NEGRITUDE OPRIMIDA: reflexo de identidade
em The bluest eye, de Toni Morrison.
Silvio Luis da Silva1 - UnP
RESUMO:
O primeiro romance de Toni Morrison, The bluest eye (O olho mais azul), enfatiza os efeitos
trágicos da imposição da classe média americana e da sociedade branca no desenvolvimento
da identidade de Pecolla Breedlove, uma menina negra, que vive nos anos 1940. O romance
explora os efeitos psicológicos devastadores desta influência em Pecolla e sua busca por
aceitação e amor em uma sociedade que nega a existência e deplora as pessoas de sua raça.
Neste trabalho, analisamos as perspectivas de aceitação da mulher negra em uma sociedade
branca, na qual esta mulher sofre um preconceito dobrado por ser negra e é relegada a papéis
de subserviência. Para tanto, serão utilizadas as perspectivas da análise do discurso, seguindo
as perspectivas de autores como Norman Fairclough, Teun van Dijck, e das relações de poder,
desenvolvidas por Michel Foucault, a fim de verificar e analisar os aspectos relevantes do
conflito identidade e sociedade.
Palavras chave: discurso, identidade, sociedade.
O cenário, Estados Unidos na década de 1940; a personagem central, uma menina
negra; o tema, a formação psicológica dessa menina, Pecola Breedlove, e seu desejo de
beleza; a antagonista, a sociedade americana e seu preconceito. Em um emaranhado de
(o)pressões, Toni Morrison constrói seu universo e expõe, a texto nu, os anseios, desejos e
agruras de uma menina, personagem principal, que representa toda a classe de mulheres
negras da época.
Já no título, The bluest eye, Morrison instaura uma dubiedade que se percebe por uma
análise linguística do título, pois the bluest eye, na escrita, designa o olho mais azul, não há
dúvidas a respeito disso; mas na fala, uma vez que eye e I são pronunciados identicamente, e
bluest pode, além de ser “o mais azul”, ser “o mais triste”. Isto se dá porque blue é uma palavra
que suscita pelo menos duas traduções: a da cor azul, superlativado pelo sufixo est, e
tristíssimo, verbete inserido, inclusive, no dicionário do idioma com a definição de que, If you are
feeling blue, you’re feeling sad or depressed, often when there is no particular reason (COBUILD,
1995, p. 17). Mas haveria, mesmo, a possibilidade de se sentir triste ou deprimido sem uma
razão particular? Provavelmente, muitas razões seriam particularmente relevantes para isso.
Temos, então, de um lado, a beleza expressa pela beleza denotada pelo bluest eye; de outro, a
tristeza e depressão, expressa conotadas por bluest I. A primeira representa a sociedade
americana branca; a segunda, a negra, que tenta se inserir e buscar seu lugar ao sol, enquanto
é bombardeada pela hegemonia instituída.
Morrison não deixa dúvidas, em seu trabalho, de que o assunto a ser discutido não tem
respostas imediatas, prontas. Postula-se, então, a percepção de que a sociedade deve ser
entendida em sua maneira de proceder e o leitor deve se valer da narrativa para auferir suas
próprias conclusões a respeito do tema de que trata. Compreender o ser negro e o ser mulher,
nesta narrativa, deve se dar por intermédio da leitura das entrelinhas, da leitura das
possibilidades de interpretação conjugadas entre texto, leitor, universo e (pré)concepções, o
1
Mestre em Língua Portuguesa – leitura e redação pela PUC-SP, Professor de Língua
Portuguesa, Inglesa, Linguística e Literatura Anglo Americana da Universidade Potiguar.
que fica claro com a escolha de um narrador onisciente que rouba da história todo o seu
mistério.
