PENSAR EM SPINOZA
Por Pierre Macherey
«Foi sobre Spinoza que trabalhei o mais seriamente a partir das
normas da história da filosofia; mas foi ele quem mais me provocou
o efeito de uma corrente de ar que se recebe nas costas cada vez que
você o lê, de uma vassoura de feiticeira que é preciso cavalgar.
Spinoza, ainda não o começaram nem mesmo a compreender, e eu
não mais do que os outros.»
Dialogues com C. Parnet, Ed. Flammarion, 1977, p. 22
Uma parte importante da obra de Deleuze é consagrada à leitura de outros filósofos: Hume,
Kant, Nietzsche, Bergson, hoje Leibniz, mas também os estóicos e os epicuristas e,
particularmente, Spinoza, que será o único que trataremos aqui, já que o seu exemplo faz
compreender bastante bem como procede esta leitura, e a que tipo de interesse filosófico ela
corresponde.
Não se pode dizer que Deleuze seja um historiador da filosofia, tanto que o seu
empreendimento se mantém à distância das clivagens disciplinares, e da mesma forma
ignora os dilemas artificiais, como os da explicação e da compreensão, do comentário e da
interpretação. Quando apresenta o pensamento de Spinoza, analisando o texto no qual este
se expõe, mostrando como este texto é composto e consegue enunciar o que tem a dizer,
não é para ele de forma nenhuma exclusivo de uma avaliação de seu conteúdo especulativo,
do ponto de vista de uma investigação teórica não considerando somente um passado
histórico, em relação com qualquer coisa que foi pensada; mas coincide com o esforço de
um pensamento no presente, recriando o ato pelo qual este pensamento se efetua, na própria
pessoa que o lê. Mais do que o repensar, Deleuze empreende de alguma forma o pensar
Spinoza, ou o pensar «em» Spinoza, instalando-se no interior do elemento teórico, do meio
vivo onde se desenvolve o conjunto da sua obra, não sendo esta redutível a uma
combinação doutrinal, a um «sistema». Em lugar de abordar uma filosofia, como a de
Spinoza, tal como ela é, e de dar uma descrição em princípio objetiva e exaustiva do seu
discurso, de um ponto de vista necessariamente estático, trata-se de, dinamicamente,
produzir, como se fosse a primeira vez, o movimento intelectual pelo qual ela se tornou o
1
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» n? 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchettl. Extraído de
Carlos Henrique de Escobar (org.), Dossier Deleuze. Rio: Hólon Editorial, 1991.
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que é. Em lugar de «seguir» Spinoza, tomando o cuidado de repetir tudo o que ele já teria
dito, é como se Deleuze o precedesse, intervindo na história de um pensamento ao mesmo
tempo que o dá a conhecer, e não dando-o a conhecer senão para que da mesma forma
intervenha nele: já que Deleuze em Spinoza é também Spinoza em Deleuze.
Talvez mais do que na leitura dos seus próprios livros, é no seu ensino que Deleuze
espanta por esta faculdade de penetração que lhe permite assimilar e comunicar um
pensamento filosófico a partir do interior, na sua espessura, bem além de um estudo formal
e abstrato das suas articulações. Por aí, aparentemente, a sua forma opõe-se à de Foucault,
que ao contrário lia os filósofos clássicos de viés, e pode-se dizer na diagonal, de forma
sistematicamente parcial, negligenciando a organização global do seu pensamento e não
considerando senão alguns dos seus enunciados particulares isolados do seu contexto: em
Deleuze, as filosofias reencontram um centro e um fundo - ele diria, talvez, um sentido - do
ponto de vista em que elas se clarificam na sua totalidade. Poderíamos ser tentados a ver
aqui o sintoma de um certo bergsonismo, em relação à concepção de uma leitura dinâmica e
sintética, que um texto de 1912 sobre L'Intuition philosophique(1) tinha justamente
ilustrado com o exemplo de Spinoza: mas o Bergson que aqui se exprime, ele mesmo
revivificado pela leitura de Nietzsche, fala a linguagem de uma dinâmica das forças, para a
qual a potência do sentido é ao mesmo tempo jorro das profundidades, desdobramento em
superfície, segundo um duplo princípio de manifestação e de composição, tal como ele se
destaca de um estruturalismo que teria completamente assimilado as lições da genealogia.
Com efeito, embora ele aí se prenda de outra maneira, Deleuze está menos oposto
do que se poderia pensar, de início, à leitura dos filósofos que fazia Foucault. Uma fórmula
que utilizou várias vezes diz bem como ele se encontra «em» Spinoza: «tomá-lo pelo
meio»(2), «tentar perceber e compreender Spinoza pelo meio(3)». O «meio» de um
filósofo, se refletirmos aí, pode ser duas coisas. Primeiro, acabamos de o ver, o elemento
em comunicação com o qual o seu pensamento se produz, qualquer coisa que se parece com
o que Foucault tinha chamado de epistéme, ou seja um campo de problemas, ou uma nova
maneira de colocar as questões filosóficas, tendo o fato de colocar estas questões um valor
em si mesmo, independentemente das soluções que lhes podem ser atribuídas: deste ponto
de vista, a questão de Spinoza, aquela que devemos colocamos a nós mesmos, não a
Spinoza, mas em Spinoza, é este problema que ele introduziu em filosofia, e que é
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necessário identificar nele. Segundo Deleuze, e aqui voltaremos, este problema é o da
expressão, vindo daí o seu título para a obra de conjunto que ele consagrou à obra de
Spinoza (4).
