tal ato. Assim, as investigações pareciam levar para algum acontecimento específico de sua vida pessoal. E foi nesse caminho que se traçou a teoria mais consistente. Quain tinha sífilis, e parecia estar bastante debilitado pela doença à época de sua morte. E, segundo o que indicam os dados coletados pelo narrador em sua pesquisa, ele estava tentando sair da aldeia para encontrar-se com o filho, de cujo nascimento acabara de saber. Percebendo que não conseguiria chegar vivo ao seu destino, preferiu matar-se, a fim de que não houvesse maiores questionamentos em torno da sua doença ou mesmo de qualquer evento de sua vida. Como disse seu amigo Manoel Perna, ele se matou para tornar-se invisível até a si mesmo, “para deixar de se ver” (p. 100). Mas, se a investigação pôde conduzir até o desvelamento de uma causa plausível para o suicídio, por outro lado, ela não é capaz de explicar por que motivo este se deu forma tão violenta, o que leva a crer que, embora as razões gerais possam ser as explicitadas, deveria haver, além dessas, uma motivação mais profunda que levasse o antropólogo a praticar um ato tão grotesco e desmedido. Nesse ponto, as anotações feitas pelo narrador sobre o cientista e si próprio são de pouca valia. Também não ajudam as similaridades entre o seu relato e o de Malinowski, pois, ainda que este tenha passado por situações parecidas, falta em seus cadernos a experiência da morte vivenciada. Somente quem experienciou a morte pode verdadeiramente depor sobre ela. Entretanto, para que isso ocorra, o indivíduo terá que se tornar incomunicável, o que impede que encontremos tais testemunhos na realidade concreta. Portanto, a interpretação da morte do antropólogo deve procurar o paralelo que lhe permita a compreensão não no campo histórico, mas sim no ficcional, e mais estritamente, no caso de Quain, em O coração das trevas (2004). Nessa obra, escrita por Joseph Conrad, temos a história da viagem empreendida pelo marinheiro Charles Marlow ao Congo para encontrar o Sr. Kurtz, chefe do posto interior e notável fornecedor de marfim. À medida que Marlow avança rio adentro, os relatos sobre Kurtz vão se adensando. Todos dão conta de uma figura admirável, única, capaz de arrastar uma legião de seguidores e também de despertar a inveja de vários de seus companheiros. De formação esmerada e amplamente eurocêntrica “a Europa inteira contribuíra para a fabricação de Kurtz” (CONRAD, 2004, p. 94), Kurtz desenvolveu ideias contundentes acerca da 43 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 superioridade branca em relação aos outros povos, a ponto de considerar que a supremacia de sua cultura era tão grande que os próprios selvagens os veriam como seres superiores, de uma espécie mais elevada, e passariam a obedecer-lhes naturalmente, o que representava um pleno domínio dos brancos: “Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer para sempre um poder quase ilimitado” (p. 94). Assim, Kurtz considerava que era sua missão, assim como dos demais membros da comunidade civilizada, mover meios para que se tornasse possível a supressão da barbárie. “Exterminem todos os bárbaros” (p. 96), era o que dizia em seus momentos de euforia, frase essa que muito provavelmente inspirou Malinowski a expressar seu desejo de exterminar os brutos. Em seu posto na floresta africana, Kurtz pôde comprovar suas teorias. Dominou os nativos, persuadindo-os a segui-lo. Em pouco tempo, passou a enviar uma quantidade exorbitante de marfim. Era um explorador incansável, estava sempre à procura de novas aldeias, não temia nada. Contudo, os excessos cometidos em suas expedições, além de suas diversas crises psicológicas, puseram-no enfermo. E, quando Marlow finalmente chegou a seu encontro – após um violento embate com as tribos que habitavam o local e queriam impedi-lo de levar o líder embora e depois de passar por entre imagens aterradoras de “cabeças de rebeldes” (p. 111) penduradas em estacas a mando do próprio Sr. Kurtz – ele se encontrava bastante doente. Em verdade, quando Marlow o viu pela primeira vez, Kurtz já havia enlouquecido, devastado pela doença e pelos confrontos consigo mesmo, o que não impediu que o marinheiro constatasse a grandeza de seu caráter: “Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia limite, nem fé, nem medo, embora lutasse cegamente contra si própria” (p. 127). Embarcado para fazer o caminho de saída do coração das trevas, a fim de que pudesse ser salvo, Kurtz sabia que não seria capaz de sobreviver ao trajeto. Entretanto, não se intranquilizou com isso, apenas cuidou para que Marlow guardasse seus objetos pessoais. Ao deixar a vida, resumiu, nas últimas palavras, toda a sua experiência do mundo: “O horror, o horror” (p. 132). Analisando de forma comparativa, a narrativa de Kurtz atua como um espelho onde é possível ver refletida a tragédia de Buell Quain. Ambos eram indivíduos excepcionais, foram formados no cerne da cultura do Ocidente, e o deixaram para frequentar florestas e povos distantes, caindo enfermos e vindo a morrer quando percorriam o caminho de volta para casa. Ao final, eles sucumbiram às trevas em que imergiram profundamente, sendo incapazes de regressar. Em Kurtz, o conflito entre civilização e barbárie foi o que resultou em sua queda, uma vez que, no interior do líder expedicionário, as linhas que separavam as duas tornaram-se invisíveis. O extermínio dos índios e a busca desenfreada por marfim não eram menos selvagens do que os hábitos dos nativos que se embrenhavam na floresta, os quais, mesmo violentos, deixaram-se con44 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 vencer pelo discurso de Kurtz, tornando-se seguidores de sua lógica e racionalidade. Com isso, Kurtz, sem saber mais de que lado estava, acabou consumido na exploração de ambos, até voltar-se contra todos e contra si mesmo, numa luta que culminou em seu desaparecimento. E quais foram as trevas de Buell Quain? Elas não se encontravam nem na civilização, que ele parecia por vezes esquecer, nem na barbárie, que procurava estudar, mas sim no diálogo com o outro. Sua consciência era incapaz de compreender os que estavam a sua volta, salvo os que se assemelhavam a ele próprio. Por isso, admirava os outros povos – que tinham um ethos mais próximo ao seu – e desprezava o brasileiro, cujos valores encontravam-se a uma distância intransponível dos dele. E, diante dessa incomunicabilidade, ficou aterrorizado. Porém, diferentemente do Sr. Kurtz, Quain não falou sobre o horror: imprimiu-o em seu próprio corpo: Ao voltar para o acampamento sem pá nem enxada, João Canuto o encontrou todo cortado com navalha e ensanguentado (...) Assustado, João também fugiu. Voltou à fazenda Serrinha em busca de ajuda. Quando retornou na manhã seguinte, acompanhado pelo fazendeiro Balduíno e por outros vaqueiros, encontrou o etnólogo pendurado numa árvore arqueada, sobre uma poça de sangue. (p. 75). Esse gesto, bem como as sete cartas escritas às vésperas de seu fim, dão conta da intenção de Quain em deixar algum tipo de depoimento, de testemunho. Eram o seu testamento. Contudo, sua história foi ignorada, e seu nome relegado ao esquecimento, da mesma forma como foram esquecidas as tribos que conheceu no país. Com isso, a porta do diálogo interétnico permaneceu fechada, e o abismo que atormentava o antropólogo continua posto, provocando uma cisão profunda entre o Brasil e suas origens, índios e não índios, o ser humano e sua compreensão. Referências BARRETO, Lima. “O homem que sabia javanês”. In: Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Carvalho, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Conrad, Joseph. O coração das trevas. Porto Alegre, L&PM Editores, 2004. MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SILVA, Vagner Gonçalves. “Nos bastidores da pesquisa de Campo”. http://www.n-au.org/ResenhasUmdiariosentidoestrito.html (acesso feito em 06.08.2013).. 45 EL ÁRBOL: UM ENSAIO SOBRE A MULHER E SUAS RELAÇÕES EM FAMÍLIA EL ÁRBOL: AN ESSAY ON WOMAN AND HER FAMILY RELATIONSHIPS Cristiane Aparecida da Rosa Rossi (PG- UFSM) RESUMO: O conto El árbol, da escritora chilena Maria Luisa Bombal (1910-1980), tem como personagem principal a jovem Brígida, filha menor de um conjunto de seis filhas, cujo pai não lhe dava atenção. A jovem casa-se com Luis, um homem mais velho, amigo de seu pai, que da mesma forma segue tratando-a com descaso. No presente ensaio, pretendemos considerar mais detidamente a mulher em relação ao pai e ao marido e a importância desta relação para a felicidade e a plenitude feminina. Para tanto, tomaremos como referência o estudo da personagem Brígida em relação ao seu pai e marido. A relevância desta pesquisa se justifica por haver sido o sexo feminino relegado por muito tempo a uma posição inferior, na sociedade e na literatura, em relação ao sexo masculino. Como resultado, concluiremos que Brígida se sentia feliz, mesmo diante de uma acomodação perante a vida e as definições do pai. Palavras-chave: Literatura feminina, Maria Luisa Bombal, Mulher, Relações familiares. ABSTRACT: The main character of the tale El Árbol, written by the Chilean Maria Luisa Bombal (1910-1980), is the young Brígida, the youngest daughter between a set of six daughters, whose father gave her no attention. The young girl marries Luis, an older man, a friend of his father, who likewise follows treating her with negligence. In this essay we will consider more closely the woman in relation to her father and husband and the importance of this relationship to the happiness and fullness female. For this, we use as reference the study of the character Brígida about her father and husband. The relevance of this research is justified by the relegation that females have lived for a long time in an inferior position in society and literature in relation to males. As a result, we will conclude that Brígida was happy, even she was complacent in relation to life and the standards of the father. Keywords: Women’s Literature, Maria Luisa Bombal, Woman, Family relationships. 1. Introdução O estudo das personagens femininas e suas relações interpessoais é um tema importante, que merece interesse por parte dos estudiosos pela relevância que possui. Sabemos que a mulher permaneceu por muito tempo relegada a uma condição de inferioridade em relação ao homem. Segundo nos informa a revista Gênero de onde vens, para onde vais? (1999, p. 12): As mulheres ocupam cada vez mais o espaço público, no sindicato, no trabalho, na universidade, nas associações. No entanto, o espaço privado continua sendo sua responsabilidade. Espaço este, onde os homens apenas “ajudam” as mulheres nestas tarefas domésticas, no cuidado com as crianças. Ainda são poucos ou mesmo raros os companheiros que partilham destas atividades. A exclusão da mulher da vida pública, ou seja, o afastamento da mulher em relação ao REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 trabalho externo fez com que o homem assumisse não só o domínio das atividades econômicas, como também fez com que a supremacia masculina se estendesse sobre as atividades literárias e acadêmicas, de maneira geral. No presente trabalho, pretendemos estudar o comportamento feminino e suas relações familiares, em especial com o pai e o marido. Para tanto, utilizaremos como referência a personagem Brígida, do conto El árbol (Obras Completas), da escritora chilena Maria Luisa Bombal (19101980). Partiremos, inicialmente, da sessão intitulada “A mulher e a Literatura”, em que faremos algumas considerações sobre o reflexo da abertura do espaço destinado às mulheres na vida social sobre a literatura. A seguir, analisaremos mais detidamente a personagem Brígida, suas características e seu envolvimento com o marido Luís. Na terceira parte, falaremos sobre a mulher e suas relações familiares, destacando a importância da família para o estabelecimento dos papéis sociais: em casa, na escola, associações etc. Na quarta e última sessão, será feita uma consideração sobre a personagem Brígida e a solidão, bem como refletiremos sobre a acomodação da personagem em relação à vida e às definições do pai. Por fim, faremos as considerações finais, em que destacaremos alguns trechos do conto, a fim de justificar nossa proposta, ou seja, demonstrar que Brígida se sentia feliz, em virtude da acomodação perante a falta de entusiasmo pela vida, que seguia sempre igual: “Y así pasan las horas, los días y los años. ¡Siempre! ¡Nunca! ¡La vida, la vida!” (BOMBAL, 1997, p. 21). 2. A mulher e a literatura Os estudos acerca da relação entre mulher e literatura são relativamente recentes. A partir da segunda metade do século XX, a mulher começa a assumir novos papéis na sociedade, deixando de restringir-se à vida privada, passando a ter acesso à escolaridade, assumindo também o trabalho fora de casa. Conforme Carola Saavedra, no artigo intitulado O fantasma da literatura feminina (2012): Chegam os anos 1960, 1970, e com eles novas mudanças, talvez as mais radicais: as mulheres saem da casa e passam a ocupar lugares antes exclusivos aos homens, surgem advogadas, executivas, engenheiras. É também a época em que adquire maior força a luta pelos direitos da mulher. Como é muito comum em momentos de embate, há uma radicalização dos papéis, e é também nessa busca por novos espaços que surgem conceitos totalizadores, entre eles o de literatura feminina (p. 32). A abertura do espaço destinado às mulheres na vida social provoca reflexos também na literatura. As mulheres outrora afastadas da vida acadêmica e literária passam a superar obstáculos e desafiar a “ordem patriarcal que as restringia à esfera privada, publicando textos ainda que anoni- 47 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 mamente ou sob pseudônimos masculinos, como estratégia de contornar os preconceitos sexistas no campo da recepção e da crítica literária” (GAZZOLA, 1990, p. 74). Segundo Muraro (1992, p. 66 - 67), com o advento do patriarcado, [...] foi fácil, no decorrer dos séculos e milênios, formar uma identidade masculina baseada na maior capacidade intelectual dos machos em relação à mulher para controlar a natureza e inventar novas tecnologias [...]. O domínio público, da história, foi alocado ao princípio masculino, enquanto o princípio feminino, marginalizado, circunscreveu-se ao domínio da casa, do privado, da reprodução. Dessa forma, por muito tempo, o gênero feminino, bem como sua produção literária foi considerada inferior à produção do gênero masculino. De acordo com Gazolla: A ênfase do enfoque sobre a mulher nas diversas áreas de estudo é resultado direto do movimento feminista das décadas de 60 e 70, empreendeu/pretende, principalmente, destruir os mitos da inferioridade natural, resgatar a história das mulheres, reivindicar a condição de sujeito na investigação da própria história, além de rever, criticamente, o que os homens, até então, tinham escrito a respeito (1990, p. 70). O uso da linguagem, também, contribui para institucionalizar os discursos de gênero, que representam linguisticamente as relações socioculturais de poder. Conforme a autora Vera Lúcia Pires escreve no artigo intitulado “A identidade do sujeito feminino e o resgate de sua resistência: um fator cultural”: As relações hierárquicas entre os sexos são estratégias de poder que, articuladas a partir do discurso, tentam encobrir as desigualdades, naturalizando-as. Produz-se um consenso e o que foi construído culturalmente é atribuído à natureza. Os paradigmas culturais de gênero, tanto quanto outros referenciais de diferenças – como raça e classe – estruturam toda a vida dos indivíduos, sejam mulheres ou homens, determinando seus discursos e suas condutas. (PIRES apud LUCENA, 2003, p. 207). 3) A personagem feminina no conto El Árbol A protagonista Brígida, uma jovem de 18 anos, filha menor de um conjunto de seis irmãs é tratada com pouco caso pelo pai. Seu marido, Luís, um homem mais velho, amigo íntimo de seu pai, trata-a da mesma maneira, sem dar-lhe muita atenção, conforme demonstram os fragmentos abaixo: - No tienes corazón, no tienes corazón — solía decirle a Luis. Latía tan adentro el corazón de su marido que no pudo oírlo sino rara vez y de modo inesperado—. Nunca estás conmigo cuando estás a mi lado — protestaba en la alcoba, cuando antes de dormirse él abría ritualmente los periódicos de la tarde —. ¿Por qué te has casado conmigo? (BOMBAL, 1997, p. 208) - Estoy ocupado. No puedo acompañarte... Tengo mucho que hacer, no alcanzo a llegar para el almuerzo... Hola, sí estoy en el club. Un compromiso. Come y acuéstate... No. No sé. Más vale que no me esperes, Brígida. (Idem, p. 210) 48 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Sua relação com o marido baseia-se em uma relação de companhia, e não de amor, pois, ao contrário de suas irmãs, que iam sendo pedidas em casamento uma a uma, Brígida não era pedida por ninguém: “Una a una iban pidiendo en matrimonio a sus hermanas. A ella no la pedía nadie” (BOMBAL, 1997, p. 207). Brígida não compreendia por que seu marido havia se casado com ela, pois até mesmo sua juventude dava vergonha ao marido: “A sus hermanas, sin embargo, los maridos las llevaban a todas partes, pero Luís —¿por qué no había de confesárselo a sí misma?— se avergonzaba de ella, de su ignorancia, de su timidez y hasta de sus dieciocho años” (Idem, p. 210). O descaso de Luís em direção à Brígida fazia com que ela o procurasse, sem que o marido demonstrasse, no entanto, vontade de amá-la ou de ter filhos com ela: Inconscientemente él se apartaba de ella para dormir, y ella inconscientemente, durante la noche entera, perseguía el hombro de su marido, buscaba su aliento, trataba de vivir bajo su aliento, como uma planta encerrada y sedienta que alarga sus ramas en busca de un clima propicio (BOMBAL, 1997, p. 209). Brígida se sentia ignorante, havia deixado as aulas de piano, ainda nas primeiras lições e brincava de bonecas aos dezesseis anos de idade. Conforme declara o pai: “No voy a luchar más, es inútil. Déjenla. Si no quiere estudiar, que no estudie. Si le gusta pasarse en la cocina, oyendo cuentos de ánimas, allá ella. Si le gustan las muñecas a los dieciséis años, que juegue” (Idem, p. 206). Seu envolvimento com Luís começou quando pequena, pois quando todos a abandonavam, corria em direção a ele: Desde muy niña, cuando todos la abandonaban, corría hacia Luis. Él la alzaba y ella le rodeaba el cuello con los brazos, entre risas que eran como pequeños gorjeos y besos que le disparaba aturdidamente sobre los ojos, la frente y el pelo ya entonces canoso (¿es que nunca había sido joven?) como una lluvia desordenada (BOMBAL, 1997, p. 207). De certa forma, Luís representava para ela proteção e amparo: “Por eso se había casado con él. Porque al lado de aquel hombre solemne y taciturno no se sentía culpable de ser tal cual era: tonta, juguetona y perezosa” (BOMBAL, 1997, p. 207). Ao procurá-lo durante a noite, o marido se afastava, deixando-a como alguém que está só em busca de alguém para si. A vontade de acariciar o marido era apaziguada quando Brígida se dirigia ao quarto de vestir: Y noche a noche dormitaba junto a su marido, sufriendo por rachas. Pero cuando su dolor se condensaba hasta herirla como um puntazo, cuando la asediaba un deseo demasiado imperioso de despertar a Luis para pegarle o acariciarlo, se escurría de puntillas hacia el cuarto de vestir y abría la ventana. El cuarto se llenaba instantáneamente de discretos ruidos y discretas presencias, de pisadas misteriosas, de aleteos, de sutiles chasquidos vegetales, del dulce gemido de un grillo escondido bajo la corteza del gomero sumido en las estrellas de una calurosa noche estival (BOMBAL, 1997, p. 215). 49 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Ali, Brígida podia sentir de perto a presença da seringueira, a árvore que lhe produzia uma sensação benfeitora. 4) A mulher e suas relações familiares Desde os primórdios da humanidade, a família desempenha um papel fundamental para o estabelecimento dos papéis sociais. A partir do nascimento, cada indivíduo recebe influências e ensinamentos, que, de certa forma, foram transmitidos por outras pessoas, e que ajudarão a construir o conjunto de regras e valores que constituem as formas de comportamentos dos grupos sociais: família, escola, associações etc. Segundo Strey (1997, p. 10): “A família é a fonte fundamental de transmissão de normas e valores da cultura, ensinando aos indivíduos o que significa ser masculino ou feminino a partir do nascimento”. Tradicionalmente, encontramos em nossa sociedade a presença da família patriarcal em que a casa, ou seja, o âmbito privado pertence à mulher, enquanto que o trabalho ou o âmbito externo representa o domínio masculino. Para Strey (1997, p. 11), nas famílias tradicionais: Os papéis de gênero colocam os homens em uma posição dominante e as mulheres em uma posição subordinada. As tarefas dos homens são, então, de maior status, maior reconhecimento. A mulher, na posição subordinada, desempenha tarefas de menor status e menor valor. Na família tradicional, normalmente ocorre a exclusão da igualdade entre os sexos. Ao homem, cabe o poder e o controle sobre a mulher e, a esta, cabe a dependência em relação ao homem. Em Strey (1997, p. 11), encontramos: “A família tradicional ensina aos filhos-homens e às filhas-mulheres esses valores culturais da sociedade e funciona como modelo onde o homem-pai é o chefe da família, e a mulher-mãe é a educadora e guardiã do lar”. Atualmente, em virtude das mudanças ocorridas na economia devido ao processo de industrialização e terceirização, as mulheres passaram a ocupar maior espaço na esfera profissional, assumindo atribuições reservadas em outros tempos apenas aos homens. Em consequência disso, o status da mulher, também, sofreu modificações: Se para o homem a transformação profissional significou a passagem das atividades primárias às secundárias e terciárias, para a mulher, além disso, foi a passagem do trabalho doméstico ao profissional. A mulher ainda transpôs rapidamente o setor secundário: o trabalho feminino concentrou-se, mais diretamente que o masculino, no setor terciário. Muito mais profundamente que para o homem, o “desenvolvimento” para a mulher implica uma mudança de status e de função na sociedade e na família, uma mudança, poder-se-ia quase dizer, de “natureza” (BELTRÃO, 1970, p. 93). A participação da mulher na vida profissional acarretou transformações nas relações 50 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 familiares e matrimoniais, à medida que a mulher torna-se financeiramente independente e ingressa na vida escolar: Como quer que seja, o fato social da emancipação feminina, resultante tanto da frequência escolar quanto do trabalho profissional, afeta profundamente a nova configuração das relações matrimoniais e familiares. A mudança do papel social da mulher acarreta também a mudança de seu papel familiar (BELTRÃO, 1970, p. 107). Em decorrência da inserção do sexo feminino na esfera acadêmica e profissional, temos a modificação do “processo de escolha matrimonial” (BELTRÃO, 1970, p. 107), ao passo que a mulher pode escolher o marido de acordo com seu gosto pessoal ou por amor e não apenas por conveniência, imposição social ou familiar. 