Já no início da obra, a história é desvendada: não há mais segredos, pois toda a
narrativa que se dará se encontra resumida no prefácio. Ali vemos que Pecola é a mãe do filho
de seu próprio pai. Ali se pergunta e se responde, automaticamente, que a culpa é aliviada
apenas por brigas e acusações mútuas sobre quem se deve culpar. Ali se descobre que as
personagens secundárias, as duas únicas amigas de Pecola, Claudia e Frieda, não têm mais
inocência. Ali se descobre que Cholly Breedlove, pai de Pecola, está morto. Ali se descobre que
seu bebê também está morto. Ali se descobre que nada há mais a ser dito, exceto se perguntar
por quê. Ali se descobre que se se perguntar o porquê é muito difícil de suportar, refugia-se,
então, em perguntar como. E, com isso, o leitor se vê intrigado a buscar o como nas palavras
escolhidas por Morisson para por luz às (des)graças de ser negro e mulher em uma sociedade
visivelmente machista e branca:
We had dropped our seeds in our own little plot of black dirt just as Pecola’s father had
dropped his seeds in his own plot of black dirt. Our innocence and faith were no more
productive than his lust and despair (MORRISON, 1994, 5-6).
É a sociedade americana que diz à Pecola que a família branca de classe média é
mais feliz e importante do que as famílias negras da classe operária, vitimizada por todos os
meios de comunicação, desde a mídia geral, até os próprios livros, que relegam os negros a
uma posição de subserviência ao domínio branco:
Frieda brought her four Graham crackers on a saucer and some milk in a blue-andwhite Shirley Temple cup. She was a long time with the milk, and gazed fondly at the
silhouette of Shirley Temple’s dimpled face. Frieda and she had a loving conversation
about how cu-ute Shirley Temple was. I could not joy their adoration because I hated
Shirley. Not because she was cute, but because she danced with Bojangles, who was
my friend, my uncle, my daddy, and who ought to have been soft-shoeing it and
shucking with me. Instead he was enjoying, sharing, giving a lovely dance thing with
one of those little girls whose socks never slid down under their heels. So I said, “I
like Jane Whiters” (MORRISON, 1994, p. 19).
À época, a atriz mirim Shirley Temple, nascida em 1928, cujo sucesso nos cinemas
rendeu-lhe um Oscar especial aos seis anos de idade, representava a beleza americana com
seus cabelos loiros e seus olhos claros. Sua imagem era, então, usada em várias formas de
mídia, como se vê na caneca que Pecola segura, e figurava no imaginário infantil como o
modelo de beleza. Bojangles, Bill Robbinson (1878-1949), era um ator-dançarino negro que
ganhara popularidade em filmes de grandes companhias de cinema como a Fox e a Paramount
e funciona aqui como uma espécie de ícone para a menina negra. Dançar com ele sob as luzes
dos holofotes hollywoodianos seria um presente. Jane Whiters, nascida em 1926, fora, também,
uma atriz mirim de grande destaque na década de 1930. Embora ainda fosse branca, não era
exatamente loira, e, talvez por isso, não ganhara o destaque de Shirley.
Se tomarmos a noção bakhtiniana de compreensão do significado linguístico,
percebemos que a compreensão se dá com a percepção da ideia do falante:
A compreensão passiva do significado lingüístico de um modo geral não é uma
compreensão; é apenas seu momento abstrato, mas é também uma compreensão
passiva mais concreta da situação de enunciação, da idéia do falante. Permanecendo
puramente passiva, receptiva, não trazendo nada de novo para a compreensão do
discurso, ela apenas o dubla (BAKHTIN, 1975, p. 90).
Vemos aqui, então, em uma situação de enunciação que se torna muito mais ampla do
que o momento de enunciação, percebemos que a fala da menina representa uma breve
tentativa de rejeição aos modelos que lhe são impostos. Se Shirley era o ícone máximo da
beleza, tomar Jane Withers é uma forma de se opor a esta imposição. Soma-se a isso a
percepção de que Bill Bojangles Robinson pode representar o sucesso do negro e a entrada
deste no mundo alvo e branco desenhado como ideal. É certo que, numa análise mais acurada,
percebemos Bojangles como uma espécie de estereótipo à mercê das imposições
hollywoodianas, cujo apelido pode significar para os brancos “boa sorte”, e para os negros, uma
gíria para “reclamão, briguento”, uma dicotomia que nos leva a compreender a impressão que a
autora tenta expressar com a sua simples menção. Se o briguento aquiesce à imposição
branca, Shirley, e se torna dela coadjuvante, o que restaria aos demais negros? O que
percebemos ao considerar que a passagem do sujeito falante como ser empírico ou ser no
mundo para o locutor como pura instância de discurso se efetua por uma série de mediações
(AMOSSY, 2005, p. 136).
