Razão – Uma Visão Intuitiva: Parte VIII
Razão & Verdade
por Lauro Edison, 2012*
“A ignorância é uma bênção.”
– Cypher, Matrix
E
xiste uma impressão disseminada de que a razão tem alguma espécie de vínculo necessário com a verdade. Algumas pessoas,
mesmo entre as mais sofisticadas, ficam perplexas com a ideia de
que mentiras, ilusões ou qualquer espécie de falsidade possam ser o meio
ou mesmo a meta de qualquer procedimento racional. Buscar a verdade,
pensam elas, é por definição a atitude racional.
Esta parece ser a consequência mais negativa da distinção entre razão epistêmica e razão prática. Como a primeira visa sempre a estabelecer
a verdade, e como a segunda só trata de ações – aparentemente nada tendo a ver com verdade ou falsidade –, fica parecendo que a falsidade não
tem papel nos processos racionais, senão o papel de ser evitada.
Onde essa impressão gera mais estranheza é diante de questões
classicamente elementares como: “se fosse verdade que, após sua morte,
você passaria a eternidade no inferno, você gostaria de saber disso?” Algumas pessoas são levadas a responder algo na linha de: “não, nesse caso
eu preferiria ser irracional”. Outras – o que é certamente pior! – chegam a
ponto de responder que “sim, eu preferiria saber – afinal, é a verdade”,
como se com isso estivessem heroicamente tomando a atitude racional por
excelência.
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Mas é óbvio que, entre passar 80 anos razoáveis seguidos de eterna
dor e passar 80 anos desesperadamente angustiados seguidos de eterna
dor, a primeira opção é melhor. E, como tal, é racional optar por ela. O
que isso mostra é apenas uma reafirmação do que acabamos de ver: a racionalidade é uma questão de bem satisfazer os nossos desejos, não uma
questão de obter conhecimento. Ou talvez você prefira a fórmula cínica: “a
felicidade é mais importante do que a verdade”. Só que não há meio de
colocar as cartas na mesa deste modo sem ouvir protestos. Por quê? Por
que a verdade parece tão importante? A razão é óbvia: saber a verdade é
indispensável para a satisfação de quase todos os nossos desejos. Se você
está com pressa e acredita, falsamente, que pular do apartamento irá acelerar sua chegada, você não vai satisfazer seu desejo – pra dizer o mínimo.
Mas essa é a única espécie de relação entre razão e verdade. É uma relação típica, mas não necessária. Se as circunstâncias são tais que saber a
verdade vai na contramão de seus objetivos, pior para a verdade.
Apesar de comparativamente raras, ainda são inúmeras as circunstâncias em que a razão está do lado da ignorância ou da falsidade. Querer
ignorar o final de um filme antes de assisti-lo, por exemplo. Ou contar
uma mentira crucial para um determinado sucesso – o que pode até ser
do interesse de quem acreditar na mentira. Ou, de um modo geral, preferir
a Matrix, a depender das circunstâncias – por que não? Sim, será ilusão;
mas não fará diferença se a ilusão não for percebida. Ou você realmente
acha melhor ser, digamos, uma pessoa com rosto desfigurado no mundo
real, do que ser uma estrela de cinema na Matrix? De fato, há duas possíveis concepções discordantes neste ponto: pode-se tanto afirmar que, graças a algum princípio obscuro, a verdade sempre maximiza a felicidade
quanto afirmar que a verdade é intrinsecamente mais importante que a felicidade. As duas concepções parecem manifestamente indefensáveis: a
primeira não só por dificilmente prescindir de um milagre, mas por ser
basicamente uma admissão implícita da prioridade da felicidade; e a segunda por depender de uma noção objetiva de importância que é ininteligível: a felicidade é importante para nós porque é subjetivamente agradável. Isto não ocorre com a verdade. Então como ela seria importante em si
mesma? Ela só pode ser importante em função de nossa felicidade, como
tudo o mais.
Mas há algo importante por trás da intuição de que a verdade seja,
em certo sentido, indispensável: nós funcionamos de tal maneira que só
nos sentimos plenamente felizes ou satisfeitos na crença firme, inabalável,
de que nossa situação positiva é real. A menor desconfiança de ilusão nos
mostra a felicidade rapidamente virando pó. Temos uma inevitável pena
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de pessoas que estão felizes por estarem iludidas, como a esposa orgulhosa de seu casamento que desconhece as traições do marido. Mas qual o
problema, desde que ela nunca saiba? A própria pergunta sugere a resposta: a verdade pode vir à tona a qualquer momento. E não é só isso. À
diferença das idealizações de uma Matrix, as ilusões costumam trazer
consequências reais e profundas. Dificilmente alguém sai impune. O tempo que aquela esposa se ilude é o tempo que ela envelhece e dificulta, ou
mesmo perde, a chance de conseguir o casamento que de fato sempre
quis. Mesmo crenças religiosas, com as quais se pode morrer sem a desilusão, talvez tragam consequências negativas determinantes, como a de
descuidar da felicidade presente em favor de uma ilusória felicidade futura. Então sim, não é impossível que a ilusão compense – mas é um negócio arriscado e perigoso. A verdade é essencial à felicidade? Ao menos no
sentido de que a única felicidade que pode ser intrinsecamente inabalável,
em sua significância, é aquela fundada na realidade.
Sendo nós quem somos, raramente é racional se deixar iludir. E
mesmo quando é ou seria racional, dificilmente é possível.
● ● ●
A seguir: parte IX
Razão & Emoção
As emoções são irracionais? A razão é fria e calculista?
Ou é esse o maior mito sobre a racionalidade?
Notas
*
Texto revisado por João Lourenço.
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HOFSTADTER, DOUGLAS R. Gödel, Escher, Bach – Um Entrelaçamento de Mentes
Brilhantes, p.126 (Editora UnB, 2001).
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