5 ) Brígida: solidão e atitudes apassivadas ante pai e marido No conto El árbol, encontramos Brígida, uma personagem tonta e ignorante, cujo pai, um viúvo cansado de haver criado cinco filhas, prefere declará-la retardada a ter de preocupar-se com a criação de mais uma filha: “Cuando el padre llegaba por fin a su sexta hija, lo hacía tan perplejo y agotado por las cinco primeras que prefería simplificarse el dia declarándola retardada” (BOMBAL, 1997, p. 206). Sua atitude passiva, submissa em relação ao pai, reflete-se, da mesma forma, em relação ao marido, um homem mais velho e desinteressado, cuja preocupação maior consistia em preencher os minutos do dia com uma ocupação: “La vida de Luís, por lo tanto, consistía en llenar con una ocupación cada minuto del día” (Idem, 1997, p. 210-211). Para Brígida, o tempo transcorria de maneira linear, de forma monótona e sem grandes variações, como se não houvesse nada mais a esperar, a não ser viver os dias da mesma maneira. Não obstante, a indiferença perante os outros lhe dava satisfação: “Todo parecía detenerse, eterno y muy noble. Eso era la vida. Y había cierta grandeza en aceptarla así, mediocre, como algo definitivo, irremediable” (BOMBAL, 1997, p. 214). A peça principal da casa, em que lhe dava gosto ficar era o quarto de vestir. Ali, Brígida permanecia horas vazias, apenas desfrutando da sensação de bem-estar: “Una podía pasarse así las horas muertas, vacía de todo pensamiento, atontada de bienestar” (BOMBAL, 1997, p. 215). Aquele ambiente, a seu modo, conferia-lhe proteção e resguardo. Ao desejar encontrar-se nos braços de Luís, durante o sono, Brígida recorria àquele local e abria a janela. Desse modo, a jovem sentia seu sofrimento atenuar-se no quarto: “No sabía por qué le era tan fácil sufrir en aquel cuarto” (Idem, 1997, p. 216). No quarto de vestir, Brígida aguardava a chegada de Luis. O ambiente lhe dava a sensa- 51 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 ção de plenitude e de felicidade: “Puede que la verdadera felicidad esté en la convicción de que se ha perdido irremediablemente la felicidad (BOMBAL, 1997, p. 216).” O contato dos galhos da árvore, na janela do quarto de vestir, davam à Brígida a sensação de que alguém a queria. Ao sentir-se rejeitada, a jovem encolhia-se entre os lençóis, conformando-se com aquela presença, visto que a preocupação do marido consistia simplesmente em dormir: “Durante toda la noche oiría crujir y gemir el viejo tronco del gomero contándole de la intemperie, mientras ella se acurrucaría, voluntariamente friolenta, entre las sábanas del amplio lecho, muy cerca de Luis” (Idem, p. 213). A copa da seringueira produzia efeitos luminosos sobre o quarto de vestir, variando conforme as estações do ano: Y vino el otoño. Las hojas secas revoloteaban un instante antes de rodar sobre el césped del estrecho jardín, sobre la acera de la calle en pendiente. Las hojas se desprendían y caían... La cima del gomero permanecía verde, pero por debajo el árbol enrojecía, se ensombrecía como el forro gastado de una suntuosa capa de baile. Y el cuarto parecía ahora sumido en una copa de oro triste (BOMBAL, 1997, p. 216). Ao ser derrubada a árvore, o quarto de vestir ficou iluminado, dando ampla visão à Brígida da vida que se descortinava afora: Despavorida ha corrido hacia la ventana. La ventana abre ahora directamente sobre una calle estrecha, tan estrecha que su cuarto se estrella, casi contra la fachada de un rascacielos deslumbrante. En la planta baja, vidrieras y más vidrieras llenas de frascos. En la esquina de la calle, una hilera de automóviles alineados frente a una estación de servicio pintada de rojo. Algunos muchachos, en mangas de camisa, patean una pelota en medio de la calzada (Idem, p. 217). A queda da árvore representou para Brígida a solidão, a perda de sua intimidade e proteção. Podemos dizer, também, que a derrubada da seringueira fez com que Brígida refletisse acerca de sua acomodação e passividade perante os acontecimentos de sua vida, pois partindo desse momento, Brígida se questiona por que havia suportado durante um ano o casamento com um homem velho, que não lhe havia dado filhos: Le habían quitado su intimidad, su secreto; se encontraba desnuda en medio de la calle, desnuda junto a un marido viejo que le volvía la espalda para dormir, que no le había dado hijos. No comprende cómo hasta entonces no había deseado tener hijos, cómo había llegado a conformarse a la idea de que iba a vivir sin hijos toda su vida. No comprende cómo pudo soportar durante un año esa risa de Luis, esa risa demasiado jovial, esa risa postiza de hombre que se ha adiestrado en la risa porque es necesario reír en determinadas ocasiones (BOMBAL, 1997, p. 217-218). Esses questionamentos fizeram que Brígida se desse conta de que o que lhe faltava era 52 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 amor: “¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad; queria amor, sí, amor, y viajes y locuras, y amor, amor. . .” (Idem, p. 218). 6) Considerações finais Ao longo do estudo, podemos compreender que a relação da mulher tem sido uma relação de acomodação ante a situação de domínio e controle masculino. Mesmo tendo sido relegada por muito tempo a uma situação de submissão, a mulher, muitas vezes, prefere acomodar-se a uma situação de pouco caso e desinteresse por parte do homem (pai, marido) a encontrar-se como alguém inteligente e capaz. Muitas vezes, a aceitação de uma alcunha ou uma designação qualquer por parte de outrem acaba sendo acatada, sem ao menos ser questionada. Em El árbol, há uma passagem em que Brígida se conforma em ser ignorante: “¡Qué agradable es ser ignorante!” (BOMBAL, 1997, p. 206). Em outro momento, Brígida se lamenta por não ter nascido inteligente: “Para ser inteligente hay que empezar desde chica, ¿no es verdad?” (Idem, p. 210). Mais adiante, Brígida concede razão ao pai, quando a declarara retardada: “Su padre tenía razón al declararla retardada” (Idem, p. 211). Ante o desejo de insultar a Luís, Brígida se dá conta de que não conhece palavras que possam magoá-lo: “Ella se había sentado en la cama, dispuesta a insultar. Pero en vano buscó palabras hirientes que gritarle. No sabía nada, nada. Ni siquiera insultar” (Idem, p. 211) O fragmento abaixo mostra o momento em que a personagem principal conforma-se em aceitar a vida tal como ela é, mesmo que medíocre, como algo sublime e irremediável: En ella los impulsos se abatieron tan bruscamente como se habían precipitado. ¡A qué exaltarse inútilmente! Luís la quería con ternura y medida; si alguna vez llegara a odiarla, la odiaría con justicia y prudencia. Y eso era la vida. Se acercó a la ventana, apoyó la frente contra el vidrio glacial, Allí estaba el gomero recibiendo serenamente la lluvia que lo golpeaba, tranquilo y regular. El cuarto se inmovilizaba en la penumbra, ordenado y silencioso. Todo parecía detenerse, eterno y muy noble. Eso era la vida. Y había cierta grandeza en aceptarla así, mediocre, como algo definitivo, irremediable. Mientras del fondo de las cosas parecía brotar y subir una melodía de palabras graves y lentas que ella se quedó escuchando: "Siempre". "Nunca"... (BOMBAL, 1997, p. 214). Por fim, Brígida se dá conta de que sua vida não lhe dava entusiasmo, no entanto a felicidade para ela se encontrava na convicção de que se havia perdido irremediavelmente a felicidade: Echada sobre el diván, ella esperaba pacientemente la hora de la cena, la llegada improbable de Luis. Había vuelto a hablarle, había vuelto a ser su mujer, sin entusiasmo y sin ira. Ya no lo quería. Pero ya no sufría. Por el contrario, se había apoderado de ella una inesperada sensación de plenitud, de placidez. Ya nadie ni nada podría herirla. Puede que la ver- 53 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 dadera felicidad esté en la convicción de que se há perdido irremediablemente la felicidad (Idem, p. 216). Conforme vimos ao longo do ensaio, Brígida representa a resignação e o acomodamento feminino. Mesmo tendo consciência de que não é feliz, a jovem prefere manter-se presa a uma situação de passividade e ausência de voz diante de seu pai e marido. A voz que cala permite à Brígida que outras vozes falem por ela. Em outras palavras, o auto-aniquilamento da jovem significa o deixar-se conduzir pelas considerações de terceiros, em lugar de refletir sobre seus próprios anseios em busca de fatos ou pessoas que a façam verdadeiramente feliz. Referências BELTRÃO, Pedro Calderan S.J. Sociologia da família contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 1970. BOMBAL, Maria Luisa. Obras Completas. Santiago de Chile: Editorial Andrés Bello, 1997. GAZOLLA, Ana Lúcia Almeida (org.). A mulher na literatura. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990. MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. PIRES, Vera Lúcia “A identidade do sujeito feminino e o resgate de sua resistência: um fator cultural”. In: LUCENA, Maria Inês Ghilardi (org.). Representações do feminino. Campinas, SP: Átomo, 2003. REVISTA Gênero de onde vens, para onde vais? Florianópolis: Escola Sul CUT, 1999. SAAVEDRA, Carola. O fantasma da literatura feminina. Jornal Rascunho, Curitiba, out., 2012. Disponível em: <http://rascunho.gazetadopovo.com.br/o-fantasma-da-literatura-feminina/>. Acesso em: 24 jun. 2014. STREY, Marlene Neves (org.). Mulheres, estudos de gênero. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1997. 54 A VOZ NA PEÇA RADIOFÔNICA DE ARTAUD E SUA LINGUAGEM SUBVERSIVA MARGINAL THE VOICE IN THE RADIOPHONIC PLAY OF ARTAUD AND HIS SUBVERSIVE MARGINAL LANGUAGE Danielli Rodrigues (PG - UEL) RESUMO: A palavra tem um valor semântico inquestionável; porém, é na voz que há a exploração dos sons produzindo os sentidos. Sabe-se que no fim do século XIX e início do século XX houve uma decadência na representação somente do texto escrito, e a preocupação se torna alcançar o envolvimento público através das sonoridades; surgem diversos trabalhos como de Stanislavski, Brecht, Artaud e Grotowski. Para este estudo, tem-se a peça radiofônica A procura da fecalidade de Artaud, cuja proposta é de reconstrução do homem e do corpo, buscando o trabalho com a voz e, consequentemente, com a palavra a partir de uma linguagem subversiva marginal da experiêncialimite e literária do escritor. Palavras-chave: Artaud, linguagem subversiva marginal, rádio. ABSTRACT: The word has a semantic value unquestionable, but it is in the voice which there is the exploration of sounds by producing meanings. It is known that in the end of XIX century and in the beginning of XX century there was a decadence in the representation of only written text, and the concern becomes to achieve the public involvement through sonorities; Diverse works arise from researchers such as Stanislavski, Brecht, Artaud and Grotowski. For this study, it has the radiophonic play known as The Pursuit of Fecality by Artaud which purpose is the reconstruction of man and its body, bringing the voice work and consequently with the word from a marginal subversive language of the limit experience and literary of the writer. Keywords: Artaud, marginal subversive language, radio. A manifestação da insanidade, fator que coloca o personagem num lugar à parte, marginal, é o meio que permite penetrar numa esfera interdita aos normais, dando acesso a verdades esquecidas ou não reveladas. (Cecília de Lara) Os movimentos das vanguardas europeias no início do século XX contribuíram para que a leitura somente do texto não tivesse apenas a palavra escrita como sendo o essencial; buscou-se novos caminhos, a voz deixou de ser apenas para audição, declamação e começou a ter outras dimensões. A voz é um elemento vivo e dinâmico, além de uma compreensão auditiva, desperta ideias e sensações. A voz se faz presente tanto em uma dimensão física, na questão acústica, articulação dos sons ou na sua percepção; como também na dimensão psicológica, produzindo imagem a partir da acústica e articulação da criação dos movimentos dos sons. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Stanislavski proporcionou uma libertação da criação, aumentando as possibilidades de encenação; as falas começaram a ser apresentadas de modo espontâneo, natural, orgânico. O método de ações físicas proposto por ele tinha por objetivo a junção das ações físicas e psíquicas através de uma interpretação próxima à realidade cotidiana, a voz como parte do corpo em sua ação. A corporeidade torna-se realizável na locução, entonação, pausas, enfim, nos elementos que estão presentes na voz do ator. Partindo da ideia da voz como ação e da formação da ação física, e dando continuidade a essas ideias, surgiram outros estudiosos como Brecht, Artaud e Grotowski. Dentre eles, é notável a importância de Artaud, dramaturgo francês, nascido em Marselha em 1896 e que, em 1948, morreu em Paris, ligado à vanguarda surrealista, reinventou a linguagem teatral, sendo considerado atualmente um renome dos artistas surrealistas. Sua linguagem radical trouxe polêmica e estranhamento ao público, tanto pela questão das novas técnicas de corporeidade como pelo conteúdo, ou por suas atitudes: [...] Para Artaud, que viveu num século de guerra mundial, não era basicamente doente, mas destrutiva; e, por sua vez, precisava ser destruída. Artaud incessantemente soltava seus trovões em todas as direções possíveis contra tudo o que era convencional e tradicional, que negava a vida, que estava morto. Como os dadaístas e surrealistas com os quais se associou, Artaud, seguindo Nietzsche, exclui-se da sociedade num movimento duplo de rejeitar e ser rejeitado, marginalizar e ser marginalizado. Ele seria um marginal rebelde [...] (PORTER, 1990, p. 181). Foi rejeitado pelo público, devido as suas provocações morais e comportamentos estranhos ao fazer uso do espaço, da vocalidade, tornando-se corporeidade; ao desligamento do texto à defesa da linguagem de expressão de verdades secretas, em rituais, com gestos criando significados na formação de discursos em suas peças. Somam-se a esses elementos os seus internamentos e tratamentos com choques. Artaud parece demonstrar uma escrita automática, à maneira dos surrealistas, em uma linguagem sintética e por vezes (in) consciente, como aponta Foucault (2009, p. 33), a loucura de forma geral pode tornar-se uma das formas da razão. Aquela integra-se nesta, constituindo seja uma de suas forças secretas, seja um dos momentos de sua manifestação, seja uma forma paradoxal na qual pode tomar consciência de si mesma. De todos os modos, a loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão (FOUCAULT, 2009, p. 33). Para tanto, o conceito de loucura abordado e desenvolvido por Foucault, em seu livro História da Loucura, relata a historicidade do fenômeno da loucura desde o Renascimento até a modernidade, apresentando as diversas formas que a humanidade caracterizava e tratava da loucura ao longo dos séculos. Entretanto, é perceptível que com o aparecimento da Psiquiatria ocorreram mudanças significativas tanto nessa caracterização quanto no tratamento da loucura. Vale salientar 56 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 que o louco não era digno de ter cidadania e pensamento, tampouco ter garantida a própria identidade e comportamento, assim surgiam e ressurgiam diversas manifestações da loucura, ora conscientes, ora inconscientes, tendo somente sentido e valor no campo da razão. Desse modo, originavam variadas personagens com as manifestações da loucura, dentre elas, Foucault destaca as atitudes e obras de Artaud. Na obra Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus, de Artaud, é possível identificar a sua ambição na essência de seu trabalho, seja como ator, feiticeiro, relator do retorno das terras dos tarahumaras ou ritualista. Nela, a peça Procura da Fecalidade, apresenta a reconstrução da linguagem, do homem e do próprio corpo: Là ou ça sent la merde ça sent l’être. L’homme aurait très bien pu ne pas chier, ne pas ouvrir la poche anale, mais il a choisi de chier comme il aurait choisi de vivre au lieu de consentir à vivre mort. C’est que pour ne pas faire caca, il lui aurait fallu consentir à ne pas être, mais il n’a pas pu se résoudre à perdre l’être, c’est-à-dire à mourir vivant. (ARTAUD, 1947). Nota-se que a reflexão sobre viver, morrer e ser partem das fezes. Loucura? Artaud é apontado pela sociedade como um louco, um desvio social. O autor propõe a destruição, a consciência da crueldade para a busca da liberdade, a desnaturalização das normas sociais e que a interação social não seja acometida apenas pela garantia da ordem: [...] No entanto, a crítica de Nietzsche, todos os grandes valores investidos na partilha dos asilos e a grande procura que Artaud, após Nerval, efetuou implacavelmente em si mesmo, são suficientes testemunhos de que todas as outras formas de consciência de loucura ainda vivem no âmago de nossa cultura [...] (FOUCAULT, 2009, p. 171). De acordo com Foucault, a experiência da loucura nasce e ameaça atenuar-se, implicando com a razão. Houve a criação de hospitais e clínicas, por conseguinte, o internamento dos considerados loucos pela sociedade. Mais tarde, com os estudos de Sigmund Freud, a loucura permaneceu como interdito da linguagem: Na história ocidental, a experiência da loucura deslocou-se ao longo dessa escala. Para dizer a verdade, ela ocupou por muito tempo uma região indecisa, difícil de precisar, entre o interdito da ação e o da linguagem [...] segundo os registros do gesto e da palavra, o mundo da loucura até o final do Renascimento [...] (FOUCAULT, 2010, p. 215). 57 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 A loucura como interdito da linguagem apresenta diversas representações, sejam em obras plásticas e/ou literárias. Dentro de seu desprendimento, a experiência desse autor, aqui tratada como experiência-limite, coloca-se em um movimento de continuidade ao retomar a atividade da experiência literária, esta retomada é uma experiência consumada em seu puro êxtase: [...] “Que importa quem fala?” Nessa indiferença se afirma o princípio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial não é constatar uma vez mais seu desaparecimento; é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório –, os locais onde sua função é exercida [...] (FOUCAULT, 2009, p. 264). O exercício da experiência literária é tido por meio de seu silêncio, a sua escrita tem uma parte de si que não lhe pertence, pertence somente à escrita, à própria obra. A linguagem pertence ao próprio texto e não ao autor, há um apagamento, uma eliminação do “eu” autor, uma experiência-limite. Afinal, tem-se a loucura propriamente dita e da performance de loucura que surgem nas obras de Artaud, isto é, há diversas manifestações do fenômeno da loucura imbuídas no escritor. Para Foucault, o conceito dessa eliminação e ausência seria uma experiência trágica da própria loucura que, por meio de uma experiência crítica, entra em uma transgressão. Então, nessa experiência trágica, não há questionamento relativo à razão propriamente dita; já a experiência crítica está pautada pela racionalidade. A experiência de Artaud envolve o limite da escrita, da linguagem. O escritor explora tal limite como uma ausência da obra. Em momentos de privação, é o mesmo que escreve e desenha, tudo é possibilidade de representação. Sua obra apresenta mudança da ordem social estabelecida de acordo com a sua ideia de liberdade. A proposta de revolução na linguagem, persistência da corporeidade, a vocalidade com a crueldade, a busca de novas técnicas, que vai de um sopro, significando a ausência, a um suspiro, significando o passado. Assim, faz uso da ausência de escrita, da perda, da falha de pensamento e da própria escrita com palavras ilegíveis, tudo conduzindo à corporeidade. Artaud apresenta uma experiência da linguagem como experiência-limite, sendo uma experiência através do espaço literário do teatro que ocorre lado a lado com sua expressão na linguagem subversiva marginal. O tempo e espaço dessa linguagem criada por Artaud extrapolam a semântica das palavras e vão muito além da metafísica, a voz como corporeidade traz o interior e o exterior amalgamados no contato do sujeito com o mundo. A peça trata de uma construção estética com sentidos que permanecem pontos de tensão com códigos linguísticos baseados na própria ação dramática, tendo como proposta uma escrita processual performática e desconstrutivista, ainda com 58 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 a valorização da voz, da imagem dialética negativa, do anacronismo exacerbado. Além disso, de acordo com Foucault, podemos considerar o conceito de ausência de obra, isto é, a retomada da experiência trágica da loucura sendo silenciada pela experiência crítica, consequentemente com um contraste da linguagem subversiva e marginal de Artaud, ausente e silenciosa, modificando a forma de escrever e até mesmo de compreender a estética, então “Antonin Artaud passa internado no asilo, ‘deportado na França’, como ele próprio se descreve, submetido ao poder da psiquiatria, em sua forma mais violenta: o eletrochoque que provoca o ‘coma’” (REY, 2002, p. 39) arraigado da própria experiência-limite da escrita e da experiência trágica da loucura. Para Blanchot, a experiência limite retira radicalmente o sujeito de si, visto que ele está em crise existencial até mesmo de sua própria experiência, há a perda do sujeito. Desse modo, para verificar a possibilidade da experiência da linguagem se fizeram necessários esses conceitos de Foucault e Blanchot. O autor possui obras escritas dentro e fora do internamento psiquiátrico com diversas experimentações de linguagem com a voz. De acordo com Aleixo (2002), ao se tratar de voz como corpo, tem-se um processo da ação de diversos campos orgânicos, seja pela afetividade, memória, sentidos, musculatura, como até pela ossatura, oportunizando uma complexidade e astúcia particulares na criação. O autor reflete sobre tais possibilidades vocais somadas à sua técnica durante o processo criativo. Sendo assim, na técnica vocal para o teatro é utilizada a vocalidade, momento em que há a aplicação dos recursos vocais baseados nos aspectos fisiológicos, culturais, nas técnicas e linguagens. Além disso, executa o código vocal, sendo o concentrador do conteúdo expresso e de toda a comunicação oral. Para tanto, é necessário que o autor conheça e domine as técnicas não só instrumentais, mas também a vocal e a criação; por isso, na preparação vocal, o ator deve adotar metodologias específicas tanto no físico como no vocal, com uma aplicação técnica adequada em seu conteúdo levando à potencialização dos recursos expressivos. Dessa forma, é preciso respeitar suas potencialidades psicofísicas para a obtenção de expressões corporais e produtividade da voz; visto que a voz, assim como o corpo, tem em sua dimensão orgânica grande potencialidade de representação no teatro, conforme a citação de Aleixo das diretrizes apontadas por Grotowski sobre o trabalho vocal do ator: [...] Para cada situação, e para a sua interpretação pela voz, pode-se tentar encontrar a ressonância apropriada. Isto se aplica ao treinamento, mas não ao preparo do papel. Os exercícios e o trabalho criativo não devem se misturar [...]