INDÚSTRIA, ENERGIA E DESENVOLVIMENTO RICARDO LIMA O tema energia elétrica deixou, felizmente, de ser um assunto restrito aos técnicos e especialistas do setor. Mesmo seus termos específicos, jargões e siglas, passaram a fazer parte do cotidiano de parcela significativa de nosso “povo”, como gostam de chamar os populistas de plantão. Mas, por outro lado, e como todo bastão tem duas pontas, essa popularização se deu, infelizmente por razões nem sempre benéficas à sociedade e à economia brasileiras, ou seja, por crises sucessivas e notícias poucas vezes positivas. Quando, no início da década de 90, vejam só, do século passado (!), com a Lei Elizeu Rezende, houve o final da chamada remuneração garantida para as concessionárias de energia elétrica, o Tesouro Nacional “bancou” cerca de US$ 22 bilhões (guardem este número) para que as tarifas fossem desequalizadas e estabeleceu a necessidade de contratos entre geradores e distribuidores e tarifas realistas, baseadas no custo do serviço. Naquela época, tal debate, apesar dos vultosos valores envolvidos, não chegou até a população. Mas isso foi o que deu início, ou foi o que possibilitou o nascimento, alguns anos depois, na esteira das leis de concessões, de uma verdadeira reforma estrutural no setor, o Projeto RESEB, iniciado em meados daquela década. O conjunto de mudanças decorrentes do processo incluiu a desverticalização das empresas elétricas, a retomada dos investimentos e conclusão de diversas obras paradas, o fim da inadimplência sistêmica que atingia novamente o setor elétrico, a criação do mercado livre, das figuras do consumidor livre, do comercializador e do produtor independente de energia, do Operador do Sistema Elétrico e do Operador do Mercado (ASMAE), a privatização de diversas empresas e, não menos importante, a criação do agente regulador e fiscalizador, que nasceu para ser independente, entre outras medidas saneadoras e modernizadoras do setor elétrico. Esse modelo, implantado do final da década de 1990, era fortemente apoiado nas leis do mercado e previa a expansão da livre escolha do fornecedor até os pequenos consumidores e sinais de preço como indicadores fundamentais para a expansão da oferta e para ajustes na demanda – base para um equilíbrio eficiente do mercado. E aí veio o racionamento no início dos anos 2000 para colocar em xeque todo o modelo, além de promover o tema energia elétrica para as manchetes e as rodas de discussão da população. Tratou-se o modelo vigente, ainda não completamente implementado como o maior vilão do racionamento, como se este fosse o grande culpado! Claro que falhas existiam no modelo e que aprimoramentos eram necessários. Daí a dizer que TUDO estava errado vai uma grande distância. Mas esse é sempre o 1 problema que separa o discurso da prática. A realidade é mais dura e é implacável. Não é intenção deste texto defender o modelo criado a partir do RESEB. Mas ele teve méritos que devem ser destacados. Entre eles o de ter sido criado a partir de uma ampla discussão com os maiores técnicos e dirigentes deste país, contando com o suporte de consultores internacionais. Debates intermináveis, por longos meses, em busca de um consenso, em busca de uma solução, ou de soluções, de alternativas, com impactos analisados à exaustão. Debates francos e abertos. Esse foi o maior mérito. Além do mérito de acreditar nas forças e nas leis do mercado! Não esqueçamos dois pontos positivos do racionamento: o esforço bem sucedido de racionalização do consumo e o aparecimento de um mercado de certificados de redução de consumo, com sucesso enorme, que possibilitou a inúmeras indústrias mitigar os efeitos perversos da redução obrigatória da carga – ao mesmo tempo que provou que as leis do mercado poderiam funcionar para a energia elétrica, mesmo em tempos de crise. Buscou-se então, com alterações no modelo vigente, corrigir distorções e algumas boas medidas foram adotadas, entre elas a criação da EPE em 2003. Mas, quando se busca soluções focadas na modicidade tarifária, e a lei 10.848 fala explicitamente em “modicidade de tarifas e preços”, tem-se que ter cuidado com os efeitos secundários dessa decisão. Não se pode e não se deve negar que o setor produtivo nacional carece de