NEGRITUDE OPRIMIDA: reflexo de identidade em The bluest eye, de Toni Morrison. Silvio Luis da Silva1 - UnP RESUMO: O primeiro romance de Toni Morrison, The bluest eye (O olho mais azul), enfatiza os efeitos trágicos da imposição da classe média americana e da sociedade branca no desenvolvimento da identidade de Pecolla Breedlove, uma menina negra, que vive nos anos 1940. O romance explora os efeitos psicológicos devastadores desta influência em Pecolla e sua busca por aceitação e amor em uma sociedade que nega a existência e deplora as pessoas de sua raça. Neste trabalho, analisamos as perspectivas de aceitação da mulher negra em uma sociedade branca, na qual esta mulher sofre um preconceito dobrado por ser negra e é relegada a papéis de subserviência. Para tanto, serão utilizadas as perspectivas da análise do discurso, seguindo as perspectivas de autores como Norman Fairclough, Teun van Dijck, e das relações de poder, desenvolvidas por Michel Foucault, a fim de verificar e analisar os aspectos relevantes do conflito identidade e sociedade. Palavras chave: discurso, identidade, sociedade. O cenário, Estados Unidos na década de 1940; a personagem central, uma menina negra; o tema, a formação psicológica dessa menina, Pecola Breedlove, e seu desejo de beleza; a antagonista, a sociedade americana e seu preconceito. Em um emaranhado de (o)pressões, Toni Morrison constrói seu universo e expõe, a texto nu, os anseios, desejos e agruras de uma menina, personagem principal, que representa toda a classe de mulheres negras da época. Já no título, The bluest eye, Morrison instaura uma dubiedade que se percebe por uma análise linguística do título, pois the bluest eye, na escrita, designa o olho mais azul, não há dúvidas a respeito disso; mas na fala, uma vez que eye e I são pronunciados identicamente, e bluest pode, além de ser “o mais azul”, ser “o mais triste”. Isto se dá porque blue é uma palavra que suscita pelo menos duas traduções: a da cor azul, superlativado pelo sufixo est, e tristíssimo, verbete inserido, inclusive, no dicionário do idioma com a definição de que, If you are feeling blue, you’re feeling sad or depressed, often when there is no particular reason (COBUILD, 1995, p. 17). Mas haveria, mesmo, a possibilidade de se sentir triste ou deprimido sem uma razão particular? Provavelmente, muitas razões seriam particularmente relevantes para isso. Temos, então, de um lado, a beleza expressa pela beleza denotada pelo bluest eye; de outro, a tristeza e depressão, expressa conotadas por bluest I. A primeira representa a sociedade americana branca; a segunda, a negra, que tenta se inserir e buscar seu lugar ao sol, enquanto é bombardeada pela hegemonia instituída. Morrison não deixa dúvidas, em seu trabalho, de que o assunto a ser discutido não tem respostas imediatas, prontas. Postula-se, então, a percepção de que a sociedade deve ser entendida em sua maneira de proceder e o leitor deve se valer da narrativa para auferir suas próprias conclusões a respeito do tema de que trata. Compreender o ser negro e o ser mulher, nesta narrativa, deve se dar por intermédio da leitura das entrelinhas, da leitura das possibilidades de interpretação conjugadas entre texto, leitor, universo e (pré)concepções, o 1 Mestre em Língua Portuguesa – leitura e redação pela PUC-SP, Professor de Língua Portuguesa, Inglesa, Linguística e Literatura Anglo Americana da Universidade Potiguar. que fica claro com a escolha de um narrador onisciente que rouba da história todo o seu mistério. Já no início da obra, a história é desvendada: não há mais segredos, pois toda a narrativa que se dará se encontra resumida no prefácio. Ali vemos que Pecola é a mãe do filho de seu próprio pai. Ali se pergunta e se responde, automaticamente, que a culpa é aliviada apenas por brigas e acusações mútuas sobre quem se deve culpar. Ali se descobre que as personagens secundárias, as duas únicas amigas de Pecola, Claudia e Frieda, não têm mais inocência. Ali se descobre que Cholly Breedlove, pai de Pecola, está morto. Ali se descobre que seu bebê também está morto. Ali se descobre que nada há mais a ser dito, exceto se perguntar por quê. Ali se descobre que se se perguntar o porquê é muito difícil de suportar, refugia-se, então, em perguntar como. E, com isso, o leitor se vê intrigado a buscar o como nas palavras escolhidas por Morisson para por luz às (des)graças de ser negro e mulher em uma sociedade visivelmente machista e branca: We had dropped our seeds in our own little plot of black dirt just as Pecola’s