Rodrigo Garcez – Mestre em Artes pela ECA-USP, tendo defendido a dissertação: “Guia Fotocênico dos Caracteres Macuqueiros.” É membro da ABRACE, do GIDE, da Brecht Society e da AIUTA. É editor geral do periódico TFC (Territórios e Fronteiras da cena – www.eca.usp.br/tfc). Contato: [email protected] (msn): [email protected] RESUMO Procuraremos articular neste ensaio duas estruturas conceituais que acreditamos serem de suma importância para entendermos a arte contemporânea em suas diferentes manifestações; o conceito de devir segundo o pensamento de Nietzsche (1987), nos dois volumes do “Humano, demasiado humano” e o conceito chave da Biosemiótica, o umwelt, proposto por Uexküll na década de vinte do século passado. Depois de apresentados os conceitos, tratare-mos de aplicá-los numa ação cênica, onde a performance trará marcas destes conceitos em seu processo e sua estrutura. Devir, Umwelt, e algumas performances. Umwelt e Innenwelt Uexküll reconheceu a importância do corpo como parte fundamental na produção de imagens mentais; por isso ele abandona as noções de mente interior e exterior, passando a se referir a umwelt e innenwelt. Neste pensamento, algo permanece privado ao organismo/sistema perceptivo e algo é projetado em direção ao mundo externo. Na definição ampliada do conceito, o umwelt pode ser definido como compreendendo os aspectos fenomenológicos das partes sensíveis do ambiente que envolve um dado sistema, ou seja, as partes com que o sistema é capaz de interagir por meio de seus sensores e atuadores, de acordo com sua organização interna e seus objetivos próprios. Para Barbieri (2001), o umwelt seria como uma bolha mental que nós percebemos como nosso mundo circunvizinho. Ainda segundo Uexküll o umwelt (mundo ao redor) indica uma possível história evolutiva entre sistemas abertos baseada na interação; a evolução é considerada como sendo uma incorporação das relações do sistema com o mundo (umwelt) gerando uma memória especifica (innenwelt). Cada organismo cria seu próprio mundo, sua própria realidade, seu umwelt, que inclui seu corpo e os objetos circunvizinhos. Isto enfatiza o papel do observador na interação com o mundo. 1 O innenwelt poderia ainda ser considerado o mapa cognitivo desenvolvido dentro de cada indivíduo, capacitando-o a encontrar seu caminho no ambiente e a inserir-se em uma rede de comunicações, interesses e meios de vida compartilháveis com outros organismos dentro de seu umwelt. Fica evidente aqui, a dependência deste conceito com o de memória, característica também apontada por Greiner (2005:40): “é importante observar que o tipo de performance de um corpo depende sempre da estrutura do sistema, na relação com o ambiente (construção do umwelt) e na forma como a memória se manifesta, já que a memória é também uma propriedade sistêmica e é fundamental para a sobrevivência do vivo.” O conceito de devir em Nietzsche “Humano, Demasiado Humano”. Dentro dos volumes de “Humano, Demasiado Humano”, podemos fazer uma reflexão que evidencia a importância da experiência na realização de qualquer ato artístico, principalmente se recorremos ao conceito de devir, presente em alguns dos aforismos encontrados no texto de Nietzsche. Na quarta parte, sobre a alma dos artistas e escritores, temos por exemplo o de numero 162, onde ele nos fala sobre o comportamento cínico dos artistas em valorizar excessivamente o produto, rejeitando todo o processo, o devir, acabando por separar as Artes das ciências aplicadas, onde o processo de trabalho é evidente. Nietzsche reconhece porém que não há diferença substancial entre as atividades do artistas, cientistas ou técnicos; todos eles focam o pensamento numa direção, aproveitando tudo como material, sempre observando com cuidado a própria vida interna e a do outro; porque por toda parte surgem modelos e estímulos, com os quais não se cansam de (re)combinar, criando novos meios a partir destas experiências. Daqui tiramos a importância de vivenciar o mundo para podermos criar sobre o ele, alimentando nosso umwelt de referências, estaremos ampliando nossa bolha perceptiva e assim, nossa capacidade de criação (artística). Por fim, transcrevemos três aforismos que pensamos estarem em sintonia com o que foi exposto até o momento: 306 - Perder a si mesmo. Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se e depois reencontrar se: pressuposto que se seja um pensador. a este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado à uma pessoa. 307 - Quando é preciso despedir-se. Daquilo que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças, pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado a cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das casas. 333 - Morrer pela “verdade” - não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos tão seguros delas. Mas talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las. 2 Prática – algumas performances Transitoriedade, mudança e devir são conceitos que aparecem nos escritos do filósofo alemão e nos interessam porque se relacionam com trabalhos da arte contemporânea que enfatizam o processo, afastando-se assim da idéia da arte como produto acabado. Dentro da assim chamada arte contemporânea, a performance, é um campo fértil para processos e vivências. Isto nos levou a trabalhar as referências teóricas anteriormente expostas num conjunto de performances que fizeram parte das últimas atividades práticas de meu mestrado em artes cênicas. A seguir detalharemos cada uma dessas performances, cotejando, quando possível com o conceito de umwelt e o devir. Ensaios a partir da imagem do barqueiro. Uma das premissas conceituais de minha pesquisa no mestrado é que a fotografia pode conter a encenação em latência, e essa hipótese permanecia sem uma prova de campo satisfatória. Para que essa prova acontecesse, foi proposta uma colaboração com a performer e pesquisadora Merle Ivone Barriga. Demos início ao processo reavaliando todo o material artístico e conceitual compilado; selecionando a imagem dos barqueiros santistas, detonadora do primeiro processo cênico: Dentre as várias relações que a performer estabeleceu com a imagem gostaríamos de ressaltar a masculinidade lânguida presente na curva das costas do barqueiro. Esta curvatura representa uma certa ambigüidade entre o peso do corpo masculino e sua atitude de relaxamento enquanto espera. Ressaltamos ainda a relação de diálogo estabelecida entre o barqueiro e o mar calmo. Essa relação tem um toque de surreal na figura do guarda-chuva aberto. Partindo destas relações, a performer construiu sua ação cênica a partir de sua interação com os elementos da natureza, especialmente a água como podemos observar claramente na imagem abaixo: 3 Em seguida a movimentação do torso e da coluna vertebral foram exploradas num repertório coreográfico performer pôde interferência onde criar do a sem pesquisador. Partido da mimese do retrato do barqueiro, os movimentos fluíram até gestuais de ascensão possivelmente inspirados na torre de concreto que se elevava do espelho d’água onde se deu a ação cênica. Este ambiente de ensaio foi escolhido por materialidades abarcar presentes duas na imagem selecionada, o elemento fluido da água e a rigidez masculina, que poderia advir do contato com a pedra e o concreto. Todas essas referências cruzaram-se, re-ordenando o umwelt da performer, ativando sua memória e gerando novos movimentos e ações cênicas. Vale lembrar que durante o processo utilizamos uma câmera fotográfica digital que permitia a rápida visualização das imagens à medida em que eram fotografadas. Isto tornou o processo de citação e re-elaboração dos gestos muito mais rápido e eficiente, pois podíamos avaliar quase que em tempo real a performance encenada. Cada uma destas imagens pode ser encarada como um possível ponto de partida, como uma espécie de rubrica dramatúrgica, onde podemos não só avaliar o desempenho da cena, como também melhorá-la cenicamente no futuro, abandonando gestos e atitudes ou estimulando-os numa direção específica. 