. Meu princípio básico é o seguinte: não pense no instrumento vocal, não pense nas palavras, mas reaja - reaja com o corpo. O corpo é o primeiro vibrador, a primeira caixa de ressonância. (GROTOWSKI, 1971, p. 138 apud ALEIXO, 2002). 59 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Aleixo (2002) cita também que o corpo, segundo a definição de Klaus Vianna, tem uma variedade de movimentos que são originados de impulsos interiores que se exteriorizam por meio do gesto, relacionando-se com o ritmo, espaço, emoções, sentimentos e intenções; o que justifica a comparação com ressonâncias, pois esses impulsos corporais geram as ações vocais (de entonação, de pausa, de ritmo e de gesto). Igualmente: Uma palavra não começa sendo uma palavra - é o produto final iniciado com um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expressão. Este processo acontece dentro do dramaturgo. É repetido dentro do ator. Ambos talvez estejam apenas conscientes das palavras. Mas tanto para autor, como depois para ator, a palavra é a pequena porção visível de um conjunto gigante de invisível (ALEIXO, 2002). A procura da fecalidade, criada em 1948, foi proferida por Artaud e alguns amigos em uma rádio. Na referida obra encontram-se vários elementos sonoros, como a voz com a palavra, os gritos, os murmúrios, as pausas, os ruídos, a expressão vocal primitiva, linguagem vulgar e voz grave. Nessa peça há uma proposta de reconstrução do homem e do corpo. Artaud utiliza a voz como componente principal, mudando entonações juntamente com outros elementos por meio do som, do ruído e da palavra. Artaud, apesar de não seguir as concepções de Stanislavki, mantém o desejo intenso de alcançar o envolvimento com o público através dos sentidos. Para isto, ao utilizar as palavras, tanto as defendia como as destruía. O uso da voz é essencial à sensibilização do público, trabalhando a partir da voz possíveis criações de imagens. Embora ele não estabeleça técnicas de domínio do ator, é perceptível que o ator deve buscar a voz como processo de criação mesmo que, para isso, seja necessária a destruição da sintaxe, buscando não a linguagem articulada, mas a profundidade do pensamento: o reche modo to edire di za tau dari do padera coco (ARTAUD, 1947). Há uma busca de exploração dos sons produzindo os sentidos, atingindo um ponto alto com relação aos significantes e não apenas com o significado. Para Artaud, não era uma pregação da extinção ou rejeição da palavra, mas um questionamento e reivindicação de livre criação, mais possibilidades para se trabalhar com a palavra, privilegiando a expressão das sonoridades no público. Segundo Gayotto (1997), cabe ao ator inventar a construção da voz para o personagem 60 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 e, ao ouvir a criação da voz, o ouvinte é um ser afetado pela ação vocal construída pelos recursos vocais e forças vitais. Os recursos vocais abrangem os recursos primários da voz, como respiração, intensidade, frequência, ressonância, articulação; e os recursos resultantes, como as dinâmicas da voz compreendidas em projeção, volume, ritmo, velocidade, entonação, fluência, duração, pausas interpretativas e ênfase. Tais recursos, em sua combinação, demonstram as intenções vocais. Já as forças vitais, que Gayotto afirma serem empregadas por Nietzsche, permitem os vários planos da imaginação, estimulando as sensações. Artaud faz um uso de marcação invejável em suas partituras, aqui não será feita a análise dessas partituras com as marcações; porém, há uma breve apresentação delas com o intuito de demonstrar os recursos vocais e as forças vitais da ação vocal. No entanto, é necessário que ouça essa peça radiofônica para uma melhor compreensão dos apontamentos realizados. No início da peça, a velocidade das ênfases e do movimento da voz é lenta, a ação é prolongada com a tendência de frequência grave, buscando os sentidos: Là ou ça sent la merde ça sent l’être. L’homme aurait très bien pu ne pas chier, ne pas ouvrir la poche anale, mais il a choisi de chier comme il aurait choisi de vivre au lieu de consentir à vivre mort [...] LE CACA. (Ici rugissements) (ARTAUD, 1947). A linguagem utilizada é marcante, o ouvinte é levado à reflexão de sua própria linguagem. Há vários elementos sonoros como a voz com a palavra, os gritos, os murmúrios, as pausas interpretativas, os ruídos, conforme também é possível verificar no primeiro exemplo citado. O autor, por vezes, utiliza uma cadência silabada com duração no alongamento, ora com velocidade rápida, intensidade forte e articulação com força, ora com velocidade lenta, intensidade fraca e articulação com abrandamento como em: o reche modo to edire di za tau dari do padera coco [...] 61 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 LE CACA [...] Alors les bêtes l’ont mangé (ARTAUD, 1947). Na peça, há uma proposta de reconstrução do homem e do corpo. Artaud utiliza a voz como componente principal, mudando entonações juntamente com outros elementos como sons, ruídos ou palavras. A voz desperta no ouvinte diversas ideias, como sensações. Há combinações de ideias, palavras e ruídos. A voz se torna corporeidade em um determinado ritmo que é mudado a partir do primeiro exemplo dado, usando uma expressão vocal primitiva. A voz do ator busca a eficácia, explorando as potencialidades do corpo para a criação, não apenas como representação, mas sim com vivacidade: [...] où dieu croyait l’avoir depuis longtemps clouée, s’est révoltée, et, bardée de fer, de sang, de feu, et d’ossements, avance, invectivant l’Invisible afin d’y finir le JUGEMENT DE DIEU (ARTAUD, 1947). Artaud, com certeza, abandona as utilizações formais da palavra para dar espaço à linguagem de teatro nas vibrações e condições da voz, ritmos alucinados como sons martelando, buscando exaltar, paralisar, encantar, estagnar a sensibilidade. Tais vibrações e condições de voz não comuns se comunicam com a sensibilidade, a cena em seu espaço físico se completa com a sua linguagem concreta. A linguagem representa o todo da cena e toda possível manifestação expressiva pertinente. Tal representação se dá pela materialização física da voz, adquirindo em sua interpretação outros significados de acordo com o som e o movimento da voz e expressando uma ideia, enquanto corporeidade. Tais intensidades corporais dependem do ator. Na escuta dessas partituras vocais, a voz de frequência é grave, certamente a voz grave compõe a natureza própria do ator, o personagem traz fortemente o homem/masculino da peça. A articulação precisa, por vezes sobre articulada, com duração maior pelos alongamentos, com algumas cadências silabadas, algumas sílabas reforçadas e palavras enfatizadas no percurso da narrativa; as variações de intensidade são realizadas com facilidade, sendo que há uma diversidade de intensidades, nível mais fraco em suas primeiras ações, depois crescente, alcançando o forte e o muito forte com algumas intensidades suaves, no final um nível de intensidade forte. No percurso da peça, a intensidade e frequência de voz aumentam sob uma forma mista de voz cantada e falada, principalmente quando há desconstrução da sintaxe; a ressonância é mista, de cabeça, mediana e peito, 62 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 muitas vezes, alta, com curvas melódicas variadas, alongadas, intensidade forte, articulação exagerada, às vezes, também um pouco de nasalidade. Artaud, em sua estética, utiliza um ideal destrutivo para a construção de significados, um descontrole da expressão que traz reflexão em torno do consciente e do subconsciente, lembrando-se das tendências do surrealismo. Essa peça versa sobre a transformação do homem e da sociedade, o teatro vai se criando, progredindo durante a peça. O ouvinte reflete a todo o momento a voz e o seu uso durante o teatro, a voz não é apenas uma mera audição, somente para a compreensão do público, mas sim para obter sensações e envolvimento dele: Cela vient de ce que l’homme, un beau jour, a arrêté l’idée du monde. […] Et il a choisi l’infime dedans. Là où il n’y a qu’à presser le rat, la langue, l’anus ou le gland (ARTAUD, 1947). Sem dúvida, mesmo que as palavras tenham sentido semântico, é no significante, ou seja, a forma como foram exploradas as sonoridades, que se têm os sentidos em toda cena orgânica e sensibilização do público. É perceptível o quanto a voz envolve o público e permite sensações por meio das sonoridades produzidas durante a criação, tanto pelas palavras como por meio de sons não verbais. Artaud eleva a voz em relação à expressividade, à forma e a sonoridades enquanto sensibilização sonora do público ouvinte, com a exploração máxima da corporeidade para que haja vida no personagem, não somente a representação. Desse modo, a linguagem apresentada expressa um grande impacto, além da agressividade imposta, tendo como consequência no público o desconforto, que possibilita a promoção da mudança. Essa estética de desconforto não é gratuita, trata-se de um efeito proposital da recepção literária de sua obra que nos eleva ao caminho da reflexão consciente de nossa realidade marginal, marcando, assim, um processo de transformação do ser e do pensamento. Seja de forma implícita ou explicitamente, os personagens malditos de Artaud são mais do que autênticos, são produtos da sociedade, bem como a linguagem subversiva marginal advinda da expressão corporal no teatro sendo intensa, agressiva, polêmica por vezes trazendo a calamidade do nosso próprio (in) consciente. Fica, como adendo, a reflexão da voz no envolvimento do público, de acordo com a 63 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 produção de sons, tanto das palavras ou de outros recursos não verbais, em um espaço e tempo em que Artaud reúne a linguagem subversiva de sua experiência-limite e literária da linguagem na expressão corporal do teatro pelos personagens malditos com um viés marginal da sociedade, a fim de que possamos contribuir para uma conscientização humanizadora. Referências ALEIXO, Fernando. Corporeidade da Voz: aspectos do trabalho vocal do ator - Cadernos da PósGraduação IA / UNICAMP - Ano 6, Volume 6 - Nº. 1, 2002. Disponível em: <http://www.republicacenica.com.br/dowloads/textos/corporeidadedavoz.pdf>. Acesso em: 15 set. 2013. ARTAUD, Antonin. À procura da fecalidade: Para acabar de vez com o juízo de Deus. Trad. Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes. Lisboa: Gallimard, 1975. pp. 27- 33. ______. La recherche de la fécalité (performed by Roger Blin). Pour finir avec le jugement de dieu. Faixa 5. Radiodiffusion française: Paris, 1947. CD (4min34seg). In: ______. UBUWEB SOUND. Disponível em: http://www.ubu.com/sound/artaud.html. Acesso: 15 set. 2013. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. ______. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007. GAYOTTO, Lucia Helena. Voz-Partitura da ação. São Paulo: Summus, 1997. FOUCAULT, Michel. A História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2009. ______. “A Loucura, a Ausência da obra”. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. pp. 210 – 219. ______. O que é um Autor? Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264 – 298. POTER, Roy. De bobos a marginais. Uma história social da loucura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 181-186. REY, Jean-Michel. O Nascimento da Poesia. Antonin Artaud. Tradução de Ruth Silviano Brandão. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 64 O POETA E A CIDADE - DA PARIS DE CHARLES BAUDELAIRE AO RIO DE RAMON MELLO THE POET AND THE CITY - FROM CHARLES BAUDELAIRE’S PARIS TO RAMON MELLO’S RIO Vagner Rangel (PG – UERJ) RESUMO: Este texto propõe a leitura de alguns poemas de As flores de Mal, de Charles Baudelaire, da seção Quadros Parisienses, e alguns poemas de Vinis Mofados de Ramon Mello, a partir das considerações de Giorgio Agamben sobre o que seria um dispositivo e a sua influência sobre o indivíduo na sociedade moderna. Baseando-se nisto, o texto pretende captar o momento de interseção entre a cidade e os seus elementos enquanto dispositivos e o indivíduo, aqui representado pela figura do poeta em si e de outras figuras que aparecem nos poemas. Palavras-chave: Poesia, cidade, dispositivo, modernidade. ABSTRACT: This text suggests reading some poems from Flowers of evil, by Charles Baudelaire, in the section Parisian scenes, and some others from Vinis Mofados by Ramon Mello, taking into consideration what Giorgio Agamben says about the notion of device and its influence over the modern society and the self. Based on that, this work aims to focus on the woven moment, in which the modern city and its components as devices and the self, which is presented here by the poet’s figure. Keywords: Poetry, city, device, modernity. 1. Introdução De uma perspectiva comparativista, O poeta e a cidade trabalha com alguns poemas de As flores de Mal, de Charles Baudelaire (2012), e alguns poemas extraídos ao longo de Vinis Mofados, de Ramon Mello (2009), a fim de mostrar o quanto a cidade – símbolo da idade moderna –, enquanto um dispositivo (AGAMBEM, 2009, p. 25-51), vem à tona por intermédio da voz poética na obra destes autores. No entanto, da obra de Charles Baudelaire até a de Ramon Mello, percebemos uma gradação às avessas que, segundo pretende-se mostrar ao longo deste trabalho, relacionase a dois momentos distintos da sociedade como a conhecemos. Primeiro ela aparecerá de forma bem profusa, o que corresponderia à emergência deste dispositivo novo ao sujeito. Uma vez consolidada e, seguindo o raciocínio de Agambem (2009, p. 25-51), tendo influenciado a formação do sujeito moderno, ela aparece através de fragmentos do real, configurando uma economia poética sobre a cidade. 2. A cidade, o dispositivo e o sujeito REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 A partir da Revolução Industrial, há uma reorganização da cidade em torno de suas fábricas, estandartes da modernidade. Daí, a cidade torna-se um espaço de intenso trânsito entre seus habitantes, independente de suas classes sociais. Diferentemente da vida em feudos, o espaço urbano é recortado por vias e atravessado por elas, o que permite circulação dos transeuntes (BERMAN, 2007; GIDDENS, 1991). Essa disposição da cidade será aqui entendida como um dispositivo, na acepção de Giorgio Agamben: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (2009, p. 40-41). Por conseguinte, esse trabalho também adota as considerações do autor sobre uma possível definição de sujeito: “(...) o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (Ibid., p. 41), para então perceber a ruptura originada pela obra As flores do mal, de Charles Baudelaire (2012), isto é, compreender o lugar de destaque que Baudelaire dá a cidade e aos seus residentes em sua obra. Em Mímesis e Modernidade, Luiz Costa Lima (2003) trata da distância vertical entre a figura do poeta romântico em relação ao leitor do século XIX – é como se o poeta se dirigisse ao leitor do alto de um púlpito – e o apagamento da mesma em Charles Baudelaire. Este se aproxima do leitor e já não há mais uma enunciação de cima para baixo. “Hipócrita leitor, - meu igual, meu irmão!” (BAUDELAIRE, 2012, p.124). (...) não é uma flor de retórica, mas resulta de uma situação específica: no centro financeiro que é Paris, as ascensões e quedas são iminentes; nestes anos de ‘restauração’ dos bons costumes, é preciso fingir que o amor ao dinheiro não prejudica a devoção à realeza e à religião (LIMA, 2003, p. 127). Assim, a voz poética baudelairiana articula as contradições e paradoxos dos tempos modernos: [o] conflito ideológico, usando a palavra aqui no sentido de ‘conjunto de idéias’, que marca o século XIX: de um lado o ‘modelo consciente’ (Lévi-Strauss) – a orientação de fundo cristão – de outro, a estrutura das relações capitalistas. Como esta no entanto se pretende justificada pelo cristianismo, não cabe aos contemporâneos, em geral, senão a farsa da honestidade (2003, p. 129). Daí alguns poemas da seção Quadros Parisienses, em As flores do Mal (2012), tornamse o corpus deste trabalho, que tem o propósito de observar a cidade em Baudelaire – pois, ao flanar pela Paris, palco da dissimulação abordada por Baudelaire, a cidade emerge nos poemas: Paisagem; Os sete velhos; Os cegos; A uma passante e Sonho parisiense (BAUDELAIRE, 2012, p. 305-57) e (b) tem como objetivo final contrastá-la com a imagem da cidade em alguns poemas de Vinis Mofados: Sebo (p. 38); Bairro Peixoto (p. 39); Música urbana (p.88) e Trânsito (p.89), de Ramon Mello 66 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 (2009). 3. A Paris em “Quadros Parisienses” Em a Paisagem (BAUDELAIRE, 2012, p. 305), ao descrever o cenário urbano, a voz poética nos permite fitar a Paris de então: a quietude das igrejas e a suavidade dos campanários contrastam com a correria dos operários absortos no trabalho braçal na fábrica: Quero, para compor os meus castos monólogos, / Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos, / E, junto aos campanários, escutar sonhando / Solenes cânticos que o vento vai levando. / As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada, / Verei a fábrica em azáfama engolfada. Na cidade, calmaria e tranquilidade convergem com agitação e rumor de vozes a trabalhar. Por outro lado, se o mar fora o símbolo de bravura épica e o navio instrumento de descobrimento, o poeta, que não é nenhum pássaro – seja de sorte ou de agouro – parece perceber a cidade como o mar de outrora e a fábrica como o navio: “Torres e chaminés, os mastros da cidade”. Assim temos a imagem da cidade-mar e a fábrica-navio, que podem estar rumo ao descobrimento de eventos que ele, o poeta, “(...), em meio à bruma que nos vela” parece intuir, no entanto esse conhecimento será comum a todos quando Com seu lençol de neve, o inverno for chegando, Cada postigo fecharei com férreos elos Para noite erguer meus mágicos castelos. Hei de sonhar então com azulados astros, Jardins onde a água chora em meio aos alabastros, Beijos, aves que cantam de manhã e à tarde, E tudo o que no Idílio de infantil se guarde. O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça, Não me fará mover a fronte ao que se passa, Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento De relembrar a Primavera em pensamento Em um sol na lama colher, tal como quem, absorto, Entre as ideias goza um tépido conforto Por ora, o poeta se deleita no contraste entre as luzes naturais e artificiais: “É doce ver (...) / Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela”. Sendo a cidade-mar e a fábrica-navio os dispositivos enquanto espaços novos de conquista e aventura humana, o poeta, em O Sol (p. 307), se compara com o astro, que, no período das grandes navegações, era a luz que orientava as embarcações sobre o desconhecido mar: “Quando às cidades ele vai, tal como um poeta, / Eis que redime até a coisa mais abjeta, / E adentra como rei, 67 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 sem bulha ou serviçais, / Quer os palácios, quer os tristes hospitais.” Daí, ao flanar pela cidade, o poeta, bem como o sol, “sem bulha”, remoça a trivialidade da vida moderna nos campos, nos subúrbios e nos hospitais. Estendendo a comparação entre o sol e o poeta feita a outros poemas, como A uma mendiga ruiva (p. 309-13), percebemos o quanto, ainda que destituída de posses, ela, a mendiga, tem mais graça e requinte, para o poeta, do que as moças que se vestem de acordo com a moda: Moça de ruivo cabelo, Cuja roupa em desmazelo Deixa ver tanto a pobreza Quanto a beleza, Para mim, poeta sem viço, Teu jovem corpo enfermiço, Cheio de sardas e agruras, Tem só doçuras. Calças com pés mais ligeiros Os teus tamancos grosseiros Do que essas damas tão finas Suas botinhas (...) Já em Os sete velhos (2012, p. 319), a cidade aparece como uma fábrica de sonhos a pleno vapor e ruas estreitas são ocupadas por operários tocando grandes carroças que são puxadas por bois num contraste com senhores em farrapos que parecem ser mendigos, mas que, para o estupor da voz poética, não pedem esmolas. Porém só o poeta parece estranhar o quanto essas figuras são comuns nas esquinas da cidade: Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante! Flui o mistério em cada esquina, cada fronde Cada estreito canal do colosso possante. Certa manhã, quando na rua triste e alheia, (...) Uma névoa encardida enchia todo o espaço, Eu ia, qual herói de nervos retesados, (...) Súbito, um velho, cujos trapos pareciam Reproduzir a cor do tempestuoso céu E a cujo pobre aspecto esmolas choveria, Não fosse o mal que lhe brilhava no olho incréu, Me apareceu. Dir-se-ia que, em fel banhada, Sua pupila o ardor dos gelos aguçava, E a barba, em longos pelos, qual aguda espada, Análoga à de Judas, no ar se projetava. 