father had dropped his seeds in his own plot of black dirt. Our innocence and faith were no more productive than his lust and despair (MORRISON, 1994, 5-6). É a sociedade americana que diz à Pecola que a família branca de classe média é mais feliz e importante do que as famílias negras da classe operária, vitimizada por todos os meios de comunicação, desde a mídia geral, até os próprios livros, que relegam os negros a uma posição de subserviência ao domínio branco: Frieda brought her four Graham crackers on a saucer and some milk in a blue-andwhite Shirley Temple cup. She was a long time with the milk, and gazed fondly at the silhouette of Shirley Temple’s dimpled face. Frieda and she had a loving conversation about how cu-ute Shirley Temple was. I could not joy their adoration because I hated Shirley. Not because she was cute, but because she danced with Bojangles, who was my friend, my uncle, my daddy, and who ought to have been soft-shoeing it and shucking with me. Instead he was enjoying, sharing, giving a lovely dance thing with one of those little girls whose socks never slid down under their heels. So I said, “I like Jane Whiters” (MORRISON, 1994, p. 19). À época, a atriz mirim Shirley Temple, nascida em 1928, cujo sucesso nos cinemas rendeu-lhe um Oscar especial aos seis anos de idade, representava a beleza americana com seus cabelos loiros e seus olhos claros. Sua imagem era, então, usada em várias formas de mídia, como se vê na caneca que Pecola segura, e figurava no imaginário infantil como o modelo de beleza. Bojangles, Bill Robbinson (1878-1949), era um ator-dançarino negro que ganhara popularidade em filmes de grandes companhias de cinema como a Fox e a Paramount e funciona aqui como uma espécie de ícone para a menina negra. Dançar com ele sob as luzes dos holofotes hollywoodianos seria um presente. Jane Whiters, nascida em 1926, fora, também, uma atriz mirim de grande destaque na década de 1930. Embora ainda fosse branca, não era exatamente loira, e, talvez por isso, não ganhara o destaque de Shirley. Se tomarmos a noção bakhtiniana de compreensão do significado linguístico, percebemos que a compreensão se dá com a percepção da ideia do falante: A compreensão passiva do significado lingüístico de um modo geral não é uma compreensão; é apenas seu momento abstrato, mas é também uma compreensão passiva mais concreta da situação de enunciação, da idéia do falante. Permanecendo puramente passiva, receptiva, não trazendo nada de novo para a compreensão do discurso, ela apenas o dubla (BAKHTIN, 1975, p. 90). Vemos aqui, então, em uma situação de enunciação que se torna muito mais ampla do que o momento de enunciação, percebemos que a fala da menina representa uma breve tentativa de rejeição aos modelos que lhe são impostos. Se Shirley era o ícone máximo da beleza, tomar Jane Withers é uma forma de se opor a esta imposição. Soma-se a isso a percepção de que Bill Bojangles Robinson pode representar o sucesso do negro e a entrada deste no mundo alvo e branco desenhado como ideal. É certo que, numa análise mais acurada, percebemos Bojangles como uma espécie de estereótipo à mercê das imposições hollywoodianas, cujo apelido pode significar para os brancos “boa sorte”, e para os negros, uma gíria para “reclamão, briguento”, uma dicotomia que nos leva a compreender a impressão que a autora tenta expressar com a sua simples menção. Se o briguento aquiesce à imposição branca, Shirley, e se torna dela coadjuvante, o que restaria aos demais negros? O que percebemos ao considerar que a passagem do sujeito falante como ser empírico ou ser no mundo para o locutor como pura instância de discurso se efetua por uma série de mediações (AMOSSY, 2005, p. 136). Percebemos, então, que a construção da identidade negra na obra está posta como subserviente à branca e que a representação da mulher se dá por interstícios de ódio e repressão à hegemonia vigente. Não se pode desconsiderar que o simples fato de escolher Jane Withers e “odiar” Shirley Temple, discursivamente posta, representa uma forma de se rebelar contra uma opressão posta no imaginário por intermédio de coisas aparentemente insignificantes. Afinal, o que seria uma foto de uma menina branca em uma caneca? Nada, não fora a criação no imaginário de uma beleza ideal, de uma forma de representar o correto, o almejado; o que nos leva ao seu oposto, o incorreto, o desprezado. Se lá temos Shirley como representante; cá, somos levados a entender o negro como seu oposto natural. A revolta contra a imagem de perfeição