UFS Universidade Federal
de Sergipe
Caminhadas de universitários de origem popular
UFS
UFS
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFS / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
96 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção Caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-38-2
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal de Sergipe. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFS
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Autores
Agnaldo dos Santos
Ana Paula Aragão
Bruno da Silva Santana
Carla Rayane
Carla Vanessa Santos Andrade
Secretário
Catia Matias dos Santos
Armênio Bello Schmidt
Dilma Ramos Lira
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Elizangela Nunes de Souza
Leonor Franco de Araújo
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Emanoela Gonçalves Ramos
Erika Janaina Rolemberg Silveira
Fabiana Bispo de Oliveira
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Veleida Anahí da Silva
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFS
Aldenir Andrade dos Santos
Coordenação Operacional
Elizabethe Azevedo de Souza
Assessoria Técnica
Gilvan Braz Araujo
Helenilza Joelma Costa Santos
Jaqueline Gomes dos Santos
Maria de Fátima Ribeiro Menezes
Maria Lucivânia da Cruz
Marlene Alves dos Santos
Mikele Cândica Souza Sant’Ana
Paula Maria Oliveira Santos
Shirlei Souza Passos
Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues
Tiago do Rosário Silva
Universidade Federal de Sergipe
Josué Modesto dos Passos Subrinho
Reitor
Ângelo Roberto Antoniolli
Vice-Reitor
Ruy Belém de Araújo
Pró-Reitor de Extensão
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento
em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,
distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Veleida Anahi da Silva ......................................................................................... 9
Introdução
Aldenir Andrade dos Santos .............................................................................. 11
Quebrando um ciclo
Agnaldo dos Santos ............................................................................................ 15
Aragão: experiências escolares
Ana Paula Aragão ............................................................................................... 18
O caminho das mentalidades
Bruno da Silva Santana ..................................................................................... 20
Deixe as luzes acesas...
Carla Rayane ...................................................................................................... 25
Um dia inesquecível
Carla Vanessa Santos Andrade ......................................................................... 30
Caminhada: caminhar sem olhar para trás
Catia Matias dos Santos .................................................................................... 32
Travessias: da cegueira momentânea à noite da liberdade
Dilma Ramos Lira ............................................................................................... 34
Assim eu vim ao mundo
Elizangela Nunes de Souza ................................................................................ 39
Diário de uma estudante
Emanoela Gonçalves Ramos .............................................................................. 44
Uma vida (e) uma lição
Erika Janaina Rolemberg Silveira .................................................................... 49
A chave da vitória
Fabiana Bispo de Oliveira ................................................................................. 55
Infância
Gilvan Braz Araujo ............................................................................................. 58
Só sei que foi assim...
Helenilza Joelma Costa Santos ......................................................................... 60
Que história é essa?
Jaqueline Gomes dos Santos .............................................................................. 63
O caminho sou eu quem faço...
Maria de Fátima Ribeiro Menezes ..................................................................... 68
Vida: um processo de aprendizagem
Maria Lucivânia da Cruz ................................................................................... 72
Minha caminhada: é um orgulho para mim e
uma homenagem ao meu pai...
Marlene Alves dos Santos ................................................................................... 75
Página em construção
Mikele Cândica Souza Sant’Ana ....................................................................... 78
Parte de minha caminhada
Paula Maria Oliveira Santos ............................................................................. 82
Fontes de estímulos
Shirlei Souza Passos ........................................................................................... 84
A árvore da minha vida.
Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues ...................................................................... 87
Retalhos do eu... por mim mesmo
Tiago do Rosário Silva ....................................................................................... 89
Apresentação
Memórias de luta dos jovens do programa Conexões de Saberes :
quando a universidade federal é um sonho
Vamos encontrar, neste livro, histórias fortes de luta de jovens em busca da
oportunidade de ser o primeiro membro de suas famílias a ter curso superior. Com muita
garra, esses jovens conseguiram entrar na universidade federal, com suas próprias iniciativas.
Hoje, porém, para nela permanecerem, eles podem contar com o programa Conexões
de Saberes, cuja política e filosofia é ajudar esses jovens, oriundos de espaços populares, a
realizar o seu sonho.
Este programa pretende contribuir para que esses estudantes universitários sejam bemsucedidos nos seus estudos, tornem-se lideranças comunitárias e, assim, fortaleçam as
comunidades, proporcionando melhor qualidade de vida para os indivíduos desses espaços.
Os jovens escrevem, aqui, as suas memórias das experiências nesse programa. Os
povos mais antigos, como os gregos, por exemplo, consideravam a memória uma entidade
sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegia as Artes e a
História. Mnemosyne conferia aos poetas e advinhos o poder de retornar aos acontecimentos
passados e fazê-los serem lembrados por toda a coletividade.
Então, convido vocês a apreciar essas memórias reconstruídas por esses jovens
“conexistas”, como eles mesmos se designam, e a acompanhar as histórias reais, movidas
por um sonho que se concretizou graças à luta.
Veleida Anahi da Silva
Coordenadora Geral do programa Conexões de Saberes da UFS
Universidade Federal do Sergipe
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Introdução
O programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades
populares, foi adotado pela Universidade Federal de Sergipe no ano de 2006.
O foco central desse programa é o empoderamento de jovens universitários oriundos
das camadas populares, para que possam contribuir no desenvolvimento das
comunidades de origem.
Permanecer na universidade e poder concluir seus estudos, são os desafios que os
estudantes de origem popular enfrentam.
Este livro é o relato de 23 (vinte e três) estudantes da Universidade Federal de Sergipe
que participaram desse programa, em linguagem simples, sem pretensão de apresentar-se
com formas literárias rebuscadas e corretas.
Não são poetas, mas alguns deles chegaram a emocionar, pela clareza como trataram
os acontecimentos aqui relatados.
Alguns nem acreditavam que seriam capazes de escrever suas histórias, outros não sabiam
como começar. Uma coisa é certa: lê-los, veremos um pouco das histórias de milhões de brasileiros
que não tiveram oportunidade de contar as suas, no entanto, para os que passaram por esses
momentos, fica a compreensão de que tudo valeu a pena. É o que nos dizem, nos perfis abaixo:
Ana Paula Aragão
Primogênita de uma família de três irmãos, sergipana de origem, cursando Pedagogia
e apaixonada pelo curso que freqüenta;
Agnaldo dos Santos
Nascido em Porecatu – Paraná, residente em Macambira-SE, estudante do curso de
Geografia, curioso para ver aonde irá chegar;
Bruno da Silva
Levado por idéias filosóficas, resume na sua história momentos de indagações,
incertezas, encontrando no curso de História sua realização pessoal;
Carla Rayanne Menezes Santana
Desde o nascimento foi uma criança de saúde frágil, natural de Itabi-SE, mas tem
consciência do esforço para cursar Filosofia da UFS;
Carla Vanessa Santos Andrade
Acredita que pode fazer a diferença, porque traz consigo o sentimento de transformação
e de sonhos iniciados pela alegria de ter passado no vestibular de Letras Vernáculas;
Universidade Federal do Sergipe
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Cátia Matias
Descrita por ela mesma como criança rebelde, nascida em Malhador-SE, poderia ter
desistido da Universidade. Barreiras financeiras, emocionais permearam sua caminhada.
Construiu os seus sonhos com os seus familiares e hoje é estudante do curso de Pedagogia;
Dilma Ramos Lira
Nascida em Ilhéus-BA, filha de pai militar, prestou vestibular, primeiro, para
Jornalismo, e pela segunda vez, para Artes Visuais. Provar que os artistas não são meros
artesãos é uma luta pessoal e defende a idéia de que os mesmos são capazes de trabalhar
em diversas áreas do conhecimento;
Elizângela Nunes de Souza
Décima oitava filha de uma família de agricultores do município baiano de Fátima,
divide com 11(onze) pessoas, em Aracaju, um apartamento mantido pela Prefeitura.
Dificuldades não diminuíram a vontade de cursar Enfermagem;
Emanuela Gonçalves Ramos
Filha de pais agricultores em Lagarto, nasceu em Aracaju. As longas caminhadas
que fazia para ir à escola alimentaram o sonho de seguir em frente, lutando por uma vida
longe da realidade em que vivia. Perder o primeiro vestibular também não a desmotivou,
passar na UFS em Física foi uma realização pessoal;
Érika Janaína Rolemberg Silveira
O estilo cordelista foi uma forma irreverente de contar suas histórias. A Universidade
tornou-se para ela casa, trabalho e vida, motivos que a impulsionam a lutar pelo curso de
Letras Vernáculas;
Fabiana Bispo de Oliveira
Filha de pai militar e mãe cabeleireira, dar uma chance a si mesma foi uma forma de
chegar à Universidade mesmo enfrentando, segundo ela, preconceitos;
Gilvan Braz Araújo
Natural de Aracaju, filho de pais evangélicos, apesar de todas as dificuldades
conseguiu entrar no CEFET e no curso de Engenharia Civil da UFS;
Helenilza Joelma Costa Santos
Vencer a barreira de que mulher é para casar e ter filhos não é uma tarefa fácil, para
quem vive no interior. Pior ainda é perder quatro vestibulares e parentes queridos. Mas
nada conseguiu afastar o sonho de ser universitária;
Jaqueline Gomes dos Santos
Nascida em São Paulo e vindo morar em Aracaju por questões de saúde, a autora,
apesar de reconhecer a dificuldade em escrever, relata com clareza sua vida. Felizmente,
isso não a impediu de entrar para a Universidade cursando Letras Português;
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Caminhadas de universitários de origem popular
Júnior Souza
Oriundo de comunidade popular, desde cedo partilhou com os outros sua
vida. Música e futebol permearam sua existência. Ser aprovado em Letras
Vernáculas afastou-o da banda, mas abriu as portas para outra dimensão:
“ser professor”;
Maria Lucivânia da Cruz
Nascida em Aracaju, a autora apresenta, em seu relato, um texto inteligente,
claro e objetivo. A decepção por não ter passado no vestibular de Jornalismo levou-a
a buscar Letras Vernáculas, por ter também afinidade com esse curso;
Marlene Alves dos Santos
A autora faz um relato de sua vida, que é um retrato de milhões de moradores do
sertão. A época das chuvas, alternadas com a seca, marca a trajetória e a pele das
pessoas. Talvez por isso o relato, apesar de emocionante, está centrado na família,
especialmente no pai;
Maria de Fátima Ribeiro Menezes
Entrar na UFS não foi uma tarefa fácil. Após várias tentativas o sonho foi
realizado. O curso de Estatística tem preenchido o espaço onde antes havia desespero
e mágoa;
Mikele Cândida
Natural de Estância-SE a autora apresenta com clareza traços delicados de
sua existência. Otimista, escolheu o estudo como caminho para chegar ao seu
objetivo: “Engenharia Química”;
Paula Maria de Oliveira Santos
Nascida em Capela e residente em Aracaju, espelhou-se na família para enfrentar
todos os obstáculos.
Entrar para o curso de Pedagogia foi a maior felicidade para ela e todos os
seus familiares;
Shirlei Souza Passos
Nascida em Lagarto-SE, apoiou-se na família para buscar seus ideais (curso de
Matemática).
Sendo de origem humilde e residindo no interior do Estado, a sua permanência
na universidade só foi possível graças ao programa de residência da UFS;
Thais Feitosa Teixeira Rodrigues
Para uma criança do interior estar entre dois mundos é uma situação
desconfortável; a discriminação por ser de uma família carente, no entanto, não
afastou o sonho de cursar Serviço Social;
Universidade Federal do Sergipe
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Tiago do Rosário Silva
Impulsionado pelos pais, concluiu os estudos sempre voltado para fazer o
vestibular para Filosofia.
O seminário foi decisão pessoal, pelo fato de ter convivido com religiosos.
Filosofia na UFS, hoje, é sua realidade.
Às histórias que irão conhecer poderão ser, na sua maioria, tristes, mas foram
elas que deram sustentação e significado a todos os seus autores.
Aldenir Andrade dos Santos
Coordenadora Operacional do programa Conexões de Saberes da UFS
Quebrando um ciclo
Agnaldo dos Santos*
Nasci no dia 6 de novembro de 1981, em uma sexta-feira, na cidade de Porecatu no
estado do Paraná. Não moro com os meus pais e sim com meus avós: meu avô é um torneiro
mecânico aposentado e minha avó é uma dona-de-casa aposentada como trabalhadora
rural. Mudamos para Macambira no Estado de Sergipe no dia 2 de abril de 1986, eu estava
na época com quatro anos de idade.
Macambira é uma cidade típica do agreste, com hábitos e costumes tradicionais. Nesta
cidade eu estudei e terminei todo o ensino fundamental e médio.
Todo o meu ensino fundamental foi concluído na Escola de 1º Grau Marcolino Cruz
Santos, nome de um dos prefeitos da cidade. Não tenho do que reclamar do meu ensino
fundamental: a escola era boa e com alguns professores comprometidos. Macambira é uma
cidade de agricultores, que na maioria dos casos eram e são por subsistência, mas o que mais
marcou essa cidade foi o controle que exerciam sobre ela algumas famílias tradicionais,
controle esse nos cargos públicos, inclusive na diretoria da escola. Até 1993 (eu então na 6a
série) não era permitida outra vestimenta na escola além do uniforme tradicional (uma calça
social e, no caso das meninas uma saia de pregas e uma camisa que parecia com um uniforme
de marinheiro; não era permitido o jeans, por exemplo), eu até gostava desse uniforme e em
1996 com o término da construção de uma segunda escola na cidade, foi possível a
implantação do ensino médio com a colaboração do governo do Estado em um projeto
denominado de SOMEM (Sistema de Organização Modular do Ensino Médio) Como o
título do programa bem diz, ele era organizado em módulos os quais com duração média de
45 dias cada módulo, em que se deveria passar todo o conteúdo do ano letivo normal. Como
isso é possível? Não é possível, como não foi. O objetivo era passar, a qualquer custo, os
alunos, e os professores eram coagidos para esse fim. Como eram eles ainda universitários,
tinham muita vontade de fazer um bom trabalho, mas confrontaram-se com políticos
influentes que não tinham o compromisso com as pessoas. O projeto fracassou, ou melhor,
cumpriu o que tinha para cumprir, mas formou ainda algumas turmas antes de ser formado
um ensino médio “normal”.
Eu fiz parte da primeira turma formada pelo projeto SOMEM, com todas as deficiências
que se poderia ter. No ano de 2000 fiz um concurso para supervisor do Censo 2000 do IBGE,
embora não tendo muita esperança de passar, pois não tive um ensino médio que me permitisse
ter, mas passei e trabalhei nele por quatro meses. Logo depois que meu contrato com o IBGE
* Graduando em Geografia.
Universidade Federal do Sergipe
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acabou eu me mudei para minha cidade de origem (Porecatu-PR). Lá eu trabalhei por dois
anos em uma usina de álcool e açúcar, a mesma que meu avô trabalhou até aposentar-se.
Primeiro trabalhei como servente de moagem, depois como operador de plataforma
basculante em duas safras. Como morava com meu pai, e ele cobria meus gastos, que eram
poucos, eu consegui economizar um dinheiro e depositar em um banco o máximo que
consegui. Depois de três anos, meus pais decidiram voltar para Macambira e eu vim com
eles. Foi quando em 2004 decidi fazer um cursinho pré-vestibular para minimizar minha
defasagem de conhecimento do ensino médio e tentar passar no vestibular. Eu consegui
pagar um cursinho (Sala 1) em Itabaiana. Consegui passar no vestibular de 2005 para o
curso de geografia. Para uma família de pessoas pobres ter um membro dela em uma
Universidade é algo raro e ser o primeiro a ingressar em uma instituição como essa traz um
peso muito grande, todos esperam muito dessa pessoa.
Graças aos meus pais, eu consegui guardar o dinheiro necessário para pagar o pré-vestibular
e ajudar a manter-me na universidade por um tempo, pois a universidade pública, que é construída
com dinheiro público e deveria ser para o público, na verdade ela é feita e tem sua dinâmica para
as classes mais abastadas que têm conhecimento de sua importância para a formação de um
profissional que irá ganhar, provavelmente, mais que os demais. A formação de cidadão, que é o
discurso mais freqüente, é, em minha opinião, relegado a segundo, terceiro ou quarto plano.
Desde que entrei na UFS, meus horizontes têm se ampliado muitas e muitas vezes, não em
termos materiais ou financeiros, mas em termos de conhecimento, o qual eu não tinha. Fiquei
feliz com meu curso (Geografia), não é de minha natureza olhar para a sociedade com apenas um
olhar ou por apenas um viés, gosto de ver as inter-relações entre o econômico, o social, o
histórico, o urbano, o rural, o ambiental etc. isso ajudou na formação de meus objetivos pessoais
não ligados a minha formação acadêmica. Também tive sorte em ser uma das últimas turmas em
que nosso ícone da geografia em Sergipe (Professora Alexandrina Luz Conceição) ministrou
aulas antes de se aposentar: as aulas e suas posições me chamaram a atenção sobre diversos
aspectos da sociedade o que acredito que iria demorar muito tempo para talvez eu observar.
Quando se estuda em escolas particulares, você está em um meio que lhe mostra a
possibilidade de entrar na IES (Instituição de Ensino Superior) e o que se pode alcançar com
isso; já em uma escola pública do interior de uma cidade tradicional onde seus professores
não se comprometeram com o ensino fundamental e médio, não se tem um objetivo e não lhe
é mostrada esta possibilidade, de ingressar em uma IES e a que ela se destina. Assim entrei na
Universidade Federal de Sergipe: sem objetivos e sem uma noção de que isso poderia fazer de
significante na minha vida. Somente quando entrei, é que vi o tamanho e a importância dessa
instituição, pena que ela, na prática, não é para os que mais precisam. Quando ingressei no
Projeto Conexões de Saberes talvez tenha sido sorte eu entrar na UFS e logo depois entrar em
um projeto que se destina a propor soluções de acesso e permanência à Universidade para
pessoas oriundas de comunidades populares, algo que vejo que não é da ordem “normal” da
instituição que é muito voltada para a formação de profissionais que gerarão um conhecimento
que traz retorno financeiro à Universidade e isso coloca as Licenciaturas e as Ciências Humanas
em desvantagem em relação às Ciências ditas Exatas ou da área de saúde.
Entrar no Conexões de Saberes foi ver as disparidades entre os que vêm de escolas
particulares e públicas e a distância que a Universidade mantém das comunidades populares
e essa distância vem da apropriação da instituição pela classe média e média alta de forma
direta e/ou indiretamente. Participar deste projeto é como ver uma possibilidade para a
16
Caminhadas de universitários de origem popular
atuação mais próxima da sociedade, não como um discurso demagogo, mas de forma concreta
e influenciadora de caminhos a serem tomados de hoje em diante, caminhos que o curso de
geografia mostra, mas que nem sempre é seguido. Que o projeto mudou muita coisa em
mim, isso ocorreu, mas para que caminho mudou, ainda é um tanto obscuro ou nublado.
Enfim, sem a ajuda de meus pais não estaria aqui escrevendo estes fatos e os lendo a
público. A entrada na Universidade Federal de Sergipe e o ingresso no Conexões de Saberes
me possibilitaram confrontar idéias com a realidade e ver o que posso e preciso melhorar em
meus conceitos e conhecimentos. Os próximos passos ainda serão dados e eu estou curioso
em ver aonde isso vai chegar.
Universidade Federal do Sergipe
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Aragão: experiências escolares
Ana Paula Aragão *
Quando me falaram sobre a possibilidade de escrever um artigo contando a minha
caminhada escolar até ingressar numa universidade pública, fiquei fascinada com a idéia,
mas depois com a confirmação vieram as dúvidas sobre o que escrever. Então, resolvi
escrever sobre pessoas e fatos que me fizeram chegar até aqui e que me fazem lutar
constantemente por meus objetivos sem jamais desistir apesar dos obstáculos que aparecem
no nosso caminho.
Chamo-me Ana Paula Aragão, nasci no dia 6 de abril de 1984, na cidade de
Aracaju. Sou a primogênita de Maria Helena Farias, a pessoa mais importante da
minha vida. Uma mulher maravilhosa, trabalhadora que sempre lutou para criar seus
três filhos com dignidade e alcançar seus objetivos. Eu gosto de dizer que ela é um
grande exemplo de pessoa.
Mas voltando a minha trajetória escolar, devo dizer que, ao contrário de muitos amigos,
nunca enfrentei grandes dificuldades para ter acesso à educação até tentar entrar na
universidade, apesar de ter estudado durante toda a vida em escolas publicas. Exceto por
um ano, no ensino fundamental, quando por falta de vaga na escola do bairro onde morávamos
minha mãe teve que me matricular numa escola particular.
Durante essa caminhada estudei em diversas escolas, acho que foram umas oito, não
sei ao certo. Iniciei meus estudos muito cedo, mais precisamente aos dois anos de idade na
cidade de Gracho Cardoso, depois nos mudamos para a capital (Aracaju) e meus irmãos e eu
fomos matriculados no Jardim de Infância Garcez Vieira. Foi uma época maravilhosa na
minha vida, pois marcou minha infância, recordo que me divertia muito com meus colegas.
Mas entre todas as escolas nas quais estudei, posso destacar duas em especial: a
Escola Antônio Fontes Freitas e o Colégio Rui Barbosa, onde concluí o ensino Fundamental
e Médio, respectivamente. Devo dizer que de todas elas trago boas lembranças, pois tive a
sorte de ter encontrado pessoas especiais em meu caminho, amigos que fazem parte da
minha história e principalmente do meu dia-a-dia.
A minha grande decepção durante essa caminhada e exemplo também, refere-se a
minha reprovação no meu primeiro vestibular prestado para ingressar na Universidade
Federal de Sergipe; tinha acabado de concluir o ensino médio. Recordo que, quando fui
olhar a lista dos aprovados e não vi o meu nome me senti uma fracassada. Simplesmente
não acreditava que não tinha conseguido, porque sempre fui considerada uma ótima
*
Graduanda em Pedagogia.
18
Caminhadas de universitários de origem popular
aluna pelos professores. Na verdade, eu realmente me esforçava, chegava a ponto de
deixar de sair com a minha família porque o meu objetivo era ingressar na universidade e
quando percebi que todo o meu esforço durante anos não tinha sido suficiente fiquei
completamente arrasada.
Hoje, vejo que naquela época tinha a ilusão de que se estudasse bastante seria o suficiente,
não levava em consideração que assim como eu outros estudantes também tinham os mesmos
objetivos e sonhos e que, além disso, eles eram muito mais preparados, pois tiveram a
oportunidade de ter um ensino de melhor qualidade, além de não precisarem trabalhar.
Nesse momento, a minha família foi fundamental, me fizeram ver que eu era capaz e
que deveria tentar não importasse quantas vezes até alcançar o meu objetivo. No ano
seguinte, estudei ainda mais e já no final do ano consegui uma bolsa de um curso prévestibular e apesar do pouco tempo que estudei, devo dizer que ele me foi de grande valia.
Prestei vestibular novamente e para a minha felicidade fui aprovada. Quando olhei a
lista com o resultado final, fiquei estagnada porque não acreditava que havia conseguido.
Foi apenas quando retornei para casa, desci do ônibus e encontrei minha mãe e irmã me
esperando contentes, me felicitando por minha aprovação que realmente percebi que tinha
sido aprovada.
No segundo semestre do ano de 2003, comecei a cursar Pedagogia na Universidade
Federal de Sergipe. Ao contrário de muitos, tenho o prazer de dizer que sou apaixonada pelo
curso, pois através dele tenho aprendido muito sobre o verdadeiro significado da palavra
educação, sobre a realidade na qual estou inserida. Também devo dizer que, após o meu
ingresso, conheci pessoas maravilhosas com as quais tenho contado para superar os obstáculos
que surgem durante a vida acadêmica, pois nem tudo são flores dentro da academia como
imaginamos antes de fazer parte dela.
Além disso, um fato muito importante que aconteceu na minha vida acadêmica foi
fazer parte do Programa Conexões de Saberes: através dele, tenho aprendido muitas coisas,
convivido com pessoas que compartilham os mesmos desejos - como uma universidade
pública de qualidade onde todos possam ter acesso, por exemplo.
Universidade Federal do Sergipe
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O caminho das mentalidades
Bruno da Silva Santana *
Eu não acredito no passado – apesar de fazer história. O passado sempre nos trai.
O presente é sempre duvidoso e o futuro incerto. Não é niilismo, talvez seja preguiça.
Mas então, o que resta? Resta algo que eu descobri – ou encontrei – depois de chegar
aonde eu nunca me preocupei em chegar. Aonde só soube que ia chegar um ano antes
de chegar. E quando se tem 18 anos, um ano é muito pouco (ao menos me pareceu)!. E
se eu falei que “ia chegar” é porque sabia que chegaria. Para alguns é pretensão, para
outros, incoerência ou mentira, mas tudo o que me disseram que eu tinha de fazer,
mesmo sem eu querer, mas sem a escolha de não fazer, eu consegui fazer. Confuso?
Bem, resumindo: eu entrei na universidade. Nesse caso, a UFS – Universidade Federal
de Sergipe.
Mas voltando ao início, como falar do presente sem falar do passado? Afinal, eu não
pretendo falar de algo porque eu não me interesso. Mas então, o que pode me interessar?
Bem, se tenho de escrever sobre o passado, que não sejam os fatos, acontecimentos. Então
que seja a mentalidade. Mas será que ela é importante? Para mim é. Por isso meu caminho
é por ela.
Sem saber o que esperar...
Eu escolhi fazer o curso de história licenciatura, mas gostava mais de filosofia.
Justamente por isso não fiz filosofia: não queria estar preso a uma das poucas coisas que me
divertiam naquele momento. Também houve outros motivos para a escolha: a licenciatura
foi uma forma de fugir das prisões. Pelo menos foi a forma mais ampla que eu achei. Com a
licenciatura, eu seria dono do meu próprio conhecimento. Dependeria mais de mim que dos
outros ou dos acessórios.
Eu não falei, mas o curso que escolhi é noturno. E escolhi esse turno por dois
motivos: 1 – não fazer nada o dia todo; ser dono do meu tempo. 2 (e esse é um pouco
menos pretensioso) – trabalhar e poder começar a tentar buscar o que eu queria. Mesmo
sem saber ainda o que seria.
Esse desconhecimento me acompanhava há uns três anos, no mínimo. Quando terminei
a 8ª série, com 15 anos, achei que era o fim dos estudos. Na verdade não tinha certeza, mas
como não sabia o que viria, achei melhor não esperar nada. Até porque, quem mora numa
cidade do interior como eu morava, não há muito a esperar.
*
Graduando em História.
20
Caminhadas de universitários de origem popular
Estudar e esperar I - expectativas
Eu gostava da escola onde eu estudava, da cidade onde morava, mas nunca quis ficar
por ali. Sempre soube (ou quis) que um dia sairia dali. Sempre achei que haveria um outro
lugar, mas não sabia qual. Só sabia que tinha de esperar, pois um dia eu chegaria aonde eu
sonhava. E um dia me pareceu que eu havia chegado aonde queria. Eu saí do interior e fui
morar numa capital, numa cidade onde havia um futuro. Onde eu teria uma profissão e
minha própria vida. Pelo menos era o que me diziam, mas ninguém me disse que eu teria de
estudar mais para ter o que me prometiam.