68 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 (...) Outro o seguia: barba, dorso, olhos, molambos - Enfim, tudo era igual, do mesmo inferno oriundo, Neste gêmeo senil, e caminhavam ambos Com mesmo passo não se sabe a que outro mundo. (...) Sete vezes contei, minuto após minuto, Este sinistro ancião que se multiplicava! Aquele que ri de tamanha inquietude, E que jamais sentiu um frêmito fraterno, Cuide bem que, apesar de tal descrepitude, Os sete hediondos monstros tinham o ar eterno! Furioso como um ébrio que vê dois em tudo, Entrei, fechei a porta, trêmulo e perplexo, Transido e enfermo, o espírito confuso e mudo, Fendido por mistérios e visões sem nexo! Sendo a artéria da cidade, a rua é o lugar por excelência do ato de transitar, gerando uma circulação de pessoas e provocando o encontro – mesmo que efêmero – de estranhos. Nesse tráfego característico dos tempos modernos, o poeta, em meio ao turbilhão da cidade, presta tributo a uma mulher desconhecida em luto mas bela, em A uma passante (p. 331-33). A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que a assassina. Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! Talvez a grande movimentação de pessoas pelas ruas da cidade e a casualidade de tais encontros efêmeros façam com que a voz poética não tenha esperança em vê-la de novo, por outro lado, a fé cristã põe em jogo a possibilidade de encontrá-la na eternidade, ou seria ironia em relação à restauração dos bons costumes? A partir desses exemplos, temos acesso à Paris dos poemas de Baudelaire: o contraste de homens trabalhando sem cessar junto à imagem bucólica da igreja, sugerindo a serenidade do 69 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 mundo e promessas cristãs e as aspirações do capitalismo e de suas fábricas, além do encontro com possíveis não integrantes da marcha do progresso, como no poema Os sete velhos. E o poeta, que, assim como aqueles sete senhores, parece intuir o esforço vão do homem moderno em construir, conquistar e dominar, parece deleitar-se por não crer na ideologia capitalista, mas também parece reconhecer que a sua condição já não é a mesma dos poetas românticos. Daí, o poeta desce as ruas e flana pela cidade, assim como o sol que com seus raios de luz toca, sem exceção, todos os cantos do mundo. E, assim, fitamos os becos bem como os bulevares de Paris. 4. O Rio de Janeiro em Vinis Mofados Em Vinis Mofados, o Rio de Janeiro aparece de formas diversas. Com Araruama (p. 25), poema dístico, o poeta retrata o litoral do estado do Rio como um “bebedouro de araras” em contraste com “(alguns) políticos corruptos”. A beleza natural da cidade se mescla a corrupção dos governantes. Já em Sebo (p. 38) e Bairro Peixoto (p. 39), a zona sul do estado vem à tona. No primeiro, percebe-se uma certa brincadeira com o advérbio “barato” e o substantivo “barata”, que é o nome da rua: “baratos da ribeiro / promoção do dia: elis regina richard / strauss (zaratustra) / Beatles gal fa – tal / tudo por cinco real”. Afinal, Copacabana é um bairro oneroso. Ainda no mesmo bairro, o poeta descreve a movimentação noturna dos pedestres, do comércio, dos moradores, dos viciados e casais que se encontram: BAIRRO PEIXOTO à noite na praça edmundo bittencourt caminhão caçamba lotada de frutas anuncia quarta dia de feira porteiros jogam buraco na calçada nos brinquedos do parque vizinhos maconheiros conversam baixinho casais gemem enconstados num táxi uma velhinha acompanha silenciosa canção no terceiro andar do hotel santa clara Através dessa descrição, temos acesso ao cotidiano do bairro e, conhecendo-o, sabemos que “uma velinha” não é por acaso, pois Copacabana é o bairro com maior concentração de idosos por metro quadrado, segundo dados do IBGE. 70 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Já em Música urbana (p. 88) e Trânsito (p. 89), o tráfego é tematizado. No primeiro, no caminho de Saens Peña em direção ao centro da cidade, o poeta se ajeita para cochilar na condução, mas, como de costume, o intenso trânsito da Rua Conde de Bonfim o impede de dormir. Portanto, “(...) o canto dos pneus de carros” se revela o título do poema. Daí a trilha sonora do centro ser o cantar de pneus dos carros indo e vindo. É interessante notar o quanto o poeta não apenas descreve uma observação nesse poema, mas é também incomodado por esse fator externo: MÚSICA URBANA depois pra praça saens peña próximo à uruguai descanso ensaio um cochilo mas a conde de bonfim insiste me acorda com o canto dos pneus de carros Isso também acontece no segundo poema da obra, que se chama Trânsito, ele trata de uma excitação sexual que aconteceu no trânsito. A voz poética sente-se excitada ao notar o gesto de virilidade do taxista: “o taxista / aperta a pica”. E, mais uma vez ela não apenas observa e descreve esta observação, mas está também inserida numa situação cotidiana e, no poema, a voz poética disfarça a atração, para o taxista não notar, ao passo que a confidencia ao leitor: TRÂNSITO o taxista aperta a pica excitado disfarço trânsito congestionado via de mão única 5. Conclusão Nos exemplos citados por este trabalho, a cidade, símbolo e lócus da vida moderna, tem lugar de destaque, ainda que através de abordagens distintas. A voz poética, em Baudelaire, se autodenomina o sol em relação à Paris moderna e nos parece querer atravessá-la em todas as suas nuances desde a fábrica, simbolizando a materialidade da ideologia moderna, seja capitalista e/ou cristão, e os becos escuros e sujos, simbolizando o offstage deste sonho moderno. A cidade e os seus componentes são os dispositivos que contribuem 71 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 para o processo de subjetivação de indivíduos que são retirados da vida em feudos e convidados a fazerem parte dela, a cidade, que vem à tona nos exemplos da obra de Baudelaire. Se, nos exemplos de As flores do Mal (2012), há uma voz poética que, até certo ponto, assim como o sol, pode-se dizer que se distancia daquilo que descreve (ou no caso do sol, toca com os seus raios de luz numa aproximação paradoxal); nos exemplos de Vinis Mofados (2009), há uma maior aproximação da voz poética em relação às descrições, que beira às vezes ao quase contato da voz com aquilo que é descrito. Ademais, nota-se também o quanto os poemas escolhidos de Vinis Mofados são breves e enxutos e, assim, a cidade aparece nos detalhes, nos pormenores do poema, enquanto, nos exemplos escolhidos de Baudelaire, ela emerge com veemência. Os poemas do precursor se assemelham aos raios de sol ao tocar diferentes personagens citadinos, enquanto os do sucessor são mais capciosos e sucintos. Entre distanciamentos e aproximações, percebe-se que o primeiro, ao romper com a tradição, faz da banalidade do cotidiano urbano a motivação de sua poesia, e, assim, inicia a poesia moderna; o segundo, seguindo tal tradição, imprime-lhe a concisão, sendo ela uma de suas marcas. Afinal, seguindo o raciocínio de Agamben (2009), o dispositivo central em Baudelaire é recente, ao passo que em Ramon (2012), séculos depois, ele encontra-se consolidado, o que pode nos ajudar a compreender a profusão do mesmo dispositivo no primeiro e a economia do mesmo no outro. A partir da obra de Charles Baudelaire (2012), a cidade, vista a partir do conceito de dispositivo descrito acima, e o sujeito, compreendido como o resultado do contato direto com tal dispositivo, nos possibilita compreender como a cidade moderna e a ideologia capitalista como dispositivos modernos afetam a vida de indivíduos e o quanto este dispositivo, por outro lado, se encontra estabelecido em Ramon (2009) através de uma concisão que denominamos de economia poética. Outros elementos, tidos aqui como dispositivos, que também constituem a cidade e a subjetividade do indivíduo, aparecem no início deste século XXI, quando é publicada a obra de Ramon Mello (2009). Da Paris de Baudelaire ao Rio de Janeiro de Ramon Mello, a cidade e a ideologia capitalista não estão mais na mira do olhar poético, talvez porque encontram-se mais do que estabelecidas; o olhar, por outro lado, capta a relação intrapessoal e interpessoal do sujeito com a cidade e os dispositivos que formam a sua subjetividade moderno-contemporâneo. De lá para cá, podemos notar, nestes exemplos, o corpo a corpo (AGAMBEM, 2009, p. 40-41) do indivíduo moderno com a cidade, seja na sua formação ou na sua consolidação, e os seus elementos constitutivos captados pela presença poética na paisagem urbana. Referências 72 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo?”. In: O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. LIMA, Luiz Costa. “O Questionamento das Sombras: Mímesis na Modernidade”. In: Mímesis e Modernidade: formas das sombras. São Paulo: Paz e Terra, 2003. MELLO, Ramon. Vinis Mofados. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. 73 SEÇÃO DE TEMA LIVRE O NARRADOR EM JORGE LUIS BORGES: INTERFACES DO LEITOR THE NARRATOR IN JORGE LUÍS BORGES: INTERFACES OF THE READER Genival MOTA (PG - UEMS) Danglei de Castro PEREIRA (UEMS) RESUMO: O artigo discute o conto “A Biblioteca de Babel”, de autoria de Jorge Luis Borges, compreendendo a metalinguagem, enquanto marca linguística da figura do narratário na obra do autor argentino. Valoriza os mecanismos diegéticos constitutivos da linguagem em Borges e verifica em que medida o texto borgiano discute a relação entre narrador, narratário e formação de leitores por meio da literatura. A ideia central é verificar o papel do livro na ficcção borgiana em um processo de criação literária, fato que conduz a importância da metalinguagem como fio condutor da obra de Jorge Luís Borges. O trabalho procura identificar, também, a relação que o narrador estabelece com o narratário no interior do conto em discussão e, de que maneira este diálogo contribui para a importância dada à leitura no texto borgiano. Palavras-chave: Borges, leitor, leitura, narrativa, narrador. ABSTRACT: The article discusses the story "The Library of Babel", of responsibility of Jorge Luís Borges in the search of the metalinguístict, while it marks linguistics of the illustration in the argentinean author's work. It values the mechanisms constituent diegéticos of the language in Borges and it verifies in that measured the text borgiano the relationship discusses among narrator, “narratário” and readers' formation by means of the literature. The central idea is to verify the paper of the book in the ficcção borgiana in a process of literary creation, fact that drives the importance of the metalinguagem as conductive thread of Jorge Luís Borges work. The work tries to identify, also, the relationship that the narrator establishes with the “narratário” inside the story in discussion and, that way this dialogue contributes to the importance given to the reading in the text borgiano. Keywords: Borges, reader, reading, narrative, narrator. 1. Introdução Nosso estudo tem por corpus o conto “A biblioteca de Babel” e discute a relação entre narrador e narratário na ficção de Jorge Luís Borges. O artigo aborda a relação que o narrador do conto estabelece com o narratário e como esta mediação implica em metalinguagem na obra do autor argentino. O conto “A Biblioteca de Babel” descreve uma realidade em que o mundo é constituído por uma biblioteca infinita em uma espécie de acervo inumerável e infinito. O narrador é um de seus bibliotecários e acredita que os volumes da biblioteca abarcam todas as possibilidades da realidade possível e por meio de imagens e mensagens ocultas nas obras da biblioteca busca compreender a natureza contraditória de sua constituição humana. Existem vários enigmas apresentados ao longo do conto como, por exemplo, a existência de Livros escritos em línguas extintas; de volumes que não justificam sua existência; de obras REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 constituídas pela repetição de uma única palavra ou cifradas em dialetos irreconhecíveis, entre outros enigmas. Destas ambiguidades o conto apresenta a metáfora da Babel e a partir dela a reflexão de que todas as informações contidas nas obras da biblioteca caberiam em um único volume, indica uma das principais inquietações do narrador do conto: identificar ou compreender as mensagens cifradas nos muitos livros da biblioteca como espaço de formação ontológica. Ao abordar a relação entre narrador e narratário como uma possibilidade de leitura para o conto de Borges; acreditamos refletir sobre a construção de sua produção ficcional, entendida, por isso, como metalinguística. Antes de focalizarmos este aspecto, faremos comentários sobre os conceitos da teoria da narrativa para, posteriormente, aplica-los ao conto em estudo. 2. Conceitos sobre a narrativa Reis e Lopes (1988 p.66) compreendem que as narrativas literárias são “de índole ficcional, estruturadas pela ativação de códigos e signos predominantes, realizados em diversos gêneros narrativos e procurando cumprir as variadas funções socioculturais atribuídas em diferentes épocas às práticas artísticas”. Para os autores (1988): o tempo da história constitui um domínio de análise em princípio menos problemático do que o tempo do discurso. Ele refere-se, em primeira instância, ao tempo matemático propriamente dito, sucessão cronológica de eventos suscetíveis de serem datados com maior ou menor rigor. Por vezes, o narrador explicita os marcos temporais que enquadram a sua história. (REIS E LOPES, 1988, p.220) No tempo do discurso, no entanto, encontramos movimentos anacrônicos com alteração da ordem dos eventos da história por meio da intervenção do narrador no momento de representação pelo discurso. O recurso da anacronia constitui um dos domínios da organização temporal da narrativa e ressalta a capacidade e habilidade do narrador em conduzir o tempo diegético na organização de seu discurso, modulando, com isso, aspectos significativos veiculados na narrativa. Outro elemento essencial da diegese é o espaço. Fictício ou não, o espaço onde a narrativa se desenvolve é sempre concebido como se fosse real – plausível e verossímel - na perspectiva narrativa. Jorge Luis Borges, objeto desta pesquisa, cria no conto “A biblioteca de Babel” um espaço diegético que desafia tempo e espaço por meio de procedimentos narrativos que em muito dialogam tensivamente com o espaço real/plausível e o tempo cronológico. Reis e Lopes (1988) esclarecem que uma das categorias da narrativa que mais decisivamente interferem na representação do espaço é a perspectiva narrativa. Quer quando o narrador onisciente prefere uma visão panorâmica, quer quando se limita a uma descrição exterior e rigorosamente objetual, quer sobretudo quando ativa a focalização interna de uma personagem, é obvio que o espaço des- 76 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 crito se encontra fortemente condicionado, na imagem que dele é facultada, por esse critério de representação adotado... Outra característica da narrativa com a qual o espaço estreitamente se articula é o tempo. Submetido à dinâmica temporal que caracteriza a narrativa, o espaço é duplamente afetado... A partir daqui, aprofundam-se consideravelmente as relações espaço/tempo na narrativa. (REIS E LOPES, 1988, PP.206 e 207) Entendido, na aresta das colocações de Reis e Lopes (1988), como ser fictício que toma a palavra e narra acontecimentos circunscritos em uma diegese; o narrador dá vida a personagens, ainda seguindo o raciocínio dos críticos, seres ficcionais que vivenciam de forma verossímel ou não a diegese. As personagens resultam, então, de intervenções narrativas que permeiam a realidade pragmática apresentada como contraponto ao mundo diegético plausível e verossímel ao se constituem como elementos de ficção, de invenção. Portanto a construção de personagens implica apreensão de aspectos da diegese, organizada em um enredo ou universo de relato, situado em um determinado tempo e lugar. Este percurso, mediado por um ponto de enunciação, exige a presença de um narrador. É o narrador o agente diegético responsável pela organização formal da diegese. Entendemos como narrativa, pensando novamente nas colocações de Reis e Lopes (1988), um discurso que nos leva a imaginar um mundo ficcionalizado – verossímil ou não –, no qual se percebe o dialogo profundo com elementos culturais em um dado recorte temporal, situado em um espaço, vivido por personagens e organizado em uma estrutura preestabelecida. A narrativa, por isso, se constitui como fenômeno dinâmico e articulado pelo discurso em uma interação direta com o tempo histórico E o enredo1 dá a dimensão do universo representado. Reis e Lopes (1988) comentam que a intriga ou conflito pode ser gerado por personagens, acontecimentos, ambiente, emoções ou ideias que provocam oposição e acabam organizando os fatos da narrativa de forma a prender a atenção dos leitores. Os teóricos (1988) afirmam que com a história presente na narrativa, acontece uma evocação da realidade, de acontecimentos e de personagens, e que pode ser relatada de diferentes maneiras. O discurso é a forma pela qual o narrador nos faz conhecer esses acontecimentos e que, portanto, se relaciona com o processo de enunciação, entendida como ponto de partida para o foco narrativo em uma perspectiva individual e ideológica. As vivências diegéticas de personagens na intri1 Conceito elaborado pelos formalistas russos e definido por oposição entre a fábula e a trama: a intriga corresponde a um plano de organização macroestrutural do texto narrativo e se caracteriza pela apresentação dos eventos segundo determinadas estratégias discursivas já especificamente literárias. Nesta acepção, pode-se dizer que a intriga comporta motivos livres que traduzem digressões subsidiárias relativamente à progressão ordenada da história, e derroga frequentemente a ordem lógico-temporal, operando desvios intencionais que apelam para a cooperação interpretativa do leitor. Ao elaborar esteticamente os elementos da fábula, a intriga provoca a “desfamiliarização”, o estranhamento, chamando a atenção do leitor para a percepção de uma forma. (REIS E LOPES, 1988, p. 211-212). 