vendida pela mídia é ainda mais intensamente sentida no trecho destacado, pois ao mencionar que as meias das meninas brancas nunca descem para o calcanhar, o que acontece normalmente com todos os simples mortais, vemos o discurso questionar a imagem e, por conseguinte, apontar para a sua perfeição de photoshop e sua maquiagem da realidade, quase que caricatural aos olhos mais aguçados, por intermédio dos gritos do interdiscurso, regido por um sistema de restrições semânticas globais que se manifesta pelo fato de restringir ao mesmo tempo todos os “planos discursivos: vocabulário, temas, intertextualidade e instâncias de enunciação (POSSENTI, 2004, p.196). Assim, o texto constrói formações discursivas que corroboram uma formação ideológica, ou seja, a formação ideológica majoritariamente aceita e entendida como natural, que, aqui, encontra vigorosa oposição: We knew that she [Pecola] was fond of Shirley Temple cup and took every opportunity to drink milk out of it just to handle and see Shirley’s face (MORRISON, 1994, p. 23). Podemos defender, a partir deste excerto, que o leite, branco, que Pecola consome admirando Shirley Temple pode ser entendido como uma tentativa sua de se tornar ela própria tão branca quanto Shirley, já que sua ânsia por ter olhos azuis é reverberada por toda a obra e é a tônica que nos permite entender a oposição bonito-feio, respectivamente reprentada pelas cores branco-Shirley e preto-Pecola. A força com que a oposição entre branco e negro se presentifica no texto pode ser vista nas reclamações de Mrs. MacTeer, mãe de Claudia e Frieda, que toma conta de Pecola quando seu pai, Cholly, vai preso: ... Time for me to get out of the giving line and get in the getting line. I guess I ain’t supposed to have nothing. I’m supposed to end up in the poorhouse. Look like nothing I do is going to get me out of here. Folks just spend all their time trying to figure out ways to send me to the poorhouse (MORRISON, 1994, p. 24). Ora, é certo que a manifestação discursiva aqui é uma forma de reverberar uma insatisfação com o cenário que circunda as personagens. Se Mrs. MacTeer está a reclamar de sua posição social, o está fazendo porque há uma ideologia vigente que a sufoca, reprime e oprime. É preciso, então, entender que O discurso não é um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe (...) só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço (PÊCHEUX, 1997, p. 56). Está marcada, então, as posições estabelecidas pela sociedade e a indignação daqueles que são os oprimidos, os fadados aos restos dos dominantes. São estas mesmas posições que fortalecem naturalmente a possibilidade de se entender a sociedade como uma massa de formações discursivas que se estabelecem nas entrelinhas das palavras ditas, por vezes, e nas palavras explicitamente ditas, por outras vezes. Estas, manifestações claras e objetivas de indignações, são maneiras de se tentar transformar o status quo, e demovê-lo se seu trono. Na fala de Mrs. McTeer, encontramos um eco da perspectiva da própria Toni Morrison na busca de um lugar ao sol no universo branco. Estar fadada a viver na pobreza, à margem das benesses da sociedade branca é uma marca da obra de Morrison e, aqui, se faz com uma intensidade ainda maior, pois as palavras que são escolhidas para demonstrar a indignação se tornam uma bandeira de protesto. Evidentemente a referência feita por “folks” não está exatamente ligada à Pecola, por tomar muito leite. A ideia é, pois, a de tomar este dado objetivo para por em evidência um cenário maior, superior, que é aquele no qual o negro figura como acessório, relegado aos trabalhos menos valorizados, aos salários mais baixos, aos bairros mais pobres, enfim, à margem, como já mencionamos anteriormente, de toda uma sociedade que se estrutura em concreto de preconceito. Uma vez que esse conceito de preconceito tem sido construído e reforçado através dos tempos, é preciso que se comece a estabelecer uma nova perspectiva que se opõe àquela vigente, para que se crie uma nova rede de prismas sobre a organização das classes e valores sociais. Acreditamos, então, que esta é a tônica emprestada pela obra, que se detém nas agruras de Pecola para afirmar uma posição de protesto e, assim, dar início a um novo discurso. Corrobora com esta perspectiva, se observarmos as outras obras da autora, como Beloved, por exemplo, que também busca nas personagens negras uma forma de levar o leitor a perceber a integridade do negro e a sua busca de reconhecimento; ou, ainda, o único artigo até o momento