Novamente estou numa sala de aula e as coisas parecem se repetir. Estudar para
esperar, mas por que esperar tanto se eu só queria uma vida simples? Sem alarmes e sem
surpresas. Mas eu estudava. Ao menos sabia que, acabando o 2° grau (agora ensino
médio), eu teria o que sempre esperei: a minha vida simples. Só que no começo do fim,
no 3° ano, me lembraram do tal do vestibular. Pois, me lembraram sim, afinal já tinham
me falado. Eu só não me lembrava porque não havia me preocupado com ele. Mas por
que me preocuparia?
No 1° grau eu estudava porque gostava. Eu não me preocupava porque não havia com
que me preocupar. Eu era um dos poucos alunos que conversava com os professores depois
das aulas. E isso para mim era normal. A única coisa que me prendia ali, naquele mundo, era
a escola – então depois dela eu estaria livre. Foi aí que tudo mudou e eu preferi recomeçar
do zero. Afinal, eu não queria só 2° grau.
Estudar e esperar II - apatia
Nos três anos do 2° grau, eu estudei por obrigação. Salvo algumas matérias, alguns
professores e alguns assuntos (pouca coisa no geral). Desta vez a espera era para acabar.
Mas a obrigação de estudar me afastava cada vez mais da escola e me aproximava da vida
que eu esperava: qualquer trabalho, qualquer lugar, qualquer coisa. Se eu quisesse escolher
alguma coisa era isso que havia para escolher. Determinismo? Fatalismo? Eu não conhecia
essas coisas para poder reconhecê-las, mas alguém já disse... tá, acho que foi o velho
barbudo, K. Marx, que foi resumido assim: “eles não sabem, mas fazem”. Acho que era
isso. E foi justamente no começo do 3° ano que isso se acentuou. O fim passou a ser o
começo. Agora eu tinha de passar no vestibular. Eu tinha um lugar para ir. Um lugar
chamado universidade...
É claro que eu não queria ir para lá. Talvez eu quisesse quando estava no 1° grau, mas
agora não. Até porque eu comecei a desconfiar que eu nunca teria o que eu sempre quis: ser
dono do meu tempo. Como eu poderia ser se sempre teria obrigações? Por que eu tinha de
ir para a universidade? Para fabricar meu diploma e ter um emprego? Para o que eu desejava
não precisava de diploma – eu não queria muito. Nunca quis. E por que eu deveria querer?
Eu sempre desacreditei e nunca me convenceu o dito valor da universidade. Para mim era só
um jogo que eu não queria jogar.
Por que rejeitar a universidade? – uma outra visão
Hoje eu tenho uma nova perspectiva sobre a universidade. Não busco certezas, mas
compreensão. Algo assim. O resumo da idéia seria este: eu não queria fazer parte do privilégio.
A universidade é um privilégio e isso para mim é indiscutível – mais ou menos... fazer parte
desse universo seria contradizer o que eu esperava desde o 1° grau, ou seja, estar entre os
Universidade Federal do Sergipe
21
meus iguais. Bem, isso ainda não está claro. É apenas uma idéia a ser desenvolvida. Mas
sempre achei a universidade um caminho egoísta e omisso. Algo que eu nunca quis, mas
também nunca fui ou quis ser o oposto maniqueísta disso. Acho que sempre preferi o
anonimato.
No curso noturno eu podia trabalhar durante o dia e foi o que eu fiz. Para mim, estudar
era adiar um futuro que eu podia ter naquele momento; estudar era viver uma vida que eu
não queria; mas principalmente estudar na universidade não me mostrava nada que
significasse mudança, alternância e nem perspectivas para quaisquer um dos meus desejos.
Por conta disso, acabei me dedicando mais ao trabalho que aos estudos. Só mais tarde, bem
mais tarde, eu iria mudar de opinião. Ao menos consegui mudar.
Como eu achava que a universidade não me oferecia o que eu ansiava, eu também não
conseguia captar as outras coisas que ela me oferecia. Eu nunca critiquei a UFS, os professores,
a estrutura, o curso etc, pois nunca havia me inteirado o suficiente para fazê-lo (apesar da
evidência de algumas deficiências). Mal sabia onde ficava o departamento do meu curso; à
reitoria eu nunca tinha ido, à biblioteca, só havia ido umas poucas vezes. Toda a minha
atenção estava voltada para o trabalho.
De certa forma, eu acreditava que trabalhar e viver nas condições oferecidas para a
maior parte da população era muito mais justo, talvez ético, honesto ou algo assim, do que
a luta egoísta que se torna a universidade. Tudo que se apresentava através da universidade
era a busca de uma vida melhor. Vida melhor dada somente àqueles privilegiados que
ingressam e cursam o nível superior. O fator principal que me distanciava da universidade
era a forte imagem que eu tinha e que só seria desfeita através da proposta do Programa
Conexões de Saberes. O curso universitário era a fuga de uma vida social inferior.
Aparentemente, a promessa velada que existe é de que quem tem o nível superior terá um
bom emprego, uma boa vida etc. Era justamente essa fuga que eu rejeitava. Eu demorei a
perceber que havia outras alternativas nesse caminho que passava pela universidade.
A universidade e seu mundo distante
Antes de entrar na universidade, eu não me lembro de nada referente a ela. No meu 1º
grau, nenhum dos meus professores era formado por alguma universidade. Bem, não na
minha visão daquele tempo. Hoje, eu acho que alguns ou estudavam ou haviam estudado
algum tempo em alguma universidade. Mas não me lembro de nenhum deles falando acerca
disso. Também não me lembro de nenhuma atuação de qualquer universidade onde eu
morava. Até hoje, o interior dos Estados está muito distante do mundo universitário. E essa
distância de alguma forma me marcou.
Os diversos caminhos
Quando eu falei de estar entre os meus iguais, isso vem principalmente de uma imagem
forte que eu tenho do grupo de amigos em que eu me encontrava durante o 1º grau: a
maioria dos meus colegas seguiu caminhos diferentes do que eu seguiria – quase nenhum
deles pensou ou foi para a universidade. Isso me marcou. E foi difícil.
Foi tão difícil que até hoje isso me causa espanto. Acho até que perplexidade, pois só
consigo lembrar sem tomar partido. Outro dia, uma amiga minha disse que não quer ir para
a universidade. Eu sei que o que ela faz não precisa da UFS, mas não sei se é tão simples
assim. Também lembro que alguns amigos de hoje nem o 2º grau terminaram. O máximo que
22
Caminhadas de universitários de origem popular
consigo dizer é para eles fazerem um supletivo. Eles dizem que pensam em fazer, mas
duvido um pouco. E a universidade? Eles sabem que eu estudo lá e eles admiram isso. Por
outro lado, para eles está bem claro que a UFS não é para eles: “É para quem pode”, como
eu já ouvi muitas vezes deles. Eu só não sei se é a intenção deles, mas essa frase me soa
ambígua: seria no sentido de “inteligência” – habilidade e dedicação aos estudos; ou
seria porque é preciso pagar – cursinho, escola particular – para poder entrar? Ou seriam
os dois!? E eu, o que posso dizer para eles diante disso? O que a universidade oferece? E
quem vai pagar as despesas dos estudos? Muitos moram longe e só de pensar em voltar
meia-noite para casa depois de um dia de trabalho e uma aula noturna desanimam. Isso é
a realidade de muitas pessoas e isso é mais do que comum e conhecido. Mas eu ainda não
sei o que fazer nessas horas...
A universidade dentro de um objetivo
Talvez seja por isso que os meus primeiros tempos na universidade tenham sido tão
vazios, sem propósitos. Mal prestava atenção às aulas e muito menos reconhecia qualquer
valor na instituição. Para mim, apesar de eu já estar lá dentro, ela ainda se apresenta distante.
Isso só mudou tempos depois, quando eu percebi que poderia tirar proveito da universidade.
A minha visão não havia mudado completamente, eu ainda achava (e continuo achando) a
universidade uma instituição à parte, distante e mais ainda: um privilégio que leva ao
caminho dos privilegiados; caminho que não se preocupa em olhar para trás, para as origens.
O que eu havia percebido, e hoje me parece o óbvio, é que eu poderia fazer uso desse
momento, mas não necessariamente fazer parte. Ao menos era isso que eu ia tentar. E de certa
forma, ainda tento hoje. Principalmente agora que a universidade tem um programa que
busca justamente olhar para trás: o Conexões de Saberes.
Por uma conjuntura de fatores eu acabei saindo do trabalho e ficando com o dia livre.
Acabei me dedicando mais aos estudos; devido à falta do que fazer, resolvi estudar. Foi nesse
momento, que comecei a buscar outras atividades que não fossem estudos e trabalho. Foi então
que eu voltei a me envolver com as comunidades de baixa renda, desta vez como agente atuante.
E essa experiência iria mudar a minha forma de enxergar a universidade e principalmente de
interagir com ela. A partir desse momento, eu traçaria um objetivo para a universidade.
Antes de me envolver com as comunidades, eu acabei dando voltas e voltas inúteis
na busca de alguma atividade que me despertasse interesse. Eu sempre esbarrava com
detalhes que me distanciavam dessas atividades: eu nunca gostei de depender dos outros,
então isso já dificultava os trabalhos em grupo; eu não aceitava fazer trabalhos por interesses
políticos, nem ceder em algum ponto para ganhar em outro – nesses casos eu preferia não
trabalhar; às vezes discordava da metodologia do trabalho etc. Mas numa dessas voltas
eu me encontrei. Trabalhar com comunidades, sem a interferência de políticos, num grupo
que tem o mesmo propósito e com liberdade para desenvolver atividades, posso dizer que
foi o começo de uma jornada que ainda não acabou e que está passando pelo Conexões de
Saberes agora. Mas esse começo não foi tão simples. Como toda comunidade, nela havia
enormes dificuldades.
E diante das necessidades da comunidade e das limitações do meu trabalho, eu percebi
que faltavam elementos, ou que havia elementos que poderiam complementar e ajudariam
a fortalecer o trabalho que eu desenvolvia. Foi quando então eu pensei: “Se eu me formar
logo, eu posso direcionar a minha graduação - e seus benefícios - e a minha profissão para
Universidade Federal do Sergipe
23
essa comunidade”. Agora sim, eu tinha um propósito na UFS. E de certa forma, me lembrava
do 2º grau; novamente eu tinha urgência em terminar os estudos. Mas dessa vez se diferenciava
pois eu sabia exatamente porque queria.
Nesse ponto, eu ainda não deixei de ver a universidade como eu sempre a vi, um lugar
distante, para privilegiados. Eu continuava a ver a universidade assim, mas dessa vez eu
tinha encontrado uma forma de me aproveitar disso. Eu tinha a certeza de que poderia
seguir esse caminho, mas não com a intenção de permanecer nele sem nunca olhar para trás
(ou para os lados). Eu seguiria esse caminho para me aproveitar dele e sempre pensando em
redirecioná-lo para lugares aonde ele nunca chega.
Graças a isso, eu acabei me encontrando na profissão de professor. Nos primeiros anos
na universidade, o curso que eu havia escolhido era tão-somente o curso em que eu havia
passado no vestibular. Agora não. Agora havia se tornado o curso que eu seguiria. Apesar de
tudo, a minha escolha não foi aleatória e até hoje me surpreendo por ter escolhido o curso
de licenciatura e pelos critérios utilizados. Surpreendo-me por dois lados: será que eu tinha
essa percepção tão ampla que me permitiu escolher um curso que atendesse as minhas
expectativas, mesmo elas estando na insipiência? Ou será que eu não mudei nada e nem
percebi as coisas ao meu redor? Às vezes, esses pensamentos podem ser atormentadores,
mas sempre chego à conclusão de que estou no caminho certo e isso me conforta. E um dos
fatores que mais pesa nessas conclusões é o Conexões de Saberes. Nele eu reconheci o
caminho que eu havia escolhido e mais, com ele eu ampliei o meu caminho.
Por outro lado, a escolha de terminar logo o curso estava relacionada com o impasse
que se apresentava e sempre se apresentou, diante de minhas escolhas: “sem dinheiro
ninguém vive” – “lugar de sonho é na padaria”... então era isso: eu me formaria, teria meu
emprego e voltaria esses dois elementos para os projetos de que eu fazia parte – os trabalhos
nas comunidades. Eu sabia também que, com a flexibilidade que o trabalho de professor
possui, isso facilitaria as minhas ações. Sem contar que eu poderia lecionar em qualquer
comunidade. Me parecia um plano legal.
Pra que pressa de chegar?
Agora, fazendo parte do Programa Conexões de Saberes, toda aquela pressa perdeu a
razão de ser. Nessa caminhada toda, nessas tensões que são as mentalidades, eu consegui me
estabilizar no presente. Dessa vez, estou tentando (de verdade mesmo) conciliar trabalho e
estudos. Principalmente porque agora os dois estão interligados. Também sei que os planos para
o futuro dependem do que fazemos agora. Esperar era uma atitude passiva que não cabe mais.
Não sei bem como acabar um texto sobre uma caminhada que ainda não acabou... não
sei se um dia saberei ou se um dia acabará, mas posso dizer que agora estou caminhando.
Sem conclusões ou muitas conclusões
Parece natural uma abordagem acerca da mentalidade terminar com uma conclusão,
mas não é esse o caso. Não tive a intenção de interpretar, mas qualquer um pode fazer isso.
Alguns elementos são gerais e comuns a muitas pessoas e lugares, outros são mais
específicos. Mas isso não impede ninguém de interpretá-los. Eu mesmo não creio que
seria capaz de fazê-lo, não definitivamente. E é isso que me fascina no estudo das
mentalidades: daqui a algum tempo, provavelmente, eu verei essa abordagem com outras
perspectivas. É isso que me diverte.
24
Caminhadas de universitários de origem popular
Deixe as luzes acesas...
Carla Rayane *
Por mais que na batalha se vença
um ou mais inimigos, a vitória
sobre si mesmo é a maior
de todas as vitórias.
José P. Andreeta e Maria de L. Andreeta
Bueno! Que frio mais fora de época!
Diz a previsão do tempo que esquenta mais à tarde, mas se for que nem ontem, melhor
nem esquentar, porque o solzinho estava tããão sem graça… faz favor, né?
Senti que ontem todo mundo estava meio autobiográfico. Ou eu fui influenciada pela
maré, ou eu influenciei com o postal existencial de ontem. Ou quem sabe, foram as duas
coisas. Várias vezes na minha vida fui tomada pelo impulso de começar um diário. E várias
vezes comecei. Não tanto para marcar eventos inesquecíveis de meu dia-a-dia quanto por
estar em alguma encruzilhada, íntima ou não, em que me parecia necessário forçar-me a
confessar alguma verdade que, de outra forma, não arriscaria dizer. Ou então, necessitava
levar meus argumentos frente a um tribunal que me entendesse. Ou ainda, queria interpretar
minha vida para lhe prometer um futuro ou dar sentido a um presente amoroso.
Então, vou contar um pouquinho da minha jornada. Essa minha caminhada, ainda em
processo, sem dúvida não foi só minha, mas aparece permeada de personagens que foram
essenciais para a localização atual da minha vida.
Minha difícil trajetória iniciou-se bem antes da minha chegada à nova realidade.
Meus pais separaram-se bem antes do meu nascimento. Minha mãe, na época muito imatura,
teve que aprender a enfrentar os problemas da vida muito cedo. Eu já nasci com um sério
problema de saúde. Aos seis meses de idade fui submetida a uma cirurgia para retirada de um
tumor maligno próximo ao olho esquerdo. Imaginem a situação da minha mãe: jovem,
inexperiente, sem dinheiro, somente com um sentimento capaz de superar qualquer obstáculo:
o amor incondicional. Na época em que foi diagnosticado o problema o médico falou que
eu teria que fazer uma cirurgia imediatamente e percebendo as condições financeiras da
minha mãe ele falou que a operação seria por conta dele, minha mãe, só arcaria com as outras
despesas, tipo curativos, medicamentos. Desesperada, minha mãe vendera alguns objetos
deixados pelo meu avô (infelizmente não o conheci) para tentar cobrir algumas despesas.
*
Graduanda em Filosofia.
Universidade Federal do Sergipe
25
Como somos do interior do Estado, de um município chamado Itabi, ficamos hospedadas
na casa da minha prima, Telma. Bom, fiz a cirurgia e graças a Deus tudo se resolveu, consegui
superar o primeiro obstáculo da minha vida; outros estavam por vir.
Mais precisamente na época do infantil III à 3ª série, sempre fui aquele tipo de
pessoa que é ignorada pela galera popular do colégio. Sabe aquele tipo de menina tímida,
sempre com notas boas e uma única amiga, bem na dela? Então. Sem falar que me chamavam
de protegida do diretor (eu odiava isso), porque não cursei a 1ª série, fiz uma prova e fui
direto para 2ª série.
A partir daí, os apelidos e zoações na sala de aula foram muito comuns. Ainda mais
quando descobriram que eu venho de uma família de pais separados e morava com minha
avó Alaídes. Pronto, no mínimo, a Carla não era uma boa influência. Engraçado como o
preconceito surge das mais variadas formas.
Até à 3ª série, foi o inferno na Terra. Mal eu sabia que o inferno pior estava por vir,
somando um pai ausente e anódino a um padrasto falso moralista que não dava a mínima para
valores éticos e morais e que a partir de então eu teria que suportá-lo todos os dias, porque
minha mãe levou-me forçosamente para morar com eles e meu irmão em Aquidabã-SE. Foi o
pior ano da minha vida, quando me lembro de ter deixado minha voinha para ir conviver
com um estranho que detestei desde a primeira instância; acho até que era sexto sentido de
filha. Isso tudo culminou na construção das minhas crenças, de um mundo construído a
partir de mim mesma.
Meu pai tinha um bom emprego para os padrões da região. Mas para que eu pudesse
usufruir dos meus direitos de filha minha mãe foi obrigada a procurar os meios jurídicos.
Algo que sempre quando lembro me deixa angustiada foi a negação, inicialmente, por parte
dele de me registrar, alegando que não era filha dele. Como a vida nos prega peças, né!!! Eu
sou a cópia fiel dele, nenhum dos outros dois filhos se parece tanto quanto eu. Tem um
pueril poema que fiz por volta de 8 anos baseado em um poema de Drummond que retrata
com certa grandeza o meu momento de solidão.
Como ser feliz sem um verdadeiro pai?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilhantismo
de vaidosa intelectual
hesita ante a interrogação,
armazenada em mim, estampada no ar.
Balas, jóias, patinação
talvez bastem para cativar?
Eis que dilacera meu coração
E brota como uma flor,
a procura de uma ilusão:
receber de um pai o amor.
26
Caminhadas de universitários de origem popular
Algumas vezes me sinto angustiada pela cobrança que as pessoas me fazem para
demonstrar os meus sentimentos por ele. Tenho ciência de todo o esforço feito por ele para
conquistar o meu afeto, entretanto, é muito difícil aprender a gostar de alguém que na fase
primordial do todo ser humano - a infância - sempre me negou carinho.
Já na 4ª série do ensino fundamental, a situação financeira estava mais equilibrada. Nesse
tempo, já estávamos residindo novamente em Itabi. Meu padrasto tinha uma ótima estabilidade
financeira e isso contribuiu para que minha mãe matriculasse meu irmão em uma escolinha particular,
típica de interior, achando injusto o posicionamento da minha mãe e sabendo o quão era difícil
para eu ter que estudar com pessoas bem mais velhas. Inconformada, a coordenadora (Tica) decidiu
oferecer um desconto de quase 70% para que eu pudesse estudar em uma escola mais preparada e
assim aconteceu. Eu ganhei a bolsa e passei a freqüentar o mesmo colégio que meu irmão.
Mas as inconstâncias da vida nos trazem muitas surpresas. Meu padrasto acabou
passando por uma crise financeira e meu pai não mais estava contribuindo financeiramente.
Acabei por concluir o ensino básico em um colégio municipal e fui em busca de melhores
caminhos para o ensino médio. Já imaginava que, caso não fizesse um bom ensino médio,
dificilmente entraria na Universidade Federal.
Até, então, eu não sabia o que era uma universidade. Meus pais não possuem grau
superior, mas minha mãe, figura importantíssima na minha vida, assim como todos os
professores que sempre me auxiliaram (em especial Dorinha, Tica e Jeane) sempre me
incentivaram a estudar, que eu deveria aproveitar todas as oportunidades.
Entristecia-me muito ouvir minha mãe falar que eu deveria aproveitar muito bem as
oportunidades, algo que ela não teve. Dessa forma, prossegui determinada a não passar por
todos os transtornos porque passara minha mãe. E surgia uma constante indagação: o que
fazer para não perder o futuro de vista?
Em 2000 iniciei uma nova fase da minha caminhada. Aos 14 anos deixei a vida do
interior para residir na capital (local onde resido atualmente). No primeiro ano, morei com
uma tia, que convencera meu pai a pagar um colégio particular para mim. O grande sonho da
minha vida. Infelizmente o sonho só durou um ano, logo se iniciaram as brigas familiares
entre meus pais acarretando o meu retorno para o interior. Nessa época, eu já havia feito muitas
amizades que jamais esquecerei. Sabendo da minha situação, uma grande amiga-irmã, que
não posso eximir-me de citá-la: Rosa Cândida, me convidou a morar na casa dela. Consegui
uma bolsa de 70% de desconto no mesmo colégio onde ela estudava e passei a dar aulas a
crianças para conseguir cobrir os gastos. Para completar a minha alegria fui contemplada com
uma bolsa integral de pré-vestibular no mesmo colégio. Foi um período de muito cansaço,
pois eu estudava pela manhã, dava aula à tarde e à noite ia para o pré-vestibular, sempre
contando com a força da minha mãe e o apoio da família de Rosa, que hoje é a minha segunda
família. Foi criando desafios, calculando riscos e avançando sempre que finquei a bandeira da
conquista e, nesse mesmo instante, comecei a buscar outros portos.
Depois de anos de muito esforço, muitos obstáculos, vários problemas de saúde e
muito estudo, consegui ser aprovada na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Isso me fez
sentir-me grande como o mar que é incansável, pois mesmo com os contratempos, sem uma
boa base de ensino e tentando vestibular pela primeira vez, consegui concretizar um grande
sonho. Sem falar, não posso negar, o sabor da vitória, principalmente o prazer de mostrar
para todos que desacreditaram do meu potencial que venci a batalha, são coisas que as
palavras são incapazes de descrever, expressar.
Universidade Federal do Sergipe
27
É, parecia que estava tudo perfeito, que seria um 2003 primoroso. Infelizmente não,
não há como se sentir alegre permanentemente. Dona Creuza (mãe da minha amiga) estava
pensando seriamente em ir embora para Brasília. E agora, onde ficar? Foi então que me
falaram sobre o Programa de Assistência Estudantil da UFS para estudantes de baixa renda,
oriundos do interior do Estado ou de outros Estados. Pronto, meu problema estava resolvido.
Passei a conviver com mais 7 meninas oriundas de diversos municípios do interior, por sinal
uma ótima convivência. Somos muito companheiras, uma verdadeira família.
Hoje, minha mãe, está separada do meu padrasto, convivendo com a minha vó Lai e o
meu irmão, e eu estou na UFS. Muitas vezes me pego pensando como consegui chegar até
aqui e mais, como a história de vários amigos não teve a mesma trajetória que a minha.
Pessoas, que como eu, também precisavam muito de um ensino superior gratuito e de
qualidade e que hoje, para tentarem garantir um futuro um pouco melhor, estão sofrendo
duras penas para se manterem em universidades particulares e outros que sequer conseguiram
concluir o ensino médio.
A universidade me abriu caminhos. Foi através da instituição que pude conhecer e
desfrutar da companhia de várias pessoas que a partir de então, fizeram e fazem parte dos
meus caminhos. Que me deram oportunidade de expandir meus conhecimentos através de
bolsas integrais nos cursos de Espanhol e Formação em Psicologia e Psicoterapia
Transpessoal. E jamais poderia deixar de citar a grandiosa oportunidade de fazer parte do
Programa Conexões de Saberes que nos permite nortear as reflexões no campo das
representações sociais, da educação e do ser cidadão.
Um sentimento de intensa gratidão me enternece. A Deus pela concessão da minha
existência. A minha mãe pela acolhida nessa vida, proporcionando-me dar encaminhamento
à verdadeira tarefa de vida que é o despertar da minha consciência; sem ela nada disso seria
possível; a ela, meus profundos agradecimentos. Aos meus queridos irmãos, Ramon,
(carinhosamente Lindinho) Murilo e minha irmã Beatriz. Sinto-me grata a todas as pessoas
da minha família, amigas (em especial Rosinha, Helenilza e Liene) e companheiras de
residência; aos professores, meus avós (em particular Alaídes), minhas madrinhas Maria e
Natércia, meus irmãos, aos meus colegas do Conexões e coordenadoras que estão
participando ativamente do meu processo de desenvolvimento pessoal e profissional, a
Bruno e Flora (meus terapeutas que sempre souberam dar um posicionamento imparcial
diante dos meus questionamentos, com profundidade e sabedoria, estimulando-me a
prosseguir), enfim, a todos que fizeram e continuam fazendo parte da minha caminhada.
Resolvi contar alguns trechos da minha história inspirada no que muita gente contou
por aí. E muitos não me conhecem de verdade, nem a minha história. Agora, dá para ter uma
base do por que eu precisei jogar a adolescência fora. Para o bem geral.
Hoje em dia, não me arrependo de ter deixado as brincadeiras de roda de lado para me
dedicar exclusivamente aos estudos ou para segurar a onda da minha mãe, para cuidar do
Ramon. Porque tudo isso me fez o que eu sou hoje, isso me fez mais forte, mais mulher e
mais grata pela vida.
Porque a vida é para ser vivida. Viva e deixe viver.
Faça o melhor de si todo dia.
Pense sempre no bem geral.
Viva com um sorriso no rosto. E vença os leões todos os dias.
Om tare tuttare ture so ha…
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Caminhadas de universitários de origem popular
Toda essa caminhada me fez pensar na minha própria vida e viver meu pensamento,
me libertei de várias ilusões e esperanças tolas e tudo isso me ensinou a amar mais a vida do
que a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança.
Universidade Federal do Sergipe
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Um dia inesquecível
Carla Vanessa Santos Andrade *
“O real eu atinjo através do sonho. Eu te
invento, realidade.”
Clarice Lispetor
“Eu escrevo sem esperanças de que o que
escrevo altere qualquer coisa, não altera
nada, porque no fundo a gente não está
querendo alterar as coisas, a gente está
querendo desabrochar de um modo ou de
outro.”
Clarice Lispector
Pensei infinitas vezes como iria começar esse texto; falar sobre minha vida não é
tarefa fácil. Que momento! Iguais lembranças precisam ser retiradas das prateleiras do passado
e surgir com toda força, de repente, para mostrar como fui e como sou, desvelando o meu ser!
Difícil. Não sei se seria fiel a todos os fatos, lembranças se perderam ao longo dos
anos, outras ficaram guardadas como uma fotografia nas páginas da memória, não estou
certa que quero trazê-los à tona, talvez eu queira, há uma miscelânea de sentimentos que
afligem meu coração nesse momento...
Sempre fui uma pessoa de riso fácil, otimista e cheia de sonhos, nunca tive grandes
momentos, no entanto, os poucos foram vividos com intensidade e emoção. Destes, posso
dizer um que trago bem vivo dentro de mim: o dia em que passei no vestibular 2004 da UFS,
para cursar Letras Vernáculas. Foi um dia de alegria incomensurável, numa manhã “gris” de
Janeiro todos os receios, ânsias e aflição foram dissipados, prevaleceram as lágrimas de
felicidade da minha mãe, o sorriso e as batidas aceleradas do meu coração, foi um momento
único (diria mágico), porque era a realização de um sonho.