77 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 ga só chegam ao leitor por intermédio do discurso narrativo que, por sua vez, é organizado linguisticamente em uma trama materializada em discurso. Reis e Lopes (1988, p.29), destacam que “de fato, o discurso narrativo é um produto do ato de enunciação de um narrador e dirige-se, explicita ou implicitamente, a um narratário, termo necessário de recepção da mensagem narrativa”. No texto literário o narrador assume o papel de locutor, responsável pelo processo de enunciação, e o narratário, ainda na concepção dos críticos (1988) como uma imagem diegética do destinatário da mensagem proferida pelo narrador. É, portanto, na enunciação que os agentes do discurso da narrativa, narrador e narratário se situam e estabelecem um diálogo através do qual se desenvolve o percurso narrativo, entendido como resultante das vivências diegéticas dos personagens em uma intriga. Com seu estilo fragmentado, Borges no conto “A Biblioteca de Babel” aponta um labirinto de palavras e imagens cifradas pelo discurso da narrativa. Como que pintando um mosaico em que funde e distancia ficção e realidade, os narradores de Borges estabelecem um diálogo com os valores da cultura, tendo como epicentro a imagem do livro. Wellek e Waren (1971) abordam a dinâmica do material da narrativa como resultado de uma materialidade linguística uma vez que a linguagem é o material da literatura, tal como a pedra ou o bronze são da escultura, as tintas da pintura, os sons da música. Mas a linguagem não é uma matéria inerte como a pedra, e sim uma criação do homem, cheia de herança cultural de um grupo lingüístico [...] As principais distinções a estabelecer devem destacar o uso literário, o uso diário e o uso cientifico da linguagem. (WELLEK E WAREN, 1971, P.22) A narrativa, neste contexto, transmite informações através de uma estrutura específica, tendo como veículo a linguagem oral ou escrita. O narrador é seletivo em relação a fatos e palavras; ferramentas que utiliza ao levar o leitor a pensar a ficção como projeção de uma realidade plausível, porém ficcionalizada. O narrador é a voz que enuncia o texto, “é quem conta a história”. Entidade fictícia, criada pelo autor com o papel de ser o emissor do discurso e que não deve ser confundido com o autor da obra. Realidade e mundo empírico constituem o universo do autor; narrador, narratário e as personagens são seres virtuais, restritos ao texto. De acordo com Reis e Lopes (1988) A definição do conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor, entidade não raro suscetível de ser confundida com aquele, mas realmente dotada de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. (REIS E LOPES, 1988, P.61) 78 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 No ensaio “O narrador”, Walter Benjamim (1987) fala da tradição narrativa fundada na oralidade; em que a presença física do narrador provocava sempre uma expectativa de novas histórias ou de repetições das narrativas que marcavam várias gerações. O crítico afirma que os melhores narradores são aqueles que se aproximam das histórias que eram contadas oralmente. A experiência que passou de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes estes dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIM, 1987, P.198) Com o advento do romance através da invenção da imprensa, Benjamim diz que aconteceu uma mudança radical na arte de narrar. Não há mais a figura física do narrador, mas sim a voz solitária que surge do livro. Há variedades de narradores. O narrador testemunha, que narra os fatos como estando na periferia da trama. O narrador protagonista, narra sua própria diegese. Tecnicamente Reis e Lopes (1988), apresentam três tipos de narradores: A expressão narrador autodiegético, introduzida nos estudos narratológicos por Genette (1972), designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história... o narrador autodiegético aparece então como entidade colocada num tempo ulterior em relação à história que relata, entendida como conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos... A opção por uma focalização interna ou por uma focalização onisciente relaciona-se, pois, com uma certa imagem privilegiada pelo narrador. (REIS e LOPES, 1988, p. 118-119) Os autores do Dicionário de Teoria Narrativa definem narrador heterodiegético como aquele que relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão... Na tradição ocidental, o narrador heterodiegético constitui uma entidade largamente privilegiada, nos planos quantitativos e qualitativos, coincidindo o recurso a semelhante tipo de narrador com alguns dos mais salientes momentos da história do romance... Em certa medida, por força das características descritas, reforçadas pelo fato de muitas vezes o narrador heterodiegético se situar num nível extradiégético e pelo anonimato que quase sempre o atinge, esta situação narrativa favorece a confusão do narrador com o autor. (REIS E LOPES, 1988, p. 121 e 122). já o narrador homodiegético é definido por Reis e Lopes (1988) nos seguintes termos: 79 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que carece para construir o seu relato, assim se distinguindo no narrador heterodiegético, na medida em que este último não se dispõe de um conhecimento direto. Por outro lado, embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central. (REIS E LOPES, 1988, p. 124). A voz narrativa dá um forte indicativo do tipo de narrador na história. Quando o narrador utiliza a primeira pessoa do discurso pode fica caracterizado como narrador que participa da diegese; o narrador que faz uso da terceira pessoa do discurso pode ser classificado como narrador observador, porque fica evidente o seu distanciamento da história que esta narrando. Feitas as considerações preliminares, passamos a discussão de nosso objeto de análise: o conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luís Borges. 3. Narrador e narratário: duas faces em diálogo No conto de Borges o enunciador do discurso é autodiegético, uma vez que o narrador é personagem central da trama. Caracterizado como um dos muitos bibliotecários o narrador acredita que os volumes da biblioteca abarcam todas as possibilidades da realidade: “como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer; a poucas léguas do hexágono em que nasci” (BORGES, 2000, p.516). Borges, na construção deste conto, indica um labirinto de palavras e imagens cifradas pelo discurso como resultado das inúmeras obras que compõe a biblioteca. A imagem especular que aparece no interior do conto é ilustrativa para os processos inventivos apresentados como elementos de construção da trama do conto. No conto em estudo, a linguagem é erudita que flerta com o irônico: No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para quê essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito. (BORGES, 2000, p.516) O conto sugere a ideia de uma biblioteca infinita contraposta a uma possibilidade de limitação, de finitude por meio da imagem especular apresentada no conto. A presença do “espelho” e do “sonho” pressupõe a indicação de que se trata de uma “biblioteca infinita” em uma perspectiva ficcional o que denuncia a ambiguidade dos limites físicos da biblioteca. Entendida como metáfora do infinito a “Biblioteca de Babel” requer do leitor a capaci80 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 dade de identificar signos implícitos nos muitos livros que constituem esta biblioteca. Diferentemente da narrativa oral em que os valores significativos são mediados pelo narrador de maneira imediata, provocando, em alguns casos, a intervenção direta ao discurso proferido; o texto escrito possibilita ao leitor um horizonte novo, agora marcado pelo silencio enunciativo e pelo dialogo com inferências ou marcas discursivas deixadas como pistas pelos narradores. Independente do tema abordado ou pela linguagem utilizada, todo texto procura um tipo de leitor estabelecido pela dinâmica interna do discurso proferido. Este leitor projetado no ato da escrita indica um espaço dialético inicial ao discurso literário e, nesse espaço, o texto confere ao leitor a imagem do narratário, projeção individual do leitor projetado pelo narrador no ato da escrita. Para Jouve (2002), “o receptor é ao mesmo tempo o leitor real, cujos traços psicológicos, sociológicos e culturais podem variar infinitamente, e uma figura abstrata postulada pelo narrador pelo simples fato de todo texto dirige-se necessariamente a alguém”. Esta imagem “postulada” é compreendida como “narratário”, entidade de linguagem que dialoga com o narrador no ato de enunciação. É preciso, então, não confundir leitor real – homem que lê o texto – e narratário – imagem enunciativa projetada para este leitor – em uma dualidade semelhante àquela estabelecida entre narrador e autor. Jouve (2002) entende que “o que diz e do modo como diz, um texto supõe sempre um tipo de leitor – um “narratário” – relativamente definido”. Reis e Lopes (1988) são enfáticos ao tratar do narratário. O sentido primeiro em que aqui se define o conceito de leitor é correlativo e distintivo. Correlativo, porque o leitor real coloca-se no mesmo plano funcional e ontológico que o autor empírico; distintivo, porque o leitor real se reveste de contornos bem definidos relativamente ao narratário, ao leitor virtual ou ao leitor ideal. Deste modo, “o leitor empírico, ou real, identifica-se, em termos semióticos, com o receptor; o destinatário, enquanto leitor ideal, não funciona, em termos semióticos, como receptor do texto, mas antes como um elemento com relevância na estruturação do próprio texto. Todavia, o leitor ideal nunca pode ser configurado ou construído pelo emissor com autonomia absoluta em relação aos virtuais leitores empíricos contemporâneos, mesmo quando sua construção se projeta um desígnio de ruptura radical com a maioria desses mesmos presumíveis leitores contemporâneos. (REIS E LOPES, 1988, p.51) O que se conclui é que o narratário, mencionado ou não, existe e sempre esta presente. O leitor virtual seria a idéia de leitor que o autor tem em mente ao criar a obra; imagina qualidades, capacidades, preferências e opiniões específicas desse possível leitor dem uma relação direta com o homem que objetivamente lê o texto. O narratário existe de fato na estrutura do texto e é com ele que o narrador dialoga em seu percurso diegético. Infere-se que o leitor ideal seria aquele que o autor imagina como capaz de compreender 81 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 todos os detalhes das mensagens que pretende passar no seu texto. Poderíamos dizer que todo autor sonha com um leitor cúmplice e conivente com todos seus objetivos e devaneios ao passo que o narratário pode ser uma imagem conflituosa face ao leitor ideal, por isso, pressupõe um percurso dialético à construção dos enunciados na diegese, fato que dá ao narratário uma função significativa e, por vezes, oportuniza uma aproximação ao leitor ideal ou uma contradição a este perfil. No Prólogo do livro História universal da infâmia Borges (2000, p.313) trata a relação entre escritor e leitor de forma a comentar que tanto o leitor quanto o autor tem papel importante na produção de sentido em um determinado texto literário, uma vez que estas entidades são próximas e “às vezes creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons autores (...) Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais intelectual”. Pensar a leitura em uma perspectiva dialética – narrador e narratário – como possível proporciona a compreensão da ficção de Borges como espaço de reflexão metalinguística, na qual leitor e autor encontram pontos de contato na construção do literário, projetados no narrador e no narratário. Neste espaço dialético a mensagem artística encontra ressonância por meio da mediação reflexiva provocada pela leitura. 4. Metalinguagem: caminho ficcional em Jorge Luís Borges No estudo sobre as funções da linguagem, Jakobson (1982, p.127) considera função metalinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para si mesma: “Sempre que o remetente e/ou o destinatário tem necessidade de verificar se estão usando o mesmo código, o discurso focaliza o código; desempenha uma função metalinguística”. Quando a literatura toma a si mesma como objeto, acontece a metalinguagem literária. No ato da leitura, o texto promove uma interação entre narrador e leitor (narratário). Esta relação constrói no universo diegético o que podemos chamar de possibilidades de leitura. Nesta relação dialética o conhecimento prévio de quem lê é imprescindível na interação com a construção de sentido produzido pela diegese. O leitor, projetado na figura contraditória do narratário, é capaz de inferir informações que não foram ditas de forma imediata na diegese, antes sugeridas pelo encadeamento discursivo do texto e, por meio de interferências, colaborar na compreensão mais ampla do texto que lê. Conforme Samira Chalub (1988, p.15), o que um emissor ou receptor for capaz de organizar, relacionar, criar ou perceber enquanto novas formas de combinação, diz respeito à bagagem teórica ou cultural não só do leitor, mas da estrutura diegética mobiliada em um determinado 82 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 texto, por isso, sempre em dialogo como outros textos. A viabilidade ou relatividade do repertório – que, grosso modo, podemos conceituar como sendo o “arquivo cultural” de cada um de nós – implica uma relação dialética entre repertório e informação. Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e formas já adquiridas pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cultura, o público se amplia, na medida em que este conhecido repele o novo e traz à tona o velho (CHALUB, 1988, p.15). Nosso corpus desse trabalho, o conto a “Biblioteca de Babel”, de Borges constitui um espaço específico da reflexão dialética entre texto e sentido auferido no ato de leitura. O escritor argentino recupera na metáfora da “torre de Babel” o espaço dialético para a construção de sua Biblioteca. A nominação do conto já é um processo de metalinguagem ao perpassar a ideia de uma narrativa circular que se coloca como infinita na alusão a heterogeneidade de obras que a compõe e, sbretudo, pela indicação de uma obra circular e sintética que iconiza o conhecimento humano acumulado por meio da materialidade discursivo: ironicamente os inúmeros livros incompreendidos de sua biblioteca. Retomando a questão teórica da metalinguagem no processo narrativo, o texto estabelece uma interação entre narrador e leitor, e requer deste um papel ativo. Nessa relação podemos falar em possibilidades de leitura, já que o conhecimento prévio de quem lê é que vai determinar a produção de sentido a partir do texto e das relações intertextuais por ele reclamadas. As possibilidades de leitura acontecem em consequência de um contínuo preenchimento de brechas que aparecem dentro do texto em sua relação com a tradição, oportunizadas por sua organização interna. Uma leitura proficiente é capaz de inferir informações do texto e relacioná-las a outros discursos silenciados pelo texto lido. Cada livro da “Babel” de Borges contribui, por isso, para o entendimento da complexidade do ato de leitura, entendido como dialético na construção do texto em discussão. Uma das manifestações deste percurso dialético e a presença dos diálogos entre textos. A metalinguagem é a referência direta ou indireta a outros textos em um percurso diegético. Sobre isso Savioli e Fiorin (1995) afirmam: num texto literário, a citação de outros textos é implícita, ou seja, um poeta ou romancista não indica o autor e a obra donde retira as passagens citadas, pois pressupõe que o leitor compartilhe com ele um mesmo conjunto de informações a respeito das obras que compõem um determinado universo cultural. Os dados a respeito dos textos literários, mitológicos, históricos são necessários, muitas vezes, para compreensão global de um texto. A essa citação de um texto por outro, a esse diálogo entre textos dá-se o nome de intertextualidade. (PLATÃO E FIORIN, 1995, p.19). E é a partir de um estilo fragmentado e sintético, quase como um mosaico, que os narradores de Borges constroem o dialogo com os valores culturais, sempre centrados na imagem do 83 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 livro. Concluímos, mesmo que preliminarmente, que para este autor escrever é apropriar-se individualmente de leituras realizadas anteriormente pelo leitor. Dialogar com a tradição na busca por intromissões significativas nesta tradição é um dos papeis da “Babel”, Borges que, por isso, reúne diferntes tomos em seu universo “infinito”. Reunir e organizar textos alheios numa nova combinação, reordenando a tradição, para apresentá-la em uma nova roupagem, em novos sentidos parece ser o objeto temático do conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luís Borges. 5. Considerações finais Procuramos mostrar ao longo das discussões deste artigo que a presença a relação entre narrador e narratário é aspecto importante na construção do conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luís Borges. Chegamos a ideia de que a “Babel” de Borges dialoga tensivamente com a necessidade de participação ativa do leitor no processo de construção de sentidos no literário e, por isso, que um dos caminhos deste processo é a presença dos diálogos intertextuais e da metalinguagem. O objetivo desse artigo foi discutir como a figura do narratário é importante na construção da metáfora da “A Biblioteca de Babel” em Borges e, apontar, mesmo que sucintamente, que esta biblioteca é uma imagem das relações dialéticas entre narrador e narratário, a metalinguagem e a intertextualidade no interior do conto de Borges. Fica evidente, no entanto, que as relações diegéticas entre o narrador e o narratário é importante na construção ficcional do autor argentino, objeto temático a ser ampliado em nossa dissertação de mestrado, trabalho do qual este estudo é um recorte. Referências BENJAMIM,Walter. Magia e técnica, arte e política (obras escolhidas I). Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. BORGES, Jorge Luís. Ficções. In Obras Completas (vol. I). São Paulo: Globo, 1999, p. 516-523. CHALHUB, Samira. A meta-linguagem. São Paulo. Ática, 1988. JAKBSON, Roman. Linguística e Poética. São Paulo: Cultrix, 1982. JOUVE, Vicent. A leitura. Trad. Brigitte hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002. PLATÃO SAVIOLI, Francisco; FIORIN, José Luiz. Para Entender o Texto: Leitura e Redação. São Paulo: Ática, 1995. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988. 84 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 WELLEK, René; WAREN, Austin. Teoria da Literatura. Lisboa: Publicações Europa-América, 1971. 85 DUAS MULHERES SOB O OLHAR DE HITCHCOCK: OS FILMES NOTORIOUS (1946) E MARNIE (1964) E AS MULHERES PERIGOSAS DE UMA ÉPOCA TWO WOMEN UNDER THE EYES OF HITCHCOCK THE MOVIES NOTORIOUS (1946) AND MARNIE (1964) AND THE DANGEROUS WOMEN OF A TIME Adriana Falqueto Lemos (PG - UFES) RESUMO: Traçando uma leitura embasada em correntes teóricas que justificam o olhar analítico sobre o filme, dado que este é uma mídia que articula linguagem, sons e imagens sendo, portanto, passível de ampliação dos sentidos, pode ser feita uma leitura tanto numa perspectiva metodológica quanto interpretativa. Intenta-se, neste estudo, ler duas mulheres sob a ótica do diretor Alfred Hitchcock em dois longas-metragens: Notorious (1946) e Marnie (1964), objetivando a tessitura de questionamentos sobre os modos como os homens e as mulheres se relacionavam e os comportamentos femininos visados pela sociedade. Encerra-se aqui a noção de que os padrões comportamentais femininos, assim como os masculinos, são construções sócio-históricas e que estes são modelados, desde a infância, pelas instituições sociais; assim como a noção do diretor enquanto autor inscrito numa sociedade, que faz parte e que cria dentro de um sistema de representações e práticas vigentes. Palavras-chave: Hitchcock, Marnie, Notorious, Feminino. ABSTRACT: By tracing a reading based upon theoretical currents that justify an analytical thinking on movies, since they these media articulate language, sounds and images, and therefore, by watching it one can amplify his or her senses; movies can be read in a methodological perspective that can be interpretative. The intention of this study is to read two women by the spectacles of the director Alfred Hitchcock in two of his movies: Notorious (1946) e Marnie (1964); the objective is to question about the way men and women relate to each other and how women behavior was seen by society. The text presented here works with the notions that the feminine behavioral pattern, as well the masculine, are socio-historical constructs and that, because of that, are modeled since childhood by social institutions; as well as the notion of the director as the author that is subject of a society, so, being part and creating inside of a system of representations and practices. Keywords: Hitchcock, Marnie, Notorious, Feminine. 