69 Francisco Reis Bastos Marcos Pinotti O Efeito Espuma 07 Escleroterapia com Espuma Escleroterapia.indb 69 6/18/12 3:11 PM Este capítulo tem o objetivo de esclarecer os fenômenos físicos que ocorrem durante a aplicação da espuma no interior das veias. Na medida do possível, não serão utilizados termos técnicos de engenharia, a não ser quando necessário e a favor da exatidão dos conceitos. O que é espuma? Antes de mais nada, é necessário entender que espuma é um conjunto de bolhas que foram formadas a partir de um filme fino. Essas bolhas possuem parede fina (alguns décimos de mícron) e contêm gás. Sua principal característica é que se podem prever suas dimensões utilizando-se conceitos matemáticos de minimização de superfícies, conhecida desde 1871 pelo matemático Schwarz1. Quando essas bolhas se agrupam para formar a espuma, também é possível modelar sua interface e se prever a sua configuração2. A Figura 7.1 mostra a fotografia de duas bolhas de diferentes dimensões que se fundiram. Pode-se observar que, uma vez que a bolha menor irá possuir sempre mais pressão que a bolha maior, a interface entre elas é uma superfície convexa, em que a pressão da bolha de menor diâmetro empurra a interface na direção do centro da bolha de maior diâmetro3. Figura 7.1 Duas bolhas de sabão, com diferentes diâmetros, que se fundiram. Figura por Pinotti, M. O Efeito Espuma Escleroterapia.indb 70 70 6/18/12 3:11 PM A teoria da minimização das superfícies também prevê a forma do contato entre duas de cada filme é determinada pela lei de Laplace: 4, 5 ou mais bolhas de mesma dimensão . A Figura 7.2 mostra o contato entre duas, três e quatro ΔP = 2γH (1) bolhas. É interessante notar que, para bolhas de dimensões semelhantes, a interface é plana. A Sendo: construção destes desenhos seguiu as condições ΔP é a diferença de pressão entre as físicas que garantem a estabilidade dessas inte- células da espuma que estão separa- rações, considerando o princípio matemático das pelo filme [N/m2] de minimização de superfícies e a lei de Lapla- γ é a tensão interfacial [N/m] ce. Essas condições físicas são conhecidas como H é a curvatura média [1/m] leis de Plateau: 1 filmes de espuma reúnem-se em grupos de três bolhas ao longo de bordas Empregos da espuma planas (bordas de Plateau) em ângulo de 120o; 2 quando há grupos de quatro bolhas, as o 3 Uma característica importante da espuma bordas planas fazem ângulo de 109,5 ; é que, devido às bolhas, necessita-se de redu- cada filme de espuma possui curva- zida quantidade da substância de fase líquida tura média constante. A curvatura para preencher volumes relativamente grandes. Figura 7.2 Agrupamentos de bolhas e suas interfaces obedecendo às leis de Plateau. (a) Duas, (b) Três e (c) Quatro bolhas. Figura por Pinotti, M. 71 Escleroterapia com Espuma Escleroterapia.indb 71 6/18/12 3:11 PM Por esse motivo, utiliza-se espuma para as mais chamados de hidrogéis (uma espuma de silício) diversas aplicações, desde aplicações técnicas permitem manter a temperatura interna das cáp- de engenharia, como isolantes térmicos à gas- sulas em níveis seguros, enquanto que na super- tronomia. Além disso, o fato de a espuma ser fície externa reinam temperaturas de milhares de constituída por pequenas bolhas com paredes graus Celsius. Isso é causado pelo atrito com o ar muito finas permite a ocorrência de um fenô- atmosférico, devido à grande velocidade do obje- meno ótico interessante: múltiplas reflexões da to. Na gastronomia, o uso de bolhas e de espuma, luz incidente, fazendo com que a cor da espuma junto com o emprego de temperos e especiarias, (independentemente da cor do líquido que a ge- compõe os segredos e as boas práticas da culinária. rou), na maioria das vezes, seja branca. Talvez o Sabe-se, há muito tempo, que se