4 Alguns elementos de ordem punctual1, como a posição das costas do barqueiro e a relação da figura humana com a natureza, se projetaram para além da fotografia e atingiram a performer em seu lado emocional. Deste primeiro ponto de contato, outras imagens surgiram em cena, o que nos leva a pensar que se a mimeses encontrava-se congelada na fotografia inicial, no seu processo de descongelamento, muitas outras ações cênicas podem surgir, sempre em função daquilo que os indivíduos envolvidos trazem dentro de si, quase sempre baseados em relações subjetivas dependentes da cognição. Concluímos que neste fluxo entre uma imagem estática, de caráter documental e colhida de uma realidade distante da performer, o diálogo estabelecido tendeu para a deflagração de poéticas possíveis a partir da imagem; sendo negligenciados os aspectos de seu contexto sócio-histórico e de sua vivência cotidiana, já que estes não faziam parte de seu umwelt. Acreditamos ser este um indício de que os umwelts só podem ser reconhecidos, como numa fotografia, se forem antes experienciados, como aponta Nietzsche. Em todo este processo fica evidente a importância da interação sensorial entre dois indivíduos (artistas no caso), sendo que a fotografia cumpriu um papel como suporte tecnológico que dinamizava o processo de encenação. Retornando à noção de que o fotógrafo e o espectador amalgamam uma verdade, criando um laço de comunicação, um pacto sobre determinada noção de realidade compartilhada por ambos e cujo veículo pode ser uma obra de arte; podemos afirmar, após os experimentos práticos, que o punctum na fotografia é um conceito que depende totalmente deste pacto, especificamente de um mesmo contexto sócio-cultural (umwelt) que seja compartilhado pelos indivíduos envolvidos no processo. Todo o processo depende de um mesmo ambiente sócio-cultural compartilhado, ou nas palavras de Halbwachs (in BOSI, 1987), da memória que é resultante das relações que o indivíduo trava com os outros no meio social. Outro dado a ser levado em conta é que se encararmos a fotografia como possível símbolo ritual, onde o que está em jogo são as possíveis poéticas que poderão depreender-se dela, observamos na prática que este processo nem sempre é comandado pela razão. Sua inconstância deve ser utilizada como detonadora de processos, sejam cênicos ou plásticos, onde o importante não deve ser o produto final, mas sim o próprio processo, como nos indica Nietzsche em seu devir. Sua maior utilidade é enriquecer o processo de encenação, operando numa via, a linguagem fotográfica, 1 Conceito retirado de Roland Barthes e que pode ser resumido da seguinte maneira: Quando é a fotografia que se projeta em direção ao espectador, de uma forma que seu conhecimento analítico é insuficiente para domá-la, surge o punctum. Nessas fotos pontuadas é ele, o ponto sensível, que parte da cena, como uma flecha, para atingir o espectador em seu lado mais emocional. Este contato sem palavras, que cresce com o silêncio reflexivo do espectador, acaba conferindo um estado meditativo à fotografia. Este vetor que punge, mas também mortifica e fere, se projeta para fora da imagem fotográfica lhe dando uma outra dimensão. Aqui o mais importante são as relações emocionais que o espectador traz em mente ao se deixar tocar por uma imagem 5 que usualmente não faz parte do repertório dos encenadores. A fotografia, como foi vista neste ensaio, se presta ao trabalho do artista visual contemporâneo, cuja prática caminha numa zona fronteiriça entre as artes. Outro fator importante a ser considerado é que, se uma fotografia isolada pode abrir caminhos infinitos para a cena, o mesmo não pode ser dito de um conjunto de fotografias. Tomemos como exemplo a foto do barqueiro e as quatro fotos de Ivone; este conjunto tem em comum uma relação sensorial com a água e uma dinâmica entre densidade e fluidez que indicam alguns rumos para a futura encenação e para as próximas imagens a serem realizadas à partir deste pequeno roteiro cênico. Finalizando, percebemos o quanto da filosofia do devir contemporâneo na arte, onde o foco está sobre os processos e não os produtos; marcaram esta prática, onde a maior riqueza adveio dos processos que se estabeleceram entre a performer e a materialidade da cena, da troca entre os umwelts envolvidos. Bibliografia AUMONT, J. A Imagem. Papirus Editora. Campinas, 1993. AUMONT, J. De L’esthétique au présent. De Boeck. Bruxelles, 1998. BARBIERI, M. “Has Biosemiotics come of age?”, in Semiotica, Ed.134, 2001. BARTHES, R. A câmara clara. Editora nova fronteira, Rio de janeiro. 1984. Frankfurt/Main. 1961. FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 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