1. O diretor e o filme Quando se trata de conhecer um diretor, e de analisar um ponto de vista em sua obra, é importante que se assista sua filmografia por inteiro. Melhor, se possível, que se assista desde as primeiras produções até as últimas, nessa ordem, e existe uma razão para tal. A função de um diretor ao dirigir um filme, segundo as pesquisas de André Reis Martins e Osório Lucio Schaeffer, é a de coordenar todos os profissionais que atuam nos diversos setores abrangidos pela obra cinematográfica (por exemplo, na direção de iluminação e fotografia) a fim REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 de obter, como resultado, o que se deseja imprimir ao expectador (MARTINS, 2004, p. 56; SCHAEFFER, 2009, p. 67). O diretor de cinema é o profissional que recebe o roteiro, ou que até mesmo o escreve e, a partir de sua leitura, conduz uma contação de história para o expectador do filme. Todos os profissionais do filme atuam de acordo com a batuta do diretor, e ele vai coordenando seu corpo de profissionais de modo que o resultado lhe seja satisfatório. O filme é contado numa estrutura narrativa e obedece às intenções do diretor (SCHAEFFER, 2009, p. 67). Os filmes produzidos por um diretor vão, ao longo do tempo, ganhando contornos estilísticos que podem ser percebidos pelo expectador. Hitchcock tem uma filmografia extensa: são 67 títulos ao todo e a maioria deles contém elementos de suspense. Esse estilo do diretor, porém, foi se consolidando ao longo dos anos, fato que pode ser percebido pelo seu interesse recorrente pelas histórias de suspense a partir da década de 1920, com filmes como Blackmail (1929). Essa escolha estilística pode ser apontada também pelo uso do diretor dos mesmos atores (como por exemplo, Tippi Hedren em The Birds (1963) e Marnie (1964); Grace Kelly em Rear Window (1954), Dial M for Murder (1954) e To Catch a Thief (1955); Cary Grant em North by Northwest (1959), Notorious (1946) e Suspicion (1941); Ingrid Bergman em Spellbound (1945), Notorious (1946) e Under Capricorn (1949); James Stewart em Vertigo (1958), The Man Who Knew Too Much (1956), Rear Window (1954) e Rope (1948); e Gregory Peck em The Paradine Case (1947) e Spellbound (1945)), por suas aparições cameo, sempre esperadas pelo público, e pelo interesse pela tensão. Por isso, quando se assiste a uma filmografia, compreende-se um estilo de dirigir, um estilo de conduzir uma narrativa, um estilo estético de luzes, de cores e de escolha do material humano que dará vida aos personagens. Segundo Regina Lucia Gomes Souza e Silva (2005), a relação retórica que se estabelece na ordem da comunicação entre o produtor de um diálogo e seu receptor, pode ser uma das maneiras com as quais analisamos os filmes, dado que o diretor utiliza o filme para se comunicar com o expectador (GOMES, 2005, p. 317). Se visto por essa ótica, um diretor se comunica com seu expectador através de um longa-metragem e, nesse sentido, ele pode ser comparado a outros criadores discursivos, como os autores de obras literárias. Por analogia e, comparando esse processo criativo com o processo pelo qual um escritor tece uma narrativa, poder-se-ia elencar alguns pontos em comum. Em contra partida, o processo de leitura de um livro se distancia do processo o qual o expectador passa ao assistir a um filme. Depois da leitura de Roger Chartier (1999, 2002), compreendemos que o significado do texto é produto não somente através da interação leitor x texto, mas da interação texto x suporte. Sendo assim, a materialidade produzirá leituras que serão apropriadas de maneira diferente, por novas comunidades e, por isso, produzirão outros significados. Se pensarmos que o texto do filme está numa materialidade diferente do texto do livro, então o suporte é a chave 87 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 da diferença entre a leitura do livro e a leitura do filme. Mais do que a recepção, a diferenciação e a aproximação da leitura do livro e da leitura do filme se dá na apropriação dessa materialidade. O processo de criação de uma narrativa é permeado por uma confluência de pensamentos e desejos que se explicitam nas ideias imprimidas no papel e essas impressões projetadas pelo escritor são oriundas de sua vivência, de sua própria história e de sua vida cultural e social. Essa imagem é explicitada por, por exemplo, Antônio Candido em Literatura e Sociedade (2006). Nessa medida, a produção da arte, em geral, tem em sua matéria a vida que lhe é contemporânea e, é por meio da arte, que o homem encontra um meio de expressar essa subjetividade, vivenciando as sensações e as angústias que fazem parte do seu tempo e de sua sociedade. A obra literária carrega em seu cerne, dentre outros sentidos, o senso da subjetividade do autor e o modo como ele se relaciona com seu tempo. A literatura dá voz a um ser social e, segundo Antonio Candido, Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma “expressão”. A literatura, porém, é coletiva no momento em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma “comunicação” (CANDIDO, 2006, p. 147). A obra, diante deste ponto de vista, configura-se como criação tanto individual como comunitária, na medida em que dialoga com a vida social, política e histórica na qual o autor se insere. Percebemos o papel do autor atrelado à sua vida social e é a partir desse diálogo – entre autor e mundo – que começamos a traçar os parâmetros para a nossa análise. Através de sua expressão, o autor reorganiza seu mundo e suas concepções: A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra (CANDIDO, 2006, p. 187). Em relação a esta perspectiva, Wanderlan da Silva Alves trata, em seu artigo “Limites e intersecções do estético com o político no filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, e no conto ‘Sessão das quatro’, de Roberto Drummond”, da linguagem cinematográfica, explicando que essa, [...] por sua condição híbrida, haja vista que se constitui por meio de imagens, de sons articulados, de ruídos e de sons puros e, enfim, do próprio movimento dinâmico que os põe em relação no processo de significação que a legitima como sendo uma linguagem, se justifica como possibilidade de ampliação da percepção humana (ALVES, 2012, p. 151). Para o pesquisador, enquanto assiste a um filme, o expectador vive um processo de li- 88 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 bertação das próprias convenções, porque lê outras combinações, em planos espaciais e cores diferentes. O processo também, segundo Alves, pode ser o inverso: o cinema se esforça na busca de uma verossimilhança em relação ao plano real, uma representação de mundo. Essa representação, ao passo que mimética, refere-se, porém, a uma visão de mundo própria do universo do cinema (ALVES, 2012, p. 151). Alves, busca no escritor e cineasta Alain Robbe-Grillet e sua obra Por um novo romance (1963), aprofundamento para este tratamento da mídia fílmica. Para Robbe-Grillet, “o aspecto um pouco fora do habitual deste mundo reproduzido revela-nos, ao mesmo tempo, o caráter inabitual do mundo que nos rodeia: ainda inabitual na medida em que recusa rejeitar–se aos nossos hábitos de percepção e à nossa ordem” (ROBBE-GRILLET, 1963, p. 23 Apud ALVES, 2012, p. 151, grifos do autor). Segundo Alves, este choque entre o que seja o mundo pouco habitual transmitido por um filme e o mundo do expectador pode fazer com que haja comparações entre os engendramentos sociais de sua realidade sócio-histórica e aquela inviabilizada pelo filme. Diante dessa perspectiva, enxerga-se o diretor como fio condutor de uma realidade que, paradoxalmente, faz parte tanto da vida social, histórica e política que lhe é concernente, quanto de uma realidade própria do filme, do universo do cinema e, portanto, fictícia. Mesmo que tomemos como contraponto o fato de que a produção de um objeto cultural como o filme se faz por meio da participação de diversos sujeitos, como no caso de vários diretores em funções variadas que tal processo, por ser vinculado a múltiplos autores, estaria desprovido de uma unidade que pudesse configurar sua autoria e estabelecê-la por trás da narrativa, relembramonos da leitura de Roger Chartier como historiador cultural da leitura e do livro. É possível que um autor não detenha para si o completo domínio autoral sobre uma obra, visto que ela é concebida através de um processo: Os livros, manuscritos ou impressos, são sempre resultado de múltiplas operações que pressupõem decisões, técnicas e competências bem diversas. (...) O que está em jogo aqui não é somente a produção do livro, mas a do próprio texto, em suas formas materiais e gráficas. (CHARTIER, 2012, p. 8). É complexo compreender o livro como uma obra artística fruto de um pensamento único, que foi escrita por apenas um autor num momento de inspiração, sem qualquer intervenção que possa fazer com que seu mais refinado senso de unidade seja desmantelado. O livro não é um manuscrito amarrado pela caligrafia do autor; a materialidade do livro é composta por seu suporte, seu texto, suas ideias, e elas não são fruto único do trabalho do escritor. Esse produto cultural sofre influência no momento em que é escrito, porque o autor faz parte da sociedade e recebe influência da mesma; além do que é modificado no momento da edição, quando os profissionais gráficos corri- 89 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 gem, alteram, escolhem o material de impressão e tamanho de letra. Ao passo que um livro não é uma ideia acabada e que se encerra nos significados que lhe foram imputados apenas e unicamente pelo próprio autor, compreendemos que – de acordo com os conceitos de Roger Chartier em, por exemplo, A História Cultural entre práticas e representações, enquanto historiador cultural sobre os modos e representações de uma cultura – através de um sistema de identidades, de rejeição e aceitação de certas práticas, que as representações surgem e se estabilizam (2002, p. 34). “É neste sentido que as representações do mundo social produzem a realidade deste mundo.”. Para o autor, em A aventura do livro: do leitor ao navegador, As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 1999, p. 17) Roger Chartier nos explica a força das representações, pelas quais a sociedade se hierarquiza e se organiza, porque, (...) em primeiro lugar, as operações de classificação e designação, mediante as quais um poder, um grupo ou um indivíduo percebe, se representa e representa o mundo social; em continuação, as práticas e os signos que levam a reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um status, uma categoria, uma condição; e, por último, as formas institucionalizadas pelas quais alguns “representantes” (indivíduos singulares ou instâncias coletivas) encarnam, de maneira visível e durável – “presentificam” – a coerência de uma comunidade. (CHARTIER, 2002, p. 33-34). Isto posto, recapitula-se o que se tem dito até aqui sobre o autor de um objeto cultural com o filme ou uma obra literária. Ele consegue transmitir seus valores sócio, histórico e políticos e sua leitura de mundo através de sua subjetividade, na medida em que tais informações fazem parte de um conjunto de representações hierarquicamente organizadas pela sociedade e que, em contra partida, organizam-na. As representações e práticas sociais que compreendem a vida são inscritas em indivíduos e coletivamente, são parte da história da vida social – como elas se apresentam e corroboram, de maneira coerente, com o signo de práticas, modos e representações sob o qual as pessoas enxergam e produzem o mundo e a cultura. Portanto, é importante que se assista aos filmes de um diretor de maneira progressiva e como um todo, a fim de que seja possível formular uma ideia da sua maneira de enxergar o mundo e de transmiti-lo. Ao mesmo tempo, compreendemos que essa visão de mundo é legítima porque carrega em seu cerne um conjunto de representações sociais, históricas e políticas, parte de uma época e inseridas em um regime de coerência – e, às vezes, de verossimilhança. É importante assistir à filmografia de diretores como Alfred Hitchcock, pois é esse 90 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 conjunto de informações que possibilitará o traçar de um panorama estilístico, imagético e narrativo, tributado a ele e lido pelo expectador. Escolhemos, portanto, uma perspectiva interpretativa que, segundo Carsten Strathausen (2009), foge do que ele diz ser a visão limitada da crítica ao cinema, quando ela tange suas especificidades enquanto tecnologia midiática. Neste estudo específico, é importante conhecer sua filmografia para traçar parâmetros a respeito da figura feminina, especificamente em dois filmes: Notorious (1946) e Marnie (1964). Podemos afirmar que, em todas as produções – desde The Pleasure Garden (1925) até Family Plot (1976) – Hitchcock retrata mulheres vivendo as mais diversas situações, sendo, na maioria delas, protagonistas. Em Family Plot (1976), a atrapalhada vidente Blanche Tyler tenta e consegue encontrar um herdeiro perdido de uma família rica, ao mesmo tempo em que conduz seu relacionamento com George Lumley com muita propriedade, reivindicando tempo, atenção e comprometimento para si. Em Torn Curtain (1966), Sarah Sherman começa o filme como a noiva deixada pra trás quando o Professor Michael Armstrong vai para a Alemanha em uma missão espiã em nome do governo americano. Sarah insiste em ficar com seu noivo e se torna imprescindível para o sucesso dele. Em The Man Who Knew Too Much (1956), Josephine Conway McKenna – ou simplesmente Jô – acompanha o marido Dr. Benjamin McKenna numa viagem ao Marrocos. Quando o filho deles é sequestrado e o casal é envolvido numa intriga espiã, a ex-cantora consegue, com sua habilidade e inteligência, ser o pivô na dissolução de vários momentos de tensão nos quais o casal poderia ser assassinado ou perder o filho pra sempre. Em Rear Window (1954), Lisa Carol Fremont auxilia o namorado L.B. 'Jeff' Jefferies, quando ele desconfia que o vizinho, morador do prédio em frente ao seu, assassinou a própria esposa. Como Jeff está preso a uma cadeira de rodas graças a uma perna engessada, é Lisa quem protagoniza a maioria das cenas de ação e quem toma decisões ousadas (como quando ela vai até a casa do suspeito para espionar suas coisas). Stage Fright (1950) tem uma protagonista apaixonada, a jovem Eve Gill, que empreende uma corrida contra o tempo, no intuito de provar que o homem pelo qual está apaixonada não é um assassino. Também em nome do amor, a jovem médica Dra. Constance Petersen se aventura para provar que seu namorado, John Ballantyne, não cometeu um assassinato, em Spellbound (1945). Em Lifeboat (1944), é a repórter Constance 'Connie' Porter quem conduz a maioria das decisões dos nove sobreviventes que esperam por socorro num barco salva-vidas. Em Shadow of a Doubt (1943), uma moça chamada Charlie descobre que seu tio recém-chegado para visitar a família é na verdade um assassino procurado. É ela quem consegue ameaçá-lo e fazer com que vá embora da cidade. Existem ainda outros exemplos da participação feminina de maneira efetiva nas narrativas dos filmes de Alfred Hitchcock e isso pode representar que o diretor tem uma percepção da mulher bem à frente do seu tempo, como 91 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Constance 'Connie' Porter, uma personagem que protagoniza sua história e luta pelos seus ideais, como Lisa Carol Fremont, que defende o homem que ama, em detrimento dos seus valores ou do seu país, como Sarah Sherman. Essas mulheres, protagonistas decisivas e modelos de virtude, porém, não vivem de maneira unânime nas obras do diretor; podemos perceber isso com mais intensidade em dois filmes, dos quais falaremos a seguir, Notorious (1946) e Marnie (1964). 2. Alicia e Marnie, as mulheres perigosas Notorious (1946) e Marnie (1964) são dois dos filmes nos quais a figura feminina surge de maneira dúbia diante do expectador, trazidas à tona graças ao olhar de Hitchcock. Antes de falar de Alicia e Marnie, falaremos de outras obras nas quais as mulheres não são figuras heroicas. Em Topaz (1969), duas mulheres têm destaque na trama de espionagem. Nicole Devereaux é a esposa do agente secreto Andre Devereaux, protagonista do filme. A princípio, a esposa tenta a todo custo evitar que o marido troque o tempo com a família pelo trabalho. O casal tem uma crise quando Andre vai (em missão) para Cuba e encontra com Juanita de Cordoba, uma agente local com quem tem um relacionamento há muitos anos e essa relação é tanto amorosa quanto profissional, já que ela usa sua influência para auxiliá-lo a conseguir informações secretas. Juanita consegue ajudar Andre a sair do país, mas acaba sendo morta antes de contar-lhe um segredo importante. Posteriormente, Andre descobre que sua esposa Nicole tem um amante, um dos homens que trabalham com ele. Em The Birds (1963), a socialite Melanie Daniels tem um interesse amoroso pelo advogado Mitch Brenner e viaja até uma cidade chamada Bodega Bay para passar o fim de semana com ele e sua família – a mãe Lydia e a irmã mais nova, Cathy. Com a sua chegada, pássaros selvagens começam a atacar a população. Em Psycho (1960), a jovem Lila Crane espera se casar com seu namorado Sam Loomis. Pobres, eles não têm dinheiro para se casar, mas, um dia, confiam-lhe uma quantia de $40,000 e ela foge com esse dinheiro, esperando encontrar Sam. No caminho, porém, Lila decide dormir no The Bates Motel, onde um assassino psicopata a mata. Em Vertigo (1958), o policial aposentado John 'Scottie' Ferguson é convidado por um amigo, Gavin Elster, que não via há muito tempo, para vigiar sua esposa, Madeleine Elster. Depois de se apaixonar por ela e vê-la se jogar de uma torre, Scottie entra em depressão. Ao sair da clínica, Scottie conhece Judy Barton, extremamente parecida com a falecida. Scottie e Judy começam a namorar e o conflito surge quando ele vê um colar que era de Madeleine no pescoço da namorada. A verdade vem à tona: tudo não passava de um embuste para que a verdadeira esposa de Gavin Elster fosse morta e jogada da catedral, como se tivesse se suicidado. O filme termina com Judy morta depois de, sem querer, tropeçar e cair da mesma torre onde havia fingido se suicidar anteriormente. Em Dial M for Murder (1954), Tony 92 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Wendice é casado com Margot Mary Wendice, mas tudo o que deseja é sua herança. Margot tem um romance com Mark Halliday, um escritor, entretanto, evita se encontrar com ele porque acha que o marido merece sua fidelidade. Margot quase é assassinada por um homem enviado por Tony, mas consegue se desvencilhar. No fim do filme, ela é quase executada legalmente, sob a acusação de ter assassinado o homem que entrou em sua casa. O marido mesmo simulou essa possibilidade, usando uma carta dela ao amante como prova de que ela, pela chantagem, decidiu matar o homem. Existem ainda os casos dos filmes I Confess (1953) e The Paradine Case (1957), envolvendo um julgamento que revela o passado de mulheres infiéis aos seus maridos. Percebemos, nos filmes citados acima, que a mulher não é uma heroína e nem pode mudar o próprio destino caso sua moral seja posta em questão. Essa mulher, com uma moral incomum, pode ser morta (como Juanita, Judy, Lila e Mrs. Paradine de The Paradine Case), ou correr risco de vida (como Margot e Melanie). 3. Alicia Em Notorious (1946), logo após a condenação do pai alemão por traição ao governo dos Estados Unidos, Alicia Huberman bebe com amigos. Ela é abordada pelo agente T.R. Devlin, o qual deseja que ela espione um grupo de amigos nazistas do pai, no Rio de Janeiro. Alicia e Devlin começam um romance, mas, ao mesmo tempo, o trabalho que ela deve desempenhar consiste em seduzir um dos nazistas para obter informações dele. O problema de Alicia na narrativa não é seu trabalho como espiã, mas o fato de ela ter que seduzir um homem pra cumprir seu papel. Percebe-se no filme, porém, que Alicia é mal vista pelos homens: a segunda cena do filme, na qual ela é retratada bebendo e flertando com homens em uma festa dentro de casa, conduz a maneira com a qual os personagens masculinos do filme a enxergam e se relacionam com ela até os últimos minutos. O agente Devlin não consegue resistir ao charme da moça, contudo, também não consegue confiar nela, pelo fato de ela já ter conquistado muitos homens e beber abusivamente. Logo que chega ao Rio, Alicia para de beber e tenta conquistá-lo: “Porque você não acredita em mim, Dev? Só um pouco.” (NOTORIOUS, 1946, tradução nossa1). Alicia passa o filme como alvo de críticas por ter se relacionado sexualmente com homens sem ter sido casada com eles. Os chefes de Devlin dizem que ela não deve ter nenhum problema em aceitar uma missão: - O que foi, Devlin? Qual o problema? - Eu não sei se ela vai fazer isso. 1 Todas as traduções são de nossa autoria salvo explicitação. 93 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 - O que você quer dizer, você não acha que ela... Você não falou sobre isso com ela, falou? - Eu não sabia qual era o trabalho. - Bem, o que você quer dizer, ela não faria? - Bem, eu não sei se ela é o tipo de mulher. Ela me parece… - Eu não entendo sua atitude. Por que você acha que ela não faria? - Bem, ela nunca teve essa experiência. - Oh, francamente. Que experiência falta a ela, você acha? (NOTORIOUS, 1946) Ou mesmo quando Alicia vai visitá-los sem avisar, para informar novas descobertas sobre sua missão. O chefe de Devlin discute o caráter de Alicia com ele: - Eu não gosto disso. Eu não gosto que ela venha aqui. Ela está me deixando preocupado já tem algum tempo. Uma mulher desse tipo. - E que tipo é esse, Sr. Beardsley? - Oh, eu não acho que nenhum de nós tenha ilusões sobre o caráter dela, temos, Devlin? - Nenhuma, nem a mínima ilusão. - A Srta. Huberman não é de forma alguma uma dama. (NOTORIOUS, 1946) Alicia está a serviço de homens que não lhe respeitam e tampouco a consideram digna de ser uma dama. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer a forma como ela foi abordada, no começo da história, para realizar a missão: ao saber que Devlin era um policial, Alicia ficou histérica e começou a agredi-lo; a fim de contê-la, Devlin lhe nocauteou com um soco e Alicia acordou na cama, abalada, enquanto ele a observava. Inscreve-se aqui uma situação na qual a mulher não consegue se desvencilhar: mesmo que tente ser livre para viver da maneira que lhe convém, ela acaba sendo cooptada pela força masculina e subjugada. Ao se apaixonar por este homem, modelo de virtude, não encontra nele apoio para livrá-la de ter que se sujeitar a esta situação, que é praticamente a de prostituição, sob o signo do patriotismo. Mesmo fazendo seu dever, cumprindo o que Devlin pediu, ou seja, sendo patriota e ajudando o país a descobrir informações sobre seus inimigos, Alicia é vista como uma mulher sem classe e sem direitos. Devlin não tem coragem de assumir seu relacionamento com ela e nem de dizer que a ama, por receio de ser apenas “mais um homem na vida de Alicia”. Percebe-se ainda que, em relação a si mesmo, Devlin é tido com uma vítima, como um homem idôneo que se apaixona pela mulher errada e que é obrigado a abandonar tudo que acredita para ficar ao seu lado. Alicia, inicialmente, fica magoada ao descobrir que Devlin não conseguiu evitar que ela fosse colocada nessa situação, finalmente, ela se conforma e aceita o fato de não poder manter um relacionamento com Devlin, o qual a evita. Alicia não tem um fim trágico, mas qua- 94 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 se morre, porque, ao saber que está sendo enganado, o nazista Alexander Sebastian a envenena. Devlin consegue ajudá-la a sair da mansão. De acordo com Tania Modleski em The Women Who Knew Too Much: Hitchcock and Feminist Theory, Alicia começa a viver sua sexualidade ao descobrir que o pai é um traidor do governo americano, quando ela diz “Quando ele me disse, há alguns anos atrás, o que ele era, tudo ruiu. Eu não me importava com o que aconteceria comigo.” (NOTORIOUS, 1946) E toda a relação de Alicia com os homens e o governo, Segundo Modleski, ilustra bem a questão feminina e o patriarcado americano (MODLESKI, 1988, p. 58). Para a autora, o filme retrata questões políticas em relação ao feminismo e como os homens se relacionam com as mulheres, quase que as testando para saber se realmente os amam, vendo-as com outros homens para entender se gostam deles mesmo, se estão lhes dizendo a verdade. Percebe-se, na leitura deste capítulo de Modleski, que a postura de Alicia e Devlin notadamente se instaura na questão da conquista, mas que isso fica em segundo plano quando percebemos a demonização da mulher devido à sua sexualidade e à maneira como Alicia é cooptada para servir aos propósitos políticos. Ou seja, quando ela vive de maneira socialmente desregrada, é mal vista; quando preciso, sob o signo da violência, essa mulher é agregada à corporação e sua notoriedade é usada. Mesmo fazendo o que lhe é pedido, ela continua à margem da sociedade. Modleski afirma que Hitchcock conseguiu fazer Alicia trilhar um caminho de maneira que ela purgasse todo seu passado e que quase falecesse da mesma maneira que seu pai, envenenada; discute-se aqui o porquê de essa mulher ter que ser purgada e ter que se retratar. Certamente, a América da década de 1950 não via com bons olhos uma mulher que se relacionasse com homens com os quais não estivesse casada. Porém, percebe-se que, na tentativa de purgá-la, Hitchcock se inscreve como um diretor que modela uma visão de mundo na qual mulheres como Alicia devem redimir-se, sofrer e quase morrer antes de se casarem. Modleski também ressalta o fato do protagonismo feminino, já que é Alicia quem consegue viabilizar todo o desmantelamento da operação nazista no Rio; esse protagonismo, porém, fica em segundo plano, ao passo que ela não consegue se desvencilhar do homem que espiona e precisa da ajuda de Devlin para fazê-lo. Caso ela não tivesse purgado seus pecados e se arrependido completamente, como é vista no último encontro com Devlin, ela teria morrido. Existem, assim como Alicia, outros espiões nos filmes de Hitchcock. Podemos lembrar de, especificamente, de Andre Devereaux, de Topaz (1969). O agente francês, mesmo casado, tinha um romance com a espiã cubana Juanita de Cordoba. Fica claro que o romance tanto traz prazer quanto sucesso profissional para Andre, já que Juanita o auxilia a conseguir informações secretas e 95 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 a salvar sua vida em momentos de perigo, graças à sua reputação e renome no país. O importante, nessa questão, é que Juanita também é uma agente e, no país em que vive, é obrigada a manter um romance com um cubano da base governista chamado Rico Parra, para se assegurar e conseguir informações importantes. Quando o romance de Andre e Juanita vem à tona, além do seu trabalho de espionagem, é Juanita quem morre. Andre consegue fugir para a França, lamentando com brevidade a morte da amante. Aqui, podemos relacionar a função de Juanita com a de Alicia: as mulheres voluptuosas devem tomar vantagem de sua aparência para seduzir homens em posições estratégicas e conseguir informações que serão importantes para outros homens que estão no poder. Andre e Devlin não são pormenorizados por usarem mulheres para conseguir o que querem. Em contrapartida, as mulheres são marginalizadas quando fazem o que os homens que amam lhes pedem. 