Jornal “i” de 11-12-2010
Carlos César
"Mais vale um apoio social que uma obra cara e
dispensável"
por Ana Sá Lopes, Publicado em 11 de Dezembro de 2010
Nos Açores, os salários dos funcionários vão ser compensados porque o governo não vai construir a cobertura de um
estádio de futebol
Carlos César, o presidente do Governo Regional dos Açores, está por estes
dias no epicentro de um furacão político. A sua decisão de compensar parte
dos funcionários da administração pública regional dos cortes decididos pelo
governo central criou uma tempestade política dentro do seu partido. Sócrates
não gostou, apesar de respeitar os poderes autonómicos, e Carlos César
insiste que a decisão não só é legítima como diz que o primeiro-ministro
poderia ter penalizado menos os mais pobres, se optasse pelo "reforço de
outros cortes e tributações". E dá o exemplo: nos Açores, os funcionários vão
ser compensados porque o governo regional desistiu de construir a cobertura
de um estádio de futebol. César diz ainda que esta polémica é a prova de que
não está na fila dos candidatos à sucessão do secretário-geral e deixa uma
crítica aos responsáveis do governo: "Há [ministros] que são cuidadosos na
sua imagem, mas fazendo pouco mais". As perguntas do i foram enviadas por
email e respondidas por escrito.
Alguns camaradas de partido, incluindo do secretariado nacional, acusam
-no de ter aberto "um precedente pouco razoável". Como responde?
Tenho pena que essas pessoas que refere não acompanhem com atenção a
política nos Açores, para além das ocasiões em que o PS ganha aqui eleições.
Se o fizessem saberiam que, de forma antecedente, temos feito e estamos a
fazer um esforço bem sucedido de poupança e redução de encargos da
administração regional. Cortámos, por exemplo, 10,5% nos consumos
intermédios da administração entre 2009 e 2011, e também nas despesas com
pessoal através da redução do número de funcionários e das horas
extraordinárias, e de horários acrescidos, e da redução nos últimos anos de
cargos de chefia. Temos um efectivo da função pública proporcionalmente
inferior ao nacional e, apesar de termos necessariamente serviços distribuídos
por nove ilhas, temos quase metade dos funcionários existentes na Madeira.
Ainda antes dos PEC e do último OE reformulámos e reprogramámos a nossa
política de investimentos que foi reduzida num valor superior a 80 milhões de
euros. Diferimos a construção e a requalificação de instalações desportivas,
reduzimos custos na construção de novas escolas e adiámos outras, fizemos o
mesmo na recuperação de imóveis públicos, reprogramámos a construção de
novas unidades de saúde e a remodelação de existentes, suspendemos obras
não urgentes em portos e aeroportos. Através da execução de um programa de
poupanças e combate ao desperdício contamos reduzir 14 milhões de euros
nas despesas de funcionamento do Serviço Regional de Saúde. Já foram
anunciadas também fusões no sector público empresarial.
Mas os sacrifícios nacionais não são para todos?
Somos destinatários das medidas restritivas e de poupança que em geral são
adoptadas pela administração central, ora por aplicação obrigatória ora por
adaptação nos casos em que essa aplicação depende da região. Em 2011, por
exemplo, haverá uma redução de 20 milhões de euros - que é muitíssimo, à
nossa dimensão - nas transferências da Segurança Social para os Açores, e
uma redução de 9 milhões de euros nas ajudas ao abrigo da Lei de Finanças
Regionais em relação ao valor do Orçamento para 2010. E temos consciência
de que serão necessários, muito provavelmente, outros sacrifícios que nos
afectarão.
Compreendemos essas diminuições no apoio que nos prestam e aceitámo-las
solidariamente, tal como o fizemos noutro caso, explicitado, de resto, no
articulado do Orçamento do Estado, em que prescindimos - por minha
proposta, sublinhe-se - do pagamento em 2011 de uma verba de 16 milhões de
euros relativa à recuperação de anos anteriores de má aplicação da Lei de
Finanças Regionais.
Tudo isso é que tipifica a nossa conduta, que é a de uma co-responsabilização
real nos sacrifícios nacionais e não meramente simbólica. Como disse, e muito
bem, Pedro Silva Pereira, ao anunciar a aprovação de uma resolução que
impõe a adopção das diminuições salariais nas empresas públicas, o que
importa é alcançar os mesmos resultados financeiros ainda que com
instrumentos diferenciados. Não vejo, por isso, qualquer relevância nacional ou
quebra de solidariedade em atribuir, com recursos financeiros açorianos - sim,
porque dois terços da nossa receita são receitas próprias e de fundos europeus
- um apoio social a um conjunto de cidadãos, cujo valor global até é reduzido.