Mas o meio de um filósofo é também isto que no seu pensamento não constitui nem
o seu objetivo final nem seu primeiro princípio, mas que liga ambos, separando-os: pegar
Spinoza pelo meio é renunciar a acompanhar o seu caminho passo a passo, do momento
onde começa o seu discurso até onde ele termina, já que nenhum discurso filosófico nem
começa nem acaba verdadeiramente, mas é, o precedendo, apreendê-lo diretamente neste
ponto central de onde surgem os seus problemas. Deleuze designou um pequeno livro, no
qual reuniu vários textos consagrados a Spinoza, de «filosofia prática» (5). A Ética de
Spinoza, o próprio nome o indica, não é somente um livro teórico que se deveria ler para
estudar a maneira como ele resolveu certas questões, mas é antes de tudo uma certa forma
de colocar estas questões, uma atitude de pensamento e de vida, ou ainda um ethos no
sentido da etologia. Num texto espantoso em que Deleuze aproxima Spinoza do teórico do
«Umwelt», Uexküll, encontra-se esta reflexão: «Há um curioso privilégio de Spinoza,
qualquer coisa que parece não ter sido conseguida senão por ele. E um filósofo que dispõe
de um aparelho conceituai extraordinário, extremamente desenvolvido, sistemático e
erudito; e no entanto ele é, no mais alto nível, o objeto de um encontro imediato e sem
preparação, tal como um não-filósofo, ou então alguém desprovido de toda cultura,
podendo receber uma súbita iluminação, um «clarão». E como se se descobrisse spinozista,
se chega ao meio de Spinoza, é-se aspirado, envolvido no sistema ou na composição»(6).
Singularidade de Spinoza, por quem a especulação se torna prática.
Ler um filósofo como Spinoza, ou o «praticar», é justamente decifrar os índices da
sua singularidade, ou seja, descobrir aquilo que no seu pensamento constitui o problema.
Ora, quem faz os problemas em filosofia? Não são nem as teorias, nem as sistematizações
doutrinais, ou seja, tudo aquilo que pode ser retomado sob uma ordem analítica das razões:
são, antes, os conceitos que a trabalham. «A força de uma filosofia mede-se nos conceitos
que ela cria, ou dos quais ela renova o sentido, e que impõem um novo recorte às coisas e
às ações» (7). Ora, o conceito que permite entrar em Spinoza, ou de o apreender em seu
meio nos dois sentidos desta fórmula, é, segundo Deleuze, o da expressão. Escolhendo
apresentar a obra de Spinoza no seu conjunto, confrontando-a com um único problema, o
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da «expressão», onde as conotações leibnizianas nos teriam parecido mais evidentes,
Deleuze se afastava desde o início das formas tradicionais da história da filosofia, e da
preocupação desta de se adaptar exatamente à palavra dos textos. Com efeito, a
singularidade da leitura que Deleuze faz de Spinoza, singularidade que lhe permite se
encontrar em Spinoza, uma vez que ela também é a singularidade de Spinoza, é que o
Conceito que ela privilegia não está aí em parte nenhuma explicitamente formulado ou
tematizado. Deleuze faz essa observação no início e no fim do seu livro: «A idéia de
expressão em Spinoza não é objeto nem de definição nem de demonstração»(8). Assim, a
idéia «central» desta filosofia estaria aí também ausente: o que produz sentido em Spinoza
não é a plenitude determinada de um objeto teórico, podendo estar relacionado a tal ou tal
segmento do seu discurso; mas é o que, sem se fixar definitivamente em um só destes
pontos, justifica a possibilidade de tudo aquilo que ela enuncia, e assim se fixa ou se irradia
à superfície do conjunto do seu texto, que ela compõe sem dele fazer parte. Meio, centro e
elemento, a expressão não é «um» conceito, ou seja, um só conceito representativo de um
conteúdo determinado, mas é, antes, um movimento dinâmico de conceitualização, que se
deve encontrar por toda a parte em seus conceitos: ela é o que pensa Spinoza, o que faz
pensar em Spinoza, e também o que nos permite a nós mesmos pensar em Spinoza.