Não sei quando decidi cursar uma universidade, mas desde muito cedo sabia que
queria ter uma profissão que realmente amasse, acredito ter sido pelo fato de minha mãe
sempre colocar para minhas irmãs e para mim, que o estudo vinha em primeiro lugar e apesar
*
Graduanda em Letras Português.
30
Caminhadas de universitários de origem popular
de ter estudado todo o ensino fundamental e médio em escola pública e sofrido os percalços
que ela possui, nunca tiraram-me o prazer de estudar e conseguir mudar a minha vida
através dele.
É curioso, agora, quando relembro aquela manhã: imagens soltas passam pela minha
cabeça, como um “trailer” de um filme. Lembro de como foi difícil chegar até ali e talvez
por essa razão tenha sido tão marcante. A concretude daquele sonho foi um misto de alegria
e alívio, claro, o caminho da estrada só estaria começando, no entanto, eu já estava nele,
isso é que era o importante.
O ano que antecedeu minha entrada na universidade tinha sido muito difícil, seria a
terceira vez que eu iria fazer vestibular, já estava cansada, parecia que nunca iria passar...
entrei em um curso pré-vestibular por causa de uma amiga de minha irmã, que deu a idéia de
fazer “cursinho” no mesmo lugar onde ela estava fazendo.
Foram dias ininterruptos de estudos; como eu não trabalhava, passava quase o dia
inteiro estudando (e as madrugadas também), comecei a estudar tanto que às vezes chegava
a sonhar com os assuntos, as aulas e até com a prova!
Aquele ano também foi incomum para minha família, todos mudaram sua rotina em
minha função, houve uma comoção geral, era como se estivéssemos interligados em um só
pensamento, mas sem cobrança, pressão, todos tinham decidido simplesmente sonhar o
meu sonho e nada mais; sentia-me tão protegida por aqueles olhares de carinho e confiança
que eu pressentia quase sem perceber, vou conseguir...
O ápice de todo aquele esforço deu-se com o meu nome na lista dos aprovados; foi um
grande dia aquele, não houve espaço para tristeza, receio do porvir, sentia-me leve,
transbordando alegria, estava nas nuvens (pode parecer piegas, mas foi assim)!
Hoje estou no último ano da universidade e essas reminiscências ainda pulsam
intensamente dentro do meu ser. Vivi e vivo a UFS como se fosse o primeiro dia de aula. Na
academia fiz grandes amigos, conheci verdadeiros mestres, encontro muito saber e
obstáculos; muitas vezes fiquei irritada com o sistema, desinteressei-me, voltei a me interessar
dois dias depois, pois sei que sonhos são assim, difíceis de serem realizados.
Em 2006 fui selecionada e entrei no projeto Conexões de Saberes que me levou para
uma nova etapa de minha vida universitária. No projeto, integrei o pólo do pré-vestibular e
comecei a lecionar Literatura, isso foi de fundamental importância, porque vi que realmente
tinha escolhido o curso certo, embora o ofício de ensinar seja árduo e cheio de empecilhos.
Todavia, nem pensei nisso quando entrei pela primeira vez na sala de aula e vi aqueles
olhares ansiosos e cheios de esperança; transportei-me para três anos atrás e vi-me refletida
em cada um deles, só que agora os papéis tinham se invertido, foi incrível poder viver
aquele momento. Descobri então que todo esforço valeu a pena, porque “tudo vale a pena
quando a alma não é pequena”. Acredito que posso fazer a diferença porque agora trago
dentro de mim, mais concreto e vivo o sentimento de transformação e sobretudo “sonhos”
(muitos) a serem conquistados!
Universidade Federal do Sergipe
31
Caminhada:
caminhar sem olhar para trás
Catia Matias dos Santos *
Minha vida! Difícil de falar tantos obstáculos, amarguras, mas em fim tudo ou quase
tudo está bem. Gostaria de registrá-la a partir do acontecimento que mais me marcou. Pois
é quando eu era criança, lembro com pouca nitidez, gostava muito de brincar no terreiro de
uma casa de barro, lá no Adique num povoado de Malhador-SE. Era lá que eu morava
juntamente com meus irmãos e meus pais. Nós éramos muito felizes, até que um dia minha
mãe decidiu se separar do meu pai, para nós, mais precisamente para mim, já que eu era a
filha mais velha, com apenas 8 anos de idade, foi muito triste. Tive que escolher com quem
ficar, minha mãe foi embora, em busca de trabalho, minha irmã ficou com minha avó, meu
irmão e eu ficamos com o nosso pai, um homem de sentimentos belíssimos, tinha tudo para
se dá bem na vida, mas para ele ter o que comer era suficiente. Daí então, fomos morar em
outra casinha de barro agora um pouco mais distante. Meu pai alguns dias depois da separação
casou-se novamente, mesmo assim as vezes minha mãe vinha me visitar. Eu lembro que ela
ficava na casa de um tio meu, e mandava alguém me chamar, eu saía feito louca correndo
pela piçarra ao seu encontro. Depois de um tempo não lembro se foram anos, eu fiquei muito
doente, era catapora, meu pai, homem sofredor, não sabia mais o que fazer comigo e me
mandou para a casa da minha avó, então minha mãe voltou para cuidar de mim. A partir daí
nada fazia mais sentido, meu coração de criança foi endurecendo, sensibilidade já não sabia
mais o que era isso. Tornei-me uma criança rebelde, revoltada com tudo e com todos, na
escola uma aluna problema, uma aluna que trazia debaixo do braço um caderninho de 48
folhas enrolado em um lápis na mão, piadinha a ouvir muitas as quais sempre reagi de forma
agressiva. Nessa época, mainha trabalhava em três casas como doméstica e eu com apenas
9 à 10 anos fazia favores para a vizinhança para ganhar um trocado. Durante o meu primeiro
ano na escola da cidade, Escola Municipal José Joaquim Pacheco, criei uma certa aversão
à escola, lugar cheio de regras as quais eu era obrigada a me adaptar, na terceira série
reprovei e mudei de escola. Na quarta série tive uma professora muito compreensiva,
Alessandra era o nome dela, não sei dizer exatamente o que aconteceu comigo mas comecei
a criar gosto pelo estudo, ainda muito pouco mas o suficiente para passar de série. Devido
a necessidade comecei a trabalhar como doméstica com 12 anos. Trabalhava de manhã e
estudava a tarde, até então estudar para mim estava num segundo ou terceiro plano, porque
as necessidades básicas não tinham sido supridas, durante muitos anos na minha casa tivemos
*
Graduanda em Pedagogia Licenciatura.
32
Caminhadas de universitários de origem popular
um prato principal, pirão de água com pimenta do reino e ovos, e agradecíamos muito por
ter o que comer. No ensino médio minhas amigas às vezes falavam de curso universitário e
eu ficava calada, a verdade é que não sabia do que se tratava, só pensava que não poderia
fazer, já que não tinha condições financeiras. Não tinha no meu município ensino médio
regular, no 1º e 2º ano estudei no SOMEM, um projeto que ofertava um ensino médio por
módulos. Este contava com uma equipe de professores exemplar. Foi aí que comecei a me
dedicar ao estudo ainda não tinha um objetivo claro, mas tinha esperança de melhorar de
vida. Então comecei a estudar bastante, parei de fazer fachina e comecei a ensinar banca, no
começo sem fins lucrativos. Concluí o ensino médio e fiz vestibular para “Letras Português”,
escolhi este curso por identificação com a disciplina. A verdade é que eu me identificava
mesmo era com a forma que a disciplina era lecionada pela minha professora no ensino
médio, então, uni a admiração com o gosto pela literatura, e fiz a escola, minha mãe conseguiu
o dinheiro para pagar a taxa, sem confiar muito no investimento, mas enfim, fiz a prova e
infelizmente não passei.
As coisas começaram a ficar difíceis para mim, mas em contrapartida passei a acreditar
mais na possibilidade de passar no vestibular da UFSE. Pensei em fazer um pré-vestibular,
mas só tinha em Itabaiana e se eu não tinha nem o dinheiro da taxa como poderia pagar
passagens para freqüentar o mesmo. Uma colega se encontrava na mesma situação e eu um
certo dia a chamei para montarmos uma escolinha de reforço escolar, pois é esse negócio
deu certo, nós conquistamos 22 alunos, R$ 10,00 por pessoa, para uma pessoa do interior
isso é muito, ou suficiente no nosso caso para fazermos um cursinho de final de semana,
gratuito obviamente, o dinheiro adquirido serviu para livros, e pagar passagens. Tudo foi
dando certo para mim, fui isenta de taxa do vestibular, comecei a ter contato com a educação
de Jovens e Adultos, e praticamente no mês a inscrição decidi prestar vestibular para
pedagogia, e passei. Fiquei muito feliz, talvez as pessoas que estavam ao meu redor tenham
ficado muito mais, pois demorou a cair a ficha, minha mãe falava para todos a novidade,
mas ela não compreendia a importância do mesmo para mim. Já trabalhando com
alfabetização de Jovens e Adultos, recebi dos meus familiares, namorado (e família), dos
meus alunos e colegas muita força. Eu ia e vinha todos os dias de Aracaju, para ensinar em
Malhador. O que recebia era para pagar as passagens, mas Deus abriu muitas portas para
minha mãe, e ela vendendo frango em feira livre, percebeu o meu esforço passou a acreditar
em mim, e passamos nós duas a construírmos o meu sonho, o nosso sonho. Nos intervalos
dos contratos do meu trabalho eu vinha para a UFS de manhã trazia uma marmita, e biscoitos
e só voltava pra casa no carro dos estudantes às 23h. Quando não suportei mais o cansaço,
fui aconselhada a pedir residência universitária e assim o fiz, vim morar em Aracaju, e pela
primeira vez tive uma oportunidade de trabalho na UFS, no programa Conexões de Saberes.
Quero dizer que para chegar aqui não foi fácil, trabalhei de doméstica, professora de banca,
professora de EJA, costurei, bordei, negociei. Mas nem por isso desisti, no fundo nunca
perdi a esperança.
Sonhar é preciso, mas só a ação concretizará seus sonhos.
Universidade Federal do Sergipe
33
Travessias:
da cegueira momentânea à noite da liberdade
Dilma Ramos Lira *
Amar é conceder liberdade ao objeto de
seu Amor
Permitindo que ele voe e retorne para os
seus braços
E não prendendo-o em uma gaiola
dourada
Achando erroneamente que irá com isso
protegê-lo do mundo...
E quem irá protegê-lo do mundo...
E quem irá protegê-lo de si mesmo,
Do Universo desconhecido que habita
em seu íntimo?
Lembre-se de que você pode ajudá-lo a
dar os primeiros passos
Mas nunca poderá segurar as rédeas do
seu destino...
Dilma - Noite da Liberdade
Não é muito fácil contar a nossa própria história... é mais cômodo fantasiar amores
proibidos, discutir sobre política, liberdade de expressão, protestar contra os preconceitos
sociais que recaem sobre as mulheres... o mais engraçado é que já tentei contar a minha
história de tantas formas e agora que realmente preciso falar sobre mim, NÃO SEI POR
ONDE COMEÇAR...
Sempre sonhei em ser escritora, publicar livros, romances, poesias, prender a
atenção dos meus leitores como se eles estivessem conversando comigo e, para isso,
tive que criar uma personagem, de personalidade forte, que pudesse falar dos mais
diversos assuntos sem se constranger: daí nasceu a Diva... não dava para ser escritora
usando o meu próprio nome: Dilma. Tentei usar o meu apelido, Dinda, mas soava
muito infantil...
*
Graduanda em Artes Visuais.
34
Caminhadas de universitários de origem popular
Graças a Deus, fui uma criança esperada com muito carinho, o que me rendeu o
apelido de “a desejada”, dado por minha avó que era louca por mim. Lamento que ela
não esteja aqui, para compartilhar a minha nova vida de dona-de-casa, estudante
universitária e estagiária.
Nasci em Ilhéus-BA, na manhã do dia 05/01/1980. Meu pai era militar e foi transferido
para lá havia pouco tempo. O curioso é que quando minha mãe foi para a maternidade, o meu
pai estava de serviço no quartel e por isso ela foi levada para o hospital pelos nossos vizinhos,
que já estavam avisados no caso de alguma emergência. Ele havia tirado férias para aguardar
o meu nascimento, mas como boa baiana, a preguiça falou mais alto e eu só resolvi nascer na
véspera do dia de Reis. Contam que mandaram celebrar uma missa em ação de graças por tudo
ter saído bem já que a minha mãe tinha mais de 40 anos quando eu nasci. Minha madrinha fez
até uma feijoada para comemorar a minha chegada com a vizinhança. E após o nascimento da
minha irmã, fomos para Recife até virmos morar em Aracaju.
Chegamos aqui em junho de 1986, em plena Copa do Mundo. O meu pai nunca
esqueceu esta data já que o Brasil foi eliminado após um pênalti perdido por Zico.
Desde a infância, sempre fui uma boa aluna, apesar de ser uma criança muito tímida.
Sempre estudei em escolas públicas apesar de poder ser considerada de uma família de
classe média. Logo após concluir o segundo grau, prestei vestibular de ousada e fiquei
como excedente para Jornalismo apesar de ter estudado sozinha, com um material que o
meu pai comprava em bancas de jornais. No ano seguinte, entrei em um pré-vestibular e fui
aprovada em 2° lugar para o curso de Arte-Educação que, posteriormente, viria a ser
reformulado, mudando o seu nome para Artes Visuais.
Na transição entre a minha adolescência e a fase adulta entrei em depressão. Foi a fase
mais difícil da minha vida, época na qual muitas vezes desejei morrer. Já passei por dores e
provações que muitos desconhecem já que me vêem sempre com um sorriso no rosto e um
olhar confiante, sempre incentivando a todos a correrem atrás dos seus sonhos... mas apesar
de tudo, havia uma luz dentro de mim que me guiava e que sempre me socorria nos momentos
mais difíceis. Fui muito humilhada, pisada, rejeitada, contudo, Deus me fez enxergar que a
minha vida poderia ser muito mais do que aquilo e que no meu egoísmo de olhar apenas
para mim, eu acabei magoando pessoas que me amavam muito e que sofriam com a minha
doença. Fico feliz por essas palavras, hoje não me doerem tanto... um dia, uma amiga me
falou que era preciso olhar para as minhas feridas para que elas cicatrizassem. No começo
foi muito difícil. Era como se eu enfiasse um punhal dentro de mim sempre que tocava em
certos assuntos. Depois, comecei a sentir apenas arranhões, semelhantes aos espinhos das
flores. E hoje já posso sentir o perfume das rosas... agradeço a Deus pelos meus grandes
amigos, que nunca me abandonaram, que sempre me apoiaram e que continuam me apoiando
em todos os momentos...
A minha vida mudou muito quando conheci uma certa pessoa... por ela larguei tudo
que eu conhecia e acreditava para viver uma grande história de amor... no começo tudo era
muito difícil e não tínhamos nem mesmo um lugar para vivermos juntos. Através de muita
luta, Deus foi nos mostrando os caminhos que deveríamos seguir, e hoje somos muito
felizes... sou muito apaixonada e grata à vida por ter conhecido o Meu Pequeno, a jóia mais
preciosa que Deus me deu, o meu amigo, o meu Amor, o meu eterno namorado, aquele com
quen eu divido as minhas alegrias e as minhas tristezas... não gosto nem de imaginar como
seria a minha vida sem ele...
Universidade Federal do Sergipe
35
Outra grande mudança na minha vida foi ter começado a trabalhar no Programa
Conexões dos Saberes. Nunca havia trabalhado e, a partir de uma situação de desespero,
encontrei a oportunidade de me inserir no mercado de trabalho de uma forma bastante
proveitosa, já que para muitos bolsistas como eu, esse projeto foi como um grito de liberdade,
nos ajudando a dar os primeiros passos em direção a um futuro que espero seja promissor
para todos nós.
Sou casada ha três anos e já passamos por muitos constrangimentos morando em casas
alugadas. Certa vez, mudamos para uma casa com os fundos para a maré, praticamente sem
quintal. Dávamos bom-dia para os caranguejos, enquanto rezávamos para que não chovesse,
já que entrava água para todos os lados. O cano da pia de cozinha tinha que ser retirado
quando queríamos lavar roupa, pois apesar de termos um tanquinho, não tínhamos instalação
para ele e a casa nem possuía uma lavanderia onde eu pudesse lavar as nossas roupas.
Estávamos cheios de dívidas que fomos saldando com muito sacrifício, até que eu decidi
que deveria trabalhar fora para ajudar o meu marido, que estava se acabando no trabalho de
vigilante e de garçom. Sempre fiz tudo o que pude para ajudar, economizando o máximo
que podia, mas chegou uma hora em que tive que partir pra luta.
Comecei a procurar estágios pela universidade, mas sem sucesso, até que uma colega
me avisou da inscrição na véspera do último dia para a entrega dos documentos. Para
conseguir reunir todos os papéis, contei com a ajuda do meu pai e do meu marido que
providenciaram tudo. Fiz a inscrição bastante ansiosa e cheia de expectativas. Tive uma
grande alegria quando soube que fui selecionada e que poderia colaborar com o orçamento em
casa. Além disso, me senti útil em ter uma ocupação, pois, por mais que faça, uma dona-de-casa
nunca é valorizada por tudo que faz. Eu me sentia muito vazia e triste com essa situação e
hoje me sinto mais livre para opinar sobre orçamento doméstico, além de ser vista de uma
forma diferente já que trabalho fora. Sempre quis ser uma mulher independente mas não
achava os meios para tal.
Me inscrevi para dar aulas no pré-vestibular, contudo, fui selecionada para outra área,
o que me decepcionou um pouco. No entanto, fui muito bem acolhida no pré-vestibular do
CODAP, pelos coordenadores D. Fátima e pelo professor Genivaldo, pessoas muito especiais
com as quais aprendi, entre outras coisas, que é possível trabalhar com competência sem
perder o bom humor, num clima leve de muito trabalho e descontração. Trabalho ainda com
as minhas companheiras Fátima e Sara, estagiárias muito dedicadas, que tornam o clima
muito alegre e divertido... sei que um dia sentirei muita saudade delas, porque trabalhamos
em grupo, sempre unidas e nunca tentando puxar o tapete umas das outras, tentando atender
os alunos e os professores da melhor forma possível.
Agora, finalmente, surgiu a oportunidade de dar aulas de Literatura em breve, o que
me deixa muito ansiosa, pois sempre sonhei com isso. Não acredito que isso está se
realizando, porque sou estudante de Artes Visuais, conheço todos os preconceitos que rondam
a minha área, e muitos acreditam que os artistas são meros artesãos, completamente alienados
e sem nenhuma cultura ou conhecimento específico. Essa é uma luta pessoal e diária:
provar que os arte-educadores são capazes de trabalhar integrados às mais diversas áreas do
conhecimento, sem serem humilhados e subestimados nas suas capacidades intelectuais.
Quanto ao projeto, aprendi o valor de se trabalhar em grupo, respeitando a
individualidade de cada um, contribuindo para que mais jovens de origens populares possam
se sentir contemplados com o acesso a uma educação pública e de qualidade.
36
Caminhadas de universitários de origem popular
Acho muito importante o caráter de inclusão presente no Conexões, que atua como
uma política pública com o caráter de tentar promover mudanças. E aproveitando a
oportunidade, gostaria de terminar a minha apresentação com outro texto meu que fala
sobre a educação, demonstrando que devemos estar cientes de que, para que as transformações
aconteçam, é necessário o empenho pessoal de cada membro integrante desse processo, não
bastando apenas colocar a culpa no governo quando algo não vai bem.
Numa terra de analfabetos,
quem sabe ler é rei...
Idéias geniais,
Somos filósofos e pensadores
Achando que poderemos mudar o mundo
Com nossas teses de doutorado...
Mera ilusão,
Suntuosa utopia,
Como poderemos mudar a nação,
Se não oferecemos nem o básico para a educação?
Somos ideólogos geniais,
Sociólogos importantes,
Como poderemos conhecer o povo
Se estamos tão distantes
Da realidade que atormenta e mata os nossos sonhos
A cada emenda da Constituição?
Vamos celebrar a alegria
De ver “TODA CRIANÇA NA ESCOLA”
Mas não como agora,
Sem estrutura e alimentação...
Vamos preservar os nossos velhos
Que não têm culpa da sabedoria
Que adquiriram com o passar dos anos
Será mesmo o Brasil “O PAÍS DO FUTURO”?
E que futuro?
Como poderemos julgar o mundo
Se não temos uma medida para nós mesmos?
É fácil culpar o governo,
Fechando os olhos às nossas responsabilidades
Que não são poucas e nem dispensáveis
Somos os únicos responsáveis
Pela vida que nós vamos ter...
Universidade Federal do Sergipe
37
Ainda há tempo de rever o passado
Tendo os olhos no futuro
Observando o que conta a história,
Evitando que os mesmos erros
Voltem a acontecer...
Diva Ariadna
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Caminhadas de universitários de origem popular
Assim eu vim ao mundo
Elizangela Nunes de Souza *
Eu nasci na Bahia, na zona rural do pequeno e jovem município sertanejo de Fátima.
Fui a décima oitava vida que meus pais colocaram no mundo. Minha mãe, não queria mais
filhos, mas eu vim. Aos quarenta e um anos, ela já não recebia com alegria os comemorativos
de mais uma gestação. Cansada de tantas outras, dezessete gravides; aquela, que seria a
última, trouxe-lhe muita tristeza. Pensou em impedir, mas minha avó materna logo tratou de
aconselhá-la: ora, minha filha, este pode ser um filho que irá te dar muitas alegrias. Minha
mãe me contou isto quando estava com sete ou oito anos de idade. Ela disse que teve
depressão, chorava muito, teve uma gestação doentia, tanto que, crendo que morreria no
parto, me prometeu a uma vizinha a quem chamo de tia, tia Dalena.
Tudo isso teve um impacto muito forte em minha vida: entrei em crise, tipo aquelas de
filhos adotados que se sentem rejeitados pelos pais verdadeiros. Foi assim que me senti,
rejeitada. Podia não ter vindo ao mundo... minha mãe não me queria... contudo, como disse,
foi uma crise, e como tal foi passageira. Hoje, entendo, perfeitamente, o contexto no qual
nasci e as dificuldades pelas qual minha mãe passou naquela época. Embora acredite que de
certa forma eu sinto essa rejeição, ficou como um marco nos relacionamentos de hoje, fico
sempre me questionando quanto à aceitação de uma nova amizade. E isto a Psicologia do
Desenvolvimento explica como uma possível contribuição do período intra-uterino para a
formação da personalidade do indivíduo.
Ah! Desculpe-me, caro leitor, por não ter me apresentado. Se já não o fiz, o faço
agora. Meu nome é Elizangela Nunes de Souza, tenho 24 anos e sou gente desde sete de
agosto de mil novecentos e oitenta de dois. Filha do amor de Maria Nunes de Souza e
Joaquim Calixto de Souza que, há muito tempo, já não são mais amores, mas marido e
mulher. Minha mãe, uma Maria, assim como tantas nordestinas, uma Maria Guerreira,
agricultora e dona-de-casa. Festejou dezoito gestações, ou nem todas, algumas sim
outras não. Viu onze filhos não vingarem, se foram entre abortos – acredito que devido
às atividades extenuantes e às preocupações – viu filho morrer do mal de sete dias,
viu filho morrer com meses de vida. Hoje, sabemos que o tal mal era o tétano que
acometia o recém-nascido devido, principalmente, ao uso de materiais cortantes, sem
condições nenhuma de assepsia, para seccionar o cordão umbilical. Por sorte, esse risco
eu não corri, pois nasci no hospital da cidade de Cícero Dantas, a única em casa a ter
esse privilégio.
*
Graduanda em Enfermagem.
Universidade Federal do Sergipe
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Meu pai, para não ser ríspida, gostaria de não mencioná-lo. Mas ele não merece ser
citado. Desculpe-me, amigo, pela dureza das palavras. Se quiser tem licença para interromper
a leitura, passe para outro capítulo, ou mesmo, se tiver muito chato, prossiga à leitura de
outro conexista. Olha! Ficou, né! Eu quase sabia que iria continuar. Se você é filho ou filha
de um homem, um cara pobre ou não tão pobre, mas que é alcoólatra e mulherengo, me
entenderá. Agricultor, plantador de feijão, milho, mandioca e, por algum tempo fumo;
marchante e bodegueiro. Não seríamos tão pobres se ele fosse um homem de bem. Mas, não.
Ele era o cara que ia para a feira na cidade e por lá ficava dois, três, quatro dias esbanjando
o dinheiro da safra. E o que teríamos com fartura da nossa roça acabava antes do outro
inverno; aí ia minha mãe pedir emprestado na casa dos vizinhos.
Não menos pior, era violento. Quando chegava a casa bêbado, gritava e insultava
minha mãe. As noites de paz eram interrompidas quando ele chegava. Eu e meus irmãos
chorávamos apavorados e como que compartilhando a dor de minha mãe, os vizinhos, por
vezes, se assustavam e nós, por vezes, éramos obrigados a fugir de casa e dormir no mato.
A escola em casa
Meus pais não estudaram em escola regular, porém, aprenderam a ler e a escrever. Meu pai
era do tipo que dizia que o estudo não levava a lugar algum, já minha mãe fez o possível e não
possível para que seus filhos pudessem estudar. Dos sete irmãos que vingaram, um não estudou
porque era doentio, tinha problemas de audição e de visão. Quatro freqüentaram a escola até a
quarta série. Outra, Rosângela, concluiu o ensino médio e eu tive a graça de chegar até o ensino
superior. Rosângela saiu de casa aos nove anos de idade para morar na cidade com uma prima.
Lá, minha irmã cuidava de três crianças e teve a oportunidade de estudar.
Eu também saí de casa, aos dez anos. Porém, peço a sua permissão o que aconteceu um
pouquinho antes. Ainda pequenina diziam que era uma garota esperta, entrei na escola aos
cinco anos. Estudei o “ABC”, a alfabetização e depois fui para a 1ª série do ensino
fundamental. Foi tudo muito difícil, não que não gostasse de ir para a escola, sempre tinha
alegria e um sorriso estampado no rosto. É que, na verdade, não tinha escola, durante muito
tempo a sala de aula foi a varanda da casa da professora. Carteiras? Só chegaram bem mais
tarde , no início era mesmo bumbum no chão. A nossa mestra a quem rendo minha homenagem
pela dedicação e amor ao magistério tinha um irmão com distúrbios psiquiátricos, por isso
era necessário prendê-lo num quartinho, pois ao contrário, ele rasgava os deveres e dava
mãozada em quem ficasse de bobeira, Zé Raimundo era o nome dele. Mas tudo isso não
impediu que nossa mestra continuasse na sua missão de dar aulas. Para estudarmos,
caminhávamos alguns quilômetros, contudo, não espere que lhes diga que a distância era
ruim, pois só tenho boas lembranças. Recordo-me da alegria do primeiro ano que acompanhei
meus irmãos mais velhos. Era uma festa... íamos todos juntos, estrada afora, eu meus irmãos,
meus primos e meus vizinhos, que em cada casa que passávamos surgiam mais e mais: dois
numa casa, três em outra, quatro em outra e, desse modo, o grupo crescia. Aumentavam
também a algazarra, as brincadeiras e os corajosos que, pela estrada e arredores, roubavam
frutas típicas, tais como; umbu, manga, goiaba, caju e a festa aumentava.