Percebemos, então, que a construção da identidade negra na obra está posta como
subserviente à branca e que a representação da mulher se dá por interstícios de ódio e
repressão à hegemonia vigente. Não se pode desconsiderar que o simples fato de escolher
Jane Withers e “odiar” Shirley Temple, discursivamente posta, representa uma forma de se
rebelar contra uma opressão posta no imaginário por intermédio de coisas aparentemente
insignificantes. Afinal, o que seria uma foto de uma menina branca em uma caneca? Nada, não
fora a criação no imaginário de uma beleza ideal, de uma forma de representar o correto, o
almejado; o que nos leva ao seu oposto, o incorreto, o desprezado. Se lá temos Shirley como
representante; cá, somos levados a entender o negro como seu oposto natural.
A revolta contra a imagem de perfeição vendida pela mídia é ainda mais intensamente
sentida no trecho destacado, pois ao mencionar que as meias das meninas brancas nunca
descem para o calcanhar, o que acontece normalmente com todos os simples mortais, vemos o
discurso questionar a imagem e, por conseguinte, apontar para a sua perfeição de photoshop e
sua maquiagem da realidade, quase que caricatural aos olhos mais aguçados, por intermédio
dos gritos do interdiscurso, regido por um sistema de restrições semânticas globais que se
manifesta pelo fato de restringir ao mesmo tempo todos os “planos discursivos: vocabulário,
temas, intertextualidade e instâncias de enunciação (POSSENTI, 2004, p.196).
Assim, o texto constrói formações discursivas que corroboram uma formação
ideológica, ou seja, a formação ideológica majoritariamente aceita e entendida como natural,
que, aqui, encontra vigorosa oposição:
We knew that she [Pecola] was fond of Shirley Temple cup and took every opportunity
to drink milk out of it just to handle and see Shirley’s face (MORRISON, 1994, p. 23).
Podemos defender, a partir deste excerto, que o leite, branco, que Pecola consome
admirando Shirley Temple pode ser entendido como uma tentativa sua de se tornar ela própria
tão branca quanto Shirley, já que sua ânsia por ter olhos azuis é reverberada por toda a obra e
é a tônica que nos permite entender a oposição bonito-feio, respectivamente reprentada pelas
cores branco-Shirley e preto-Pecola. A força com que a oposição entre branco e negro se
presentifica no texto pode ser vista nas reclamações de Mrs. MacTeer, mãe de Claudia e
Frieda, que toma conta de Pecola quando seu pai, Cholly, vai preso:
... Time for me to get out of the giving line and get in the getting line. I guess I ain’t
supposed to have nothing. I’m supposed to end up in the poorhouse. Look like nothing I
do is going to get me out of here. Folks just spend all their time trying to figure out ways
to send me to the poorhouse (MORRISON, 1994, p. 24).
Ora, é certo que a manifestação discursiva aqui é uma forma de reverberar uma
insatisfação com o cenário que circunda as personagens. Se Mrs. MacTeer está a reclamar de
sua posição social, o está fazendo porque há uma ideologia vigente que a sufoca, reprime e
oprime. É preciso, então, entender que
O discurso não é um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos
trajetos sociais nos quais ele irrompe (...) só por sua existência, todo discurso marca a
possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo
discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de
identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas
filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas
de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no
seu espaço (PÊCHEUX, 1997, p. 56).