pode ex- leitor já tenha se perguntado sobre o motivo da plorar a sensibilidade das papilas gustativas ao gás espuma da cerveja ser branca, apesar do líquido carbônico para potencializar o sabor de bebidas ser amarelo (vermelho ou escuro). adicionando-se (ou gerando-se naturalmente) Essa constatação talvez tenha inspirado pequenas bolhas de CO2. até a mitologia grega. Conta-se que a origem de Para ilustrar esse efeito, pode-se referir à 6 adição de CO2 aos refrigerantes ou à geração de O deus Chronos teria sacudido a água dos oce- gás carbônico por processo de fermentação, como anos até formar a espuma do mar e dessa espuma, a cerveja. Talvez o exemplo mais emblemático branca e pura, nasceu Vênus, que numa concha refere-se à deliciosa bebida produzida na região de do mar foi encaminhada ao continente. Essa len- Champagne, França. Uma das características prin- da foi maravilhosamente retratada por Sandro cipais desse vinho espumante é a presença de bo- Botticelli em óleo sobre tela e se encontra no mu- lhas, que foram geradas pela ação de leveduras du- seu de Florença, Itália. rante o seu processo de fabricação. Se o espumante Vênus, a deusa da beleza, é a espuma do mar! Retornando às aplicações na área de En- for produzido pelo método champagnoise, essas genharia, é sabido que o ar possui condutividade bolhas terão pequenas dimensões e serão emitidas térmica muito menor do que a maioria dos iso- continuamente a partir de diversos pontos da taça. lantes térmicos sólidos como o isopor. Portanto, A qualidade de um vinho espumante e, em parti- seria muito boa ideia para aumentar a capacida- cular, do champanhe, está associada à uniformida- de de isolamento térmico se se criasse espaço na de e ao pequeno diâmetro das bolhas. Nesse caso, estrutura dos materiais isolantes, cavidades cheias a emissão dessas pequenas bolhas de gás carbônico de ar. Para situações extremas, como a reentrada de forma contínua na taça é conhecida como pèr- de espaçonaves na atmosfera da Terra, materiais lage, em referência à sua semelhança a um colar O Efeito Espuma Escleroterapia.indb 72 72 6/18/12 3:11 PM de pérolas. No entanto, ao degustar essa bebida (à Nos doces e biscoitos essa técnica de aeração temperatura correta) é que entendemos o porquê também é muito utilizada, assim como em pão, bis- da necessidade das pequenas bolhas. Quanto me- coitos de polvilho crocantes e bolos é empregada a nores e mais abundantes forem essas bolhas, maior mesma lógica para a formação de cavidades. Outra será a quantidade de papilas gustativas que serão forma de se formar a consistência aerada (bolhas acariciadas durante a degustação. Desta forma, o de espuma de ar atmosférico) é a agitação para in- paladar e os aromas do vinho são potencializados corporar o ar na estrutura, conhecido como emul- na boca. As pequenas bolhas que contêm gás car- sificação. A partir dessa técnica podem-se obter bônico proporcionam o aumento da sensibilidade merengue, mousses, clara em neve, chantilly e até do epitélio, permitindo apreciar os sabores e per- o chocolate aerado 7. Para que não haja saturação fumes gerados durante o processo de fermentação. sensitiva do paladar, os provadores de café se utili- A Figura 7.3 mostra o impacto da redução do diâ- zam de um artifício interessante: sugam o café com metro das bolhas no aumento da área coberta pelas um pouco de ar, fazendo uma mistura ar-líquido. bolhas em contato com a superfície. Desta forma, permitem diminuir a temperatura da bebida, aumentar a proporção de vapores na boca e, por fazer bolhas, aumentar a quantidade de papilas gustativas a serem ativadas pelo café. Procedendo dessa forma, o provador consegue avaliar os aromas e o paladar, além de decidir se o café é de Figura 7.3 Diferença entre a área projetada e a área efetiva