4. Marnie Marnie foi um dos últimos filmes feitos por Alfred Hitchcock e trata da história da protagonista homônima Marnie Edgar, uma mulher que mente e rouba como parte de sua rotina. Marnie consegue emprego de secretária em empresas e, depois de alguns meses, rouba o local de trabalho, conseguindo alguns milhares de dólares. Quando procura emprego na Rutland, ela também atrai os olhares do dono da empresa, Mark Rutland. Mas Mark consegue perceber que já conhece Marnie de outra ocasião, ele já a viu em outro escritório e se mantém alerta para saber o que acontecerá. Ele poderia não contratá-la, já sabendo que ela era uma ameaça, mas fica atraído por ela e decide entrar no jogo. Mark não é um homem comum: ele tem atração por animais selvagens. É importante que isso fique claro porque, notadamente, é o que justifica e conduz a ação do personagem ao longo da trama. Marnie consegue roubar a Rutland, mas é, posteriormente, interceptada por Mark, que a chantageia: ou ela se casa com ele, ou ele a denuncia por esse e pelos outros roubos que cometeu. Marnie tenta fugir e evitar a situação a todo custo, mas Mark é insistente e consegue se casar com ela numa cerimônia íntima. O casal logo parte para a lua de mel, ao mesmo tempo em que ele devolve o dinheiro que ela havia roubado das empresas nas quais trabalhara, por meio de depósitos anônimos. Mark poderia ser um herói, porque salva a protagonista, uma ladra, de seu destino cruel, que poderia incluir ser presa ou mesmo ser morta. O fato é que Marnie, apesar de no início da história, enquanto ainda era secretária da Rutland, ter desenvolvido um romance rápido com Mark, não está disposta a se casar com aquele homem. Mark acredita que está domando um animal selvagem, Marnie Edgar: Você não me ama. Eu sou apenas algo que você capturou! Você acha que eu sou um tipo de animal que você pegou! 96 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 Mark Rutland: É verdade – você é. E eu peguei algo realmente selvagem dessa vez, não foi? Eu segui seu rastro e peguei você e, por Deus, eu vou manter você comigo. (MARNIE, 1964) A princípio, quando ainda eram apenas patrão e empregada, Mark e Marnie se relacionaram normalmente. Sentindo-se atraído pela secretária, Mark Rutland a convida para fazer hora extra no fim de semana para escrever um relatório. Uma forte tempestade começa, e ela se assusta com os raios. Mark a acalma e a beija: começa assim o envolvimento amoroso entre os dois. Depois disso, Mark a convida para ver algumas corridas de cavalo. No carro, no caminho de volta, eles se beijam. Ainda na mesma ocasião, ele a leva para conhecer o pai e a cunhada na mansão onde moram. Na estribaria, eles voltam a se beijar. Marnie então o rouba e, como solução para o problema, Mark a investiga e a chantageia para que se case com ele, em troca do seu silêncio. A relação entre os dois termina, porque Marnie se sente obrigada a fazer algo que não quer. Ao mesmo tempo, Mark acredita que ela fingiu estar apaixonada, anteriormente, apenas para facilitar o roubo. Isso é o que Mark diz para Marnie quando ela cede à chantagem para se casar com ele, Mark Rutland: Quando chegarmos em casa, eu vou explicar que tivemos uma discussão amorosa... E que você fugiu… E que eu corri atrás de você e te trouxe de volta. Isso vai satisfazer papai. Ele admira ação. Então eu vou explicar que vamos nos casar antes do final de semana... Que eu não consigo ter você longe de mim. Ele também admira um desejo animal. (MARNIE, 1964) O que pode, a princípio, parecer uma história sobre um ato de bondade e de caridade de Mark Rutland, um homem milionário que decide ajudar uma ladra incorrigível a mudar de vida, torna-se, com o desenrolar da história, um estudo de personagem. Marnie tem, na verdade, problemas psicológicos que a impedem de se aproximar amorosamente de homens devido a memórias que a traumatizaram quando ainda era criança. Mark se interessa por “comportamento animal” e, por isso, com a ajuda de livros de psicanálise, tenta ajudar Marnie a reconstruir seu passado e se livrar da dor. Ao fim da narrativa, Mark afirma: “Marnie, é hora de ter um pouco de compaixão consigo própria. Quando uma criança, de qualquer idade Marnie, não tem amor, ela vai tomar qualquer coisa que lhe sirva, de qualquer jeito que puder. Não é difícil de entender.” (MARNIE, 1964). Antes do desfecho, porém, o expectador fica diante de uma das cenas mais controversas do filme. Até irem para a lua de mel, logo após o casamento, Mark parece um homem razoável. Mesmo com a chantagem, o personagem parece ter boas intenções, haja vista que, antes de saber 97 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 que ela era uma ladra, já estava apaixonado. Isso pode fazer com que seu comportamento inadequado possa ser explicado, e mesmo sua paixão pelo comportamento dos animais selvagens pode ajudar a entender o interesse pela jovem, que se recusa a se casar com ele. Na lua de mel, Marnie está agressiva e deseja ficar sozinha durante todo o tempo e Mark concorda que nada acontecerá se ela assim o desejar. Dias se passam, já que Mark a levou para um cruzeiro longo – do qual eles não podem desembarcar – e a relação entre os dois fica cada vez mais atribulada. Marnie e Mark discutem casualmente e dormem em quartos separados. Um dia, quando ela pede que ele desligue a luz, porque está atrapalhando-a dormir, Mark perde a paciência e a estupra. Quando acorda, Mark percebe que Marnie não está no quarto e, depois de procurar por todo o navio, encontra-a boiando na piscina. Ele consegue salvá-la. Em “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, Laura Mulvey explica que os filmes de Hitchcock estão cheios de homens que detêm o poder, seja da lei ou através do dinheiro. Em Marnie, Mark Rutland fica atraído por Marnie, quase que hipnoticamente e, por isso, espera que ela cometa o crime para depois livrá-la e aprisioná-la com chantagens: Ele, também, está do lado da lei, até que, dragado em uma obsessão pela culpa dela, pelo segredo dela, ele deseja vê-la cometer o crime, faze-la confessor para então salvá-la. Então, ele, também, se torna cúmplice enquanto toma vantagem de seu poder. Ele controle o dinheiro e as palavras, ele pode ter seu bolo e comê-lo. (MULVEY, 1975, p. 843). Mark tem o interesse de domesticar Marnie como se ela fosse um animal selvagem, por ser ladra e por mentir. Por ter poder sobre ela, ele se esquece do acordo que eles fizeram e viola as regras, obrigando-a a ter relações sexuais com ele. Pode-se imaginar que essa seja a obrigação de uma mulher ao concordar em se casar com um homem e que, por ser uma ladra, Mark pode imaginar que esse seja um castigo leve quando comparado com o que ela poderia sofrer estando presa. 5. Algumas considerações sobre o feminino De acordo com Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1967, p. 9), “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. É evidente que as pessoas nascem com órgãos femininos e masculinos, o que classifica o gênero. Mas Beauvoir se refere aos “ensinamentos” dados às meninas, para que elas se apropriem de certas representações sobre o que é, de fato, ser mulher. Quando estamos diante de narrativas fílmicas como as de Notorious e Marnie, não presenciamos situações, posturas e fatos naturais: assistindo a um conjunto de práticas e de representações sobre o feminino, sobre o masculino e sobre como os dois se relacionam em um contexto só98 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 cio-histórico-político. Quando assistimos à Alicia sendo achincalhada, pormenorizada e dada a uma prostituição velada porque viveu fora das regras da sociedade, ou quando assistimos a cena em que Marnie é estuprada sem que seu perpetrador (Mark) sofra quaisquer punições durante o filme, percebemos que tais práticas são permitidas dentro de uma sociedade de determinada época, que são práticas e representações de identidades masculinas e femininas verossímeis e que, mesmo que façam parte do universo particular abordado pelo filme, mantêm relação com a realidade. A relação dessas histórias com a realidade se configura por meio da própria construção do filme que, feito por várias mãos, carrega em seu cerne um conjunto das práticas e das representações sociais que eram próprios do imaginário da sociedade cultural vigente. De acordo com o que é possível perceber ao assistirmos os filmes, essas mulheres socialmente perigosas podem ser punidas por homens numa relação amorosa. Seja subjugando-as através da lei, do poder, do dinheiro ou da palavra, os homens norte-americanos exibidos nesses filmes têm autorização para julgar e punir mulheres que fogem ao padrão esperado pela comunidade: mulheres que se apaixonam por apenas um homem e que se casam com ele; que são honestas, têm um emprego fixo e que não mentem. Essa mentalidade nos remete ao pensamento de Beauvoir em duas passagens. Primeiramente, a que fala da superioridade do menino, Em suas recordações, Maurras conta que tinha ciúmes de um caçula que a mãe e a avó tratavam com mais carinho: o pai pegou-o pela mão e levou-o para fora do quarto; "Nós somos homens; deixemos aí essas mulheres", disse-lhe. Persuadem a criança de que é por causa da superioridade dos meninos que exigem mais dela; para encorajá-la no caminho difícil que é o seu, insuflam-lhe o orgulho da virilidade; essa noção abstrata reveste para êle um aspecto concreto: encarna-se no pênis; não é espontaneamente que sente orgulho de seu pequeno sexo indolente; sente-o através da atitude dos que o cercam (BEAUVOIR, 1967, p. 13). E segundo, da passividade esperada da conduta da menina: Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher "feminina" é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 1967, p. 21). Depois da análise das personagens femininas Alicia e Marnie nos filmes de Hitchcock – Notorious e Marnie, percebe-se que existe, no trabalho do diretor, uma quebra na imagem da mulher feminina esperada pela sociedade. Nos outros filmes do diretor, como apontado anteriormente, as mulheres passivas correspondem às expectativas sociais, ou seja, fazem-se mulheres conforme os desejos da sociedade, são bem quistas e têm finais felizes. Elas obedecem aos seus parceiros e sua passividade só é desafiada quando o homem pelo qual estão apaixonadas está em perigo, diferente- 99 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 mente de Alicia e Marnie, que vivem suas vidas do jeito que desejam e não se importam se o que fizeram estava certo ou errado. Alicia e Marnie não são mulheres comuns, não são passivas e não fazem o que foi imposto por seus pais e sociedade. As outras protagonistas precisam do aval masculino para agirem; Alicia e Marnie desafiam os homens com esperteza e audácia. É como se espionar, mentir, trair, ter relações sexuais sem contração de laços matrimoniais, se embriagar ou roubar, sem que isso os tornasse malvistos – como o Professor Michael Armstrong em Torn Curtain (1966), Andre Deveraux em Topaz (1969), John 'Scottie' Ferguson em Vertigo (1958), e John Robie em To Catch a Thief (1955) – fosse somente papel dos personagens masculinos. Quando Alicia e Marnie fazem o mesmo que outros homens fazem em filmes de Hitchcock, elas sofrem um tipo de violência quase consentido socialmente. Recapitulando a apreensão filmográfica de Alfred Hitchcock feita neste artigo e recordando o que foi dito a princípio sobre a importância que acreditamos que haja em conhecer o trabalho de um produtor de objetos culturais como o diretor em questão, fica claro que a proposta de compreender a figura da mulher como vista por Hitchcock foi atingida neste breve estudo. O que se quer dizer é que não é possível estabelecer uma visão de mundo do diretor com análise de dois filmes apenas. Pelo contrário, é necessário que possamos assistir aos seus filmes e só através desse exercício é que podemos constituir um estudo comparativo. Caso não houver apreensão de seus trabalhos, em quase sua integralidade, não é possível fazer comparações ou que os dois filmes em foco nesta análise, Marnie e Notorious, fossem destacados. Quando colocamos sua extensa produção filmográfica lado a lado, conseguimos comparar a visão de um diretor sobre diversos assuntos e, em questão neste artigo, sobre os papéis sociais que homens e mulheres devem desempenhar. Quando se compara os desfechos de suas narrativas, compreende-se que certos atos trazem consequências positivas e outros, negativas. Por isso, entende-se que certos comportamentos são aceitos e outros não. Mas isto não significa que seja Hitchcock o único responsável pelo destino cruel das mulheres marginalizadas em suas narrativas; afinal, o diretor não é o produtor dessa visão de mundo: ele está inserido nessa cultura patriarcalista norteamericana que viabiliza comportamentos, atitudes e punições. Terminamos este texto retomando mais um trecho de Beauvoir, ao tratar do sentimento da menina em relação aos meninos, que nos auxilia a compreender essas mulheres perigosas que não seguiram os padrões de comportamento femininos esperados pela sociedade e pagaram um preço por isso, já que a mulher “Sempre esteve convencida da superioridade viril; esse prestígio dos homens não é uma miragem pueril. Tem bases econômicas e sociais; são indiscutivelmente os senhores do mundo, tudo persuade a adolescente de que é de seu interesse tornar-se vassala [...]” 100 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 (BEAUVOIR, 1967, p. 66). Resta saber se as representações sociais vigentes ainda mantêm a mulher nas mesmas condições que Alicia e Marnie, e se a ficção ainda as faz pagar por serem diferentes. Referências ALVES, W. S. “Limites e intersecções do estético com o político no filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, e no conto 'Sessão das quatro', de Roberto Drummond”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, pp. 151-180, 2012. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida (vol. II). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. Disponível em: <http://74.54.97.18/~lorem401/erica/arquivoserica/livro/erica-mioloADL.pdf> Acesso em: 12 de março de 2013. _________. A História Cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manoela Galhardo. Portugal: Difel, 2002. GOMES, Regina. “A função retórica da crítica de cinema: o caso Central do Brasil”. In: FIDALGO, Antonio; SERRA, Paulo. (Orgs.). Livro de Actas do CCCC Teorias e estratégias discursivas. Covilhã: Livros Labcom, 2005, v. 2, pp. 317-326. MARTINS, André Reis. A luz no cinema. 2004. Trabalho de Conclusão de Curso do Mestrado em Artes Visuais - Universidade Federal de Minas Gerais. MODLESKI, Tania. The Women Who Knew Too Much: Hitchcock and Feminist Theory. New York: Routledge, Chapman & Hall, 1988. MULVEY, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema.” In: Film Theory and Criticism: Introductory Readings. Eds. Leo Braudy and Marshall Cohen. New York: Oxford UP, 1999, pp. 833844. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. Lisboa: Europa-América, 1963. SCHAEFFER, Osório Lucio. Cinematografia no Brasil: Um Estudo de Caso do Diretor de Fotografia Walter Carvalho no Filme Lavoura Arcaica. 2009. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Comunicação Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Miriam de Souza Rossini. STRATHAUSEN, Carsten. Patrick Süskind’s Perfume: The Relationship Between Literature and Film. Gegenwartsliteratur, n. 7, 2009, pp. 1-29. Filmes: BLACKMAIL. Direção: Alfred Hitchcock. British International Pictures (BIP), 1924. 1 DVD (85 min). 101 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 DIAL M FOR MURDER. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros, 1954. 1 DVD (105 min). FAMILY PLOT. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1976. 1 DVD (120 min). I CONFESS. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., 1953. 1 DVD (95 min). LIFEBOAT. Direção: Alfred Hitchcock. Twentieth Century Fox Film Corporation, 1944. 1 DVD (97 min). MARNIE. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1964. 1 DVD (130 min). NORTH BY NORTHWEST. Direção: Alfred Hitchcock. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1959. 1 DVD (136 min). NOTORIOUS. Direção: Alfred Hitchcock. Vanguard Films, RKO Radio Pictures, 1946. 1 DVD (101 min). PSYCHO. Direção: Alfred Hitchcock. Shamley Productions, 1960. 1 DVD (109 min). REAR WINDOW. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1954. 1 DVD (112 min). ROPE. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., Transatlantic Pictures, 1948. 1 DVD (80 min). SHADOW OF A DOUBT. Direção: Alfred Hitchcock. Skirball Productions, Universal Pictures, 1943. 1 DVD (108 min). SPELLBOUND. Direção: Alfred Hitchcock. Selznick International Pictures, 1945. 1 DVD (111 min). STAGE FRIGHT. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., 1950. 1 DVD (110 min). SUSPICION. Direção: Alfred Hitchcock. RKO Radio Pictures, 1941. 1 DVD (99 min). THE BIRDS. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1963. 1 DVD (119 min). THE MAN WHO KNEW TOO MUCH. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1956. 1 DVD (120 min). THE PARADINE CASE. Direção: Alfred Hitchcock. Vanguard Films, Selznick Studio, THE PLEASURE GARDEN. Direção: Alfred Hitchcock. Bavaria Film, Gainsborough Pictures, Münchner Lichtspielkunst AG, 1925. 1 DVD (92 min). TO CATCH A THIEF. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1955. 1 DVD (106 min). TOPAZ. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1969. 1 DVD (143 min). TORN CURTAIN. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1966. 1 DVD (128 min). UNDER CAPRICORN. Direção: Alfred Hitchcock. Transatlantic Pictures, 1949. 1 DVD (117 min). 102 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 VERTIGO. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1958. 1 DVD (128 min). 1947. 1 DVD (125 min). 103 A FUGA DA MISÉRIA E DA FOME NO ROMANCE VIDAS SECAS, DO ESCRITOR GRACILIANO RAMOS MISERY AND HUNGRY RUN AWAY IN THE ROMANCE VIDAS SECAS, BY GRACILIANO RAMOS Gracineia dos Santos Araújo (PG - Universidade de Valladolid/Espanha) Marta Mendes de Araújo (UNEB) RESUMO: O nordeste brasileiro, cenário onde ocorrem os mais longos e árduos períodos de estiagem, é vítima dos problemas que mais afligem o mundo rural: a miséria e a fome. A partir da obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas (1937-1938), este trabalho trata de refletir sobre a vida de famílias sertanejas que, ao serem vítimas das adversidades do tempo e da falta de políticas públicas, são condenadas a abandonar seus lares em busca de melhores condições de vida. Os personagens da obra estudada têm uma dimensão testemunhal-simbólica muito significativa, são vítimas do atraso e da ignorância; condenados à indigência e à fuga; pessoas prescindíveis para o mundo urbano, “civilizado”; invisíveis diante do desenvolvimento tecnológico do consumo. O escritor alagoano mostra a grande problemática existente no campo, utilizando a sua literatura para chamar atenção das circunstâncias de abandono, opressão e injustiça social em que vive grande parte das populações rurais. Palavras-chave: Graciliano Ramos, literatura brasileira, miséria e fome. ABSTRACT: Brazilian northeast, stage in which the longest and hardest drought, is a victim of the problems which cause pain to the rural world: the misery and hungry. Starting from Graciliano Ramos work, Vidas Secas (1937-1938), this work tries to think about the live of the “sertanejas” families which, victims of the weather adversities and lack of public politics, are condemned to abandon their homes searching betther live conditions. The characters of the studied work have a testimonial-simbolic dimension very significant, are victims of the backwardness and ignorance; condemned to poverty and escape; dispensable people for urban world, “civilised”; invisibles in front of the consumming technological development. The “alagoano” writer shows the big difficulties existing in the land, using the literature to attract attention to the abandon circumstances, oppression and social injustice in which most part of the rural populations live. Keywords: Graciliano Ramos, brazilian literatura, misery and hungry. 