Está marcada, então, as posições estabelecidas pela sociedade e a indignação
daqueles que são os oprimidos, os fadados aos restos dos dominantes. São estas mesmas
posições que fortalecem naturalmente a possibilidade de se entender a sociedade como uma
massa de formações discursivas que se estabelecem nas entrelinhas das palavras ditas, por
vezes, e nas palavras explicitamente ditas, por outras vezes. Estas, manifestações claras e
objetivas de indignações, são maneiras de se tentar transformar o status quo, e demovê-lo se
seu trono.
Na fala de Mrs. McTeer, encontramos um eco da perspectiva da própria Toni Morrison
na busca de um lugar ao sol no universo branco. Estar fadada a viver na pobreza, à margem
das benesses da sociedade branca é uma marca da obra de Morrison e, aqui, se faz com uma
intensidade ainda maior, pois as palavras que são escolhidas para demonstrar a indignação se
tornam uma bandeira de protesto. Evidentemente a referência feita por “folks” não está
exatamente ligada à Pecola, por tomar muito leite. A ideia é, pois, a de tomar este dado objetivo
para por em evidência um cenário maior, superior, que é aquele no qual o negro figura como
acessório, relegado aos trabalhos menos valorizados, aos salários mais baixos, aos bairros
mais pobres, enfim, à margem, como já mencionamos anteriormente, de toda uma sociedade
que se estrutura em concreto de preconceito.
Uma vez que esse conceito de preconceito tem sido construído e reforçado através
dos tempos, é preciso que se comece a estabelecer uma nova perspectiva que se opõe àquela
vigente, para que se crie uma nova rede de prismas sobre a organização das classes e valores
sociais. Acreditamos, então, que esta é a tônica emprestada pela obra, que se detém nas
agruras de Pecola para afirmar uma posição de protesto e, assim, dar início a um novo
discurso. Corrobora com esta perspectiva, se observarmos as outras obras da autora, como
Beloved, por exemplo, que também busca nas personagens negras uma forma de levar o leitor
a perceber a integridade do negro e a sua busca de reconhecimento; ou, ainda, o único artigo
até o momento publicado, Recitatif, que põe duas personagens, uma branca e outra negra, em
uma discussão sobre os quereres, desejos e direitos sociais. Tomada por um conjunto de
enunciações expostas a qualquer leitor hábil, a obra de Morrison como um todo se presta a
criar uma nova visão a respeito da negritude que tem início com The bluest eye.
Podemos alegar isso quando nos atemos às palavras de Foucault:
sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação,
os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva (FOUCAULT,
1986, p. 43).
Encontramos no texto, então, uma regularidade temática que consolida uma formação
discursiva. A oposição aos estilos de vida dos brancos, cercada de conforto e felicidade é feita,
no livro, também com a contraposição entre a vida expressamente mostrada nos cinemas, onde
o glamour reina e aquela vivida por Pecola, Claudia e Frieda. Os conflitos entre os integrantes
da chamada sociedade “WASP” (White Anglo-Saxon Protestants – Protestantes Brancos AngloSaxões) e os negros também são importantes para se compreender a obra e perceber a real
nuance de protesto que ela carrega. O termo WASP embora tenha sido, originalmente, cunhado
para se referir aos americanos brancos descendentes de europeus, cuja religião era a
protestante, passa designar apenas aqueles descendentes que não são pertencentes à classe
dos trabalhadores e é caricaturizado em Geraldine, uma negra que tenta exagerar sua
superioridade aos demais negros, diante de sua posição social em Lorain, Ohio, cenário da
obra, com a perspectiva própria de que ela mesma não se enquadra no estereótipo negro.
Talvez a marca mais intensa de sua ojeriza aos negros se dê na cena em que, seu
filho, Junior, diz ter sido Pecola quem matara seu gato favorito, o que, na verdade, fora ele
mesmo que o fizera. A cena tem início com Junior chamando Pecola a entrar na sua casa para
ver uns novos gatinhos que tinham. Assim que Pecola entra na casa, se encanta:
How beautiful, she thought. What a beautiful house. There was a big red-and-gold Bible
on the dining-room table (...) He pulled her into another room, even more beautiful than
the first… (MORRISON, 1994, p. 89).