de contato de uma bolha de grande diâmetro em comparação com bolhas de pequeno diâmetro. Figura por Pinotti, M. boa qualidade ou não. Apesar do ruído desagradável e antissocial, esse procedimento pode ser usado em casa para testes de sabor. A espuma é um artifício muito utilizado também para alterar a percepção de sabor e a Espuma e a escleroterapia consistência dos alimentos. Quem não reconhece a qualidade de um bom souflé ou de um pão bem macio? A consistência macia e a densidade mais A lógica da escleroterapia venosa é eliminar baixa (leveza) desses alimentos se devem à forma- o refluxo venoso do sangue através de veias do- ção de bolhas e à sua estabilidade durante parte entes para favorecer o processo de drenagem do do cozimento para criação de espaços vazios que sangue. A oclusão da veia ocorre em decorrência formam a estrutura aerada. da reação química inflamatória provocada por 73 Escleroterapia com Espuma Escleroterapia.indb 73 6/18/12 3:11 PM substâncias esclerosantes que destroem as células com o líquido. Uma vez que a ação do esclerosante endoteliais (túnica intima). Ao entrar em contato é superficial, todo o volume da substância que não com as camadas de musculatura lisa (túnica me- está em contato com as células epiteliais não está dia) da veia, provoca reação de edema, contração cumprindo a sua ação terapêutica, além da possi- das miofibrilas musculares e irritação. Como rea- bilidade de migrar para locais indesejáveis 9. ção imediata, o espasmo decorrente dessa lesão é Para resolver esse problema, surgiu a ideia responsável por mais de 50% da redução da área de se usar uma espuma de substância esclerosan- da seção transversal da veia no trecho que houve te. A lógica do emprego da espuma é brilhante, contato com a substância esclerosante. O efeito pelos seguintes motivos10-13: tardio desse tratamento é a fibrose que ocorre no • permite a introdução de um volume local da lesão química. Esse processo leva várias menor de esclerosante sem, no entan- semanas para se completar. Cabe à meia elástica, to, diminuir o volume injetado e o efei- que faz a compressão externa, concluir o chamado to desejado de causar lesão no epitélio; 8 reparo cicatricial da veia doente . Anos depois, ao • a veia, ao contrair-se, expulsa uma se olhar para a veia tratada, será vista uma cicatriz fração mínima de esclerosante devido no lugar da veia antiga que se confunde com os à sua baixa densidade; tecidos normais, como se fosse uma caricatura da • o volume de esclerosante, além de ser veia antiga. A introdução de um agente esclero- baixo, é sequestrado pela veia tratada sante na corrente sanguínea não deve ser realizada (estudos mostram que até 94% em volu- sem critério ou cuidados especiais. Nos primór- me podem ser sequestrados localmente); dios de escleroterapia, a ideia era gerar trombose • o tempo de meia-vida das bolhas que nos vasos a serem eliminados. No entanto, a pos- formam a espuma é curto (minutos), sibilidade de complicações como o tromboem- diminuindo o risco de embolia gasosa. bolismo fez com que a técnica fosse abandonada ainda no século XIX. A posterior introdução de Dessa forma, ao se aplicar espuma esclero- substâncias esclerosantes mais modernas mos- sante no interior da veia com a finalidade de pro- trou-se promissora. No entanto, a possibilidade da vocar uma lesão química para gerar cicatriz, sa- hemodiluição e consequente transporte sistêmico be-se que esse processo será tanto mais eficiente dessa substância limitou a escleroterapia a peque- quanto menor forem as bolhas da espuma. Por nos vasos. Nessa fase, as substâncias esclerosantes esse motivo, o processo de geração de bolhas e eram administradas em sua forma líquida, fazen- a sua configuração final de microespuma (mi- do com que todo o lúmen da veia fosse