Isto significa que a ordem demonstrativa da filosofia spinozista, agenciada more
geométrico, não constitui senão em aparência uma atitude rígida: apreendida do ponto de
vista central da expressão, ela anima-se de uma vida intensa, que transforma em prática o
que se tinha primeiro apresentado sob a forma de um discurso puramente teórico, ou
daquilo que os historiadores da filosofia chamam uma «doutrina». A idéia de expressão não
figura como tal no texto de Spinoza, neste sentido, o termo substantivo que a poderia
designar, o de expressio, não foi aí nunca utilizado nem sob a mais forte razão refletida. A
filosofia de Spinoza não desenvolve uma teoria da expressão, mas é uma filosofia prática
da expressão: se assim podemos dizer, ela «exprime». E por isto que a idéia de expressão se
encontra mesmo assim marcada no seu texto, já que, em nenhum caso, podemos dizer que
ela permanece atrás dele: mas ela se encontra nele sob uma forma que, sem ser a de um
conceito, reenvia ao fato mesmo de conceitualizar. Esta forma é a do verbo exprimere, para
o qual o Lexicon spinozanum de E. Giancotti (9), que é o melhor estudo sobre a
terminologia spinozista existente na atualidade,recenseia,no que diz respeito somente à
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Ética, trinta ocorrências, das quais a primeira (Parte I - definição 6) dá o tom de todas as
outras: «Por Deus eu entendo um ser absolutamente infinito, ou seja, uma substância
consistindo numa infinidade de atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e
infinita». Comentando esta definição, Deleuze destaca o princípio do que ele chama a
«tríade» da expressão. No fato de exprimir, tal como o enuncia o verbo exprimere utilizado
por Spinoza, estão associados três aspectos: um exprimindo (aqui a substância), um
exprimido (aqui a essência), e um terceiro «elemento» (aqui o atributo) que não é
propriamente falar de um termo, na medida em que ele corresponde a um verbo e não a um
nome; é este elemento que permite ao exprimindo exprimir-se no exprimido. O verdadeiro
ponto de partida de Spinoza não é, então, aquilo que ele parece enunciar primeiro: Gueroult
também explicou que a Ética não começa pela substância. Mas é este terceiro elemento que,
ele acaba de colocar em questão; o ato de se exprimir ou de exprimir, que ao mesmo tempo
constitui toda a realidade e a torna pensável. E é também este mesmo elemento ativo que
permite à natureza ser ao mesmo tempo «naturante» e «naturada»: fórmula segundo a qual
ainda a realidade se apresenta e se enuncia com a ajuda de um verbo (naturare, «naturar»).
O problema da expressão em Spinoza, ou seja, a idéia que «problematiza» todo o
seu pensamento, é indissociável do fato de que a expressão não é refletida por ele através
de um nome, devendo este ficar efetivamente impronunciado, mas em um verbo. A ordem
da expressão não corresponde a um sistema de coisas, paralisadas na sua realidade inerte
tais que os seus nomes as designam, mas é a natureza enquanto se efetua em ato, e se dá ao
mesmo tempo a compreender no ato que a efetua. Vinda do meio desta «expressão», a
filosofia de Spinoza se apresenta como uma filosofia atual da atualidade: compreende-se
porque, em todos os domínios, ela nega à noção de virtualidade uma significação racional;
compreende-se também que ela seja uma filosofia da expressão pura, de uma expressão que
não se requer para se efetuar a mediação de signos: e é bem isto que distingue o uso da
expressão em Leibniz e em Spinoza, já que procuraríamos em vão, neste último, os traços
de uma característica universal.
Esta expressão em ato é totalmente o contrário de uma representação: Spinoza
refutou a concepção representativa de idéia que está no coração do pensamento cartesiano.
Substituindo a tríade da expressão pelo que Foucault chamou em As palavras e as coisas o
«re-dobramento da representação», que pressupõe uma relação reflexiva do representante e
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do representado, Spinoza compreendeu e explicou a expressão em termos de constituição e
de produção: segundo ele, o conhecimento não é «representação» da coisa ao espírito por
intermédio de uma imagem mental podendo ser ela mesma substituída por um sistema de
signos; mas ela é expressão, ou seja, produção e constituição da coisa mesma no espírito.
«E a coisa que se exprime, é ela que se explica»(10). E assim que Spinoza escapou à
«banalidade» representativa do racionalismo clássico para redescobrir uma certa
«espessura» expressiva do mundo (11), tendo em vista «fundar uma filosofia póscartesiana» (12).
*Mestre de conferências na Universidade de Paris I. Publicou especialmente Pour une theorie de Ia
production littêraire (Ed. Maspéro, 1966) e Hegel ou Spinoza (Ed. Maspéro, 1979).
NOTAS
1. La pensée et le mouvant, Bergson, 31? Ed. PUF 1955, p. 124.
2. Spinoza et nous: texto primeiramente publicado em 1978 na «Revue de synthèese» e retomado em Spinoza
- Ed. de Minuit, 1981, p. 164.
3. Dialogues com C. Parnet. Ed. Flamarion, 1977, p. 74.
4. Spinoza et le problème de lexpression, Ed. de Minuit, 1968.
5. Spinoza - Philosophie pratique, ed. de Minuit, 1981.
6. Ibidem p. 173.
7. Spinoza et le problème de 1'expression, p. 299.
8. Ibidem, p. 15 cf. também p. 304.
9. Martin Nijhoff - La Haye - 1970.
10. Spinoza et le problème de lexpression, p. 18.
11. Ibidem, p. 302.
12. Ibidem, p. 311.
13. Ibidem, p. 299-300.
14. A. Negri. L'anomalie sauvage (potência e poder de Spinoza). Ed. PUF, 1982.
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