QUANDO EU ERA UMA LAGARTA* Quando eu era uma lagarta, Desgraciosa e comilona, Vi, um dia, uma borboleta, E a borboleta me disse coisas estranhas: Disse-me que eu devia virar crisálida (que é o estado intermediário da Transformação de lagarta à borboleta) imóvel, para me tornar borboleta. A borboleta era bela e feliz Mas, isso de morrer?... Para minha ignorância, a crisálida era morta, Enclausurada num esquife (caixa, caixão) escuro, Sem portas nem janelas, Sem movimentação nem respiração. Não rastejava como eu, Nem voava como a borboleta. Era inerte como um cadáver. Mas a borboleta me disse que a transição da minha semivida Para a plenivida dela, passava pela pseudo-morte da crisálida. Para que eu pudesse me expandir para a plenivida, Devia eu concentrar-me silenciosamente. Devia eu centralizar num foco único todas as minhas dispersividades periféricas. Só desse centro atômico podia nascer o cosmos. Ouvi essas palavras de suprema sabedoria e não as compreendi. Não as compreendi, mas aceitei-as. Aceitei-as e incubei a verdade. Eu não estava madura para passar da crença (fé) para a experiência. Mas a crença (fé, desejo) na verdade me preparou para a experiência na verdade. Após longo tempo, a minha crença, fé, desejo eclodiu em experiência. Deixei de comer, deixei de rastejar pelas baixadas da terra. Retire-me a um canto silencioso e solitário. Joguei fora a minha pele. Enclausurei-me hermeticamente num invólucro de quitina. Morri.... Morri, não para dentro da morte. Morri para dentro de uma vida maior. Não sei quanto tempo dormi o meu sono de crisálida. Lá onde eu estava não havia tempo. E durante esse tempo, minha alma vigilante, desperta, elaborou outro corpo. Quatro asas, dois hemisférios de olhos facetados, uma delgada seringa para sugar o néctar das flores. Tudo isso foi elaborado, à minha revelia, no místico laboratório do meu esquife. Pelo poder da minha alma sempre vigilante, acordada, desperta. Eu nada fiz – tudo foi feito por alguém em mim ( não temos o poder de tirar férias para ter crises e transformações, ou você as aceita e aprende com ela, ou vive a experiência do caos, do desconhecido, do pânico). Numa radiosa manhã, rompeu-se o meu invólucro. Nasci para a vida da borboleta. Mas ainda sou eu. Ingenuamente acreditei que rompido o casulo e já tendo a forma de borboleta, poderia experienciar toda a minha liberdade de voar, abrindo minhas asas. Na verdade eu estava estranha a mim mesma, assustada, permaneci imobilizada, me assegurando num padrão mais conhecido; o casulo, a imobilização. Aos poucos, fui experimentando pequenos movimentos. Hesitava e me experienciava no estranho. Afinal, eu acreditava que seria bela, feliz e livre, assim que me tornasse borboleta. Será que isso é ser borboleta? Desajeitada, esquisita. Nessa experiência de experimentação de mim mesma, senti um negócio nas costa que era muito pesado. Para saber do que se tratava, fui me balançando suavemente, de um lado para o outro. Um imprevisto aconteceu: minhas asas pesadas e esse movimento me fez cair no chão de costas. Fiquei desesperada e usava apressadamente minhas garrinhas para escalar novamente o muro, onde estava meu casulo. Para piorar as coisas uma das minhas asas estava dobrada e eu não tinha nenhuma coordenação sobre ela. Forma de borboleta, comportamento de lagarta, me arrastando no chão. Estava um pouco confusa e desorientada e tive uma crise existencial: quem sou eu, afinal? Mesmo assim, voltei a me experimentar e demorei um bocado para aprender a ser uma borboleta. Muitas transformações aconteceram... Até que, me sentindo plenamente borboleta, pude aos poucos abrir as asas e depois arriscar voar pela primeira vez. Vôo pelas límpidas alturas do espaço solar. Só de longe em longe desço para sugar uma gota de néctar, Do perfumoso cálice das flores. E quando me encontro com uma lagarta Nenhuma acredita nas minhas palavras. Ninguém acredita que eu fui o que elas são e que serão o que sou. Tão diferentes são as nossas existências E tão idêntica é a nossa essência. Se eu não me identificasse com a invisível essência que sou, Jamais a visível existência que tenho me faria borboleta. * Texto original de Humberto Rohden. Adaptação de Adriana Dal-Ri (experiência de comtemplar os estágios de lagarta, casulo, aprendendo a ser borboleta e voar) Curitiba/2004