publicado, Recitatif, que põe duas personagens, uma branca e outra negra, em uma discussão sobre os quereres, desejos e direitos sociais. Tomada por um conjunto de enunciações expostas a qualquer leitor hábil, a obra de Morrison como um todo se presta a criar uma nova visão a respeito da negritude que tem início com The bluest eye. Podemos alegar isso quando nos atemos às palavras de Foucault: sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva (FOUCAULT, 1986, p. 43). Encontramos no texto, então, uma regularidade temática que consolida uma formação discursiva. A oposição aos estilos de vida dos brancos, cercada de conforto e felicidade é feita, no livro, também com a contraposição entre a vida expressamente mostrada nos cinemas, onde o glamour reina e aquela vivida por Pecola, Claudia e Frieda. Os conflitos entre os integrantes da chamada sociedade “WASP” (White Anglo-Saxon Protestants – Protestantes Brancos AngloSaxões) e os negros também são importantes para se compreender a obra e perceber a real nuance de protesto que ela carrega. O termo WASP embora tenha sido, originalmente, cunhado para se referir aos americanos brancos descendentes de europeus, cuja religião era a protestante, passa designar apenas aqueles descendentes que não são pertencentes à classe dos trabalhadores e é caricaturizado em Geraldine, uma negra que tenta exagerar sua superioridade aos demais negros, diante de sua posição social em Lorain, Ohio, cenário da obra, com a perspectiva própria de que ela mesma não se enquadra no estereótipo negro. Talvez a marca mais intensa de sua ojeriza aos negros se dê na cena em que, seu filho, Junior, diz ter sido Pecola quem matara seu gato favorito, o que, na verdade, fora ele mesmo que o fizera. A cena tem início com Junior chamando Pecola a entrar na sua casa para ver uns novos gatinhos que tinham. Assim que Pecola entra na casa, se encanta: How beautiful, she thought. What a beautiful house. There was a big red-and-gold Bible on the dining-room table (...) He pulled her into another room, even more beautiful than the first… (MORRISON, 1994, p. 89). Percebemos, apenas com o encantamento da pequena Pecola, um certo sentimento de opressão, de desfavorecimento, pois a casa contrasta, totalmente, com a sua, pobre e humilde. A referência à Bíblia na mesa da sala de jantar é, por certo, uma forma de conectar Geraldine à WASP. Em seguida, enquanto Pecola admirava as belezas da casa, Junior joga-lhe o gato na cara para rir do susto de Pecola: ... and he threw a big black cat in her face. (…) Junior was laughing and running around the room clutching his stomach delightedly… (MORRISON, 1994, 89-90). A atitude de Junior, aqui, pode ser entendida como um reflexo daquela pregada por sua mãe, e não apenas como uma traquinagem de menino, pois, a crueldade de Junior e a sua opressão a Pecola é, por certo, reflexo do estabelecimento de sua superioridade perante os demais negros: o desespero de Pecola é fonte de seu prazer. Por fim, na cena, Junior pega o gato, gira-o pela perna acima de sua cabeça e, numa confusão em que Pecola tenta tirar-lhe o gato das mãos. Este acaba batendo na janela e caindo no aquecedor, morrendo. Com a chegada da mãe, Junior esquiva-se de sua culpa e diz ter sido de Pecola. Reação esperada, então, Geraldine consolida sua marca de superioridade, sua rejeição à própria raça: “Get out,” she said, her voice quiet. “You nasty little black bitch. Get out of my house” (MORRISON, 1994, p. 92). Consequência das palavras de Geraldine, Pecola se retira: Pecola backed out of the room, staring at the pretty milk-brown lady in the pretty goldand-green house who was talking to her through the cat’s fur… Pecola turned to find the front door and saw Jesus looking down at her with sad and unsurprised eyes… (MORRISON, 1994, 92). Evidentemente, a cena por si se torna comovente, mas é importante lembrar que a formação discursiva e a formação ideológica que se pretendem postulam um registro fiel de uma tentativa de intervir no comportamento branco e torná-lo mais afeito aos negros, reconhecendo-os como membros dignos e integrantes da cadeia social que pertencem, posto que as formações ideológicas comportam, necessariamente, como um de seus componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas, que determinam aquilo que se pode e se deve dizer (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada” (HAROCHE, HENRY, PÊCHEUX, 1971, p. 102-103). A conjuntura dada é também representada pela alusão ao livro de leitura utilizado na alfabetização