Na década de noventa, passamos para a escola recém-construída chamada de Dé Pereira,
um tradicional fazendeiro da região. O prédio era constituído de cozinha, dispensa, banheiros
e uma sala de aula na qual nossa mestra continuou lecionando do “ABC” à 4ª série do
ensino fundamental. Mas eu estava ali de passagem, saí antes do que imaginava. Aos dez
40
Caminhadas de universitários de origem popular
anos de idade, saí da minha casa para a qual nunca mais voltei. Apesar da tenra idade não
chorei, fato que causou admiração. Não encontrava motivo para tristeza, ao contrário, estava
feliz, estava realizando o sonho de continuar estudando, então, para que as lágrimas? Fui
morar com duas velhinhas, minhas tia Zefa e tia Freira, mas por vontade de tia Nazinha a
quem sou eternamente grata. O que sou e onde estou agradeço a ela que, desde cedo, me
incentivou com seus carinhosos elogios e votos de confiança.
Foi na casa de tia Zefa e tia Freira onde vivi a minha adolescência, dos 10 aos 18 anos
e estudei da 4ª série ao 3º ano do ensino médio. Delas, recebi a educação religiosa e dos
bons costumes. No primeiro ano, fui para o colégio municipal João de Souza Gouveia
porque minha irmã já tinha estudado lá. Tinha medo de não acompanhar o ritmo de estudos
por ter vindo de uma escola da roça, mas foi engano. Dediquei-me bastante e na terceira
unidade já estava passada.
No ano seguinte, fui para um Colégio Estadual, era o melhor colégio público da
cidade e também o mais difícil de ser aprovado. Não tive medo, fui e nunca reprovei, nem
tampouco fiquei em recuperação. Nas reuniões de pais sentia falta de minha mãe, no entanto,
era muito trabalhoso para ela ir à cidade só para esse fim, e não queria dar essa preocupação
a ela. Elide, a diretora, sempre cobrava a presença das outras mães, mas nunca da minha. Eu
queria ser cobrada, mas como sempre fui comportada, ela sempre dispensava minha mãe,
dizia que não era necessário.
Na 5ª série, tudo era novidade, colégio maior, novas matérias, muitas matérias... um
professor para cada, aula de inglês, tudo era diferente. Nesse ano a professora de matemática
era “carrasco”, mas consegui aprovação direta, sem ir para prova de recuperação. Fui
colocada na 5ª B, sala dos repetentes e bagunceiros; como era muito tímida, fiquei isolada
na sala. Para minha felicidade, a professora Lindete conseguiu transferência para a 5ª A.
Nesta turma, fiz amizades, duas das quais foram minhas colegas até o 3º ano e são até hoje
grandes amigas.
Passou a 6ª, a 7ª e finalmente, a 8ª porque tanto esperei. Foi, realmente, um ano
especial: o colégio foi reformado, ganhou sala de vídeo, uma quadra. Esta, na verdade,
era só o espaço depois da terraplanagem. Lá brincávamos de vôlei, futebol e “baleou”.
Era o último ano no Navarro de Brito, o melhor de todos. Montamos peça de teatro, no
fim do ano, foi a vez de encenarmos o nascimento de Cristo. Fiquei muito feliz porque
fui eu que montei a partir de uma bíblia de minha tia e ficou um encanto, tanto que
reapresentamos três vezes.
Saí do Navarro com grande pesar, queria continuar lá, mas não era possível, só tinha
ensino até a oitava série. Fui, então, para o Colégio Municipal, não gostei. A relação com os
professores e com os colegas era diferente, eles eram menos amorosos, mais distantes. O
ensino era mais precário. Enquanto no Navarro, na disciplina de Português, tinha lido
romance, visto análise sintática, regência, no Municipal, tenho a impressão de que só estudei
ortografia e classes de palavras nos três anos.
No 3º ano, comecei a trabalhar numa farmácia e pensava em fazer um curso técnico de
enfermagem. Não tinha noção do que era universidade. Apenas três colegas, que os pais
tinham melhores condições financeiras, falavam em morar em Salvador para continuar os
estudos. Passei a ter inveja, inveja de quem podia estudar. Pedia ajuda a Deus, pois sabia que
minha mãe jamais poderia me manter na capital. Minha esperança era alimentada por um
velhinho que sempre me dizia que todos têm uma oportunidade na vida e que eu teria a
Universidade Federal do Sergipe
41
minha. Depois que conversava com ele, chegava em casa e rezava pedindo a Deus a sabedoria
de reconhecer e a coragem de aproveitar a oportunidade quando ela chegasse. E assim eu
sonhava, sonhava... hoje, digo com convicção que os sonhos é que nos guiam, o sonho é
que nos faz buscar algo que não existe, algo que está além de nós, o sonho é algo que nos
alimenta e que nos dá força.
Terminei o ensino médio e continuei trabalhando, sem perspectiva de estudar mais.
Em fevereiro do ano seguinte, surgiram boatos que a prefeitura iria abrir uma casa de
estudante em Aracaju. Não pensei duas vezes, pedi demissão do trabalho, no outro dia já
estava na Secretaria de Educação, fui uma das primeiras a realizar inscrição. Minha mãe
acolheu a idéia de imediato pois sabia que era o meu sonho. Outras pessoas, colegas,
criticavam porque a casa iria abrigar homens e mulheres e não ficava bem para uma
menina de família morar com homens, “ficaria mal falada”. Isso me entristeceu, mas não
abalou minha decisão.
A Universidade pode ser uma realidade
Vim para Aracaju, onde ainda moro com mais onze pessoas num apartamento mantido
pela Prefeitura. Chegando aqui, matriculei-me num pré-vestibular e fui em busca de emprego.
No início queria trabalhar o dia inteiro, depois vi que, se assim o fizesse, não teria tempo
para estudar. Quando tive noção do extenso programa do vestibular, do qual estimo ter
estudado uns 5% no Colégio, resolvi não trabalhar. Decidi-me, logo, prestar vestibular para
Enfermagem, mesmo sabendo que era um curso muito concorrido. Me “atirei” nos livros e
apostilas, quando sentia sono ou cansaço, lembrava que iria concorrer por quarenta vagas
com quem sempre estudou em bons colégios particulares e que estavam vendo o assunto no
pré pela segunda vez, então eu tinha que compensar estudando ainda mais. Não saía para
lugar algum, nem à praia eu ia, só estudava. Aliás, ocupei todos os dias da semana, de
segunda a sexta-feira tinha aula, sábado era revisão e domingo entrei num curso particular
de matemática e física.
Fiz o primeiro vestibular, não passei, fiquei como vigésimo excedente. No ano seguinte,
entrei em outro cursinho e sabia que precisava estudar mais. Porque também era minha
última chance, se não passasse perderia o direito de permanecer na casa do estudante.
Embora existisse a “pressão psicológica” de ser aprovada naquele vestibular, foi um ano
agradável, o novo curso do pré me fazia lembrar do Navarro. Era uma Instituição pequena,
mas seu Ivan, o dono, era muito presente, conversava e incentivava muito os alunos. Saíamos
num grupo de cinco pessoas para o mesmo pré-vestibular, caminhávamos uns trinta minutos,
não íamos de ônibus para reduzir o gasto. Recebia ajuda de tia Freira, tia Nazinha e minha
mãe que me dava mais da metade do seu salário.
Chegar à Universidade
Que alegria! Que felicidade! Fui aprovada em 13º lugar, no curso de Enfermagem
bacharelado na Universidade Federal de Sergipe. Em casa, meus pais tiveram a desbotada
alegria de quem não sabe o que é passar no vestibular de uma Universidade Pública, foi
como se fosse da 6ª para 7ª ou outra qualquer. Na casa de tia Nazinha, foi o inverso, fui
parabenizada pelo enfermeiro da equipe, minha prima, Sonia, não economizando nos elogios,
dizia às amigas que eu tinha passado na Universidade Federal. Isso me orgulhava e me fazia
sentir recompensada pelos sacrifícios.
42
Caminhadas de universitários de origem popular
O primeiro semestre na Faculdade foi como estar vivendo um sonho, um conto de
fadas. Estudar Anatomia, os ossos com seus forames, sulcos e protuberâncias, os músculos e
os órgãos; ver no atlas e nas peças era um encanto. Contudo, em meio a tanta felicidade
existiam dificuldades, livros caros, muita xérox, transporte alimentação, as despesas só
aumentaram. Imaginava que, quando entrasse na Universidade, ia poder trabalhar, mas os
horários irregulares com aulas pela manhã e pela tarde não permitiam conseguir um emprego
no comércio nem no shopping. Pensei, então, que logo ia poder arrumar um estágio, mas
também as empresas de estágio requeriam 30 horas semanais o que complicava na
acomodação de horários. E assim eu fui vivendo entre uma dificuldade e outra na esperança
de conseguir alguma ocupação com remuneração. Foi nesse contexto que me escrevi no
Conexões de Saberes, pois poderia cumprir uma carga horária de 20 horas à noite. Quando
fui chamada, fiquei muito feliz porque ia poder deixar de pedir dinheiro a minha mãe que
tem como renda um salário-mínimo e ainda dividia comigo. Hoje, sei que a finalidade do
Programa é sim ajudar estudantes carentes a permanecerem no ensino superior através das
bolsas, mas entendo que vai muito além e que tem uma proposta mais ampla de inclusão
social nas Universidades Públicas do Brasil.
Universidade Federal do Sergipe
43
Diário de uma estudante
Emanoela Gonçalves Ramos *
Meu nome é Emanoela Gonçalves Ramos, nasci em 31 de março de 1985, na cidade de
Aracaju-Sergipe, nordeste brasileiro. Escrevo aqui relatos de minha história, uma história
de sonhos e esperança, coragem e trabalho, perdas e conquistas. Enfim, vou relatar os
caminhos por que passei para chegar até aqui; vou lhes contar a Minha Caminhada.
Sou a filha do meio de uma família de cinco integrantes, os quais fazem parte de
minha história assim como, faço parte da deles com quem você, leitor, vai se deparar no
desenrolar de minhas linhas. José (meu pai), Lena (minha mãe), Elaine (irmã mais velha) e
Katiuce (irmã mais nova). Essas são as pessoas mais importantes de minha vida e muito do
que sou devo a elas.
Meus pais sempre foram pessoas humildes e ambos cresceram trabalhando na roça.
Minha mãe nasceu no município de Lagarto-Sergipe e aos 11 anos veio com a família morar
na cidade de Aracaju; meu pai nasceu no sertão do Piauí e aos 23 anos vendeu quase tudo
que tinha para aventurar melhores condições de vida nessa mesma cidade. Foi aí que eles se
conheceram e casaram. Ele investiu todo dinheiro que havia trazido consigo para entrar
como sócio na construção de uma loja, que depois de alguns anos veio a falir e o que restou
disso foi uma pequena casa onde eles moraram. A situação financeira estava ruim, minha
mãe sem trabalho e grávida de Elaine, meu pai perdeu quase tudo que tinha e estava
trabalhando duro para sustentar a casa e foi nesse contexto que depois de um pouco mais de
dois anos eu nasci, com uma diferença, a situação financeira estava ainda pior, pois agora
eles tinham duas filhas para criar.
1º CAPÍTULO: as primeiras linhas de meu diário. Como tudo começou?
As primeiras lembranças que tenho de minha infância foram de quando eu tinha três
anos de idade. Estava começando a ir para a escola. Lembro que ia a pé, e que era longe.
Lembro também que tinha uma professora loura que parecia com a Xuxa e que eu me
divertia muito.
Minha mãe conta que naquela época, a escola pública que havia próximo a nossa casa
não era boa e que, por causa de seu antigo sonho de estudar e ter uma profissão, que
infelizmente ela não conseguiu realizá-lo. Queria muito que, um dia, alguma de nós
pudéssemos realizar o sonho dela. Procurou então outra instituição e matriculou primeiro
minha irmã Elaine e no ano seguinte a mim em uma escolinha particular simples no nosso
*
Graduanda em Física.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
bairro mesmo, só que a quase 2 km de distância de nossa casa. Percorríamos esse caminho a
pé todos os dias, ida e volta e o pior era a ida porque estudávamos à tarde e saíamos de casa
por volta de meio-dia. Apesar de todo sacrifício financeiro e físico que se enfrentava e das
risadas e deboches que minha mãe escutava de familiares e vizinhos por sermos pobres e
estudarmos em escola privada, ela nunca desistiu, e continuou acreditando e investindo em
nossa educação por vários anos. Lembro que quando meu sapato estava apertado e minha
mãe não podia comprar outro, eu ia de chinelo até à porta da escola e calçava o sapato só
para assistir à aula.
2º CAPÍTULO: mais dinheiro, menos atenção!
Passados cinco anos desde o meu nascimento, finalmente meu pai conseguiu montar
seu próprio negócio, abriu a frente de nossa casa, comprou um balcão, algumas mercadorias e
aos poucos montou uma pequena venda, pequena mesmo. Daí em diante, minha mãe já tinha
onde trabalhar. Ela passou a tocar a venda enquanto meu pai trabalhava fora o dia todo.
Eles trabalhavam muito e não tinham tempo para cuidar da gente, então cuidávamos
umas das outras. Eu e minha irmã Elaine já andávamos sozinhas até à escola e ajudávamos
no serviço doméstico. Passados dois anos, a situação financeira finalmente começou a
melhorar e meu pai já conseguia juntar algum dinheiro, o que ajudou bastante para que
continuássemos na escola, pois agora ele pagava mensalidade das três filhas.
Quando completei nove anos, viajei com toda minha família para a cidade natal de
meu pai no Piauí. Foi quando, finalmente, pude conhecer minha avó paterna e vários outros
parentes os quais nem sabia que existiam. Passamos pouco tempo lá, acho que menos de
uma semana, tínhamos que voltar logo, mas deu para conhecer bastante gente. Lembro que,
por causa do trabalho, meus pais nunca compareceram a nenhuma reunião ou evento do
colégio, mesmo quando eu chorava para que minha mãe me fosse ver dançar quadrilha ou
no dia das mães, ela nunca podia e as vezes que ela tentou ir sempre chegava tarde, quando
já tinha acabado quase tudo.
3º CAPÍTULO: a justiça tarda e falha!
Apesar de nossa condição financeira ter melhorado um pouco, ainda passávamos por
diversas dificuldades. Eu e minhas irmãs estávamos crescendo e as necessidades estavam
aumentando, inclusive a de ter uma casa maior e ampliar a venda, o que era primordial nos
planos de meu pai. Lembro-me de que, durante o fim da infância e toda a adolescência,
meus livros, fardas, mochilas etc, eram de segunda mão, porque como minha irmã mais
velha estudava uma série antes da minha eu sempre ficava com a maioria das coisas usadas
por ela, muitas vezes me sentia incomodada quando percebia que tudo meu era velho, eu
era pequena e talvez por isso não entendesse.
Em 1997, meu pai comprou um terreno grande, a fim de construir uma casa e um posto
comercial e com isso melhorar de vida. O que ele não sabia é que esse terreno nunca seria
nosso de verdade. Foi com as economias de vários anos de trabalho, os sonhos e a esperança
de uma vida melhor que meu pai entrou na maior roubada de sua vida. Comprou uma
propriedade que, sem ele saber, era ocupada por um parente do próprio vendedor. Pagou
todos os impostos, fez escritura, mas quando ia começar a construir a casa, uma surpresa, o
invasor não queria sair. Então, meu pai começou a gastar o dinheiro que iria usar na construção
de nossa casa para pagar advogados e conseguir resolver o problema com a ajuda da justiça.
Universidade Federal do Sergipe
45
Um ano se passou e não se resolveu nada, foi quando meu pai descobriu que o processo nunca
existiu e que por ingenuidade dele, o primeiro advogado desapareceu com seu dinheiro.
Então um segundo advogado foi contratado, dessa vez foi indicado por um conhecido.
Enquanto esse problema não se resolvia, nos mudamos para uma casa maior, alugada. Cinco
anos se passaram e acabamos perdendo a causa e todo o dinheiro investido, pois o invasor se
utilizou da ajuda de políticos para, de maneira absurda, conseguir se apossar do terreno. E lá
se foram todos os nossos planos, sonhos e promessas cultivados por tantos anos.
4º CAPÍTULO: minha vida em meu bairro
Depois de perder tudo que tínhamos, todos em minha casa só pensavam em conseguir
recuperar o que tinha perdido criando uma nova fonte de renda. Nós morávamos de aluguel,
em uma casa que tinha um ponto comercial na frente, onde meu pai montou uma mercearia.
Tentamos tudo. Minha mãe que já trabalhava na mercearia o dia todo, começou a fornecer
marmitas, passou a vender cosméticos, jóias, e vários outros tipos de artigos; meu pai passa
cada vez mais tempo no trabalho, eu e minhas irmãs também trabalhávamos em casa, tanto
fazendo o serviço doméstico quanto substituindo minha mãe em muitas atividades. Lembrome muito bem de minha rotina nessa época: acordava cedo, meu pai e minha mãe já estavam
trabalhando, tomava café da manhã, arrumava a casa e ia trabalhar na mercearia para substituir
minha mãe que logo cedo começava a cozinhar para fazer a entrega das marmitas meio-dia.
Eu sempre levava meus livros comigo, pois o único tempo que eu tinha para estudar durante
o dia era o intervalo entre um cliente e outro. Às vezes almoçava com meu pai, e geralmente
esse era meu único contato com ele durante todo o dia, porque ele saía muito cedo para
trabalhar e chegava tarde, quando eu já estava dormindo. À tarde eu freqüentava a escola e
quando chegava cansada por conta da distância que percorria a pé da escola para casa, não
tinha tempo para nada, jantava bem rápido e voltava para a mercearia, ia ajudar minha mãe
com os clientes até a hora de fechar, lá para as oito horas da noite. E quando tinha prova na
escola o resto da noite eu tirava para estudar.
Durante a noite, geralmente, ficávamos todas juntas na mercearia: eu, minhas irmãs e
minha mãe, pois meu pai chegava tarde do trabalho. A criminalidade em meu bairro era
crescente, e fomos assaltadas algumas vezes. Era terrível quando isso me acontecia: eu
ficava muito assustada, não podia ver nenhum movimento estranho que já pensava que era
uma arma apontada para mim, ficava apavorada. Mas não era só em minha casa que acontecia
esse tipo de coisa, em meu bairro tinha de tudo: tiroteio pela madrugada, furtos a qualquer
hora do dia, assassinatos, assaltos, tráfico de drogas e muitas famílias inocentes como a
minha convivendo com tudo isso.
Perdi contato com antigas amigas de infância que moravam na mesma rua que eu,
algumas engravidaram, outras casaram e pararam de estudar, já não havia mais tanta coisa
em comum entre nós.
5º CAPÍTULO: o quase seqüestro
Eu tinha quinze anos quando aconteceu.
Em uma noite normal como qualquer outra, pára um táxi em frente a nossa casa e desce
uma mulher com algumas sacolas na mão: ela entra na mercearia dizendo que o taxista a
expulsou porque ela não tinha o dinheiro para pagar. Comovida com a história minha mãe
ofereceu dinheiro para que ela pudesse voltar para casa; ela agradeceu e foi embora. Um mês
46
Caminhadas de universitários de origem popular
depois a mesma mulher aparece e pergunta se minha mãe ainda se lembra dela, agradece
pelo gesto de bondade, e diz que, por consideração, passaria a fazer compras em nossa casa.
Começou então a escolher, depois que terminou, sacou um cheque para pagar. Preocupada
com a validade do cheque, minha mãe disse que não aceitaria o pagamento em cheque,
então a mulher fala que está morando em uma casa na rua ao lado e pede para que minha mãe
chame uma de suas filhas para acompanhá-la até sua casa e pegar o valor. Minha mãe me
chama e pede para que eu ajude a mulher a levar as compras e trazer o dinheiro. Sem saber
de nada, vou. Andamos, andamos... e a mulher começou a me contar que era amiga de meus
pais de longa data e que da última vez que tinha me visto eu era bem pequena... andamos,
andamos... e finalmente paramos em frente a um galpão que estava fechado, daí a tal mulher
me disse que iria esperar ali sua irmã e seu cunhado que viriam de carro e estavam com o
dinheiro para pagar as compras. Foi quando eu percebi que ela estava bem nervosa e tentava
falar com alguém pelo celular. Olhei para meu relógio e vi que já estava quase na hora de me
arrumar para ir à escola, esperei uns dois minutos e não dava mais, se ficasse perderia um dia
inteiro de aula. Foi quando eu percebi que ela estava segurando 50 reais, achei estranho (se
ela está com dinheiro na mão por que quer que eu espere sua irmã?), peguei todas as sacolas
que estavam com ela e disse que não poderia ficar esperando porque tinha aula. Ela ainda
tentou me convencer, mas fui embora. No caminho para casa comecei a pensar em uma
desculpa para dizer a minha mãe, a fim de justificar por que eu havia tomado as compras
daquela mulher “amiga de meus pais”, quando um carro de polícia passou bem rápido por
mim, me assuntando. Olhei para minha casa preocupada, percebi que a polícia parou lá e
que tinham algumas pessoas. Fiquei preocupada e fui correndo. Só quando cheguei a casa
fui perceber que aquela mulher era uma farsa, nunca foi amiga de meus pais, era tudo
mentira. Minha mãe me abraçou chorando e agradecendo a Deus por eu estar bem. Foi uma
tentativa de seqüestro. Poucos meses depois, uma menina de nove anos foi seqüestrada, ela
morava na mesma rua que a nossa e foi levada por uma pessoa que se passou por uma amiga
de trabalho da mãe, a menina nunca foi encontrada.
6º CAPÍTULO: ingresso na universidade
Em 1999, quando estava cursando a oitava série do ensino fundamental, a Universidade
Federal de Sergipe (UFS) adota o PSS (processo seletivo seriado), e a idéia de fazer um
vestibular que parecia tão distante começa a ficar muito próxima, pois, no ano seguinte,
faria minha primeira prova referente ao primeiro ano. Apesar de ser uma boa aluna e nunca
ter reprovado ou ficado de recuperação, minha colocação no PSS do 1º ano não correspondeu
as minhas expectativas, mas era tudo tão novo e eu confesso que não entendia muito bem
como funcionava essa nova prova. Fiz o PSS referente ao 2º ano, no ano seguinte percebi
que minhas maiores pontuações eram nas provas de Geografia. Essa observação foi o que
me levou a escolher o curso de Geografia, apesar de gostar muito mais das matérias de
Exatas. Então, no ano de 2002 fiz o PSS do 3º ano para Geografia. Fui pré-classificada, mas
não passei, fiquei como excedente.
Já tinha terminado o ensino médio, não passei na UFS, e agora?
Em maio de 2003, fui ao cursinho com minha irmã Elaine, o mesmo em que ela havia
estudado e ela conseguiu um desconto para mim. Estudei de maio a janeiro e, em 2004,
consegui passar para o curso de Física na UFS. Foi uma vitória.
Universidade Federal do Sergipe
47
7º CAPÍTULO: permanência na universidade
Quando ingressei na universidade, imaginei que seria como nos tempos de escola,
que eu dava conta do trabalho em casa e dos estudos e fiquei tranqüila, mas não demorou
muito e percebi que ia ter que estudar muito mais do que imaginava. Percebi que talvez a
escola em que eu estudei não tivesse me proporcionado uma base firme e então comecei a
correr atrás do prejuízo. Estudava muito e assim conseguia passar em todas as matérias. O
tempo foi passando e a falta de livros começou a atrapalhar meu desempenho, não dispunha
de dinheiro para comprar livros, que geralmente eram caros, a biblioteca da universidade
praticamente não supria as necessidades, mas conheci alguns amigos que sempre me
ajudavam e eu corria atrás de livro, de xérox, de tudo.
Comecei a trabalhar em uma agência de eventos, e ganhava um dinheirinho sempre
que surgia algum evento, geralmente nos finais de semanas. Logo depois, fui convidada
para trabalhar em outra agência, de eventos. Trabalhava para as duas agências estudava e
ajudava no trabalho em casa.
No final do segundo período da universidade, aconteceram dois fatos que
influenciaram drasticamente a minha vida como estudante. Minha mãe adoeceu e ficou
sem possibilidade de trabalhar, passou uns três meses sem poder levantar da cama. E
minha melhor amiga da universidade decidiu desistir do curso e trancou a matrícula. Daí
em diante, o que era difícil passou a ficar impossível. Eu e minhas irmãs tivemos que nos
organizar, para nos ocuparmos de todo o trabalho e das atividades que minha mãe
desempenhava. Tinha que acordar bem cedo, fazer comida, alimentar minha mãe doente,
trabalhar na mercearia, lavar roupa, era muita coisa!
Entrei no terceiro período e a situação estava ficando insustentável, já não tinha mais
tempo para estudar e minha amiga da universidade, que sempre me ajudou, conseguindo
livros, tirando xérox e me passando as aulas que eu perdia, tinha abandonado o curso e eu
fiquei sozinha no momento em que eu mais precisava de uma pessoa igual a ela.
Meu pai abandonou o trabalho dele e veio trabalhar em nossa casa tocando a mercearia
no lugar de minha mãe. A situação financeira estava difícil, os remédios, as consultas e os
exames que minha mãe tinha que fazer só pioravam a situação.
Meus contratos nas agências de eventos ficaram mais constantes e alguns duravam
uma ou duas semanas em turno integral, fazendo com que eu passasse semanas sem ir para
a UFS. Então aconteceu o inevitável, reprovei em duas matérias.
Todos esses acontecimentos tornaram minha permanência na UFS muito difícil: passei
a ficar desgostosa com minha vida acadêmica, cheguei a pensar em desistir do curso.
O tempo passou e minha mãe voltou a andar, conquistei novos amigos e decidi
recomeçar. Depois disso, fiz um ótimo período, tirei as melhores notas, aumentei minha
média e consegui uma vaga como bolsista no Projeto Conexões de Saberes, que tem me
ajudado a seguir em frente, me oferecendo sabedoria e oportunidade.
48
Caminhadas de universitários de origem popular
Uma vida (e) uma lição
Erika Janaina Rolemberg Silveira *
Eu nunca fui cordelista
Mas resolvi arriscar
Pra contar a minha vida
Sem fazer ninguém chorar
Não que ela seja triste
Mas é de emocionar
Desde que meu pai José
Embora resolveu ir
Na minha vida ficou
Um tanto difícil rir
Mainha deu pra beber
Pra toda noite sair
É uma pena que os pais
Queiram eles separar
Não se lembram que farão
Suas crianças chorar
Não lembram que é difícil
Quando querem se casar
Desde muito pequenina
Sempre gostei de estudar
Mas o ânimo faltava
Sem meu pai pra ensinar
Com mainha mal humorada
Meu irmão a me gozar
*
Graduanda em Letras-português.