condições de competitividade. Ao apontar para modicidade de tarifas e de preços, independente do populismo, sinalizou-se para a busca de uma economia mais competitiva. No entanto, será que essa foi a direção seguida? As medidas foras as mais corretas? Aparentemente sim. Vejamos. Os preços para energia resultante dos leilões foram cada vez menores! Leilões de transmissão com grandes deságios! Sucesso? Será? Aí vêm os leilões de reserva. Empreendedores que não cumprem cronograma ou que nunca entregam seus empreendimentos (sejam eles estatais ou privados). E não se ataca a base real da composição final do custo da energia, onde apenas metade é geração transmissão e distribuição. Encargos e tributos? Será que é impossível atacar? As mudanças feitas na CCC, por exemplo, ao longo desse período foram largamente compensadas pelo aumento nos Encargos de Serviço de Sistema pela necessidade de despacho das usinas térmicas, usadas, claro, para garantir o abastecimento e fugir do fantasma do racionamento. Faltou a consulta ao consumidor se queria ou podia pagar esse seguro contra o racionamento. Por quê voltar ao passado no momento de propor caminhos para o futuro? Porque se não tivermos um olhar isento, imparcial e desapaixonado não 2 conseguiremos propor e construir um futuro mais sadio e consistente para a economia brasileira e, consequentemente, para o setor elétrico. Parênteses: neste ponto pode-se identificar como um dos focos da origem da crise atual pelo que passa o setor a retirada do único risco que ainda existia nas distribuidoras: o risco de mercado, passando esse risco para o planejamento centralizado estatal, como se o Estado fosse infalível e dando às distribuidoras o chamado “alívio de exposição”, coberto pelos consumidores, que infelizmente não contam com alívio nenhum! Até a reforma de 2004, as distribuidoras eram responsáveis por gerir 5% de seu mercado através da contratação. Ao obrigar que estivessem 100% contratadas em leilões promovidos pelo Governo a partir de declarações de seu mercado futuro, ao preço resultante do leilão, seja de energia ou de reserva (onde o consumidor arca com o custo, qualquer que seja ele), o risco de gestão deixa de existir. Centralização mais uma vez traz seus efeitos, bons ou maus, à frente. Como pode-se ver, o custo aparece agora. O outro ponto, óbvio, e por isso não precisa ser aprofundado, foi a solução dada às concessões vincendas. Pode-se citar ainda o “efeito borboleta”, que resumidamente diz que o bater das asas de uma borboleta pode provocar um furacão do outro lado do mundo e faz parte da “Teoria do Caos”. Lembrar desse efeito tem como objetivo chamar a atenção para as diversas intervenções que têm sido feitas no setor elétrico, desde o que se chama “velho modelo”, até o que se convencionou chamar “novo modelo”, implantado em 2004, e que não é mais que um ajuste no modelo anterior, feito no modo de contratação. Acredita-se que com ajustes pontuais pode-se resolver o problema, esquecendo-se dos efeitos, inevitáveis, que advirão de sua implementação. Soluções adotadas em gabinetes fechados, por mais brilhantes que sejam os tomadores de decisão, serão sempre parciais e refletirão apenas facetas da solução. O setor elétrico, assim como outros setores da economia e da infraestrutura, é complexo e multifacetado. Nada se perde, ao contrário, ao adotar-se uma atitude de escuta ativa e de ampla consulta. A testemunhar a favor disso está o processo de audiência adotado desde o princípio pelo regulador do setor elétrico. Apenas neste ano de 2014, o socorro financeiro às distribuidoras, decorrente em boa parte dos efeitos do modelo de contratação e também do modelo adotado para a renovação das concessões de geração, importante para que o setor não entre em colapso, e que poucos discordam da necessidade, já atingiu a metade do valor daquele que o Tesouro Nacional aportou na década de 90, apontado no início deste texto. Mas, porque o mercado livre ficou estagnado nos 25% do mercado total? Mercado livre pode e deve financiar a expansão! Alguns defendem, sem nenhum critério objetivo, que a proporção ¾ mercado cativo e1/4 para o mercado livre é a ideal. Mas o mercado livre foi o responsável não apenas pela recuperação da produção