Percebemos, apenas com o encantamento da pequena Pecola, um certo sentimento
de opressão, de desfavorecimento, pois a casa contrasta, totalmente, com a sua, pobre e
humilde. A referência à Bíblia na mesa da sala de jantar é, por certo, uma forma de conectar
Geraldine à WASP. Em seguida, enquanto Pecola admirava as belezas da casa, Junior joga-lhe
o gato na cara para rir do susto de Pecola:
... and he threw a big black cat in her face. (…) Junior was laughing and running around
the room clutching his stomach delightedly… (MORRISON, 1994, 89-90).
A atitude de Junior, aqui, pode ser entendida como um reflexo daquela pregada por
sua mãe, e não apenas como uma traquinagem de menino, pois, a crueldade de Junior e a sua
opressão a Pecola é, por certo, reflexo do estabelecimento de sua superioridade perante os
demais negros: o desespero de Pecola é fonte de seu prazer. Por fim, na cena, Junior pega o
gato, gira-o pela perna acima de sua cabeça e, numa confusão em que Pecola tenta tirar-lhe o
gato das mãos. Este acaba batendo na janela e caindo no aquecedor, morrendo. Com a
chegada da mãe, Junior esquiva-se de sua culpa e diz ter sido de Pecola. Reação esperada,
então, Geraldine consolida sua marca de superioridade, sua rejeição à própria raça: “Get out,”
she said, her voice quiet. “You nasty little black bitch. Get out of my house” (MORRISON, 1994,
p. 92).
Consequência das palavras de Geraldine, Pecola se retira:
Pecola backed out of the room, staring at the pretty milk-brown lady in the pretty goldand-green house who was talking to her through the cat’s fur… Pecola turned to find the
front door and saw Jesus looking down at her with sad and unsurprised eyes…
(MORRISON, 1994, 92).
Evidentemente, a cena por si se torna comovente, mas é importante lembrar que a
formação discursiva e a formação ideológica que se pretendem postulam um registro fiel de
uma tentativa de intervir no comportamento branco e torná-lo mais afeito aos negros,
reconhecendo-os como membros dignos e integrantes da cadeia social que pertencem, posto
que
as formações ideológicas comportam, necessariamente, como um de seus
componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas, que determinam aquilo
que se pode e se deve dizer (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de
um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada
em uma conjuntura dada” (HAROCHE, HENRY, PÊCHEUX, 1971, p. 102-103).
A conjuntura dada é também representada pela alusão ao livro de leitura utilizado na
alfabetização de crianças nos Estados Unidos desde a década de 30 a de 1970, Jack and Jane,
que vivem em uma “gold-and-green house”, como a de Geraldine. Percebe-se, então, que a
realidade nacional é um elemento que invade o discurso de Morrison para marcar indignação,
mais do que oposição, em relação aos parâmetros vigentes, o que se de forma marcada,
presente e, poderíamos dizer, gritante na obra. Jack-and-Jane são os opostos das crianças
mostradas e instalam em Pecola, tanto quanto a imagem de Shirley Temple, um desejo de se
tornar branco, de ter olhos azuis, de ser reconhecida como parte integrante de uma sociedade
mais humana.
Como as formações ideológicas são um conjunto complexo de atitudes e de
representações que não são nem individuais, nem universais e que se referem mais ou menos
diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras (HAROCHE, HENRY,
PÊCHEUX, 1971, p. 102), entendemos a narrativa de Morrison como uma forma de representar
as atitudes dos americanos frente aos americanos negros. Também entendemos que a atitude
de Geraldine é uma forma de se exaltar uma identidade branca em detrimento da percepção e
aceitação de uma identidade negra. Pecola, neste cenário, se torna a própria encarnação das
opressões pelas quais sofrem todos aqueles que não se enquadram em suas próprias
identidades e buscam, no outro, uma forma de se sentirem mais humanos, mais merecedores
de um lugar ao sol. É nesta personagem que os anseios de uma identidade negra se
manifestam, não por uma luta na consolidação de uma negritude, mas pela sua negação.