Aliás, não optámos por diminuir o IRS, como propunha na região o PSD,
porque introduziria distorções, já que nem todos viram diminuído o seu
rendimento, e representaria uma perda de receita quatro vezes superior à
despesa que aprovámos. Quanto a considerações de ordem ética, mais vale a
despesa de um apoio social útil do que a de uma obra cara dispensável, pelo
que seria mais legítimo o protesto por um desperdício do que a crítica à
generosidade de um apoio a famílias.
Se fosse primeiro- -ministro, aplicava esta medida a todos os
funcionários?
Repito: a medida que tomámos destinou-se apenas a proteger os rendimentos
de trabalhadores que ganham entre 1500 e 2000 euros brutos que tiveram uma
diminuição salarial, e que, na nossa perspectiva, integram um conjunto-tipo de
famílias que não absorverão uma quebra de rendimento sem incumprimentos
(por exemplo, bancários) que degradarão significativamente a sua situação
social e as suas economias domésticas. E isso acontecerá ainda mais nos
Açores do que no continente, dado o nosso custo de vida superior.
Evidentemente que o primeiro-ministro gostaria que algumas medidas que
tomou não prejudicassem as pessoas como está a acontecer. Há, em minha
opinião, alguns portugueses de menores rendimentos, bem como pensionistas
e famílias numerosas, que poderiam ser menos lesados por contrapartida do
reforço de outros cortes e tributações, ou, pelo seu significado simbólico, de
casos como o da redução de altos salários que se praticam com origem no
erário público.
Sócrates deveria também cortar em outras despesas do Estado e dar essa
compensação aos funcionários do continente?
Já lhe respondi: em política, muitas vezes, querer não é poder. Além disso o
governo nem sequer dispõe de maioria absoluta no parlamento.
Como é que se justifica moralmente que um funcionário que ganhe 2000
euros brutos em Ponta Delgada ganhe mais que um funcionário em
tarefas idênticas no nordeste transmontano?
Existe um custo acrescido efectivo por viver em ilhas em relação ao território
continental. Basta pensarmos em evidências, que não são subliminares, como
os encargos de transporte de matérias--primas, bens e serviços
exclusivamente por via aérea ou marítima, que tornam mais caro o mesmo
cabaz de consumo face ao influenciado pelo transporte terrestre. Pelas
mesmas razões são maiores e mais onerosas as restrições à circulação de
pessoas. As barreiras geográficas açorianas condicionam a criação de
economias de escala e de aglomeração, o que, para além de aumentar os
custos, reduz a rentabilidade e a competitividade da economia, das produções
e dos rendimentos. Estes factores de acréscimo dos custos têm mais a ver com
a nossa realidade arquipelágica do que apenas com a distância física em
relação a maiores centros urbanos. Isso é hoje reconhecido no próprio Tratado
da União Europeia nos casos dos arquipélagos portugueses, espanhóis e das
regiões ultramarinas francesas. Ainda recentemente o Estado reconheceu,
para efeitos de valor de financiamento de habitações, que o custo de
construção/aquisição de uma habitação nos Açores, pelas razões
anteriormente invocadas, é 35% superior à generalidade do país. Fazer justiça
implica, em regra, tratar de forma diferente o que não é igual. Os sucessivos
governos da República têm reconhecido isso, inclusive os presididos por
Cavaco Silva, em abundante legislação, com subsídios e suplementos
especiais e permanentes a funcionários da administração central nos Açores,
como os do Tribunal de Contas, do Ministério das Finanças, da Provedoria de
Justiça, do registo e notariado ou dos militares do quadro permanente. Não
compreendo, também por isso, a que se deve o espanto do apoio que agora
demos a alguns funcionários públicos.
Não falou com Sócrates antes de tomar a decisão porquê?
Porque a excepcionalidade em causa não o justificava, nem o justifica.
O Governo Regional dos Açores é mais socialista do que o governo
central?
Somos socialistas, sim. Fazemos o que podemos, beneficiando do acréscimo
de sensibilidade que a proximidade do governo em relação aos cidadãos,
mercê da nossa autonomia política, proporciona.
Em termos constitucionais, esta decisão é à prova de bala?