nacional após o racionamento, como também pelo reequilíbrio econômico-financeiro 3 das geradoras ao adquirir o excedente energético dessas (mais uma vez confirmando que as leis de mercado funcionam para a energia). Além disso, foi um importante motor da economia, ao sinalizar para a expansão através da autoprodução e da contratação de energia de produtores independentes e ao crescimento das fontes alternativas na matriz energética para o suprimento aos consumidores especiais. A limitação do mercado livre ao patamar de 25 a 28% deve-se principalmente à limitação das condições de sua participação na expansão da oferta, à limitação ao patamar mínimo de 500 kW e, principalmente, às condições pouco competitivas do mercado e pouco transparentes na formação de preço do mercado livre brasileiro. A indústria brasileira ressente-se desse quadro. Ano após ano a indústria perde participação no PIB nacional. E perde condições de competitividade com seus concorrentes internacionais. Energia é fator fundamental de competitividade. Energia, produtividade, carga tributária, mão de obra, qualidade, etc. são vetores fundamentais. Nosso tema é energia. Mas todos esses vetores estão intrinsecamente conectados. Energia elétrica, gás natural, derivados estão ainda vinculados a um tema cada vez mais caro a todos: meio ambiente e emissões. E isso, com nossa matriz energética com conteúdo elevado de fontes limpas e renováveis, é um diferencial competitivo que deve ser melhor explorado. Mas muito pode e precisa ainda ser feito na busca do uso eficiente da energia. Alguns setores industriais passaram de exportadores a importadores líquidos. Corremos o risco de voltarmos a ser exportadores de minério, deixando de processá-lo devido ao custo proibitivo da energia, que tira a competitividade do produto beneficiado! Indústrias ou segmentos industriais deixam de ser produtores para usar sua rede comercial e de logística para vender e distribuir produtos feitos no exterior. É esse o futuro que queremos para nossa indústria? Definitivamente NÃO! Como o setor elétrico pode colaborar para mudar esse quadro? Simples: com mais mercado, mais estabilidade e menos intervenção. Ninguém, nenhum de nós tem a solução mágica. O que precisamos é parar de acreditar que o que vivemos é apenas uma crise conjuntural. Ela é estrutural. Ela é mais profunda e mais séria. É uma crise de modelo. Não do modelo setorial. Mas da necessidade de um modelo de desenvolvimento para o país. Um modelo que integre e harmonize as diversas políticas: social, agrícola, industrial, de infraestrutura, financeira, etc. E a política do setor elétrico, como um setor fundamental para a sustentabilidade do desenvolvimento, deve estar integrada e pode sinalizar direções para essa política integrada. De que forma? Como sair desse impasse? A partir de um grande pacto, onde as paixões sejam deixadas de lado, as camisas coloridas e as ideologias deixadas fora da 4 sala e, unidos, se consiga construir um setor mais adequado ao que o país necessita. Do contrário, seremos engolidos e esmagados pela nossa inépcia e pelo nosso sonho de que tudo pode ser resolvido com “ajustes”. É hora de coragem. Sem nenhuma pretensão e sem querer antecipar teses desse pacto, mas apenas a título colaborativo e provocativo, três direções que talvez possam contribuir para o desenvolvimento, não apenas da economia nacional, ampliando a competitividade de nossos setores produtivos, mas dando condições estruturais mais adequadas para que o setor elétrico evolua de maneira mais consistente: Ampliação do mercado livre, com redução aumento da elegibilidade, reduzindo dos atuais 500 kW para 50kW; Participação do mercado livre na expansão da geração, através da certificação, securitização e da criação de mecanismos e ambientes de negociação e de clearing, possibilitando que os contratos sejam dados em garantia de financiamento, em ambiente seguro; Ampliação dos mecanismos de contratação pelo ACR, seja diretamente, seja através da geração distribuída ou de excedentes de autoprodutores, reduzindo a centralização. Um grande Pacto, com maiúscula mesmo, baseado em três pilares: mais mercado e liberdade, mais competitividade e mais eficiência. E com a participação de todos. 5