preenchido crofoam) apresentam resultados superiores. O Efeito Espuma Escleroterapia.indb 74 74 6/18/12 3:11 PM Quanto menores as bolhas, maior será a área de possível gerar um modelo matemático simpli- contato entre a espuma (esclerosante) e as célu- ficado para se prever a influência do diâmetro las epiteliais. Assim, a reação será mais eficiente das bolhas sobre a velocidade de fechamento do e mais rápida, como pode ser comprovado nas lúmen do vaso em contato com a substância es- imagens de ultrassom da veia ao ser tratada. A clerosante. Ainda que simplificado e, portanto, título de ilustração desse conceito, a Figura 7.4 sujeito a aperfeiçoamento, o modelo foi validado mostra como o tamanho da bolha é importante com acompanhamento de imagens do ultrassom para se obter mais contato com a parede interna durante o procedimento de escleroterapia. da veia. A Figura 7.4a mostra as bolhas da espu- Para melhor entendimento do processo, ma classificada como microfoam (diâmetro das será utilizado um procedimento muito comum bolhas menor do que 250 μm) sobre uma cama- em engenharia, conhecido como adimensionali- da do epitélio em comparação com uma bolha zação. O diâmetro da veia será tornado adimen- da espuma classificada como minifoam (diâme- sional realizando-se a seguinte operação: tro entre 250 e 500 μm) na Figura 7.4b. d* = d D Uma vez que há mais contato com as célu- (2) las endoteliais, a destruição das diferentes camadas da veia levará à diminuição do lúmen da veia. Sendo: A velocidade dessa reação está intimamente re- d* é o diâmetro adimensional da veia; lacionada à concentração do agente esclerosante d é o diâmetro da veia em um determinado presente na microespuma. instante [m]; D é o diâmetro inicial da veia antes do tra- A partir de dados clínicos obtidos da literatura e da experiência no uso dessa técnica, foi A tamento [m]. B Figura 7.4 Comparação entre as áreas de contato entre bolhas de diferentes tamanhos com a superfície do substrato. Figura Pinotti, M. 75 Escleroterapia com Espuma Escleroterapia.indb 75 6/18/12 3:11 PM Da mesma forma, o tempo também pode ser adimensionalizado: t* = t T a parede interna da veia) quanto o diâmetro do vaso são variáveis que podem assumir valores entre zero e um. Se o modelo matemático for re- (2) produtível para uma faixa de calibre de veias, então, basta multiplicar os valores do diâmetro da Sendo: veia por d* e do tempo total do tratamento (ge- t* é o tempo adimensional do tratamento ralmente 250 segundos) por t* que se obtêm as na sua fase aguda; t é o tempo decorrente entre o instante inicial e o momento analisado [s]; T é o tempo total da fase aguda do tratamento [s]. curvas comparativas da evolução da oclusão dos vasos em função do diâmetro médio das bolhas na microespuma. A Figura 7.5 mostra a evolução, em termos das variáveis adimensionais, do diâmetro interno da veia em função do tempo. Dessa forma, tanto o tempo da fase aguda do tratamento (contato entre o esclerosante e Figura 7.5 Variação do diâmetro adimensional (eixo y) em função do tempo adimensional (eixo x) para a fase aguda do tratamento de escleroterapia. Válido para veias de calibre menor do que 3 mm de diâmetro. Figura por Pinotti, M. O Efeito Espuma Escleroterapia.indb 76 76 6/18/12 3:11 PM 7. Efeito espuma (2009) http://www.youtube.com/ watch?v=ySU6mVGFTFY. Referências 1. Schwarz HA.“Bestimmung einer Minimalfläche”. 108 p. Dümmier, 1871. spezillen 2. Hilgenfeldt S, Kraynik AM, Reinelt DA et al. “The structure of foam cells: Isotropic Plateau polyhedra”. Europhysics Letters, vol.67, n.3, pp.484-490, 2004. 3. Brocken Inaglory (2009). http://en.wikipedia.org/ wiki/Soap_bubble, visitada em 12 maio 2012. 4. Hass J, Schlafly R. “Double bubbles minimize”. 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