de crianças nos Estados Unidos desde a década de 30 a de 1970, Jack and Jane, que vivem em uma “gold-and-green house”, como a de Geraldine. Percebe-se, então, que a realidade nacional é um elemento que invade o discurso de Morrison para marcar indignação, mais do que oposição, em relação aos parâmetros vigentes, o que se de forma marcada, presente e, poderíamos dizer, gritante na obra. Jack-and-Jane são os opostos das crianças mostradas e instalam em Pecola, tanto quanto a imagem de Shirley Temple, um desejo de se tornar branco, de ter olhos azuis, de ser reconhecida como parte integrante de uma sociedade mais humana. Como as formações ideológicas são um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais, nem universais e que se referem mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras (HAROCHE, HENRY, PÊCHEUX, 1971, p. 102), entendemos a narrativa de Morrison como uma forma de representar as atitudes dos americanos frente aos americanos negros. Também entendemos que a atitude de Geraldine é uma forma de se exaltar uma identidade branca em detrimento da percepção e aceitação de uma identidade negra. Pecola, neste cenário, se torna a própria encarnação das opressões pelas quais sofrem todos aqueles que não se enquadram em suas próprias identidades e buscam, no outro, uma forma de se sentirem mais humanos, mais merecedores de um lugar ao sol. É nesta personagem que os anseios de uma identidade negra se manifestam, não por uma luta na consolidação de uma negritude, mas pela sua negação. Os exemplos dessa perspectiva são inúmeros, inclusive vistas na mãe de Pecola, Mrs. Breedlove, que se esforça com seu trabalho para sustentar as duas crianças que possui e o marido alcoólatra, Cholly, embora demonstre mais afeto pela filha de seus patrões do que por sua própria filha, Pecola, como vemos na perspectiva de Claudia, quando ela e Frieda visitam Pecola na casa dos patrões de Mrs. Breedlove e descobre que a criança da casa a chama por um apelido, enquanto a própria Pecola a trata por senhora Breedlove: The familiar violence rose in me. Her [a criança] calling Mrs. Breedlove Polly, when even Pecola called her mother Mrs. Breedlove, seemed reason enough to scratch her (MORRISON, 1994, p. 108). Como a análise do discurso entende o funcionamento da ideologia em sua imbricação com o discursivo e oferece um direcionamento do sentido por condições históricas (e discursivas) de produção, é preciso que nos atentar para o que está subjacente a esta forma, aparentemente inocente, de tratamento da menina com Mrs. Breedlove. Se, de um lado a própria filha a trata por Mrs. Breedlove, o que cria um distanciamento mãe e filha, ambas negras; a aproximação que se dá pelo apelido Polly nos leva a uma aproximação mãe (de Pecola) com a filha do outro (a dos patrões de Mrs. Breedlove), uma negra, outra branca. O reflexo disso é algo muito mais intenso do que a sua simples percepção. A aproximação de Mrs. Breedlove - ou melhor, Polly – está muito mais afeita a representação de seu desejo de uma identidade branca do que de uma simples “afeição” pela menina. Enquanto cuida dela, Polly se sente “branca”, pois está circundada de elementos que a fazem feliz, que ela acredita ter direito e, como apenas exerce esse direito enquanto empregada da casa, toma para si a ideologia vigente para negar seu próprio sangue. O discurso de Mrs. Breedlove tem origem, então, no seu sentimento de repressão, que, por sua vez, está calcado em uma ordem institucional branca. A formação ideológica da personagem, então, reflete a concepção de que a valorização do branco é quase que uma ordem, uma obrigação; mesmo que para que isso se realize, seja necessário lançar mão da negação de si: It was only sometimes, sometimes, and then rarely, that she thought about the old days, or what her life had turned into (MORRISON, 1994, p. 129). Se Mrs. Breedlove violenta sua filha em termos apenas discursivos, embora ela nela também bata, o que pode ser entendido como uma transposição para o plano objetivo, real, da sua aversão ao negro e aceitação ao branco; o pai, Cholly, o faz de forma ainda mais aviltante: estupra-a. Sem nos atermos aos aspectos psicológicos que levam um homem ao estupro, podemos entender a atitude de Cholly, como uma forma de ratificar a opressão e o tratamento do negro como um objeto. Paradoxalmente, a cena em que acontece o estupro traz consigo indícios de um sentimento bem-querer de Cholly por Pecola, pois ele percebe sua presença jovem, desprotegida: her young, helpless, hopeless presence (MORRISON, 1994, p. 161) e pensa no que poderia fazer por ela: what coud he do for her?; e, depois do estupro consumado, um carinho o faz cobri-la: the tenderness forced him to cover her (MORRISON, 1994, p. 163). Evidentemente, não estamos aqui fazendo uma defesa do estupro, mas, discursivamente, percebemos que as emoções de Cholly são transpostas por Morrison de forma a torná-lo mais humanizado numa atitude totalmente animalesca. Como os enunciados são formas de representação de uma ideologia, de uma formação discursiva, entendemos que a maneira de representar a animalidade se torna uma forma de reconhecer, no negro Cholly, um início de um processo de respeito ao seu igual, negro, aqui representada por Pecola. Também não é leviano de nossa parte defender que a ânsia de um bem querer mútuo entre os negros, posto nas características carinhosas expostas no trecho, são entendidas como fadadas ao fracasso, que se consolida no ato repulsivo de estuprar. Estaria, então, o discurso nos oferecendo uma possibilidade de entender a identidade negra fadada à subserviência? É possível. Afinal, o carinho sucumbe aos instintos animais, que são levados a cabo e tornam-se mais poderosos e vencem a batalha do momento, que, no nosso entender, pode ser visto como uma vitória da opressão e consequente assujeitamento do negro aos instintos, não às convenções sociais; o que alegamos com base na concepção dos enunciados como bases formadoras de formações discursivas que, por sua vez, completam-se em formação ideológica, seara profícua de trabalho da análise do discurso, pois ...todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série (léxicossintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação (PÊCHEUX , 1997, p. 53). Se, de um lado, a obra expõe as dificuldades de se perceber e manter uma identidade negra nos Estados Unidos dos anos de 1940, também retrata a pouca esperança em se constituir, realmente, esta identidade nas bases em que se encontra, historicamente, a instituição da hegemonia branca. De volta ao início da obra, Morrison já anunciara esta perspectiva ao dizer que: What is clear now is that all of that hope, fear, lust, love, and grief, nothing remains but Pecola and the unyielding earth. Cholly Breedlove is dead, our innocente too. The seeds shivered and died … (MORRISON, 1994, p. 6). O que fica claro, então, é que a repressão a uma real construção de uma identidade negra, com os mesmos direitos e reconhecimento daquela tida e instituída pelos brancos é uma tentativa que, a cada dia, morre. A ânsia de Pecola por olhos azuis não é, de forma nenhuma, uma maneira de impingir uma imagem branca aos negros, uma identidade de branco nos negros. É, antes, uma forma de protestar contra essa heterogeneidade de uma identidade que nega as diferenças, que oprime as classes inferiores e que, de forma cruel, alija a criação de identidades diversas que convivem harmonicamente. É uma forma de trazer ao nosso universo repleto de concepções brancas sobre todas as coisas, a força do negro, que, oprimido, se vê obrigado a buscar no protesto uma identidade. Pecola não é apenas uma menina, é, ao contrário, a personificação de todas as meninas que sofrem ao ver que, em suas brincadeiras, têm suas bonecas párias de si, porque brancas. Ao ver em todos os cabelos lisos e brilhantes, uma representação de beleza que nega a beleza existente em suas características naturais. Ao ver que o mundo não as valoriza como merecem, como seria esperado, e gritam, em protesto à morte das sementes de esperança de uma identidade negra, um desejo que sai do âmago de sua existência: morte aos olhos azuis! REFERÊNCIAS: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: aconstrução do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. _____ Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp-Hucitec, 1988. COBUILD, Collins. English dictionary: helping learners with real English. London: HarperCollins Publishers, 1995. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986. HAROCHE, CLaudine ; HENRY, Paul ; PÊCHEUX, Michel. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Langages. Paris, número 24, p. 93-106, 1971 MORRISON, Toni. The bluest eye. New York: Penguin Books USA, 1994. PÊCHEUX, Michel. Introduction. Langages. Paris, número 37, p. 3-6, 1975. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp, 1975; 1988. PÊCHEUX, M. A Análise de Discurso: três épocas (1983). In: GADET, F.; HACK, T. (org). Por uma análise automática do discurso. 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