Universidade Federal do Sergipe
49
Mãe sempre brigou comigo
Por causa desse safado
Me provocava baixinho
Nunca ele era culpado
Ela então me agredia
Por causa do desleixado
Até hoje é meio assim
Ele muito ocioso
Se alguém fala mal dele
Sua mãe vem com nervoso
Pedindo pra não falar
De seu filho preguiçoso
Depois de ter uma filha
Ele quase não mudou
Faz bico aqui acolá
Mas ainda não se empregou
Vou falar de minha irmã
Que logo cedo casou
Assim como minha mãe
No primeiro casamento
Minha irmã muito sofreu
Tanto que eu até lamento
Pois até em minha vida
Seu marido foi tormento
Hoje ela já tem três filhos
Tão novinha que ela
Cedo casou e descasou
namoradeira “feita a pé”
mas ela é trabalhadeira
aposto com quem quiser
Diz que em casa de ferreiro
O espeto é de pau
Em casa ela não faz nada
Um costume maternal
Com ela começou agora
Mas eu comi do mingau
50
Caminhadas de universitários de origem popular
Esses meus irmãos aí
Não são do mesmo pai meu
Ambos já são mais velhos
Vieram primeiro que eu
Agora já tenho três
O outro papai me deu
Agora já tá na hora
De voltar a falar de mim
Continuar minha história
Se não ela não tem fim
Vou voltar do casamento
Vai ser bem melhor assim
Todo final de semana
Eu meu pai ia visitar
Mãe dizia pra eu pedir
Pra ele pra nós voltar
Mas eu não tinha coragem
Pra ele não se apoquentar
Numas questões financeiras
Minha mãe descontrolou
Queria agradar a todos
Adoidado ela comprou
Acabou cheia de dívidas
E até doente ficou
Mainha vivia a cuidar
De minha avó doente
Vivia no hospital
Era muito paciente
Por isso não trabalhava
E ficou tão dependente
Com a ausência de meu pai
Eu já tava acostumada
Mas só que tava difícil
Com mainha endividada
Ela ficou depressiva
Ô doença desgraçada
Universidade Federal do Sergipe
51
Na verdade a depressão
Veio após se separar
Painho com outra casou
Isso veio a piorar
O sofrer de minha mãe
Que em mim quis descontar
A ir de mal a pior
Daí tudo começou
Faltou água, faltou luz
Até comida faltou
Mas Deus um dia do céu
Um enviado mandou
Uma matéria bendita
Quase me faz perder ano
Eu ia bem na escola
Mas por ela quase dano
Foi quando esse abençoado
Mudou todo o desengano
Foi assim que o conheci
Como um bom professor
Que depois virou amigo
E depois tornou-se amor
Desde então a Deus eu louvo
Por esse meu protetor
Me colocou num cursinho
Desses pré-vestibular
Ele e meu pai me ajudaram
A um sonho realizar
Depois disso até em concursos
Também consegui passar
Na UFS tive trabalho,
Estudo, alimentação
Lá se tornou minha casa
Que eu amo de paixão
Onde a felicidade
Voltou a meu coração
52
Caminhadas de universitários de origem popular
Agora sei sou capaz
De enfrentar essa vida
Mesmo que seja difícil
Ou muito árdua a lida
Tenho mil perspectivas
De melhorar minha vida
Vejam! Com tudo na vida
Vale a pena sonhar
Não se pode é cruzar braços
Temos que ir conquistar
Não deixar oportunidade
Que chegar também passar
Há muita coisa na vida
Difícil de explicar
Pessoa que desperdiça
O que outro quer ganhar
Quem tem muito infeliz
Quem tem pouco a festejar
Se você tiver ajuda
Vá então e aproveite
Se estiver desleixado
Tome prumo, se ajeite
No mundo você é gente
Não é apenas enfeite
Feliz de quem tem alguém
Em quem possa se apoiar
Incentivo é sempre bom
Ajuda a levantar
Não importa de quem vem
Sempre vai te ajudar
Eu ainda não parei
Tenho muito a conquistar
Com muitas perspectivas
De outros ainda ajudar
Quero começar bombeira
Professora terminar
Universidade Federal do Sergipe
53
Meu sonho é ensinar
Em minha UFS querida
Também quero sê escritora
Uma escritora bem lida
E agradecer a Deus
Por feliz ser minha vida
Tem muita coisa que a gente
Prefere silenciar
Existem alguns detalhes
Que não é preciso contar
Mas muito vocês já sabem
Agora vou terminar.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
A chave da vitória
Fabiana Bispo de Oliveira *
“Porque a fé sem as obras é morta; nenhum
valor tem para deus...”
É assim que desejo iniciar este trabalho. Sem atitude, jamais conseguiria chegar até
aonde estou. Foi trabalhoso, quero dizer, tem sido ainda, mas...
“Todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a
deus e são chamados por seu decreto...”
Eu, Fabiana, com 22 anos estou prestes a dar à luz. Em breve serei mãe de uma
linda garotinha... ando tão ansiosa... agradeço a Deus, primeiramente, pois
Ele é o ser Supremo por excelência e a mim mesma pela DETERMINAÇÃO que, como
um dos milhares de glóbulos, circula em meu sangue. Como qualquer jovem oriunda
de classes populares enfrentei grandes dificuldades para realizar um dos meus sonhos:
a UNIVERSIDADE.
Filha de um militar e uma cabeleireira dividi o carinho de meus pais com mais três
irmãos: Junior, Juliana e Diego – na verdade, com oito, sendo cinco deles por parte de
meu pai. Joas foi gerador de mais duas famílias antes da minha própria. Na primeira,
Marcelo e Marcos, meus irmãos acham-se bem-sucedidos em suas carreiras. Na segunda,
Samai, Uziel e Heber, que também batalham para manterem seus espaços. E finalmente a
minha família, Ester, minha mãe, sempre cuidadosa, mesmo sem ter tido instrução escolar,
e meus irmãos. Hoje, apenas dois de nós têm conquistado e alcançado seus sonhos: Junior,
também militar e eu, universitária pela UFS, professora de português e inglês. Juliana
também cursa mas o faz numa faculdade particular e tem que trabalhar para pagar o curso.
Diego, o mais novo, segue a vida num outro Estado, estudando para realizar seus sonho
de seguir carreira militar.
Fiz esse breve relato para homenagear meu querido pai. Joas Bispo de Oliveira ,
70 anos, nos ensinou a lutar e sempre fez o possível para o nosso sucesso;
espero que essa carga genética esteja em mim para que meus conhecimentos
contemplem o meu próximo.
*
Graduanda em Letras Português Inglês.
Universidade Federal do Sergipe
55
Obrigada, pai.
Persistindo e insistindo
Quero eu assim estar
Pra que não me abale o vento
Tendente sempre a levantar
Brilha, nome, tente brilhar
Traga paz, alegria e esperança
Fabiana, esse é o nome,
Sonhe com os jovens e as crianças.
Esse é o meu desejo. Depois de tudo que vivi, trabalho no intuito de ajudar outros
jovens a alcançarem seus objetivos.
Fui aluna da rede pública de ensino e como a maioria dos que vivem ou viveram essa
realidade, não tive o ensino básico como devia, como consta na Lei. Isso, entretanto, não foi
o obstáculo maior para mim, pois sempre fui uma aluna aplicada e dedicada. Terminando o
ensino médio, ouvi falar muito nesse tal vestibular. Desejei fazê-lo mesmo sem saber como
era e o que eu iria enfrentar.
Apenas acreditei e dei uma chance para mim mesma. Consegui pagar minha inscrição
para o processo seletivo com a ajuda de meu tio João Batista (em memória), corri contra o
tempo porque meus pais não tiveram condições de pagar um pré-vestibular; tive que estudar
sozinha faltando apenas 2 meses e meio para o exame. Está aqui a chave da vitória: a
perseverança. Estudei sozinha tudo que pude: fiz esquemas de estudo, resumos, resolvi
questões... tudo em prol da prova.
Em 2003, garanti meu passaporte para UFS; escolhi o curso de Letras Português e
Inglês porque eu sempre sonhei em lecionar. Mamãe já havia me presenteado, quando
criança, com um quadro negro e uma caixinha de giz, e eu nem acreditava que pudesse
chegar lá! Das vinte vagas, conquistei a 18ª: chorei, sorri, gritei, dei até entrevistas... começa
agora uma nova fase na minha vida.
Cursando numa turma bastante elitizada, sofri toda a espécie de preconceito: padeci
pela minha cor – sou parda, por ser de origem popular, por ser aluna proveniente da rede
pública de ensino e por não dominar o idioma estrangeiro inglês, que era o meu curso.
De tudo, o que mais me condoeu foi o fato de muitos professores também agirem dessa
mesma forma, discriminando, excluindo alunos que, têm o mesmo desempenho intelectual.
Nessa época, entrei em depressão. Na verdade, eu nem sabia o que era isso de fato e não
acreditava que aconteceria comigo. Cheguei ao fundo do poço, pensando em morte, tendo
medo das pessoas, sem amigos, sem ninguém. Para mim a solução era desistir do curso, pois
não tinha amigos e os que se aproximavam de mim sempre tentavam me humilhar, entristecer
e desfazer dos meus projetos e trabalhos. Deus, que sempre foi meu aliado, pareceu-me
distante; meus pais que não são de dialogar eram como se não existissem nessa hora, eles
tinham problemas demais para me ajudar – pensava. Sem emprego para me manter na UFS,
desiludida amorosamente e totalmente desanimada no meu curso. Muitas vezes eu saía da
sala de aula para chorar calada, fazia de tudo para não comparecer às aulas, principalmente
às de língua estrangeira – parecia uma palhaça em que todos riam de mim. Sobrevivi a isso
por quase dois anos, acabei trancando algumas matérias, evitando meus colegas de classe,
56
Caminhadas de universitários de origem popular
procurando outros meios. Era como se eu, por ser afro-descendente, de origem popular,
fosse indigna de ter sido aprovada num concurso tentando apenas uma vez. Era vista como um
nada, mas tudo isso serviu de experiência e amadurecimento. Pude contemplar a crueldade de
nosso sistema cada vez mais excludente em que muitos padeceram e padecem pelo mesmo
problema. Infelizmente, em nossa sociedade, vale-se pelo que possui e não pelo que se é.
Parei, refleti e tomei uma atitude: olhei para meu interior e deixei de sentir pena de
mim mesma. Apaixonada por um rapaz há dois anos, desisti e me valorizei. Vi o quanto eu
tinha potencial e capacidade intelectuais, bastava que me empenhasse. Dei valor a mim, e
percebi que meus irmãos precisavam de meu apoio. Dentro de um mês, dei a volta por cima:
saí do quarto escuro, voltei a minha rotina, batalhei por um emprego e consegui.
Assumi oito turmas de doze alunos num projeto social chamado Conectando com a
vida; foi minha primeira experiência profissional. Percebi o quanto foi importante ter vivido
diversas situações, pois as mesmas contribuíram para instruir meus alunos – jovens e
adolescentes de origem popular – alimentando-lhes sonhos e mostrando-lhe a possibilidade
de resolver os problemas da vida. Minha conduta, a metodologia adotada para o ensino de
Português, meu carisma e dedicação abriram novos horizontes para os meninos; eles viam
em mim uma espécie de fonte de luz; uma pessoa em quem se podia espelhar: “Professora,
foi muito bem ter conhecido a senhora, eu pude aprender sobre português. Você é uma
excelente amiga” – comenta um dos alunos.
E realmente era essa a minha realização: saber que minha vida com um todo, que
minhas dores e sorrisos tornaram-se jóias preciosas doadas a muitas vidas; ser professor de
verdade não é uma profissão e sim uma missão; sigo, portanto, nesse objetivo contribuindo
a fim de que nosso Brasil se torne um Brasil bem melhor.
Ainda para completar meu gozo, conheci nessa mesma época, Alexandre de Souza,
meu esposo. Nossa! Ele chegara num momento especial em minha vida, é meu tesouro, que
me completa, me aceita e me compreende da forma que sou. Hoje, casados, vivemos juntos
há um ano e logo, logo, seremos papai e mamãe; Flavia Alessandra, a Flavinha, já está às
portas... te amamos, filhinha!
Espero que depois de seu nascimento eu, Fabiana, esteja mais sensível às realidades
bem patentes em minha volta, que me prepare para sempre dar o de melhor aos que
necessitarem, a todos os meus alunos, ensinado-os para provas e concursos e para a vida.
Penso que, agindo dessa forma, teremos um mundo verdadeiramente civilizado e repleto de
profissionais competentes.
Pensemos naqueles que estão excluídos e sem esperança, os ajudemo-los a se erguerem
e, certamente, contemplaremos a vitória.
Desejo que esse pequeno relato sobre minha vida contribua para que a sua, querido
leitor, também possa fazer valer a muitos nessa caminhada.
Universidade Federal do Sergipe
57
Infância
Gilvan Braz Araujo*
Meu nome é Gilvan Braz Araújo e nasci na cidade de Aracaju-SE, no bairro América.
Vivia em uma humilde casa num bairro com precárias instalações de água e esgoto, na época.
Meus pais mudaram-se do Maranhão para cá, Aracaju, em virtude de meu pai arranjar
um emprego aqui de topógrafo (nível técnico), na Everest.
Desde cedo, minha mãe nos “puxou” no que diz respeito aos estudos seculares. Ela
mesma, Dona Assunção, me alfabetizou a mim e a meus irmãos, mesmo não tendo boa
formação acadêmica, em virtude de precisar trabalhar para ajudar a família e também por
causa do precário ensino primário, com o qual minhas irmãs foram contempladas.
Resumindo, aos 4 anos, eu já sabia ler, escrever, fazer operações matemáticas
elementares e outras coisas mais, graças a DEUS e a minha “mãezona” que, ao longo de sua
vida, foi e continua sendo uma verdadeira guerreira, nos impulsionando a estudar
continuamente e fazendo tudo que for possível para não pararmos de estudar.
A mais ou menos, 6 anos de idade, nos mudamos para Socorro, mais precisamente
Marcos Freire 2, onde passamos dificuldades quanto à alimentação e outras necessidades
básicas existentes no momento.
Minha mãe, guerreira, ao contrário de meu pai, que queria jogar-me em “qualquer
buraco” para estudar, se preocupou com a minha base de estudos, e com sacrifício conseguiu
uma bolsa para mim e meus irmãos estudármos em uma escolinha particular do conjunto...
Passei para a 1ª série do ensino fundamental sem passar pelo rol do berço, maternal
etc... e ao chegar ao colégio tudo era novidade para mim.
Mas acho que no ano seguinte, já me adaptei ao clima estudantil, as provas, aí pronto,
comecei a melhorar meu boletim e ter um melhor rendimento.
Ginásio
Resultado interessante que convencia alguns professores, de que eu podia ir mais
além nos estudos, mesmo não tendo boas condições para isso, como por exemplo : falta de
material escolar, má alimentação, enfim, mas eu não me importava com isso, pois tinha um
objetivo pela frente.
Acho importante refletir neste aspecto, quanto a oportunidades que surgem na nossa
vida e que muitas vezes não sabemos aproveitar e, futuramente, nos queixamos de algo que
já passou e ao avaliar a situação, o dano se torna irreparável: a escola em que estudei
*
Graduando em Engenharia Civil.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
acomodava o aluno, tinha 1000 facilidades de recuperação, então não tive problemas de
aprovação nas séries. Mesmo estudando pouco, tinha boas notas, pois, como já frisei, era
uma escola deficitária quanto ao aprendizado do aluno.
Ao chegar à última série do ensino fundamental, fiquei sabendo do exame de seleção
da ETF-SE, agora CEFET-SE e que era uma boa escola pública e também porque era federal;
me entusiasmei com o que diziam daquela escola profissionalizante. E minha mother dizia:
“Você vai dar o seu melhor para passar” pois, meu filho, eu não tenho condições de custear
uma escola particular na capital para você.
Aí eu fiz a minha inscrição no concurso e quando cheguei, não demorou muito para
me organizar, quanto às disciplinas que tinha de estudar e do tempo disponível para poder
dar conta de todo o conteúdo programático da prova.
Bem, todos vocês, assim eu penso, já passaram por essa fase ou algo parecido, e aí vem
a expectativa: Será que entro ou não??? E não foi outra, no dia da prova, gelava mais que
um “pingüim”, pode crer!!!
Fiz o que pude na prova, mesmo sabendo que não tive base suficiente no ginásio e
que dependia do que tinha estudado por conta própria. Após 1 hora do horário previsto para
o término da prova, a coordenação apresentou o gabarito e aí acertei 38 questões. Para mim,
eu não tinha idéia de que eu ia passar ou não. Bastava o tempo responder a esse impasse e
quão grande alegria inundou o coração de “mainha e dos meus irmãos” quando souberam
que fui aprovado!
Médio
Conheci várias pessoas diferentes de minha realidade (o meu modo de viver), conquistei
novas amizades, aprendi algo sobre relacionamento, sobre quem são seus verdadeiros amigos,
essas e outras mais que aprendemos no decorrer de nossa vida.
Bem, no 1º ano, as minhas notas em particular não foram boas, pois como vocês já
sabem, minha formação primária foi deficiente e quando fiz o PSS do 1o ano não obtive
rendimento satisfatório; a partir desse dia, estabeleci que no ano seguinte as coisas
iriam mudar .
Lá na escola técnica não facilitavam tanto como no colégio no qual eu estudei o
ginásio, mas eu não parei por aí, comecei a estudar por conta própria, a começar com o que
eu não tinha aprendido nas séries anteriores durante todo o 2° e 3° anos. Fiz vestibular mais
confiante e aí o resultado estava por vir. E graças a DEUS, realmente veio conforme eu
esperava.
Hoje estou no 4o período e estimulando os meus irmãos e a outros que não vejam
bicho de 7 cabeças numa prova, seja um vestibular, um concurso, enfim, seja o que for. Pois
o que o homem plantar, é isso mesmo o que ele ceifará.
Universidade Federal do Sergipe
59
Só sei que foi assim...
Helenilza Joelma Costa Santos *
(In Memorian)
Fiquei pensando em como escrever minha caminhada, por onde começar?
Resolvi começar com a primeira batalha que travei, quando ainda bebê. Segundo o
que minha mãe conta, lutei contra a morte. Lembrei-me dessa história outro dia. Contou-me
minha mãe que fiquei internada por duas semanas e os médicos lhe disseram que eu não
sobreviveria. Ela conta ainda que me levou pra casa e sempre que me olhava chorava, pois
achava que eu não fosse viver, mas pra surpresa de todos, vivi!!
Lembrei-me da minha infância e das coisas por que passamos eu e meu irmão mais
velho (meu amigo e irmão querido de todas as horas). Tínhamos que ir pro sítio de manhã e
voltávamos correndo onze horas para irmos pra escola. Depois chegaram meus irmãos mais
novos, minhas bonecas de verdade. Eu e meu irmão nos revezávamos pra cuidar dos dois
pequeninos, enquanto nossos pais trabalhavam. Um cuidava dos pequenos, enquanto o
outro ia pra escola e assim seguimos nossa história.
Em 1989, começam a acontecer incidentes que marcaram nossas vidas, a começar pelo
assalto de nossa casa: ficamos sem nada e minha mãe, coitada, passou a pior madrugada que
alguém podia passar, com um revólver apontado pra ela. No ano seguinte, depois de um
segundo assalto, só que dessa vez com minha avó, meu tio e padrinho (irmão de minha mãe)
faleceu e uns dois meses depois meu pai, apaixonado por outra mulher, resolveu sair de
casa. Este último fato terminou desestabilizando a todos.
Minha mãe, uma mulher fantástica, assume nossa família, e guerreando contra o preconceito,
que naquela época era enorme e com as dificuldades financeiras, foi à luta e nós fomos à batalha
com ela. Algum tempo depois, quando as coisas começaram a melhorar, tivemos nossa casa
assaltada mais uma vez, e agora durante o dia (morávamos em uma casa próxima da escola,
apenas 15 minutos e trabalhávamos no sítio a 30 minutos da casa onde morávamos).
O assalto foi a gota de água para minha mãe que resolveu por morar no sítio.
Mudamo-nos e as dificuldades foram muitas: não tínhamos energia elétrica e a casa, era
muito velha (tinha uns 50 anos); o chão de terra batida não permitia que montássemos as
camas. No improviso, colocamos uma tábua em cima do forno de mexer farinha e colocamos
o colchão em cima; durante um ano e mais alguns meses essa foi minha cama, e o candeeiro
nossa lâmpada.
*
Graduanda em Química.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 1993 depois de muito esforço e sofrimento, minha mãe vende nossa antiga casa,
junta tudo que foi possível economizar e inicia a construção da nova casa. Com a mudança
pra nossa casa nova veio também a eletricidade. E no fim de 1993, minha bisavó foi morar
conosco e nos deu grandes lições. Além da união que tínhamos, ela nos deixou como
exemplo o amor à vida, a alegria e a lembrança de uma mulher que sofreu muito, mas que
mesmo cega era extremamente doce e feliz.
Nessa mesma época, cheguei a casa com a idéia do vestibular e logo de cara recebi a
negativa: minha mãe me disse que não teria como me manter na faculdade e que tinha
discutido com meu avô porque ele queria que eu não estudasse mais, pois já sabia ler e
escrever e já estava na hora de parar de estudar. Minha mãe apesar de me dizer que não podia
me manter na faculdade, pois realmente não tinha condições, disse que eu teria o direito de
estudar ate completar o ensino médio, oportunidade que ela não teve, quando era solteira.
Fiquei triste com a perspectiva de parar de estudar ao terminar o ensino médio. Resolvi
buscar formas de me manter caso conseguisse entrar na universidade. Vendo a possibilidade
de ter um trabalho, resolvi fazer o curso de formação de professores que correspondia ao
ensino médio. Matriculei-me no curso de formação de professores e logo de início não
gostei do mesmo, mas tinha um objetivo a alcançar. Fui adiante, enfrentei vários problemas
na escola que estava quase desabando em nossas cabeças, reformas, falta de professores e
mais uma série de coisas.
No curso de formação de professores, encontrei grandes e queridas amigas as quais
atribuí o titulo de irmãs de coração (Sandra e Andréa). Junto ao curso, comecei a trabalhar
também para mim na roça, plantei minha primeira lavoura, tudo pensando no vestibular e
no sonho que tinha de continuar meus estudos, de buscar um caminho diferente da roça.
No início de 1998, enfrentávamos problemas com a falta de professores no colégio.
Fiquei semanas em casa ajudando minha mãe nas farinhadas; no fim de março, a mandioca
que plantei foi colhida. Estávamos fazendo a minha primeira farinhada, seria a primeira
economia em busca da realização do meu sonho. Dia 26 de março, quinta-feira, jamais
esquecerei esse dia, tudo corria bem até o incidente que mudaria minha vida de novo. Eram
mais ou menos umas 15h30m, quando meu irmão me chamou pra ralar a mandioca. Tudo
normal, afinal, já havia feito isso outras vezes. Tudo corria bem até uma mandioca escorrega
e bate na mandioca que, estava na minha mão que por sua vez, escorregou e no fim meus
dedos foram no lugar das mandiocas. Num impulso, puxei minha mão, mas percebi que
meus dedos estavam, apesar de não terem se soltado, completamente moídos, minha dor e
desespero foram imensos. Fui levada ao hospital onde depois de uma hora meus dedos
foram cortados. Passei a pior noite de minha vida, sozinha, chorando a perda de meus dedos.
Minha família (mãe, meus três irmãos, minha avó e minha cunhada Cledja) todos
tentavam me alegrar, mas não era fácil. Alguns meses depois nasceu Keylla, minha primeira
sobrinha, minha paixão, aquela que conseguiu me tirar da tristeza profunda em que me
encontrava. Ela trouxe a nossa família novo ânimo e nos fez renovar sonhos e esperanças
que andavam adormecidos naquele momento em que a dor era mais evidente.
De volta à vida, voltei-me completamente para o sonho da universidade, estudei
ao máximo e na primeira tentativa, fracassei. Não foi fácil ouvir as piadas e risadas
que deram pelo meu fracasso, mas o suporte que recebi de minha mãe, irmãos e alguns
amigos me motivaram a continuar a batalha. Aquele seria o 5° vestibular e eu quase
desisti, mas Andréa, minha amiga querida, insistiu que não desistisse de meu sonho e
Universidade Federal do Sergipe
61
com a força que ela me deu e o apoio de minha mãe, fiz a 5ª tentativa e consegui,
contrariando a todos que riam de mim quando falava do vestibular dizendo que
jamais conseguiria.
A partir daí travei outra batalha: minha mãe realmente não podia me manter e agora
era mais complicado ainda; meu avô e minha avó moravam conosco. Ele era paralítico,
diabético e hipertenso, e ela lutava contra uma série de problemas, tais como, anemia
crônica, tendo feito nove transfusões de sangue em três anos, sendo também cardíaca.
Pedi residência e por uma graça divina entrei. Pela primeira vez, fiquei longe daqueles
que estiveram comigo em todos os instantes, foi difícil quando meu avô deixou de falar
comigo (passou dois meses me ignorando); foi difícil enfrentar as mudanças que viriam:
falta de dinheiro pra adquirir material, passe escolar e até mesmo alimentação logo no
início. No fim do 1° período, meu avô faleceu e foi difícil não estar próximo nesse momento.
A residência também me deu muitas coisas boas, possibilitou que eu crescesse e começasse
a ter uma vida independente, sem falar que tive grandes felicidades e encontrei nela pessoas
muito queridas que se tornaram também amigas e irmãs, dividindo alegrias, tristezas,
preocupações e sonhos.
O caminho ainda guardava mais batalhas, dessa vez fui apenas ajudante. Em 2004,
minha tia começa a lutar contra um câncer e como ela não tinha filhos nem esposo, sendo
eu e minha família os únicos parentes e como ninguém podia cuidar dela, ficamos eu e
minha mãe nos revezando no hospital. Durante dois anos, lutamos juntas, nós três.
Infelizmente perdemos a batalha e ela faleceu; não foi fácil essa derrota, foi muito difícil
perceber nossa impotência diante da vida, e nesse momento, não pude deixar de perceber
a presença de mais uma amiga irmã querida, Carla Rayane, que, esteve conosco, nos
ajudando e compartilhando momentos muito complexos de nossa batalha. Não posso
esquecer também de Liene e Edilma, amigas queridas que, muitas vezes, me ouviram e
ajudaram a conter a tristeza.
Muitas vezes pensei em desistir, mas a possibilidade de mudar a história que sempre se
repetia no meu interior e na minha família em que as mulheres eram somente mães e esposas,
me impulsionou a continuar enfrentando todas as dificuldades que apareceram no decorrer
dessa história. No início de 2006 quando já estava no limite, surgiu a inscrição para as
bolsas Conexões dos Saberes que possibilitaram continuar minha história e quem sabe
ajudar a mudar outras histórias. Nesse ano, nasceu também minha segunda sobrinha, Kemylle,
que veio em um momento em que precisávamos, quem sabe, ver a esperança renascer. A
chegada dela renovou nossa esperança e nos fez muito felizes.
De tudo que escrevi sobre as várias coisas que aconteceram e as dificuldades que
enfrentei, devo dizer que, sem minha mãe a quem amo incondicionalmente, meus irmãos
Joelito, Josenilton e Helena e minha avó Maria, talvez não tivesse conseguido chegar até
aqui para contar essa história. Só posso agradecer a Deus por essa família maravilhosa, antes
composta por seis guerreiros e hoje já bem maior e pelos amigos que estiveram comigo ao
longo dessa jornada. Os que citei e os que não citei, foram maravilhosos. Obrigada, Deus,
por todos os anjos que foram colocados em meu caminho.
E só posso dizer que, só sei que foi assim...
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Que história é essa?
Jaqueline Gomes dos Santos *
Ao meu primo Bruninho
Não quero ter a sorte, nem a esperança.