Desde logo é bom que se perceba que nós não consagrámos qualquer
excepção nos Açores em relação aos cortes salariais. O que fizemos foi,
poupando e cancelando outra despesa - a de cobertura parcial de um campo
de futebol - estender um apoio social ao rendimento a um conjunto de
trabalhadores. Pouco restaria à autonomia política e legislativa dos Açores se
tal não fosse possível. Existe, de resto, há mais de uma década nos Açores,
uma remuneração complementar para os que ganham até 1304 euros, sobre a
qual, e muito bem, nunca existiu qualquer dúvida quanto ao seu
enquadramento legal ou constitucional. E como já lhe disse, há funcionários da
administração central nos Açores que recebem também, a diverso título,
suplementos remuneratórios que os diferenciam face às mesmas categorias e
funções no território continental. Na sequência da actual polémica solicitámos
pareceres independentes sobre esta medida e todos são categóricos quanto à
competência da região para o fazer.
Acusou o Presidente da República de querer dividir os portugueses. Não
reconhece que algumas das preocupações do Presidente relativamente a
esta proposta também se estendem a militantes do PS?
O senhor Presidente, apesar de ter começado por dizer que não tinha
informação segura sobre o que estava em causa, apressou-se a proferir
considerações insinuando claramente a inconstitucionalidade da medida,
aludindo a critérios de diferenciação ilegítimos entre os portugueses e
envenenando à partida qualquer racionalidade na análise do assunto. Para
quem diz com frequência "eu sei do que estou a falar" e "não falo quando estou
no estrangeiro de questões internas do meu país", o senhor Presidente falou
sobre o que não sabia e apressou--se a criticar o que devia ter começado por
procurar compreender. Não é isso que se espera de um Presidente da
República. Evidentemente que outros políticos e analistas fizeram o mesmo ou
pior, mas todos eles sem as responsabilidades institucionais do mais alto
magistrado da nação. É claro que, em muitos casos, somaram-se a ignorância
e a discordância sobre as competências autonómicas. E, como se sabe, não
faltam centralistas em todos os partidos e sectores.
O que pensa da impossibilidade de taxar a distribuição de dividendos da
PT impedida pelo PS?
Qualquer novo enquadramento fiscal deve ser norteado pela não
retroactividade e pela previsibilidade. Colocar este princípio em causa seria
introduzir um elemento de incerteza que afectaria gravemente a confiança de
qualquer interlocutor económico e que podia até agravar a fuga de capitais a
curto e médio prazo, a actividade económica, implicando, no futuro, reduções
de receitas fiscais muito superiores aos eventuais ganhos que agora podiam
ser angariados. O PS, esteve, pois, bem, resistindo a pressões populistas de
curto prazo.
Admite um dia vir a suceder a Sócrates como secretário-geral do PS? E
ser primeiro-ministro de Portugal?
Não. Estou exclusivamente concentrado nas minhas funções nos Açores e não
planeio a minha intervenção política com essa finalidade - como, aliás, se pode
perceber pela polémica em curso sobre a chamada "remuneração
compensatória". Acresce que não está em aberto qualquer processo de
sucessão no PS e que, não me sentindo obrigado a concordar sempre com
Sócrates, aprecio positivamente o seu esforço e o seu empenhamento.
Como avalia, neste momento, o governo central? Deveria ou não haver
uma remodelação?
Como em qualquer governo há pessoas com melhor ou pior desempenho. Há
membros do governo que têm tarefas mais exigentes e mais expostas ao
escrutínio público e que, mesmo sob crítica, são melhores que outros mais
ausentes. Há alguns que são meticulosos comunicadores e excepcionalmente
cuidadosos na sua imagem, dizendo o que acham que os seus observadores
querem ouvir mas fazendo pouco mais. Todos sabemos, porém, que as
remodelações nem sempre ocorrem por consequência dessas indagações,
mas sim para resposta a situações políticas contextuais. O que eu sei é que um
chefe de governo tem como uma das suas missões a de reabilitar ou vitalizar a
imagem governativa sempre que ela se apresente parcial ou globalmente
fragilizada. José Sócrates sabe o que deve fazer e, melhor do que eu, o que
pode fazer.
António José Seguro já não esconde que um dia será candidato a
secretário-geral do PS. O que pensa desta solução? Prefere António
Costa?
Acho que o António Costa tem razão quando censura certos arrebatamentos
precipitados que prejudicam a concentração do partido nas suas tarefas
nacionais e afectam a coesão pessoal necessária. Nesta altura o que é
importante é o empenhamento de todos. E a compreensão perante as falhas
de cada um.
Download

"Mais vale um apoio social que uma obra cara e