Os exemplos dessa perspectiva são inúmeros, inclusive vistas na mãe de Pecola, Mrs.
Breedlove, que se esforça com seu trabalho para sustentar as duas crianças que possui e o
marido alcoólatra, Cholly, embora demonstre mais afeto pela filha de seus patrões do que por
sua própria filha, Pecola, como vemos na perspectiva de Claudia, quando ela e Frieda visitam
Pecola na casa dos patrões de Mrs. Breedlove e descobre que a criança da casa a chama por
um apelido, enquanto a própria Pecola a trata por senhora Breedlove:
The familiar violence rose in me. Her [a criança] calling Mrs. Breedlove Polly, when
even Pecola called her mother Mrs. Breedlove, seemed reason enough to scratch her
(MORRISON, 1994, p. 108).
Como a análise do discurso entende o funcionamento da ideologia em sua imbricação
com o discursivo e oferece um direcionamento do sentido por condições históricas (e
discursivas) de produção, é preciso que nos atentar para o que está subjacente a esta forma,
aparentemente inocente, de tratamento da menina com Mrs. Breedlove. Se, de um lado a
própria filha a trata por Mrs. Breedlove, o que cria um distanciamento mãe e filha, ambas
negras; a aproximação que se dá pelo apelido Polly nos leva a uma aproximação mãe (de
Pecola) com a filha do outro (a dos patrões de Mrs. Breedlove), uma negra, outra branca. O
reflexo disso é algo muito mais intenso do que a sua simples percepção. A aproximação de Mrs.
Breedlove - ou melhor, Polly – está muito mais afeita a representação de seu desejo de uma
identidade branca do que de uma simples “afeição” pela menina. Enquanto cuida dela, Polly se
sente “branca”, pois está circundada de elementos que a fazem feliz, que ela acredita ter direito
e, como apenas exerce esse direito enquanto empregada da casa, toma para si a ideologia
vigente para negar seu próprio sangue.
O discurso de Mrs. Breedlove tem origem, então, no seu sentimento de repressão, que,
por sua vez, está calcado em uma ordem institucional branca. A formação ideológica da
personagem, então, reflete a concepção de que a valorização do branco é quase que uma
ordem, uma obrigação; mesmo que para que isso se realize, seja necessário lançar mão da
negação de si: It was only sometimes, sometimes, and then rarely, that she thought about the
old days, or what her life had turned into (MORRISON, 1994, p. 129).
Se Mrs. Breedlove violenta sua filha em termos apenas discursivos, embora ela nela
também bata, o que pode ser entendido como uma transposição para o plano objetivo, real, da
sua aversão ao negro e aceitação ao branco; o pai, Cholly, o faz de forma ainda mais aviltante:
estupra-a. Sem nos atermos aos aspectos psicológicos que levam um homem ao estupro,
podemos entender a atitude de Cholly, como uma forma de ratificar a opressão e o tratamento
do negro como um objeto. Paradoxalmente, a cena em que acontece o estupro traz consigo
indícios de um sentimento bem-querer de Cholly por Pecola, pois ele percebe sua presença
jovem, desprotegida: her young, helpless, hopeless presence (MORRISON, 1994, p. 161) e
pensa no que poderia fazer por ela: what coud he do for her?; e, depois do estupro consumado,
um carinho o faz cobri-la: the tenderness forced him to cover her (MORRISON, 1994, p. 163).
Evidentemente, não estamos aqui fazendo uma defesa do estupro, mas,
discursivamente, percebemos que as emoções de Cholly são transpostas por Morrison de
forma a torná-lo mais humanizado numa atitude totalmente animalesca. Como os enunciados
são formas de representação de uma ideologia, de uma formação discursiva, entendemos que
a maneira de representar a animalidade se torna uma forma de reconhecer, no negro Cholly,
um início de um processo de respeito ao seu igual, negro, aqui representada por Pecola.