Quero a vida, quero viver...
Falar da nossa vida não é algo fácil. Desde que anunciaram essa atividade, senti certa
resistência, não gostei muito da idéia. Na hora pensei: um artigo seria mais importante, sobretudo
porque traria uma análise, uma reflexão e até propostas. Mas o que pode fazer esse texto? Poderá,
ao menos, levar ânimo aos outros jovens vitimados por esse sistema? E isso seria suficiente?
Quem será o possível leitor desse texto? Provavelmente não é um dos jovens que
pegam “carrego” na feira do meu bairro ou os que trabalham na zona sul. Como chegar a
eles, então? Qual é o papel desse texto? O que ele pode resolver? É ilusório pensar que ele
pode chegar a um jovem de origem popular, a não ser que ele seja um dos 0,001%
contemplados, quase como na loteria, que participam de um programa como o Conexões.
Seja quem for o leitor, gostaria que ele pudesse converter suas idéias e voltar-se para a
problemática social que se instaura e resulta na necessidade de uma transformação. E mais: que
o leitor não identifique esse texto como a história da guria que “venceu” (aliás essa expressão é
carregada de uma ideologia burguesa), isso não seria suficiente, seria até covarde: você é agente
da História, levante e lute. Que essas histórias possam nortear um caminho, amém.
Infância
Da janela do ônibus...
Mundo Breve
Mundo Brusco
Mundo Intenso
Mundo Desconhecido
Mundo Fundo
Mundo Mudo
Mundo,
Meu Mundo?
*
Graduanda em Letras Português.
Universidade Federal do Sergipe
63
Nasci numa madrugada fria da cidade de São Paulo; a maior parte da minha família
morava em Aracaju. Meu pai era movido por uma imaturidade que não sei justificar, aliás,
prefiro não precisar citá-lo, é mais cômodo e, na verdade, se esse texto trata da minha vida,
não será necessário nem citar seu nome. Minha mãe sempre foi surpreendentemente
independente e forte. Por falar nisso ela é meu sustentáculo, junto com Kevin e minha avó
formam a minha família, meu poço de ternura e amor contínuo.
Lembro que tive uma infância difícil, uma pneumonia trouxe muito trabalho e
preocupação para a minha mãe. Sozinha, ela precisava trabalhar e cuidar de mim; dessa
forma, convidou uma de suas irmãs para ajudá-la, a tia Meure. Não é difícil perceber porque
a considero uma segunda mãe, ela é sempre carinhosa e cuidadosa.
Voltando à pneumonia. Como as melhoras não vigoravam, os médicos recomendaram
que eu viesse passar um tempo com meus parentes do Nordeste, devido ao clima quente.
O frio de São Paulo inibia os avanços da recuperação. Assim, morei com a minha avó por
mais ou menos 2 anos, já numa comunidade periférica. Brincava na rua e tinha toda uma
vivência com às outras crianças. Mas me recuperei totalmente, inclusive comecei a estudar
numa escola em Aracaju. Nessa época, me aproximei muito dos meus tios e tia, por isso
sou muito ligada a eles.
Com a recuperação, minha mãe quis que eu voltasse. Voltei prestes a completar 4 anos
e fui recepcionada por uma festa de aniversário, a mais marcante de todas. Em todas as fotos
eu apareço com um olhar frio e perdido. Parece que não entendia o ambiente, o retorno;
minha mãe e meu padastro pareciam um pouco estranhos, e eu já chamava minha avó de
mãe, mas logo tudo voltou ao normal.
Já estava estudando quando minha mãe pediu o divórcio. Eu gostava muito do Wal,
mas não sofri. Depois, minha mãe engatou um terceiro e último relacionamento, foi aí que
surgiu o meu irmão, o maior dos presentes: Kevin. Infelizmente, o pai de Kevin faleceu.
Fomos morar com minha tia Vilma, no Guarujá. A tia era maravilhosa, meu tio Carlos também.
Sem falar nos primos.
Toda nossa família voltou para Aracaju em 1992, tinha 6 anos e Kevin alguns meses.
Logo comecei a estudar em uma escola pública perto de casa, o “Áurea Melo”. Lá conheci
uma grande amiga: Joana D’arc. Fiz seis meses, da 1ª série quando a diretora sugeriu que eu
fizesse um teste para ficar na 2ª série devido a recomendação da minha professora. A idéia
era ótima: se passasse, freqüentaria a 2ª série com Ray, minha prima preferida. Passei no
teste! Sem entender muito, passei para turma de Ray. Era maravilhoso, construímos uma
amizade eterna cheia de afinidades.
No ano seguinte, fomos para a 3ª série em outra escola, 24 de outubro, lá o ano foi
impregnado dos vícios do ensino público: a ausência de professores e as greves fizeram
com que minha mãe refletisse um pouco sobre uma nova alternativa. Foi quando ela soube
da existência do SESI, uma escola “quase pública”, não havia mensalidade qualquer, o
ensino era bom, mas era difícil conseguir vaga, com muita insistência ela conseguiu uma.
Em 1994, estava na 4ª F, todos eram mais velhos; foi difícil a adaptação, tinha apenas 8 para
9 anos, e os meus colegas com cerca de 11 ou 12 anos. Passei todo o ensino fundamental no
SESI, foi uma fase muito importante, lá, fiz e encontrei amigos verdadeiros como Anderson
e Jaciara. A escola ficava muito próxima da casa de meus padrinhos. Era maravilhoso!
Lembro que fui uma criança meio “séria”, talvez devido à transição, das praças de
Aracaju para os muros paulistas. Já de volta para Aracaju, minha infância foi decorada pela
64
Caminhadas de universitários de origem popular
presença dos meus primos, se eles não estivessem por perto tudo seria chato, sem brilho e
sem cor. Além disso, embora fosse uma criança inconstante, carente e mimada, foi o amor da
minha família que me fez pisar no chão.
Adolescência: paisagens da memória
A tal fase da adolescência não foi fácil, as respostas que, inconscientemente,
procurava na minha infância não foram expostas na adolescência. As carências se
manifestavam das formas mais curiosas, não tratava bem os meninos e necessitava da
presença de amigos e de música, como forma de evasão. Mas essa análise não é muito
necessária. A verdade é que perdi muito tempo, não deveria ter lamentado a ausência de
meu pai, por exemplo. E deveria ter compreendido mais a minha avó, uma senhora que
ficou viúva e cheia de responsabilidades aos 40 anos, muito provavelmente ficaria
estressada mais cedo.
No ensino médio, consegui uma bolsa de estudos de uma escola particular, mas
pouco conceituada, gerenciada por um político que distribuía bolsas prevendo
reeleição. Lá, conheci outras pessoas, outros costumes. Já era adolescente e isso parecia
difícil, foi lá inclusive o meu “desastroso” primeiro beijo. Lá também encontrei muitos
amigos, como Anderson, Eliton, Vanessa Cristiane, Clarisse, Andresa, Cadinha e
Wanessa. Encontrei também certa crise entre não querer nada e querer estudar. Mas
esta última prevaleceu.
Depois daquela viagem...(o vestibular).
No primeiro ano, em 1999, anunciaram que o vestibular seria seriado, era um susto,
poucos sabiam o que era vestibular e enfrentá-lo já era um pesadelo. Mas com apenas 13
anos fui uma das cobaias no primeiro PSS seriado da UFS. Os resultados não foram bons,
além do pouco esforço enfrentava problemas familiares.
Minha avó sempre foi muito importante para mim, mas não conseguia me entender
com ela, na época ela não permitia que recebesse telefonemas de meninos ou que assistisse
televisão (exceto canais cristãos). A rigorosa postura religiosa da minha vovó, resultou em
conflitos que gostaria de ter evitado. Cheguei a ir morar com meu pai, por três meses, mas
ele, que nunca demonstrou qualquer interesse por mim, não demorou a me mandar de volta.
Diante de tudo, fui para o 2º ano com menos interesse ainda, só no 3º ano algo em
mim despertou, é claro que com a ajuda e a inflamação de amigos, como Júlio César, um
carinha divertido e Joana D’arc, a amiga de todas as horas. Como previsto, não passei no
vestibular seriado.
A idéia de fazer vestibular de novo e de uma vez, me desempolgava. Sabia que
precisava de um cursinho, mas as dificuldades eram várias. Um dia, uma grande amiga,
Clarisse, me indicou um emprego. Era uma clínica odontológica, fui lá e me contrataram,
com o dinheiro pude pagar o cursinho. Mas logo fui demitida, era muito menina e com 16
anos, eles disseram que não podiam assinar carteira, mas sei que não gostaram do meu
trabalho e isso foi difícil de superar.
No segundo semestre, freqüentei um cursinho mais barato, que minha mãe conseguia
pagar. Foi nessa época que meu amigo Anderson me convidou para o aniversário de Bruninha,
“nossa” irmã e lá conheci Cláudio, que, em pouco tempo se tornou uma das pessoas mais
importantes da minha vida.
Universidade Federal do Sergipe
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O estresse do vestibular tomou conta de mim: eu chegava a chorar quando não entendia
alguma coisa; estudei muito, mas achava que não dava. Sentia-me inibida, meio “mutilada” por
não ter passado no primeiro. Por outro lado, havia uma espécie de torcida, uma motivação que
vinha da minha família. Sempre fui muito ligada à minha família (minhas tias, tios e primos),
todos me traziam uma energia inexplicável. Consegui passar no vestibular 2003 da UFS.
A universidade
Comecei a cursar Letras e trabalhar ao mesmo tempo e percebi que não dava. Tive que
largar o emprego de recepcionista depois de 8 meses. Sem emprego comecei a fazer bicos,
como assistente de entrega de prêmio, monitora e recepcionista em eventos de shopping,
até de mamãe Noel: um mico, mas era assim que remediava as despesas. Não posso ignorar
que numa dessas atividades-mico conheci a mais doce das amigas, a guria Daniele.
Como não tinha um trabalho fixo, consegui participar um pouquinho mais da vida
acadêmica, foi ao ENEL, Encontro Nacional dos Estudantes de Letras, em São Paulo e me
encantei com o Movimento Estudantil. Quando voltei, quis ser colaboradora do Centro
Acadêmico e vivia no DCE, participando das atividades da gestão “Viver na Luta”. Foi uma
fase de intensa aprendizagem, sobretudo na União da Juventude Comunista, com os espaços
de formação e discussão política.
Fui chamada para trabalhar na UFS com uma bolsa de trabalho; que não previa um
retorno acadêmico e se sustentava em atividades repetitivas e exclusivamente técnicas, o
valor era irrisório, mas eu ficava mais tempo na universidade e podia estudar mais. Assim,
participei mais das demandas políticas e sociais da UFS, principalmente na construção do
Movimento Resistência e Luta, foi esse movimento que deu sustentação para a eleição da
gestão “Amanhã há de ser outro dia”.
Com o tempo, percebi que o curso Letras-Francês não era reconhecido pelo MEC, além
do mais o campo de trabalho se reduzia cada vez mais. Dessa forma, resolvi fazer vestibular de
novo, fui pré-classificada, mas não passei. No ano seguinte, tentei de novo e nem contava com
um bom resultado, era o ano de 2005, estava no Fórum Social Mundial, “morando” há uma
semana numa barraca, quando liguei para casa para desejar feliz aniversário para Kevin e ele
falou que eu havia passado, foi como sair pela janela de um lugar incômodo.
2005: um instante de fim
Mesmo se fosse forte...
Ainda assim, não deixaria de lamentar sua ausência
Ainda assim, não suportaria a saudade que tanto inibe meu sorriso
O ano de 2005 começou como um “fim”: perdi meu primo-irmão Bruno em um terrível
assassinato. Senti uma dor que desconhecia, um misto de indignação e tristeza. Era ele a
alma mais pura e o sorriso mais doce que já existiu.
Ele, na infância, passou muito tempo com a minha avó, assim como eu. E tínhamos
quase a mesma idade, era um irmão maravilhoso, sempre prestativo e cuidadoso. Lembro
que em um natal nos vestimos de mamãe e papai Noel, juntamos todo o troco que tínhamos
e compramos presentes para todos da família, eram coisas simples, algumas coisas, como
bijuterias, nós colocamos numa caixinha de fósforos embrulhadas para presente.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Morro de saudades dele e custo a acreditar que ele, tão jovem, não poderá mais batizar
meu filho, como havíamos combinado numa das barraquinhas que montávamos quase que
diariamente no quintal da casa da vó.
“Ainda te vejo em tudo que permanece como se tua pressa de vida
que se extingue ficasse um pouco em tudo ainda”
Alice Ruiz
Conexões de Saberes, a porta
Cursando um curso diurno pude participar mais do Movimento Estudantil e da
universidade como um todo. Em 2006, fui selecionada para participar do Programa
Conexões de Saberes, fiquei muito feliz, pois iria para o eixo pré-vestibular popular.
Sempre fui muito crítica em relação ao vestibular devido ao seu método excludente, mas
sabia que poderia ajudar.
Fui tomada de ansiedade até que começassem as aulas. Encarar a sala de aula pela
primeira vez não foi fácil, era um misto de insegurança e responsabilidade. Temia que meus
alunos não me compreendessem, sabia que deveria ser precisa e andar rápido, pois o vestibular
chegaria em seis meses. Com o tempo, me sentia tão à vontade que sentava com eles para
discutir o assunto.
No Seminário Nacional (RJ, 2006) é que pude perceber a dimensão política e social do
programa, além disso, as bandeiras de luta do Programa se confundem com as bandeiras do
Movimento estudantil. Isso me motivou ainda mais na participação do programa, ele tornouse um importante veículo de luta contra a exclusão social.
O Conexões de Saberes pode ter um papel contínuo de transformação social, pois não
se preocupa apenas com os que já estão na universidade, mas também, com aqueles que
ainda beiram as vagas nesse processo injusto que é o vestibular.
Somos todos protagonistas nessa transformação social, precisamos lutar não por
reformas e programas que amenizam o problema, mas por uma revolução na educação.
Assim, deslocando o nosso olhar do problema para a estrutura é que poderemos conquistar
uma sociedade justa e democrática.
“Sejamos realista, exijamos o impossível”
Ernesto Che Guevara.
Universidade Federal do Sergipe
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O caminho sou eu quem faço...
Maria de Fátima Ribeiro Menezes *
Não me lembro do dia em que nasci, é óbvio. Mas me disseram que foi num dia de São
João, mais precisamente no dia 24 de junho de 1982. Cresci, como todas as crianças crescem,
e fui experimentando aos poucos a experiência da vida. Para mim, entendo que ela quis
sorrir mais do que o normal. Ora, cresci numa típica comunidade popular, ou numa sociedade
comunitária. Assim, a minha rotina foi se endereçando para o estreitamento das relações
com os outros. Na verdade, na sociedade comunitária, quem vive a nossa vida não somos
apenas nós, mas todos os integrantes da comunidade, que se satisfazem em penetrar na
intimidade alheia, fato que às vezes causa intriga e discórdia.
Pois bem, sabendo disso, vivi sempre rodeado de amigos. Estes partilhavam comigo
várias aventuras. Jogar bola e furtar mangas em uma fazenda próxima de nossas casas era o
nosso cotidiano. Mas não apenas isso, a minha infância foi maravilhosa. Pude experimentar
todos os prazeres que as algazarras à porta podem proporcionar. Tudo isso aconteceu com
mais intensidade até os doze anos. Entre os doze e catorze, entrei num conjunto musical
batizado de consciência negra. Tocava caixa. Enquanto fazia isso, mostrava na minha cidade
as habilidades com a bola de futebol. Era considerado um dos melhores jogadores da cidade.
Entre a música e o futebol, optei pela segunda alternativa. Entrei no clube juvenil “Jups
Neto” e conquistei alguns campeonatos. Mas entendia que a música retornaria a ecoar nos
meus ouvidos. Aos 15 anos, aprendi a tocar flauta doce, provando que os sons harmônicos
voltariam para mim. Gostei da experiência. Diante disso, decidi participar da formação da
Banda Filarmônica Frei Inocêncio, cuja fundação fora delegada a mim e a mais doze garotos
da mesma idade. Entre uma coisa e outra, aos dezoito anos, aprendi a gostar de ler e a
filosofar. Desde então, decidi prestar vestibular para a Universidade Federal de Sergipe.
Consegui ser aprovado em letras vernáculas. Foi então que resolvi sair da banda, quando
tinha 21 anos, certo de que já tinha contribuído muito pela estruturação da filarmônica.
Daí em diante, comecei uma rotina adversa da que tinha antes. Em maio de 2006
iniciei os estudos universitários. Os primeiros períodos foram de descobertas a respeito das
características do curso. Tudo me agradava inicialmente. Mas a partir do terceiro, comecei
a sofrer uma espécie de crise de identidade, cuja maior marca foi um desencontro com as
propostas pedagógicas do curso. Depois desse período, entendi que não poderia mais
abandonar os estudos em letras, pois a cada dia me interessava mais pelos conteúdos das
disciplinas ofertadas.
*
Graduanda em Estatística.
68
Caminhadas de universitários de origem popular
Então, à medida que o tempo ia passando, eu compreendia que necessitava de
uma renda financeira para custear as despesas advindas das atividades acadêmicas. O
dinheiro que os meus pais me davam não supria todas as necessidades. Assim, procurei
um estágio oferecido pela Universidade por intermédio da Proest (pró-reitoria de
assuntos estudantis). Comecei a trabalhar na biblioteca central. Lá, fiz amizades que
até hoje cultivo e vivi experiências novas. O melhor ponto de ter estado na BICEN foi
poder conhecer boa parte dos livros que contribuíram decisivamente para a minha
formação universitária.
Embora tivesse gostado de trabalhar na BICEN, sabia que necessitava de um outro
estágio; um que me pusesse mais dinâmico e que enriquecesse o meu currículo. Foi então
que soube da existência no projeto Conexões de Saberes: diálogo entre a Universidade e
as comunidades populares, oferecido pelo Mec através da UFS. Me inscrevi e não me
decepcionei. Fui classificado e escolhido para atuar na área de Pré-vestibular. Isso aconteceu
em maio de 2006. De lá pra cá, pude aprender muito com o projeto e me sinto feliz em poder
lecionar, ou seja, exercer a minha atividade em tempo conveniente.
Além de adorar o dia-a-dia de professor, me afeiçôo com o projeto, que tenta de
todas as formas possíveis oferecer respaldo para a formação dos seus membros.
Participamos de vários eventos que contribuíram e contribuem para o nosso
aproveitamento acadêmico e profissional. A ideologia do projeto é justa e inteligente:
tentar intercambiar o saber acadêmico com o saber popular, visando provocar o
desenvolvimento da região onde atua. É tudo que um cidadão consciente desejaria
num país como o Brasil, cuja história é marcada por exclusão dos que não nasceram
no berço do poder.
Por fim, entendo que somos os construtores dessa caminhada, que se perfaz a medida
que vamos caminhando. Sem o nosso trabalho e efetivo engajamento não poderemos concluir
o objetivo central deste projeto, incluir e fortalecer as comunidades populares de saber e
instrumentos que levem ao seu desenvolvimento. Eu, então, me despeço satisfeito por estar
no presente instante participando desta ação brilhante. Dessa forma, posso dizer: hoje sou
um conexista. Que o destino me reserve mais oportunidades como estas que vivi, e que
nelas eu possa desfrutar da mais alta sabedoria, praticando-a para o bem estar do próximo e
da sociedade onde estou inserido.
De Maria de Fátima Ribeiro Menezes
Filha de: Raimundo Rodrigues de Menezes e
Maria Edilene Ribeiro Menezes
Certamente pessoas anônimas, mas que merecem a minha
exaltação.
Com orgulho apresento minha história
Não faz muito tempo, mas muitas coisas mudaram. Hoje vejo minha infância sofrida
sem revolta; queria que tivesse sido diferente, mas foi do jeito que foi que aprendi a ser
como sou. Lembro-me saudosamente da minha ingenuidade e principalmente da extrema
curiosidade que ainda me acompanha. Desde criança, o que mais marca minha vida são
meus sonhos e, ingenuamente, um dia perguntei a minha mãe: mainha, a gente só morre
quando realiza todos os sonhos, não é?
Universidade Federal do Sergipe
69
Que alegria quando chegou o dia de eu ir para a escola. Era meu primeiro contato com
outras pessoas: fiquei com muita vergonha quando a professora perguntou meu nome, pois
ainda não sabia pronunciá-lo. Contudo aprendi a escrevê-lo na primeira semana de aula.
Fui aprendendo tudo muito rápido, não só a matéria escolar como também sobre a vida. Vi
minha mãe chorar com minha dor e a frieza de quem não me amava. Ao primeiro ano de
escola, sofri um acidente que perdi quatro unhas da mão direita, quando um colega fechou
a porta da sala com minha mão no fecho da porta do lado de fora.
Nunca tive muitas amizades, sentia-me inferir a todos, morava numa casa de pau-apique de muita precariedade. Vi, muitas vezes, meus pais me olharem comer enquanto eles
choravam a dor de não terem o alimento suficiente para eles também; vi meu pai chorar e até
se revoltar quando a plantação dele era levada pela chuva e ele ter de ir trabalhar na roça dos
outros ganhando uma miséria semanal que só recebia sob cobrança. Senti uma dor profunda
ao ver os enormes calos nas mãos de meu pai e seus pés perfurados pelos espinhos e meio
apodrecidos pela lama e doía mais ainda, por parecer ser tudo inútil. E tudo isso me fez ter
mais vontade de estudar, de tomar um caminho diferente daquele tomado por meu pai e
minha mãe que casou cedo para sair de uma vida sofrida (ela conseguiu sofrer menos).
O tempo demorava a passar... tudo me fazia ser mais ansiosa.
Ao terminar o ensino médio, vi que não era o suficiente para conseguir realizar meus
sonhos. Meus pais questionaram se ainda era possível continuar os estudos, provei que sim.
Fiz vestibular, mas não tive o resultado esperado. Começaram às críticas dos parentes
privilegiados financeiramente, diziam que filho de pobre não pode estudar, que era preciso
deixar de ser orgulhoso e ir trabalhar em casa de família, casar e ter filhos. Porém, fui
persistente em meus sonhos, trabalhei sim, numa escolinha, causa de espanto para muitos,
mas não era tudo que queria, era muito pouco ainda. Chega o fim de ano e faço vestibular
mais uma vez. E novamente não passei. Começa mais um ano e dessa vez estava revoltada:
pensei em mudar de planos, mas certamente se eu desistisse me lembraria disso como um
fracasso meu e uma vitória daqueles que não acreditavam em mim. Saí do emprego que
tomava todo meu tempo, as coisas pioraram financeiramente, fui em busca de meus sonhos.
Estudei. Neste ano, tinha que passar, mas não passei. As cobranças foram maiores, pois
tinha deixado o emprego. Com mais garra ainda, recomecei a estudar. Chamaram-me para
trabalhar num escritório; lá, o trabalho era leve, dava até para estudar. Neste ano sim, eu
PASSEI NO VESTIBULAR DA UFS. Alegria total, quando ninguém mais acreditava, eu
consegui. Foi aí que um novo problema surgiu: como que eu ia todo dia para Aracaju à noite
se eu morava num povoado de uma cidade de interior? Foi então que solicitei residência
universitária. Preparei todos os papéis, fui para entrevista e planejei tudo. Se eu conseguisse
ia ter de pedir demissão do emprego, deixar minha família e morar com pessoas que não
conhecia. Por sorte, uma colega minha também pediu residência, poderíamos ficar numa
mesma casa. E foi assim!
A realização de um sonho trouxe muitas mudanças em minha vida e desencadeou uma
série de outros sonhos. E parecia um sonho quando pus meus pés na Universidade Federal
de Sergipe como estudante universitária. Pisava aquele chão com muito gosto, dizendo
para mim mesma que eu merecia, era minha conquista! Os problemas continuaram e os
sonhos também. Foi muito difícil acostumar-me com aquela nova vida, com aquele mundo
diferente, eu, que parecia ser uma menina de uma visão ampla, apesar de morar em interior,
deparei-me com um mundo totalmente diferente do que imaginei. Por um período, fiquei
70
Caminhadas de universitários de origem popular
depressiva. Estava tudo tranqüilo financeiramente enquanto estava recebendo o seguro
desemprego (isso porque meu ex-chefe foi compreensivo e me demitiu). Um mês antes de
terminar o seguro desemprego, fui procurar trabalho, pois em hipótese alguma, meus pais
poderiam mandar alguma quantia para mim. Então, comecei a trabalhar na secretaria de
uma escolinha, fiquei esperando o mês terminar pra ver quanto seria meu salário. Para
minha surpresa, foi meio salário! Mal dava para comprar passe escolar e alguns lanches.
Comecei a procurar outro emprego. Como não tinha tempo, mandava meu curriculum para
as empresas via internet. Foi então que uma empresa de transportes mandou um e-mail para
mim pedindo que eu levasse meu curriculum pessoalmente, pois estavam mesmo querendo
alguém com meu perfil para estágio em estatística. Fiquei muito entusiasmada, pedi folga e
levei meu curriculum, depois de mais de uma hora de reunião da direção da empresa
chamaram-me e disseram que eu poderia começar a trabalhar naquele mesmo dia. E naquele
mesmo dia comecei, fiquei muito feliz, ia ter um bom ganho no final do mês. Mas não sabia
da surpresa que viria. Pedi demissão, contei tudo para a dona da escolinha e ela ficou até
feliz por mim. Porém, no terceiro dia de trabalho na nova empresa, fui mandada para casa
com a justificativa de que iam preparar uma sala com computador para mim, pois estava
muito apertada a sala em que estava e nunca mais me chamaram, apesar de ter ido lá quinze
dias depois e sustentaram a mesma justificativa e garantiram que eu ia ser chamada. Bateume um desespero e resolvi pedir uma bolsa de trabalho na universidade; foi difícil conseguir,
pois já tinha a bolsa residência.
Depois de um tempo de sossego, vi um cartaz para seleção de vinte e cinco estudantes
para uma bolsa de trabalho de vinte horas semanais no valor de trezentos reais. Era bem
mais do que a bolsa que tinha no momento, mas já não acreditava que poderia conseguir, já
não estava com tanta sorte assim! No último dia de inscrição, levei todos os documentos
exigidos, depois fui para entrevista. Não coloquei nenhuma expectativa, mas disseram-me
que eu tinha sido selecionada. Fui conferir. Tinha um nome igual ao meu. Era eu. Lembreime de um ditado popular “gato escaldado tem medo de água fria.” só pedi o desligamento
da outra bolsa quando tive plena certeza de que ia dar tudo certo. Foi a melhor coisa que me
aconteceu - o Programa Conexões de Saberes.
E essa história não termina aqui, pois os sonhos continuam...
Maria de Fátima Ribeiro Menezes, 23 anos, janeiro de 2007.
Universidade Federal do Sergipe
71
Vida: um processo de aprendizagem
Maria Lucivânia da Cruz *
Nasci em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, em novembro de 1978. Iniciei minha
vida estudantil aos cinco anos, numa escola pública do bairro em que morava. Quando
cheguei à primeira série do ensino fundamental fui matriculada em uma escola particular
que fica no bairro vizinho ao meu; meus pais só conseguiram essa façanha porque foram
agraciados por Deus com um emprego para meu pai que já se encontrava desempregado há
dois anos. E foram dois difíceis anos, mas por fim superamos tudo.