1. Introdução Este trabalho tem por objetivo fazer uma reflexão sobre a vida de muitas famílias sertanejas, que devido à problemática da seca, e afligidos pela miséria e fome, são obrigadas a fugir em busca de dias melhores. Tudo isso, a partir da realidade dos protagonistas Fabiano e Sinhá Vitória, no romance Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos. O cenário no qual se ambienta a narrativa é marcado pelo pessimismo, pela angústia e pela falta de perspectiva; um universo rural, eminentemente austero, que anula todas as possibilidades de uma vida digna. Em meio a esta realidade, o autor mostra a seus leitores o cotidiano de uma REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 família sofrida, oprimida pela seca, e pisoteada pela indiferença dos poderes públicos, ou seja, retrata uma realidade determinada pelas adversidades do tempo e do espaço, pela divisão de dois mundos, cultural e economicamente antagônicos (rural e urbano), que se chocam constantemente, mantendo seus valores e seu status inalterados. Na sua aspereza, como se caracteriza o sertão nordestino, o mundo rural sertanejo ocupa um lugar destacado na literatura brasileira em diversos momentos da formação e produção literária do país, especialmente na estética modernista. Muitos escritores da segunda fase do modernismo brasileiro, como Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto e Raquel de Queiroz, são alguns dos autores mais relevantes que, em sua consolidada trajetória, e desde perspectivas variadas, dão protagonismo às realidades da geografia rural do Nordeste. Além da literatura dos referidos escritores, destaca Bosi (1979) que considerável parte das obras narrativas que fazem parte do cânone literário da literatura nacional está ambientada no âmbito rural. Em Vidas Secas, é evidente que a intenção de Graciliano Ramos não é que haja uma sociedade perfeita, nem de “salvar” o mundo rural das mazelas que este padece, senão que autor pretende despertar a consciência dos leitores em relação à problemática do universo campesino, diante da necessidade de promover a justiça social e posicionar-se a favor da igualdade e dignidade humana. Com uma forma comprometida e humanística de construir literatura, fica evidente na narrativa do escritor alagoano a certeza da necessidade de expressar por meio de suas palavras o contexto sociopolítico do país, estando bem próximo à complexidade de sua época. Através de seus personagens, Ramos reflete o seu compromisso social diante dos dilemas humanos, com uma sensibilidade veemente em relação à problemática do campo. Assim, faz de sua literatura um verdadeiro veículo de denúncia e transformação social. Na sua dinâmica de denúncia social, Graciliano Ramos elabora uma obra sumamente representativa na reconstrução das realidades rurais do sertão nordestino, valendo-se de uma prosa singela, clara, acessível, marcada por vocábulos tipicamente do universo campesino, talvez desconhecido para a maioria dos leitores; formada por uma sintaxe simples, através da qual demonstra que é grande conhecedor da realidade que aborda. A secura da linguagem e a aspereza da crítica social com as quais o autor desenvolve o romance, situado na segunda fase do modernismo brasileiro, encontram na aridez do sertão e nos problemas sociais do mundo rural, o seu terreno fértil. 2. O autor e a obra Graciliano Ramos de Oliveira nasceu no sertão de Alagoas, no ano de 1892. Considerado um dos maiores romancistas brasileiros, o autor publica em 1938 o romance Vidas Secas, através 105 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 do qual reivindica valores do mundo rural, tão ignorados pelo mundo “civilizado” do consumo. Ramos trata da problemática do homem do campo, denunciando as circunstâncias de opressão, exclusão e abandono, as quais os privam das mais básicas condições de sobrevivência. O escritor constrói a narrativa em um cenário de tempos modernos; leva em consideração não apenas os fatores histórico ou político-social do Brasil dos anos 1930, cuja lógica, ainda herdeira da cultura de séculos anteriores, mantém o campo brasileiro longe dos avanços tecnológicos e do possível “progresso” que os mesmos aportam (sistema de represas e canalização de água, rodovias, luz elétrica, entre outros). Ao referir-se às populações rurais do sertão nordestino, Graciliano Ramos observa que as mesmas encontram-se, pouco a pouco, expostas ao turbilhão da modernização, que transformam as suas vidas e lhes imprime novas necessidades. Em Vidas Secas, Graciliano Ramos antecipa em sua análise o estranhamento do indivíduo excluído da sociedade, fazendo uma reflexão elucidativa a respeito dos seres estranhos que povoam a narrativa. Nesta perspectiva, de acordo com as contribuições do sociólogo Sygmunt Bauman (1998), evidencia-se que estranhos são aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo, moral e social, previamente estabelecido. Fabiano, no seu isolamento e embrutecimento, representa uma magnífica imagem dos “estranhos”, seres marginalizados pelas circunstâncias do contexto no qual vivem carentes de expectativas de vida melhor junto à sua família. O estranhamento do protagonista se estende à linguagem, pois não dominava a palavra para reivindicar seus direitos como ser humano. Por essa razão, está obrigado a viver à sombra do “outro”, sempre tendo como referência, até em seus pensamentos, o Seu Tomás da Bolandeira, pois este se expressava com autonomia, para projetar seus desejos e seus anseios, fator que cativava Fabiano. É importante destacar que, de acordo com uma perspectiva baudelairiana, o mundo moderno - neste caso: rural versus urbano – exige que as suas populações se adaptem às transformações que ocorrem de caos ou ruínas, convivendo com as novas necessidades imprimidas pela nova realidade. Em seu artigo “El pintor de la vida moderna”, publicado em 1863, destaca Baudelaire (1995, p.92) que “la modernidad es lo transitorio, lo contingente, la mitad del arte, cuya otra mitad es lo eterno y lo inmutable”. O autor acredita nas consequências catastróficas da “nova lógica”, mas também crê na possibilidade de novas formas de sensibilidade e liberdade. Nesta perspectiva, podemos situar os personagens de Graciliano Ramos estreitamente vinculados à “nova realidade” destacada por Baudelaire, uma vez que padecem as consequências das transformações da sociedade e, por conseguinte, da necessidade de progresso. Por meio de uma eminente engenhosidade literária, em Vidas Secas Graciliano Ramos é capaz de ficcionalizar a realidade sertaneja em todas as suas particularidades, partindo das questões 106 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 locais para alcançar dimensões universais. Para o escritor, nada passa despercebido no universo campesino e isso se reflete em cada um de seus personagens, em cada uma das anedotas que compõem a narrativa. Não é difícil entender as razões da universalidade do escritor alagoano o qual, diferentemente de muitos dos seus contemporâneos, coloca sua narrativa a favor dos problemas que afligem o sertanejo, problemas estes que são universais, possíveis de acontecer em qualquer parte do mundo, seja na aridez das terras do oriente, nas terras rochosas de países como o Chile ou a Bolívia, ou nos desertos de países africanos que padecem da seca não apenas pela falta de chuva, mas também secos os sonhos e as esperanças, a justiça e a dignidade, estando condenados a viver eternamente à mercê do próprio destino e da sorte. De acordo com Umberto Eco (1996, p.94), “los mundos de la ficción son, sí, parásitos del mundo real, pero ponen entre paréntesis la mayor parte de las cosas sobre éste, y nos permite concentrarnos en un mundo finito y cerrado, muy parecido al nuestro, pero más pobre”. É neste mundo mais pobre, fruto da imaginação do autor e da sua liberdade de criação, que Graciliano Ramos elabora a sua narrativa, encontrando na realidade os elementos fundamentais para a sua produção literária. Por outro lado, e desde a perspectiva da estética marxista, também a partir do pensamento de George Luckás no seu livro Sociología de la Literatura, o acontecimento literário está subordinado à representação autêntica do real. Em Vidas Secas, é possível observar que o autor oferece uma realidade reconhecível, mas se trata de uma realidade entre aspas, verossímil, considerada real, embora não o seja; trata-se de um mundo entrelaçado por elementos históricos e sociais, resultado de um passado problemático, de injustiças sociais, que se mantém em relação estreita com o presente. Desde uma perspectiva baudelairiana, podemos entender que a modernidade, em um sentido muito amplo, estreita a arte de criar (a arte literária) e a história (a realidade). Além disso, permite entender que a modernidade está associada à linguagem, exteriorizada através da arte de narrar, posto que é através desse conjunto de elementos que podemos intercambiar informações, experiências, etc, sendo indivíduos interpessoais, intersubjetivos. Em meio a essa realidade, Graciliano Ramos encontra nas palavras a única maneira de representação, desenvolvendo a partir de circunstâncias concretas, abastecendo-se de uma realidade dotada de significado, através de um acúmulo de matérias ou ideias. Assim, ambientando a narrativa no coração do sertão nordestino, Graciliano Ramos dá protagonismo à história de uma família pobre que, obrigados pela circunstância da seca, fogem, sem destino, da miséria e da fome e vão à busca da sobrevivência, já que “a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida” (RAMOS, 1998, p. 09). Obrigados pelas circunstân107 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 cias, a família empreende a grande viagem para, talvez, lugar nenhum: Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. De acordo com Candido (1992, p.104), “Graciliano Ramos conseguiu em Vidas Secas ressaltar a humanidade dos que estão nos níveis sociais e culturais mais humildes”. Deste modo, levando em consideração as principais preocupações do escritor sertanejo, direcionaremos o nosso olhar em ângulos multidimensionais, uma vez que nos são importantes os fatos em seu conjunto. Além disso, estaremos atentos à forma como o autor desperta as consciências para os problemas existentes no marco rural, uma peça mais do quebra-cabeça de um mundo considerado prescindível, diante do mundo “civilizado”, uma vez que o autor nos apresenta o universo rural em uma dimensão muito ampla, descobrindo-o, reinventando-o, mas também reinterpretando-o. Ao mesmo tempo em que exterioriza a sua preocupação com os problemas existentes no meio rural, o escritor Graciliano Ramos se desloca pelo sertão nordestino, através dos seus protagonistas, com uma grande e eloquente liberdade imaginária, capaz de expressar a mais sórdida realidade, de uma maneira esplendorosa, cheia de luzes e cores, embora sejam abundantes as sombras e as dores. Bem distante de mostrar uma visão idílica do mundo rural, Ramos aborda as desigualdades sociais que afligem o homem do campo e o faz com uma linguagem clara, precisa, que não deixa sombras de dúvida; ressalta, denuncia; se apropria do mundo rural e o torna seu, com o único propósito de fomentar o debate e a denúncia social a respeito da problemática existente no universo rural. Ao longo dos treze capítulos que compõem o romance, Graciliano Ramos mostra, através de exemplos impactantes, a necessidade de tomar partido diante de tão sórdidas circunstâncias que marginalizam as populações rurais. A exemplo do fenômeno das secas, que deixa “... fazenda sem vida, o curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada...” (RAMOS, 1998, p.12) e, por conseguinte, a escassez de água e alimentos para a sobrevivência, o autor provoca no leitor uma indignação e o chama a ser partícipe do debate, convidandoo a lutar em defesa da dignidade da pessoa humana, agindo contra as circunstâncias que obrigam o sertanejo a viver sob um céu inclemente e sobre um terreno pedregoso. Para Bosi (2003, p.23), “o sertanejo crê no Destino, na sorte e no azar, e a sua crença é tanto mais sólida e justificada quanto menor é o seu raio de ação consciente sobre o que lhe há de suceder.” Assim, ademais de mostra os dramas vividos pelas populações rurais, Graciliano Ramos 108 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 sublinha a falta de perspectiva, a incerteza do futuro e a dureza do presente das populações rurais. Tudo isso, sempre com o propósito de modificar o rumo da história, dando protagonismo às pessoas mais sofridas e excluídas da sociedade, através de uma narrativa feita em terceira pessoa, que transmite as expressões rústicas dos protagonistas, que pouco se expressam verbalmente, mas que transmitem, através dos gestos, a mais perfeita reflexão da vida rural sertaneja: “Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas” (RAMOS, 1998, p.11). O sertanejo migra, mas a fuga que empreende está sempre acompanhada da certeza de encontrar dias melhores, embora isso esteja atrelado à “vontade” da natureza, representada, majoritariamente, pela “grandeza dos céus”, transmitida através das chuvas torrenciais que devolvem a vida e a abundância ao mundo rural: “Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu grande e branca. Certamente ia chover” (RAMOS, 1998, p. 15). Com base nesta realidade, “Graciliano Ramos vê o migrante nordestino sob as espécies da necessidade. É a narração, que se quer objetiva, da modéstia dos meios de vida registrada na modéstia da vida simbólica” (BOSI, 2003, p.10). Isso significa que, com um fazer literário, preocupado com o bem estar do ser humano, o escritor alagoano direciona seus textos em favor da humanização do homem do campo, uma vez que é consciente da sua “missão” de lutar pela inclusão social do homem rural. O romance Vidas Secas é motivado, entre outros fatores, pela consciência que tem o autor da existência de uma linha divisória latifundiária, que divide os sertanejos em ricos e pobres. Ainda de acordo com Bosi (2003, p. 20), “A chave do realismo crítico de Graciliano encontra-se analisando seu distanciamento: o narrador conhece por dentro as restrições e os entraves da vida rústica nordestina, tanto que sabe dar às folgas simbólicas dos retirantes o seu verdadeiro nome de ilusórias consolações”. Esse componente ideológico do intelectual Graciliano, como um cidadão comprometido com a justiça social, deixa claro a sua condição de sertanejo que, embora seja oriundo de uma família de classe média, é conhecedor e defensor do universo rural que o rodeia, deste universo cujos habitantes, em muitos casos, são seres verdadeiramente deplorados, deformados pela miséria e pela fome; privados de todas as benesses que a vida pode oferecer. Em um mundo distanciado e privado do progresso, a busca do sustento se converte em uma verdadeira arte e os sonhos são os principais aliados do homem sertanejo. Com a chegada das chuvas, o solo do sertão se enche de vida e o coração do sertanejo de esperança, como bem devaneia Fabiano no trecho abaixo: a caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saia de rama- 109 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 gens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria toda verde (RAMOS, 1998, p.15). O drama da pobreza no mundo rural começa cedo; a luta pela sobrevivência é transmitida de pai para filho. É preciso saber defender-se de todo tipo de adversidades, e a infância nasce com a certeza de que é preciso basear-se na experiência dos adultos, a favor da sobrevivência: “... o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.” (RAMOS, 1998, p.17). Em Vidas secas, podemos observar que o bem-estar social não é um privilégio de todos, mas de uma minoria insignificante, como se a própria natureza necessitasse de excludentes e excluídos. Esta lógica estendida e enraizada parece não ter um final diáfano, posto que não existe um compromisso com a igualdade entre os povos. Por isso, de acordo com Bosi (2003, p.13), “Graciliano Ramos olha atentamente para o homem explorado, simpatiza com ele, mas não parece entender na sua fala e nos seus devaneios algo mais do que a voz da inconsciência.” Toda uma realidade desoladora é vislumbrada através de um cotidiano cicatrizado por um destino impregnado de incertezas e desafios, onde o problema da desigualdade social é visto em plena luz do dia, em que a vida e a morte andam juntas, em uma mesma direção, gozando do mesmo grau de intensidade; na qual as pessoas são obrigadas a abandonar o seu lar em busca de um prato de comida assegurado. Apesar de tudo, de todos os problemas de caráter socioeconômicos existentes no meio rural, Graciliano Ramos mostra como o homem sertanejo mantém uma relação estreita e harmoniosa com a natureza e com o próximo; aprende a se relacionar com o meio e com todo tipo de adversidades, desenvolvendo uns mecanismos de defesa e/o participação que os ajudam a driblar os fenômenos naturais ou de fenômenos externos que, porventura, venham modificar a rotina do dia a dia. Tudo isso, através da observação de sinais emitidos pela natureza: as cores das nuvens, a força e a voz do vento, etc. esses sinais servem não apenas de orientação, mas, também, trazem a esperança e fortalecem crença em dias melhores. Graciliano Ramos também observa e denuncia o sofrimento das populações rurais do sertão nordestino, que dependem dos “céus” para a sobrevivência. A falta de chuva e, consequentemente os longos períodos de seca, levam o sertanejo a tornar-se impotente diante dos obstáculos naturais. Além disso, outro agravante consiste em não ser hábil o suficiente como para exigirem dos poderes públicos que as devidas providências sejam tomadas, sendo paradoxal a convivência “harmoniosa” entre a miséria e a abundância, como se a riqueza de uns e a miséria da maioria fosse uma 110 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 lei da vida. Em um mundo marcado pela dor e pelo sofrimento, a luta pela sobrevivência se torna o único objetivo. Os impactos sociais, distantes de ser causados simplesmente pelas adversidades da natureza, transmitida através de catástrofes constantes, obrigam as populações empreenderam uma viagem, muitas vezes sem destino ou sem regresso, trazendo consequências sumamente negativas para a vida no meio rural, comprometendo o futuro de muitas gerações que dependem da terra para obter o seu sustento. Em Vidas Secas, o autor não pretende “civilizar” o mundo rural, senão, mostrar as consequências do abandono e degradação do meio rural, como vítima da indiferença social e da inoperância dos poderes públicos. Sem direitos e deveres respeitados, o sertanejo, na sua grande maioria, é marginalizado, excluído, considerado prescindíveis diante do mundo “civilizado” do capitalista. Através dos protagonistas da obra, Ramos dá visibilidade ao sertanejo, tirando-o do isolamento que por muito tempo fora relegado, sempre à margem da sociedade. E, ao tirá-lo do anonimato, atribuilhe vez e voz, mostrando que, mesmo vivendo privações e estando a mercê do seu próprio destino e da sorte, o sertanejo traz na sua mente o desejo de prosperidade, com pouso fixo e uma vida digna como de qualquer ser humano, uma vez que, é consciente de que outro mundo existe. Apesar de todo sofrimento e do pessimismo que caracterizam a obra, observamos que a esperança é um lugar que ocupa uma posição de destaque na vida do sertanejo. Por isso, Graciliano Ramos lança um olhar esperançoso para a vida e o futuro do sertanejo, anunciando um futuro promissor, embora este, lastimosamente, tenha que migrar para as grandes cidades. Tudo isso, motivado pelos sonhos... a caminho do sul, com um destino “certo”: Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos... chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos (RAMOS,1998, p. 126). Por fim, ressaltamos que, embora os personagens vivessem abaixo da linha da pobreza, tendo como certeza somente o presente, isso, porém, não privou Fabiano e sua família de sonhar com uma vida melhor. Reforçando as imortais palavras de Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.. Referências BAUDELAIRE, Charles. El pintor de la vida moderna. Trad. Alcira Saavedra. Murcia, Colegio de Aparejadores y Arquitectos Técnicos. Librería Yerba: Cajamurcia, 1995. 111 REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - ANO 5, v.1, Número 8 - TEMÁTICO “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação” ISSN: 2179-4456 Julho de 2014 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BOSI, Alfredo. Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2003. ___________. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979. CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaio sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1992. ___________. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1980. ECO, Umberto. Seis paseos por los bosques narrativos. Barcelona: Editorial Lumen, S. A, 1996. LUCKÁS, Georg. Sociología de la literatura. Barcelona: Ediciones Península, 1996. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998. 112