Também não é leviano de nossa parte defender que a ânsia de um bem querer mútuo entre os
negros, posto nas características carinhosas expostas no trecho, são entendidas como fadadas
ao fracasso, que se consolida no ato repulsivo de estuprar. Estaria, então, o discurso nos
oferecendo uma possibilidade de entender a identidade negra fadada à subserviência? É
possível. Afinal, o carinho sucumbe aos instintos animais, que são levados a cabo e tornam-se
mais poderosos e vencem a batalha do momento, que, no nosso entender, pode ser visto como
uma vitória da opressão e consequente assujeitamento do negro aos instintos, não às
convenções sociais; o que alegamos com base na concepção dos enunciados como bases
formadoras de formações discursivas que, por sua vez, completam-se em formação ideológica,
seara profícua de trabalho da análise do discurso, pois
...todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não
ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele
explicitamente). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois,
lingüisticamente descritível como uma série (léxicossintaticamente determinada) de
pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação (PÊCHEUX , 1997, p. 53).
Se, de um lado, a obra expõe as dificuldades de se perceber e manter uma identidade
negra nos Estados Unidos dos anos de 1940, também retrata a pouca esperança em se
constituir, realmente, esta identidade nas bases em que se encontra, historicamente, a
instituição da hegemonia branca. De volta ao início da obra, Morrison já anunciara esta
perspectiva ao dizer que:
What is clear now is that all of that hope, fear, lust, love, and grief, nothing remains but
Pecola and the unyielding earth. Cholly Breedlove is dead, our innocente too. The
seeds shivered and died … (MORRISON, 1994, p. 6).
O que fica claro, então, é que a repressão a uma real construção de uma identidade
negra, com os mesmos direitos e reconhecimento daquela tida e instituída pelos brancos é uma
tentativa que, a cada dia, morre. A ânsia de Pecola por olhos azuis não é, de forma nenhuma,
uma maneira de impingir uma imagem branca aos negros, uma identidade de branco nos
negros. É, antes, uma forma de protestar contra essa heterogeneidade de uma identidade que
nega as diferenças, que oprime as classes inferiores e que, de forma cruel, alija a criação de
identidades diversas que convivem harmonicamente. É uma forma de trazer ao nosso universo
repleto de concepções brancas sobre todas as coisas, a força do negro, que, oprimido, se vê
obrigado a buscar no protesto uma identidade.
Pecola não é apenas uma menina, é, ao contrário, a personificação de todas as
meninas que sofrem ao ver que, em suas brincadeiras, têm suas bonecas párias de si, porque
brancas. Ao ver em todos os cabelos lisos e brilhantes, uma representação de beleza que nega
a beleza existente em suas características naturais. Ao ver que o mundo não as valoriza como
merecem, como seria esperado, e gritam, em protesto à morte das sementes de esperança de
uma identidade negra, um desejo que sai do âmago de sua existência: morte aos olhos azuis!
REFERÊNCIAS:
AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: aconstrução do ethos. São Paulo: Contexto,
2005.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
_____ Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp-Hucitec, 1988.
COBUILD, Collins. English dictionary: helping learners with real English. London: HarperCollins
Publishers, 1995.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986.
HAROCHE, CLaudine ; HENRY, Paul ; PÊCHEUX, Michel. La sémantique et la coupure
saussurienne: langue, langage, discours. Langages. Paris, número 24, p. 93-106, 1971
MORRISON, Toni. The bluest eye. New York: Penguin Books USA, 1994.
PÊCHEUX, Michel. Introduction. Langages. Paris, número 37, p. 3-6, 1975.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed.
da Unicamp, 1975; 1988.
PÊCHEUX, M. A Análise de Discurso: três épocas (1983). In: GADET, F.; HACK, T. (org). Por
uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed.
Unicamp, 1997.
POSSENTI, Sirio. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. São Paulo: Criar
Edições, 2004.
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