Estudei nessa escola até a segunda série e, mesmo sendo escola particular, não era
tão boa e meus pais, percebendo isso, matricularam-me então no Instituto Dom Fernando
Gomes – escola de formação rigidamente religiosa, dirigida pelas Irmãs Terezinhas.
Apesar dos princípios rígidos, foi a melhor escola onde já estudei.
Quando cheguei à quinta série, passamos por novas dificuldades financeiras e voltei
a estudar em escola pública, porém, minha mãe, que sempre nos incentivou a estudar,
procurou uma das melhores escolas públicas da cidade – O Colégio Estadual Tobias Barreto.
Na primeira semana de aula, senti um grande impacto, pois já havia me acostumado à ordem
das freiras, ao bom estado de conservação da escola e ao rigor dos professores quanto ao
ensino e à aprendizagem. Na escola pública, como sabemos, à realidade é totalmente oposta.
Contudo, não tive outra opção a não ser me readaptar a essa outra etapa da minha vida e me
dedicar bastante para que os meus estudos também não ficassem defasados.
Concluí o ensino fundamental nessa escola em dezembro de 1995. Em 1996 fui estudar
no Colégio Estadual Atheneu Sergipense – atualmente: Centro de Excelência Atheneu
Sergipense – pois lá tinha um ensino público melhor. Concluí então o ensino médio em
1998. Decidida a não parar meus estudos, matriculei-me em um cursinho pré-vestibular
depois de ganhar uma bolsa estudo de 50%. Prestei vestibular pela primeira vez em 1999
para o curso de jornalismo que é minha grande paixão. Sem sucesso. No ano seguinte,
estudei como uma louca. Renunciei a tudo, até às minhas atividades no grupo de jovens da
Igreja à qual eu freqüentava, dedicando-me por inteiro aos meus estudos e às aulas no
cursinho que eram custeadas por minha irmã mais velha. Mais uma vez prestei vestibular
para Jornalismo. A concorrência do vestibular daquele ano (2000) foi uma das mais acirradas
visto que era o último processo seletivo com provas que constariam de questões objetivas
de múltipla escolha com cinco alternativas de respostas (A, B, C, D e E), das quais somente
uma estava correta. Dali em diante, às provas compreenderiam questões numéricas e/ou
*
Graduanda em Letras Português.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
questões de proposições múltiplas contendo cinco itens, numerados de 00 a 44, que poderiam
ser todos verdadeiros, todos falsos ou alguns verdadeiros e outros falsos, o que tornaria a
prova mais difícil e, portanto, o vestibular da UFS mais seletivo do que nunca. Mais uma
vez, não consegui ingressar na Universidade, apesar de ter obtido pontuação suficiente para
ser aprovada em qualquer curso de licenciatura. A decepção foi muito grande diante da
minha dedicação durante todo o ano. A cobrança da família também foi grande. Todos
criaram expectativas e se decepcionaram muito também. A notícia da minha aprovação,
para a minha família, teria a função de suavizar os problema pelos quais passamos no final
do ano anterior – à separação de meus pais. Porém, isso não foi possível.
Depois de toda essa turbulência pensei que a universidade para mim era algo muito
difícil de ser conquistado, quase impossível. Mas ao mesmo tempo, pensava: Por que as
outras pessoas conseguem e eu não? Eu não sou diferente delas. Se elas conseguiram, eu
também consigo. Nesse momento, tive o apoio e o ombro amigo de meu irmão Silvio, de
meu namorado João (hoje meu noivo) e de meus amigos do grupo de jovens (dentre os quais
se destaca a minha amiga, Angélica).
Precisando de dinheiro para custear o cursinho, comecei a trabalhar como operadora
de caixa em uma loja de frios de um conhecido de meu irmão, que era perto de minha casa.
Sabia que o meu rendimento no vestibular não seria o mesmo que no ano anterior devido à
diminuição do tempo destinado aos estudos, pois agora teria que conciliá-los com as oito
horas de trabalho. No entanto, precisava daquela aprovação. Então fiz um balanço das
minhas pontuações nos simulados e nos dois vestibulares que já havia prestado. Diante do
resultado, decidi então fazer Letras-Português, pois era um curso com o qual eu também
tinha afinidade e iria me servir de base para o tão sonhado curso de jornalismo. No ano de
2001, no meu terceiro vestibular, tive a tão desejada aprovação. Foi uma alegria muito
grande. Finalmente eu havia conseguido conquistar, concretizar, realizar meu tão desejado
sonho de entrar na Universidade Federal de Sergipe. Que alegria, que satisfação!!! Dentro
da Universidade, deparei-me com o Universo dos saberes e eu agora estava fazendo parte
dele. Que privilégio e responsabilidade eu tinha agora!
A alegria era grande, mas as dificuldades financeiras ainda me acompanhavam, pois a
loja na qual eu trabalhava fechou e eu fiquei desempregada. Foi então que me inscrevi nos
programas de bolsa de estágio da Universidade. Um ano depois, comecei a trabalhar na Próreitoria de Assuntos Estudantis (PROEST) e, com dois meses, fui convidada pela pró-reitora
para participar de um sub-projeto de Promoção Social do Idoso no Campus, sendo assim
transferida para o Núcleo de Pesquisa e Ações para a Terceira Idade (NUPATI).
Durante os seis meses, tempo previsto para a atuação do projeto, pude desenvolver
este meu aprendizado acadêmico porque tive a oportunidade de trabalhar na
maioria das etapas do projeto. Desde a pesquisa de campo, passando pelas ações e
intervenções, até a divulgação dos resultados através de relatórios e produções. Foi uma
experiência enriquecedora.
Ao final dos seis meses, tive a oportunidade de começar a trabalhar como estagiária
da Prefeitura Municipal de Aracaju através da Secretaria Municipal de Educação,
atuando como professora de Língua Portuguesa. Era a minha primeira experiência
como profissional na minha área (mesmo sendo ainda estagiária). Nesse momento, eu
já estava cursando o quinto período. Foi um momento de alegria, orgulho e muita
responsabilidade e também daquele friozinho na barriga por ocasião da primeira aula
Universidade Federal do Sergipe
73
que estava sendo ministrada. É, foi emocionante! Eu finalmente estava transmitindo
meu saber para meus alunos. Mais que isso, eu estava ensinando-lhes os primeiros
passos, educando-os para a vida.
Lecionei como estagiária por dois anos, até o término do contrato. Nesse instante,
houve a primeira seleção para estágio em um novo projeto oferecido pela universidade - O
Conexões de Saberes. Fiquei entre os vinte e cinco selecionados. Uma nova oportunidade
surgia à minha frente. Então, agarrei-a com muito entusiasmo e expectativa. Nele, meus
conhecimentos estão sendo aprimorados cada vez mais.
Hoje, chegando ao final do curso, percebo o quanto políticas públicas como programas
de estágios são importantes na vida universitária, por proporcionarem aos estudantes
experiências de desenvolvimento e avanço no saber: no saber científico, através das teorias
e das pesquisas e no saber popular, através das ações e intervenções sociais. E isso é
maravilhosamente enriquecedor.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha caminhada: é um orgulho para mim e
uma homenagem ao meu pai...
Marlene Alves dos Santos *
Devemos “amar as pessoas como se não houvesse o amanhã”.
Na vida temos perdas: perdas materiais e perdas familiares. Quando sofremos perdas
materiais é triste, porém, nós podemos conquistá-las novamente com muita luta; mas quando
perdemos pessoas próximas de nós por motivos que não conseguimos entender, entramos
em um abismo difícil de superá-lo.
Eu passei por uma tragédia imensurável em 2003: perdi o meu pai. Ele cometera
suicídio, até hoje me pergunto quais foram as razões que levaram meu pai a ter essa
atitude. Nessa época passamos por grandes dificuldades, porém, não era a primeira vez,
desde os dez anos, eu e meus irmãos de 9 e 11 tivemos que trabalhar na lavoura para
ajudar nas despesas de casa, pois o meu pai sofreu um acidente e quebrou a perna direita
e o braço esquerdo. Antes do acidente, pai trabalhava na lavoura e nas feiras livres de
Carira, vendia cereais. Minha mãe ajudava na lavoura e cuidava da casa: esse era o
nosso meio de sobrevivência. Com o acidente, pai ficou impossibilitado de trabalhar e
nessa época a família já era grande: seis filhos. Eu e os meus irmãos, que eram mais
velhos e minha mãe, tivemos que trabalhar muito para não passarmos fome. Nesse
momento, tivemos ajuda da comunidade que, comovida com a situação que estávamos
passando, nos ajudaram realizando um leilão beneficente para nossa família. Com o
dinheiro do leilão e nosso trabalho, não passamos fome. Nesse ano, plantamos muito e
justamente nessa época foi a melhor colheita que tivemos até hoje. O pai sofreu muito,
o braço consertou logo, porém a perna virou uma novela repetitiva de cirurgias, no total
foram seis.
Às dificuldades continuaram mesmo quando pai retornou a trabalhar; os verões
cada vez mais quentes com pouca chuva para encher os reservatórios de água, cavamos
dois tanques grandes só que nunca encheram quando meu pai era vivo. Não tínhamos
poços artesianos.
Todos os anos foram as mesmas dificuldades: no inverno plantávamos e o que podia
guardava para o verão como feijão, milho e farinha. No verão era problema: não tendo
irrigação e os tanques com pouca água. Tínhamos que acordar de madrugada para buscar
água numa carroça em tanques e poços artesianos da comunidade. Todos os dias
acordávamos a partir das duas, buscando água para podermos trabalhar numa pequena
área, e podermos sobreviver.
*
Graduanda em Matemática.
Universidade Federal do Sergipe
75
Eu e meus irmãos não tivemos infância e nem o período de adolescência, pois tínhamos
responsabilidades de adultos. Nós tínhamos que trabalhar e estudar, eles além de trabalharem
e estudarem viviam nas feiras livres de Itabaiana vendendo picolé, verduras e todo dinheiro
eram entregue para fazer a nossa feira. Eu, com dez anos, já era dona-de-casa e sabia cozinhar,
lavar, limpava a casa e tomava conta dos mais novos.
Em 1988, comecei a trabalhar nas feiras-livres de Itabaiana vendendo cereais. A partir
daí, comecei a ter o meu próprio dinheiro; era pouco, mas era meu. E foi também quando
tive a oportunidade de comprar às minhas próprias roupas, calçado; até então, o que eu
usava era doado pelos familiares.
No final de 2002 até 2003, passamos por turbulência, pois o tanque onde buscávamos
água estava secando, os nossos tanques estavam secos, não tínhamos água para beber,
íamos buscar água para as necessidades básicas em outro povoado próximo. Pai não tinha
trabalho, a lavoura morrera.
Nesse ano, quem sustentou a família fui eu e meus irmãos: José e Ariano, até começar
a colheita de 2003. Pensávamos supostamente que as dificuldades iriam diminuir; estávamos
errado, pai começou a beber e as brigas entre mãe e pai eram freqüentes. Mãe não se
conformava em ver tanto esforço jogado fora na bebida.
Nesses anos que se sucederam, já tinham falecido meus avós paternos, o casal que
criou mãe e meu avô materno. Minha mãe e meu pai herdaram três sítios, o que minha mãe
foi criada e aquele onde foi construída a casa em que mora hoje e dois sítios de três e duas
tarefas. Pai tinha um amor a esse sítio chegando um dia a dizer a minha irmã que se chegasse
a vender ficaria louco.
Quando passou a estação do inverno, os tanques continuavam secos, então, pai tomou
uma decisão: vender os dois sítios e cavar um poço artesiano. Vendeu, o poço foi cavado só
que ele queria que o poço desse três mil litros de água por hora, porém o poço só deu mil
litros de água por hora.
Percebemos que pai ficou triste porque ele queria demonstrar que estava feliz. O
dinheiro da venda dos sítios daria para cavar e instalar. Pai gastou uma parte em bebida e o
dinheiro não dava mais para comprar a bomba do poço que era cara.
O poço foi instalado com uma bomba de tanque, o que não é recomendável, pois
quebra com facilidade, mas pai fôra avisado; com um mês de funcionamento, quebrou; pai
colocou outra bomba do mesmo tipo. O clima de casa era péssimo, muitas brigas, pai cada
vez mais chegando bêbado em casa.
No final de 2003, numa madrugada, pai me acordara e me deu oito reais que estava
devendo ao meu patrão e fui dormir. Pai saiu, não desconfiamos de nada, pois era de costume
sair de madrugada para ir vender verduras no mercadão. Estávamos errados!
Agradeço a Deus todos os dias a família que Deus me deu. Uma família humilde,
trabalhadora; trabalhadora e carinhosa que criou oito filhos. Criaram principalmente pessoas
de bem, pessoas trabalhadoras, pessoas que correm atrás dos seus objetivos.
Hoje me arrependo de muitas coisas, uma delas é principalmente de nunca ter
falado o quanto eu amava meu pai, de nunca tê-lo abraçado, beijado. Hoje não tenho
mais essa oportunidade, porém, se pudesse voltar ao tempo para consertar esse erro...
mas isso é impossível.
Ele era um homem analfabeto, ignorante às vezes, porém uma pessoa com o coração
de ouro que veio à terra com a missão de fazer o bem às pessoas.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
Um homem que me ensinou a ser a pessoa guerreira, nunca desistindo de um sonho
mesmo que o mundo esteja contra, me ensinou também que sempre devemos seguir o
caminho do bem.
Já se passaram até esse momento três anos e até hoje choro a perda. Nesses anos, foram
vários momentos de tristeza e desespero me questionando se tudo isso era verdade. Uma
delas foi no meu aniversário de 2006: estava na universidade, entrei em desespero comecei
a chorar, chorava sem parar, meus colegas não entenderam o porquê; outro momento estava
escutando música que falava “onde esta você agora, além de aqui dentro de mim”. Chorei
horas. Outra vez foi quando estava retornando do Rio de Janeiro: eu estava realizando mais
alguns sonhos que era andar de avião e viajar; dentro do avião quando estava olhando as
nuvens, lembrei-me de meu pai porque eu sei que ele está ao lado de Deus e, naquele
momento, eu também estava mais próxima do meu pai.
Universidade Federal do Sergipe
77
Página em construção
Mikele Cândica Souza Sant’Ana *
Gratidão é coisa muito séria e é tolhida nesse sentimento que quero, primeiramente,
homenagear a pessoa mais importante de minha vida, a dona de todas as minhas realizações,
o meu socorro e o meu refúgio; a pessoa por quem eu luto.
À Maria Fausta
Era uma vez
Uma menina que cresceu forte
Venceu barreiras
Foi curiosa
E de menina a mulher
Muitos foram os preconceitos
Alguém que nunca alcançou
O seu mais secreto objetivo
Que não foi feliz
Mas que aprendeu
A rir, a chorar,
A vencer assim
A tomar remédio sozinha
A crescer sem mãe
Aprendeu a nunca chamar esse nome
A sempre esperar um beijo
A cantar a canção de ninar só
A trocar a fralda de seu primeiro filho
Uma mulher iluminada
Cheia de vícios
Que às vezes se torna chata
Que não sabe compreender os fatos à sua volta
Que se faz forte
E por dentro tem medo
*
Graduanda em Engenharia Química.
78
Caminhadas de universitários de origem popular
Uma mulher que protege os seus
Com todas as suas garras
Uma mulher de luta infinita
E que não acredita em um final feliz
Uma mulher que guarda às inúmeras mágoas pra dentro de si
Mas que dá o perdão a quem pedir
Uma mulher que dá orgulho de se olhar
Que faz você se impressionar
Um baú de segredos guardados só pra si
Uma mulher cheia de luas
Uma mulher que ama e sofre
Mas que vive mesmo sem deixar de sorrir
Sem parar de lutar
Mesmo achando que sua vida não irá melhorar
Uma mulher que se tornou símbolo de luta, orgulho e amor
E a senhora do castelo
O apoio procurado
O refúgio e o socorro
A cura dos nossos medos
O motivo da nossa união
A senhora a quem devemos respeito
Que recebe nossa admiração
Sinônimo de luta à menina virou mulher
E o destino ela espera
Olhando através das grades de sua janela
E continua vivendo a olhar...
Se um dia à sonhada felicidade irá chegar
E dizem que a vida é aquilo que acontece quando fazemos outros planos e o meu
nascimento passou bem longe de ser algo planejado. Sou filha de uma mulher forte, guerreira,
que luta e sofre... que não teve mãe e que se tornou uma, ainda muito nova e inocente. Meu
pai conheci aos 12 anos, isso porque ele abandonou minha mãe. Eram jovens namorados, à
época; à cultura e o regime da casa onde minha mãe foi criada tornou esse fato o início de
uma longa luta que dura até os dias atuais.
Maria Fausta, esse é o nome da guerreira que, ao ficar grávida, foi posta para fora de
casa e sozinha passou a lutar contra todos que não aceitavam meu nascimento: morou na
rua, pediu esmolas, foi doméstica, trabalhou em mercadinho e assim foi vivendo; passou
fome, mas sempre me alimentou, me agasalhou quando tive frio, me deu remédio quando
quase morri, fez promessa quando não viu saída, me deu amor sem saber ainda o que era
isso, foi humilhada e sofreu preconceitos por causa da barriga, mas a heroína da história foi
forte e hoje estou aqui para contar a minha história.
Sempre senti o imenso amor que minha mãe tem por mim, ela não mediu esforços e ia
além... lembro-me bem de certa vez em que ela pediu uma roupa emprestada para participar
de um concurso de música; não lembro ao certo o valor do prêmio, o que sei é que
precisávamos muito, pois passávamos necessidade. Minha mãe cantou aquela musica “...você
Universidade Federal do Sergipe
79
pra mim foi o sol de uma noite sem fim e acendeu o que sou e renasceu tudo em mim...”,
aliás, ela encantou, venceu o concurso. E muitos milagres aconteceram, acho que me amar
era a promessa diária de minha mãe.
Fui crescendo e muitos acontecimentos marcaram minha vida e construíram minha
personalidade. O nascimento do meu irmão, a formação de uma família, a força de mamãe e
a nossa luta por melhores condições de vida, tornaram esses primeiros anos difíceis, foram
anos de muita luta, em que minha mãe e meu padrasto tiveram que batalhar muito, unindo
forças para sustentar a casa, honrando a família.
Meu supermaninho era minha companhia, brincávamos muito e brigávamos
também, enfrentamos muitas aventuras juntos, encobríamos os nossos erros para que
mamãe não brigasse; nessa época ela começou a trabalhar no hospital como servente,
foi recepcionista e hoje está no controle de Ráios-X. Na época, ela ficava ausente
durante o dia e às vezes à noite. Eu e meu maninho fazíamos tudo só e nem sempre
atendíamos às recomendações: fui uma criança bastante travessa e ainda continuo assim,
mas os ensinamentos foram os melhores.
“Felicidade não é um ponto de chegada, é na verdade o caminho
a percorrer.”
E foi o caminho que escolhi para chegar aos meus ideais: sempre estudei e era boa
aluna, mas atrapalhava os professores vendendo “bugigangas” em sala, até achei que meu
futuro era o comércio.
Aos 12 anos conheci o meu pai: foram momentos diferentes, não sabia o que fazer e
nem como chamá-lo. Aos 16 anos, passei no concurso para estudar no Centro Federal de
Educação Tecnológica de Sergipe - CEFET/SE em Aracaju-SE e foi difícil sair do leito de
minha família, que reside em Estância-SE, para começar a caminhar com minhas próprias
pernas: aprendi a me virar sozinha, mas sempre que qualquer coisa apertava, eu voltava a
procurar o colo de mainha. Muitos amigos eu arranjei e novas famílias eu fiz, vivia
acampando um mês aqui outro ali; meus gastos eram supridos com uma bolsa auxilio do
CEFET-SE.
Meu dia era uma correria, fazia estágio de 20 horas semanais, cursava Ensino Médio e
curso Técnico e ainda desenvolvia pesquisas voluntárias na EMPBRAPA. Morei só em um
quartinho alugado, e verdadeiros anjos me ajudaram, me deram força e consegui completar
mais uma etapa; com essa correria, ainda passei no Vestibular. E cada hora, dia, mês que se
passava, meu sonho ficava mais próximo de se realizar.
Atualmente, sou aluna de Engenharia Química , curso o 4º período, meu maninho está
se preparando para viver tudo o que vivi, pois ele também passou na prova do CEFET-SE e
minha mãe já está sentido a ausência do meu irmão; é, mamãe, mas a frase que você sempre
fala não está tão correta assim “criamos os filhos pro mundo...”, pois as raízes foram sólidas
e apesar de estarem longe continuam ligadas.
Sempre tive muita sorte, quando uma porta se fechava, vinte janelas se abriam; e
quando minha bolsa-auxilio chegou ao fim e fiquei sem dinheiro para cobrir minhas
despesas, consegui uma vaga na residência universitária: moro hoje com 7 amigas e a
universidade supre todas às despesas com moradia e parte da alimentação. É importante
ressaltar que outra grande porta se abriu e a chave desta foi o Conexões de Saberes: hoje
80
Caminhadas de universitários de origem popular
sou pesquisadora extensionista desse projeto. A minha contribuição é transformar alunos
de comunidades carentes em multiplicadores de saber, ser espelho e contribuir para a
melhoria de vida dessas pessoas, motivando-as a terem esperança, a lutar pelos seus
sonhos e fazerem destes realizações.
Dentro desse projeto sou professora e aprendiz; muitos ensinamentos valiosos estão
sendo coletados por mim, aprendi a olhar o mundo de forma menos preconceituosa, de
forma mais esperançosa e hoje, luto para que tudo dê certo, para não ouvir mais meus
“meninos” (alunos) dizerem que a vida não é tão fácil assim, que dignidade é sonho e que
o futuro feliz às vezes não chega. Foi duro descobrir à realidade de alguns, mas luto para que
dignidade deixe de ser sonho e para que igualdade e paz sejam realidade. Estou tentando
fazer a minha parte...
“Tudo que eu quiser
Eu vou gritar bem alto que já quis
Esteja o meu destino onde estiver
Eu vou tentar a sorte e ser Feliz...”
Xuxa
Sinto que está ficando próximo o dia, cada vez mais meu sonho se aproxima de minha
realidade; tenho muitos amigos que se tornaram parte, foram meus pilares; uma grande
amiga eu perdi e “...dói de tanto medir à distância e saber que não vou lhe tocar além da
lembrança...” no mais SOU FELIZ e posso afirmar com muita certeza: “essa é a vida que eu
quis...” e a minha história não termina agora...
“Brindo a casa
Brindo a vida
Meus amores
Minha família”
O Rappa
Universidade Federal do Sergipe
81
Parte de minha caminhada
Paula Maria Oliveira Santos *
Meu nome é Paula Maria Oliveira Santos, nasci em 1981 na cidade de Capela, interior
do Estado de Sergipe. Hoje, moro em Aracaju, capital do Estado com a minha família;
venho de uma família humilde e tenho como exemplo de vida minha mãe, Maria José
Oliveira Santos e a minha avó Maria Dilza Andrade.
Nelas me espelhei para enfrentar todos os obstáculos impostos pela vida, pois elas são muito
lutadoras, incapazes de aceitar passivas às dificuldades do dia-a-dia. Sempre estudei em escolas
públicas, pois meus pais não tinham condições de pagar uma escola particular para três filhos.
Tivemos uma criação em que todos são iguais: o que pode ser feito pra um é feito por
todos e comecei a estudar. Desde cedo minha mãe sempre disse que o que temos de mais
importante na vida, claro, que depois de Deus, são os estudos e como não tinha condições
de nos oferecer outro bem, pelo menos, não nos deixaria sem o estudo para que pudéssemos
ter um emprego melhor futuramente.
Ela sempre quis ver todos os filhos cursando uma universidade, mas não poderia ser
qualquer, uma tinha que ser a Universidade Federal de Sergipe, pois é a melhor para tornar
as pessoas preparadas para enfrentar o mercado de trabalho e a vida;
Ao terminar o segundo grau, prestei exame vestibular e não obtive êxito e, com muito
esforço, a minha mãe pagou um cursinho de bairro e com pouca credibilidade, mas foi de
coração e pra mim é o que importa, mas no final do ano fiz as provas e consegui ficar entre
os classificados, mas não passei para a última fase, porém, a minha mãe não me deixou
desanimar e no ano seguinte, ela novamente pagou um outro cursinho e prestei novamente
vestibular: dessa vez consegui ser aprovada.
A felicidade foi tanta que falei primeiro para a minha mãe e a segunda pessoa, a saber,
foi a minha avó que ficaram tão felizes ou quem sabe até mais feliz que eu, pois o sonho das
duas era me verem, como também aos meus irmãos, tendo uma oportunidade de estudar em
uma universidade e progredir na vida.
No primeiro dia de aula na universidade foi uma loucura: tudo muito novo para mim;
tive que aprender a me localizar uma vez que não tinha ninguém para ajudar aos calouros a
acharem as salas; nem as didáticas. Peguei meus horários, entrei no Departamento de Direito
pensando serem as didáticas. Por essa razão, me atrasei para a aula; acabei no meio da
confusão encontrando uma amiga, do primeiro cursinho que freqüentei que, por incrível
que pareça, também se encontrava perdida.
*
Graduanada em Pedagogia.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
Então resolvemos nos ajudar e o mais legal é que descobri que ela havia passado para
o mesmo curso que eu e no mesmo ano. Então, nós fomos para a sala que achávamos ser a
nossa sala. Como estávamos atrasadas, tínhamos perdido a apresentação do professor e
ficamos lá até que em um determinado momento em que o professor menciona o nome da
matéria Política II e a minha matéria seria Política I. Ficamos desconcertadas e todos
perceberam que estávamos na sala errada e, quando nos levantamos para sairmos, todos os
alunos bateram palmas, uma forma de demonstrar que sabiam que éramos calouras.
Com o passar do tempo na universidade, passei a conhecer apenas a estrutura física
dela e achava que era só aquilo a universidade, mas quando tive a oportunidade de
ingressar no Programa Conexões de Saberes, pude perceber que a universidade vai além
de suas paredes.
Formar pessoas é mais que oferecer leituras e um conhecimento que depois de sua
ida para o mundo não saberá onde nem como aplicá-los; é dar aos alunos a possibilidade
de ingressar em uma universidade, mas também permanecer nela e com dignidade, tornálos cidadãos pensantes e enquanto acadêmico, uma pessoa envolvida com seu
desenvolvimento cultural.
O programa me fez ver o quanto é importante compartilharmos os saberes, sejam eles
científicos ou populares, pois é através deles que construímos os saberes da nossa vida; não
possui nenhuma pessoa que seja somente saber popular ou puramente saber científico, mas
sim, pessoas que unem essas duas vertentes de saber para construir uma vida mais produtiva
e se constituir pessoa.
Depois do Programa Conexões de Saberes pude ver o papel real de uma pessoa perante
a sociedade que não facilita as coisas para alunos de origem popular os quais conseguem
ingressar em uma IFES (Instituição Federal de Ensino Superior) chance pela qual devemos
lutar não só pela entrada dos estudantes de origem popular em universidades, como também,
pela sua permanência nessas instituições.
Estou me esforçando para melhorar a minha atuação na universidade já que agora tenho
uma ajuda para permanecer nela e cursá-la com qualidade, além de contar com a expectativa
de conhecer melhor às possibilidades de atuação em minha comunidade de origem.
Universidade Federal do Sergipe
83
Fontes de estímulos
Shirlei Souza Passos *
Sempre tive meus pais como minha fonte de estímulo, eles sempre foram a minha força
e a razão de toda a minha persistência em busca dos meus ideais.
