Quando os meus olhos eram pequenos, as tuas mãos já eram grandes. Com elas
dobravas a folha do jornal verde, estiravas as pontas, e metias na minha cabeça. No teu
sorriso eu sabia que estávamos prontos. O domingo lá fora, com o sol que nunca faltava,
e nós prontos. Com gestos lentos fechavas as portas. Davas passos que sabias serem
certos. E no teu bolso as chaves que abriam tudo. Atravessávamos o limiar da sombra
que era também uma porta de madeira e batente negro, escutávamos o silêncio da tarde,
e antes de os pássaros cantarem, abrias a cancela e chamavas o terceiro companheiro.
Ele já nos esperava, com a cabeça entre as patas, a língua de fora, os olhos tristes que
espertavam na tua voz. Caminhava na minha direcção com o rabo no ar, cheirava-me os
sapatos, lambia-me os dedos e esquecia. A ti pedia-te uma festa atrás da orelha enquanto
escoltava os teus passos na rampa que dava para a terra batida. Passos que eu repetia
no mesmo instante em que tirava o chapéu verde. E a tua mão, que era maior que a
minha, recuperava a folha dobrada do jornal, apontava para o sol, e da minha cabeça o
chapéu de papel não voltava a sair.
Entre os laranjais, uma vara comprida. Com ela eu tinha a tua altura, talvez mais. Com ela
tentava chegar às laranjas, e a cada salto que dava tu dizias que não valiam o esforço,
pois ainda não estavam no tempo delas. Mas eu não me importava que fossem verdes,
murchas ou castanhas. Corria à volta das árvores, tropeçava entre os frutos caídos, e
quando levantava os olhos não te via. O caminho só tinha uma direcção, e tu lá estavas
frente ao tanque dos patos. Em silêncio, observava a saca branca onde mergulhavas a
mão vazia que vinha cheia. O milho que te escapava dos dedos e caía na água. As penas
que flutuavam, os bicos que mergulhavam, a tua mão a repetir o gesto que a minha
queria repetir. Seguíamos pelo túnel das uvas americanas, na sombra entrecortada por
tiras de sol, onde murmuravas para ti próprio a cor que o produto químico dava às uvas.
A cada fruto novo, a tua voz que chamava: “Aqui estão as figueiras, vês os figos?” e eu
tocava com o dedo nas antenas de um caracol. “Aqui estão as pereiras, vês a peras?” e
eu corria atrás de uma borboleta de asas azuis. “Aqui estão as macieiras, vês as maçãs?”
e eu segurava a cauda peluda do cão que me rosnava. No meu susto chamava-lhe
nomes feios, e tu voltavas a segurar a minha mão, ensinavas-me as palavras adequadas
para tratar um amigo. Eu escutava a tua voz, reconhecia nela o princípio de tudo, e por
momentos baixava os olhos e dava pontapés nas pedras que encontrava pelo caminho.
Junto ao tanque verde, prometias que mandarias limpara a água e haveria uma piscina
pronta sempre que te fosse visitar. Eu voltava a sorrir e corria à volta do tanque, antes de
me ensinares o caminho secreto que ia dar à fonte onde juntávamos as mãos e bebíamos
a água mais fresca da aldeia.
No portão vermelho parávamos. Atrás das silvas as pedras do muro eram cinzentas,
brancas, castanhas. Entre elas uma cabeça espreitava na direcção do meu dedo
indicador. Pronunciavas um nome que eu desconhecia e que agora sei escrever. E a
lagartixa escondia-se nas frestas onde não cabiam dedos. Voltávamos atrás e
recalcávamos as nossas pegadas. Quando o horizonte se destapava, o teu olhar
esquecia-se de tudo e mergulhava nos campos sem fim. A tua mão abria-se e era eu
quem a segurava. Naquela altura sabia que éramos ambos crianças, que a nossa idade
estava no mesmo brilho com que os meus olhos viam uma joaninha e os teus os campos
afagados pelo vento. E lembravas-te das vacas, dos coelhos, das galinhas; e eu
maravilhado com os cascos, as orelhas e as cristas. Pegavas num coelho recém-nascido.
O silêncio rodeava-nos dentro do casebre escuro. As minhas mãos quentes e fechadas
sobre o pequeno coração a palpitar, palpitar, palpitar. Desejava o coelho só para mim.
Então mostravas-me a mãe e os irmãos, prometias que podia visitá-los sempre que
quisesse. Atrás de mim a porta que se encostava. A eira branca debaixo do sol. As flores
que me pedias para regar, as batatas que me dizias para levar, os dióspiros que a minha
vara podia alcançar.
Regressávamos à sombra. Com o auricular no ouvido, sentavas-te no sofá, tremelicavas
a perna, e dizias-me os golos que a equipa local ia marcando. Eu folheava os jornais, os
livros e uma ou outra carta que me deixavas abrir. Nas tuas mãos uma maçã rodopiava
num lenço bege. Na mesa outras duas, maiores, rechonchudas e brilhantes. Davas-me a
mais pequena, a que tinha manchinhas no verde pálido. Davas-me a melhor. Sem eu ver
abrias uma gaveta da mesinha de cabeceira. Entre os rabiscos que ensaiava num jornal
velho, sopravas notas de música. Eu descobria a harmónica nos teus lábios. Sopravas
mais três ou quatro vezes ao mesmo tempo que fazias caretas. Quando fechavas a
gaveta, as minhas palmas cansavam-se, mas um sorriso guiava a caneta retornada aos
rabiscos. Na televisão falavam de coisas que não entendia, no teu auricular coisas que
não escutava, e adormecias. Eu saía devagar. Entrava na casa grande. Percorria as salas
fechadas e procurava amendoins nos armários velhos onde as gavetas rangiam. Brincava
com as espadas do trisavô, dedilhava o piano por afinar, e no binóculo que crescia mirava
a aldeia adormecida debaixo do sol. Subia as escadas para o sótão onde me assustava
com as teias de aranha, descia as escadas para a cave onde cheirava as pipas do vinho
maduro. No entardecer, a tua voz. Os sinos que diziam as horas. Uma mão que não era a
tua e que me levava. E antes de partir dava-te o chapéu verde de letras pretas, e tu dizias
que o guardarias para mim, pois estarias sempre ali enquanto houvesse domingos para
passear.
A última vez que te vi os meus olhos já eram grandes. As minhas mãos iguais às tuas. E
quando te foste embora levavas a cara fechada, zangada, e não reparaste que os meus
passos estariam ao teu lado onde quer que fosses. Travavas uma luta pessoal, só tua, e
naquele momento a tua mão abria-se num mundo que se fechava. Mas repara avô, hoje é
domingo, o sol está onde sempre esteve, a quinta onde sempre estará, e nestas horas em
que todos sonham, faz-me um chapéu de papel, sorri, e os meus olhos voltam a ser
pequenos.
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