Bem, meus pais são de origem humilde, principalmente minha mãe. Cresci ouvindo
suas lições de vida, pois essa mulher batalhadora ainda em sua vida de solteira percorria
quilômetros carregando lenha e água na cabeça juntamente com seus irmãos mais velhos,
pois o fogão era à lenha e não havia água encanada. Ela não conseguiu nem concluir a
terceira série do ensino fundamental: eram muitas às dificuldades que tinham que enfrentar
para prosseguir estudando.
Meu anjo, ou como queira, meu pai veio de uma família que tinha uma condição um
pouco mais favorável, mas só estudou até a quarta série do ensino fundamental.
Ambos casaram aos 19 anos e graças a Deus essa união já dura quarenta e quatro anos.
Tiveram quatro filhos, Wellington, Cleverton, Cheila e eu. Os três primeiros filhos nasceram
em casa; eu fui a única a nascer na maternidade. Meus pais sempre foram muito presentes,
nos deram e nos dão muito amor, atenção e compreensão.
Um Pouco da minha infância
Meus primos foram meus grandes amigos de infância, não tínhamos brinquedos, mas
isso não era problema, pois meu pai fazia no quintal casinha com pedaço de madeira e
cobria com papelão. Era lá que me refugiava em momentos de tristeza e alegria.
Minha primeira boneca ganhei de uma vizinha, era usada, mas ao vê-la, meus olhos
ingênuos logo lacrimejaram, pois sempre sonhei com uma; até hoje tenho-a comigo. Vivíamos
com a renda de um pequeno bar que se situava em minha própria casa e o dinheiro arrecadado
mal dava para nossa alimentação. Lembro-me de momentos muito difíceis e de profunda
tristeza do meu pai, pois as dívidas chegavam e o pouco dinheiro era insuficiente para fazer
a feira e arcar com as despesas da casa.
Era uma criança ansiosa, mas muito comunicativa. Aos dez anos, era vendedora, porta
em porta, de produtos apresentados em revista. Depois, comecei a vender perfumes para
uma vizinha da minha tia. No início era bom, pois ela me pagava a porcentagem certa, mas
com o tempo isso mudou: a cada dinheiro que recebia, achava que ia solucionar o problema
da minha família.
*
Graduanda em Matemática Licenciatura.
84
Caminhadas de universitários de origem popular
Apesar de tudo só tenho boas recordações da minha infância, pois era muito amada
por meus pais e sempre contei com a ajuda de minha tia Patrocínia que costurava e fazia
roupa para mim.
A escola em minha vida
Comecei a estudar aos cinco anos, na Escola Estadual Sílvio Romero. Só saí dessa
quando terminei o ensino fundamental.
Enquanto aluna, sempre fui dedicada, gostava de estudar. Meus pais não sabiam me
ensinar, pois a escolaridade era pouca e meus irmãos não tinham paciência. Então, contei
com a ajuda da minha vizinha Nivalda que, com muita singeleza, me ensinou a ler e escrever.
Ainda na 6ª série do ensino fundamental por influência da professora Auxiliadora que
ministrava tão bem as aulas de matemática, despertei o desejo de estudar e ver essa disciplina
de forma especial. A partir desse momento, sempre tive uma certeza: quero ser professora de
matemática. Quando, na sétima série, revelei isso a uma outra professora da mesma disciplina,
fiquei surpresa com sua resposta, pois falou-me que não era tão simples, pois era necessária
minha aprovação no vestibular, pois além dos sergipanos na disputa tinham pessoas de
outros Estados, e o número de alunos da rede pública que conseguiam passar nesse exame
era pouco. Foi a primeira vez que ouvi a palavra vestibular e isso me fortaleceu bastante,
pois sabia que meu desejo não era tão simples como imaginava. E, no meu íntimo, tinha a
certeza de que um dia ia conseguir.
Nessa escola, na época só tinha o ensino fundamental. Foi então que, após o final da oitava
série, pedi a meu pai que me inscrevesse no exame de seleção do CEFET/UNED-Lagarto, pois
desejava fazer meu ensino médio lá. Consegui ser aprovada, meus pais ficaram muito felizes,
pois viam como era disciplinada nos meus estudos. Por ser uma escola pública de boa qualidade,
estudei com pessoas de diversas classes sociais, mas nunca me senti inferior.
A partir do segundo ano, na mesma escola, comecei a fazer o curso técnico de
Construções Prediais. Gostava muito, mas ao final do terceiro ano, tomei a decisão de fazer
o trancamento desse curso profissionalizante e ir em busca do sonho de ingressar em uma
universidade pública.
Com o dinheiro que ganhava dando aulas de reforço em minha casa e com a ajuda de
meu pai, consegui pagar o pré-vestibular. Foi um ano muito difícil, a situação financeira em
minha casa estava cada vez mais crítica e eu cobrava de mim essa aprovação. Estudava
todos os dias, renunciei a finais de semana e minhas madrugadas de sono, pois precisava ser
bem-sucedida profissionalmente e proporcionar uma vida melhor aos meus pais. Como
estava com um ritmo muito intenso de estudo e me cobrava bastante, fiquei ansiosa e o
nervoso me possuiu.
Como não tinha parentes em Aracaju, fui fazer as provas todos os dias num táxi
lotação. Todos contavam com a minha aprovação, pois me dediquei muito, mas não consegui.
Além da insegurança, no terceiro dia de prova, esqueci meus documentos no táxi. Sem eles,
minha entrada na escola não seria possível. Após muitos transtornos e momentos
inesquecíveis de desespero, consegui entrar no colégio, porém, não tinha mais condição
emocional para fazer o exame e acabei desmaiando.
Fiquei decepcionada, mas contei com o apoio do professor Guido que me arrumou
bolsa de estudo integral em um pré-vestibular. Gostava das Exatas, logo decidi fazer um
curso de concorrência menor, pois não queria correr o risco de ser reprovada e continuar
Universidade Federal do Sergipe
85
trabalhando nas lojas do comércio da minha cidade, pois o dinheiro que recebia mal dava
para a xérox. Foi então que decidi por Química Industrial. Eu e minha família ficamos muito
felizes com a aprovação, confesso que até hoje não experimentei sensação melhor. Mas o
curso era diurno e eu não tinha onde ficar, nem como me manter em Aracaju. Recorri ao
programa de Residência Universitária que me acolheu, e atualmente divido apartamento
com sete pessoas além de mim.
Ao iniciar o curso, percebi que tinha feito a escolha errada, pois só gostava das aulas
de cálculo. Revelei aos meus pais o que estava acontecendo comigo e tive apoio. Mas
infelizmente o dia da compra do formulário de inscrição passou, e não tive dinheiro para
comprá-lo. No último dia de levar o formulário preenchido com a escolha do curso na UFS,
minha amiga Ana Maria me ligou e pediu que eu fosse pegar um envelope com um colega
nosso. Para minha surpresa, ao abri-lo, deparei-me com a inscrição e além disso, todo o seu
apoio, pois sabia o quanto isso era importante para mim. Fui aprovada novamente, sou a
única universitária de toda minha família.
Agradeço a Deus por tudo que tem feito em minha vida, especialmente por ser bolsista
do Conexões de Saberes, Programa que possibilita minha permanência na UFS e que me
proporcionou o prazer de ter minha primeira turma de alunos, firmando assim minha vocação.
86
Caminhadas de universitários de origem popular
A árvore da minha vida
Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues *
Não foi fácil, mas até aqui cheguei. O caminho percorrido é passado, mas jamais
esquecerei. Afinal, não me sai da memória, o tempo bom de interior, a cidade de Propriá,
onde nasci e me criei. É claro que nem tudo foram flores: quando eu nasci em 11 de junho
de 1985, meus pais além de serem novos, ainda dependiam de seus pais para o seu próprio
sustento. Foi numa casa cedida pelos meus avós paternos que construímos o nosso cantinho,
lugar onde reside toda a nossa história, onde se encontra aquela parede rabiscada pela
emoção de se conhecer às primeiras letras do alfabeto, a cadeirinha feia que eu tanto cansei
de visitá-la. Foi lá também que presenciei as discussões dos meus pais na busca de soluções
para os problemas financeiros, inclusive onde eu iria estudar, já que as escolas infantis na
sua maioria eram pagas, até que uma senhora de muita sabedoria chamada Maria de Lourdes
começou a ajudá-los não só no aspecto financeiro, mas de qualquer outra forma possível,
foi a minha querida vovó, o pilar sustentador da minha família nos primeiros anos. Com
auxílio de uma bolsa pude realizar meus estudos numa escola católica da cidade durante 15
anos. A mesma escola onde estudavam os filhos dos políticos, comerciantes de toda a
redondeza do baixo São Francisco. Esse convívio fez nascer em mim uma certa vergonha da
minha origem, perdi as contas de quantas vezes inventei uma desculpa qualquer para não
levar os meus coleguinhas para a minha casa, de quantas vezes escondi os meus livros do
resto da turma para que eles não percebessem que eram de segunda mão, com receio de ser
taxada de pobre e ser discriminada. Foi todo esse processo que me fez tomar consciência de
quão é excludente a sociedade, como também, que a maioria das pessoas julgam pelo que
você tem e jamais pelos valores e princípios que possui e assim deixei de dar importância ao
que iam pensar ou falar de mim e me dediquei ao máximo para ser eu mesma. Foi assim que
conheci pessoas que conjugavam o meu pensamento; daí, se formaram verdadeiras amizades,
e que almejavam um mesmo sonho: o ingresso na Universidade Federal de Sergipe. Um
sonho que, para mim, seria uma forma de agradecimento aos meus pais que tanto se
sacrificaram por mim e pelos meus dois irmãos. Ter passado no vestibular foi um dos
momentos inesquecíveis da minha vida, mas só foi o primeiro passo. As atenções se voltaram
para como seria a minha permanência numa cidade desconhecida e sem os meus pais; a
segunda batalha vencida foi ter sido selecionada no Programa de Residência da UFS em 1°
lugar. Mudanças extraordinárias aconteceram na minha vida entre 2003 e 2004 e quando
me percebi estava morando numa cidade diferente, estudando na UFS e academicamente
*
Graduanda em Serviço Social.
Universidade Federal do Sergipe
87
feliz, totalmente apaixonada pelo Serviço Social. A entrada no Conexões em 2006 reforçou
todas as transformações intelectuais que vinham fazendo parte do meu processo de
amadurecimento, no sentido de fortalecer os valores nos quais acredito como essenciais
para a formação de um mundo melhor, de pessoas realmente humanas no modo de agir.
Acredito que todos podem fazer a sua parte: a árvore tem que ser plantada por cada um de
nós, mas não de qualquer jeito, pois se lhe podarem as folhas, a árvore deverá ter forças para
brotar novamente e mais viçosa;
o seu caule deve conter aquilo que se tem de mais precioso:
honestidade
humildade
esperança
liberdade
família
amizade
justiça ética
amor, garra, união
vontade de vencer
e as suas raízes dizem tudo:
ÁRVORE DA MINHA VIDA
88
Caminhadas de universitários de origem popular
Retalhos do eu... por mim mesmo
Tiago do Rosário Silva*
Olha estas velhas arvores, mais bellas
Do que as arvores novas, mais amigas:
Tanto mais bellas quanto mais antigas,
Vendedoras da idade e das procellas...
O homem, a fera e o insecto, à sombra dellas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarellas.
Não choremos, amigos, a mocidade!
Evelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:
Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos
Dando sombra e consolo aos que
padecem!1
Do caos deriva o turbilhão de possibilidades de formação das coisas, ou seja, a partir
do emaranhado de átomos que se movimentavam de forma desordenada, formaram-se
mundos, dos quais um deles é o nosso, este mundo bizarro, no qual somos obrigados a ser.
Não apenas ser, mas ser Ser. Podemos pensar nos milhões de espécies de vida que existem no
mundo, toda a flora e a fauna apenas existem, diferentemente, o ser humano precisa de um
sentido para viver, não nos basta viver, é preciso viver vivendo. Foi dessa forma que se
constitui a história de um jovem de origem popular, que não é só minha, mas também da
minha família e das pessoas que fazem parte de minha vida.
Escrever sobre mim mesmo é sempre algo difícil, que requer toda a atenção possível.
É reviver o já experimentado, de modo que tenho a possibilidade de sentir prazer, tanto
quanto de ferir-me novamente. Porém, faz-se necessário dizer algo sabre aquilo que pode
ser a minha história. Posso escrever em duas pessoas verbais: na primeira, sendo que, com
Graduando em Filosofia.
1
BILAC, Olavo. Poesias.Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1916, p. 220. (Sexta edição revista).
Universidade Federal do Sergipe
89
esta comprometo toda minha fala, ou na terceira, na qual me ausentaria de mim mesmo,
tornando-me apenas um outro que fala de mim. Mas ainda que recorresse ao lirismo da
poesia não seria possível dar a conhecer aquilo que se vive; toda experiência é extremamente
pessoal, mesmo que compartilhada com outros tantos que se nos aproximam. São tantos os
modos que a linguagem nos permite expressar o que somos que nenhum deles diz o nosso
ser. Nesse momento, recorremos ao que foi posto por Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”.
Essa foi, é e será a eterna ânsia de conhecer do ser humano.
Reviver em memória
Primeiro saiba que eu poderia não ser hoje esse que sou... Tiago, já que dizem que o
que nos identifica é o nome. Não o vejo assim, o que nos diferencia do outro é o eu mesmo,
de modo que sendo Bartolomeu, Zé da Silva, Tertuliano, Xiculino ou qualquer outro que a
minha mãe, Maria Francisca do Rosário Silva com o consentimento do meu pai, José de
Carvalho Silva, quisesse convencionar que fosse o meu nome, não me diferenciaria do que
sou, apenas seria chamado de forma diferente (do que sou), pois sendo outro, seria apenas
outro (exteriormente). E sendo assim (mesmo outro), continuaria sendo o irmão mais novo
do meu irmão mais velho, João Marcos, até que nascesse o meu irmão mais novo, João
Diego, formando o trio que construía fazendas com pedaços de pau e comercializava bois
de barro ou de búzios.
Meus seis primeiros anos de vida foram vividos na roça, como se diz por aqui. E nesse
tempo, lembro-me muito bem de cada tanque seco com suas rachaduras poéticas. Desde
essa época, algo em mim já era diferente, sentia um impulso que me levava mais longe,
recordo-me que admirava as pedras e nelas via algo muito diferente do que são. Pensei
muitas coisas em relação à elas, imaginei grandes construções e possibilidades de infinitude,
no entanto, tudo isso era o que não conhecia. Rememoro também que podia ver o mundo
além dos brinquedos que nunca tive. A certeza de que a natureza tem regras próprias e não
permite que as injustiças sejam eternas, já era um consolo. E isso me permitia toda a alegria
do mundo quando meu pai chegava da feira aos sábados e trazia bolachões; essa alegria era
ainda maior quando, em vez de qualquer outra coisa, trazia doces, pois uma bala que fosse
eternizava meu sorriso, como o de qualquer criança do interior.
Tudo isso só foi possível depois do que chamo de “ressuscitamento do eterno”. Eu
nasci com um tumor na cabeça e este foi sinal de incômodo inigualável em minha primeira
vida, diz minha mãe que foram dias de “choro eterno”. Eu não posso recordar esse sofrimento;
foi no meu primeiro mês de vida, destarte, posso reconstruir a partir dele a possibilidade de
uma vida, a que vivo, oposta a uma não existência no mundo, ou de uma simples existência
vegetante. Esta vida, além de ser debitada no íntimo daquele que é o ordenador de tudo, eu
a agradeço, por meio d’Ele, a duas mulheres de fibra, tia Ávila e vovó Joana. Hoje, apenas
o que tenho desse sofrimento, são marcas que não me possibilitam raspar a cabeça... risos.
A certeza de que a nossa pobreza nunca seria o bastante para tornar-nos grandes, era a
mesma da força para a luta que poderia nos eternizar. Foi isso que impulsionou meus pais a
mandarem primeiro meu irmão mais velho para a cidade, deixando-me com uma inveja boa,
que teria satisfação no ano seguinte, quando todos nós fomos morar na cidade, na casa de
Josina Francisca, minha avó materna. Nesse momento, começa para mim uma jornada de
esperança depositada nos estudos. Posso dizer sem ressentimento, não tinha o menor jeito
para a lavoura e isso foi percebido pelos meus pais. E tinha um sonho que não me era
90
Caminhadas de universitários de origem popular
permitido realizar por muito tempo, qual seja, o de cavalgar. Quando pude fazer isso pela
primeira vez, foi longe de casa, num sítio de meus tios. A experiência foi unificadora, o
cavalo disparou em tamanha velocidade que pude sentir ainda mais o quanto a natureza
corresponde ao respeito devotado pelos homens. Sentir o vento contra mim, me aproximava
da natureza, isso era gratificante já que a possibilidade de cair me fazia segurar mais nas
rédeas que quase não existiam; assim, veja como tem sido a minha existência.
Os primeiros anos na cidade
Quando fui morar na cidade, Poço Verde-SE, comecei na primeira série do Ensino
Fundamental. Fiquei encantado com a professora e nesse tempo já era dedicado, pois
nenhuma criança de seis anos queria ver a professora nua na sala de aula. A minha professora,
Ana Rita, ameaçava que se fizéssemos bagunça, ela iria tirar a roupa.
Por saber que o meu caderno teria que durar o ano inteiro, jamais arranquei uma folha
para futilidades. Para os rabiscos que gostava de fazer eu conseguia bilhetes de loteria, e usava
o verso das folhas de exercício. Isso provocava um amontoado de papéis velhos que eu
sempre admirei. Gostava de me imaginar com muitos papéis e livros espalhados perto de mim.
É bom lembrar que, paralelamente à educação escolar, veio também a formação
religiosa, inicialmente muito pesada para uma criança. Minha avó materna já estava
esclerosada e se perdia todos os dias ao voltar da Igreja; e olhe que morávamos a apenas
uma quadra da Matriz. Desse modo, fui obrigado a acompanhá-la todos os dias e dormir
durante às inacabáveis homilias do padre, o que depois se tornar menos pesado por me
sentir útil recolhendo os cadernos de canto ao final da missa. Isso se tornara prazeroso
porque depois de algum tempo comecei a ir para a catequese e lá tive aproximação com as
Irmãs de Santa Maria de Namur, que foram as formadoras religiosas de gerações na minha
cidade. Como sempre fui muito danado, algo que parece comum aos Tiago-s, de vez em
quando Irmã Gabriela chegava para ter conversas sérias comigo, o que me deixava muito
temeroso, mas logo passava.
Lembro-me de que na escola, minha turma e eu éramos um pouco exaltados e
buscávamos além daquilo que nos era proporcionado. A vida escolar além de dedicação aos
estudos foi uma grande aventura. Talvez o leitor possa duvidar de nossa sanidade, porém,
tudo o que vivemos fôra excepcionalmente emocionante. Na quinta série, a professora de
redação pediu que criássemos um produto e fizéssemos a propaganda deste. Aqueles amigos
mais próximos tinham algo em comum e depois da propaganda resolvemos ter uma (maluca)
experiência de um casamento extraterrestre, no qual alguns eram marcianos e outros
jupterianos. Pode ser loucura, mas esse ato movimentou a turma inteira. Então, marcamos a
data do casamento, ao qual sabíamos que ninguém compareceria, assim como acontece
constantemente na vida humana. É como se estivéssemos apenas interpretando uma grande
peça teatral: a vida. Nela, quando queremos simplesmente não comparecemos, não
assumimos as responsabilidades de uma vida pautada na virtude, chegamos a desconsiderar
todos os nossos valores apenas para não corrermos riscos. É muito fácil estar isento de
pronunciar, de manifestar nossas concepções e confrontá-las com as de outros, desse modo,
a lógica individualista nos põe cada vez mais afastados uns dos outros e sem perspectivas
de ações em comum. Na atualidade, a luta tornou-se muito pessoal e não se pensa mais no
todo; desse modo, somos obrigados a nos dedicar exclusivamente ao que nos propomos
para crescermos, porém, sozinhos.
Universidade Federal do Sergipe
91
E depois...
Na seqüência vêm as quatro moças com seus potes de água nordestina, minhas quatro
irmãs Maria Aparecida (supracitada), Ana Taynara Silva, Josynadlla e Josefa Mirian, às
quais tenho um carinho muito especial, mas que ainda não sei o que farão de suas vidas. Ao
dizer “potes de água nordestina” quero ressaltar o orgulho de fazer parte desta terra, o
Nordeste. Uso essa metáfora para expressar a esperança e a luta por um futuro promissor.
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida é dura.
Nada na alma lhe diz
Mas que lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vêm.
Ser descontente é ser homem.2
Existe um tempo na vida em que o ser se torna agonizante, é o momento das grandes
dúvidas. Nele não sabemos o que somos, nem se somos; tornamo-nos encarnação da dúvida
e nela nos questionamos: O que sou? Quem sou? E o mais angustiante, o que quero ser?
Nesse estágio da vida humana, o tempo se torna eterno e nunca acreditamos chegar a uma
conclusão, talvez porque não se chega ao fim senão pela morte. No entanto, não é possível
viver sem decisões e elas sempre são escolhas, através das quais sempre que as efetuamos
ganhamos algo, mas também perdemos outra coisa. Só saberemos se realmente foi válido ter
escolhido depois de fazer a experiência e isso requer tempo vivendo o que se quer viver.
Desse modo, se passou meu tempo de ensino médio e minha primeira escolha foi fazer
vestibular para filosofia. Meus pais não aceitavam porque sabiam que jamais iriam poder
me manter na capital, mas eu era teimoso e sempre acreditei em minhas possibilidades, lutei
pelo que acreditei; é tanto que eu trabalhava na feira fazendo carrego (como se diz em
minha cidade: pegando frete) porque sabia que não seria possível tirar do orçamento familiar
o dinheiro para pagar a taxa de vestibular e comprar os livros de que eu iria precisar. Me
recordo muito bem que nem na biblioteca municipal, nem na da escola, existia um exemplar
que fosse dos livros de literatura exigidos para o concurso. Trabalhei seis semanas para
comprar o primeiro livro, (o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles) o qual li
com muita dedicação, assim como, fiz com os outros.
2
PESSOA, Fernando. O eu profundo e outros eus. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1994, pp. 60-61.
92
Caminhadas de universitários de origem popular
Nessa época, fiquei sabendo de uma prova de seleção para o Projeto Alvorada, que
englobava cinco bolsistas e duas coordenadoras, pessoas de comunidades populares
para trabalhar com as comunidades populares. A vaga se deu devido ao fato de um dos
bolsistas ter se afastado, pois o projeto já estava sendo executado há algum tempo. Me
inscrevi, fiz a prova e a entrevista e enfim ao receber a notícia de que havia passado para
ocupar a única vaga em pleito, fiquei muito feliz, foi mais um motivo continuar
acreditando em mim. O trabalho foi gratificante, pois eu me reconhecia no meio e sentia
prazer no que fazia.
No Processo Seletivo Seriado (PSS 1ª e 2ª séries) da Universidade Federal de
Sergipe, fiquei numa colocação que considero boa. Era meu sonho entrar para a
Universidade, e o Seminário também fazia parte dos meus sonhos. Estava disposto a
abandonar o sonho da Universidade (pelo menos no momento) para me dedicar à vida
religiosa. Fiz os encontros vocacionais na Diocese de Estância, decidi pela caminhada
religiosa e passei no vestibular.
Ao receber a notícia da aprovação no curso de Filosofia da UFS, fiquei muito feliz, era
gratificante receber um bom resultado do investimento feito durante tanto tempo. Porém,
levei a fundo a decisão de ir para o seminário e desisti da Universidade e no mês de fevereiro
de 2004, mais precisamente no dia 21, viajei para a cidade de Estância-SE. Para isso, tive o
apoio de minha família, da comunidade e do padre da minha paróquia. Deus teria reservado
algo novo para mim: o Reitor do Seminário (Pe. Adeilton) e o Pároco (Pe. Ribeiro)
conversaram com o Bispo e me foi permitido fazer o curso de Filosofia na UFS, sendo
seminarista. Sempre busquei corresponder à tal oportunidade, talvez incompreendida por
alguns. Foi um tempo enriquecedor, a vida religiosa nos ensina a viver em comunidade, a
dividir alegrias e tristezas, tornando comum o que é particular e preservando a
individualidade de cada um. Buscava conciliar o Seminário e o Curso de Filosofia, o que
não é fácil, porém não se pode dizer ser impossível, sempre conseguir.
Entrei no Seminário por uma certeza e permaneci por uma dúvida. Uma ajuda enviada
por Deus foi a direção espiritual do Pe. Humberto, pessoa que sempre pareceu justa e digna
pela peculiar coerência ao Evangelho. Foi uma das principais pessoas com quem conversei
e pude partilhar todas às angústias em relação a mim mesmo, à religião, e ao mundo, pois
nem sempre as pessoas estão dispostas a ouvir questionamentos sobre aquilo que fazem. A
filosofia sempre me fez questionar sobre a religião, sobre Deus, porém, nunca pôs dúvidas
quanto a minha fé n’ELE. Isso foi bastante para conseguir tomar a decisão de sair do Seminário
por minha conta, na hora certa, sei o quanto deve ser de doação a vida sacerdotal e não
estava preparado para tal, muito menos para ser incoerente ou irresponsável. Foram dois
anos de constante insatisfação com a dúvida que me corroía, seria trágico se não fosse
cômico, mas essa angústia me presenteou oito meses de enxaqueca diária antes de tomar a
decisão. O que de certa forma prejudicou o meu rendimento tanto na no curso quanto no
âmbito da vida religiosa por não conseguir me concentrar.
Tudo correu bem de modo que foi se confirmando que a decisão estava certa. No
mesmo mês em que saí do Seminário, consegui me inscrever para o Programa de Residência
Universitária da UFSE e para o Programa Conexões de Saberes, do qual não tinha nenhuma
referência. Fui selecionado para ambos os programas e, enquanto esperava a convocação
para ocupar a vaga de residente, morei com alguns amigos de infância que se mantêm
também com dificuldades.
Universidade Federal do Sergipe
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Na universidade enfrento grandes dificuldades, as quais não vou enumerar aqui, mas
é bom lembrar que muitos jovens passam por isso devido ao sistema de exclusão que as
universidades desenvolvem, tudo isso também se dá devido ao sistema educacional não
proporcionar bases sólidas. Mas quero dizer que o Conexões é uma porta pela qual ainda
muitos estudantes de origem popular irão passar e terão oportunidades, mesmo não sendo
ele suficiente para resolver os problemas da educação brasileira.
A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já
recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha
atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se
tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima se abrevia, até
que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda
acabada, passar inteiramente para o domínio da memória.3
Enfim, este momento dá azo a diversas possibilidades de rememoração, mas não podemos
aqui dizer muito. O que foi dito é apenas parte do que pode ser um todo que não é todo.
Referências Bibliográficas
PESSOA, Fernando. O eu profundo e outros eus. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1994.
BILAC, Olavo. Poesias.Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1916, p. 220.
(Sexta edição revista).
AGOSTINHO. Confissões. Trad. De j. Oliveira Santos, S. J., e A. Ambrósio de Pina, S. J. São
Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 229.
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AGOSTINHO. Confissões. Trad. De j. Oliveira Santos, S. J., e A. Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, p. 229.
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Caminhadas de universitários de origem popular
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