trapos, garrafas, sacos lembro na minha infância o som de: “TRAPOS! GARRAFAS! SACOS!” “TRAPOS! GARRAFAS! SACOS!” foi durante a Depressão e você podia ouvir as vozes muito antes de avistar a velha carroça eo velho pangaré. então você ouvia os cascos clop, clop, clop... e então você avistava o cavalo e a carroça e isso sempre parecia ocorrer no dia mais quente do verão: “TRAPOS! GARRAFAS! SACOS!” 11 oh aquele cavalo estava tão cansado... fios de saliva branca babando sempre que o freio se enterrava em sua boca ele puxava uma carga intolerável de trapos, garrafas, sacos vi seus olhos imensos em agonia suas costelas expostas as moscas gordas circulavam e pousavam sobre falhas em seu couro. às vezes um de nossos pais gritava: “Ei! Por que você não alimenta esse cavalo, seu merda?!” a resposta do homem era sempre a mesma: “TRAPOS! GARRAFAS! SACOS!” 12 o homem era inacreditavelmente sujo, barba por fazer, vestindo um chapéu de feltro manchado e roto ele se sentava sobre uma enorme pilha de sacos e vez ou outra quando o cavalo parecia vacilar um passo esse homem sentava-lhe o longo chicote... o som era como o disparo de um rifle uma falange de moscas se erguia e o cavalo se lançava para frente renovado os cascos resvalando e escorregando no asfalto quente e então tudo o que podíamos 13 ver era a parte de trás da carroça e o enorme monte de trapos e garrafas cobertos por sacos marrons e mais uma vez a voz: “TRAPOS! GARRAFAS! SACOS!” ele foi o primeiro homem que tive vontade de matar e desde então não houve mais nenhum. 14 bondes Frank e eu tínhamos doze ou treze e era o tempo da depressão, pouco a fazer exceto pegar uma carona para a praia e voltar naquele verão em particular. naquele outono e inverno em particular andávamos pendurados em bondes. uma passagem, se bem me lembro custava 7 centavos e você podia fazer duas baldeações, o que de fato permite dar uma volta pela cidade. Frank e eu parecemos seguir nesses bondes uma eternidade – bem melhor do que ficar em casa. sempre seguia com Frank. era um cara cheio de coragem. andava por toda parte perguntando às pessoas: “vai usar seu passe?” conseguia muitos dessa maneira e íamos para todos os lugares. 15 muitas vezes mal sabíamos onde estávamos. tínhamos alguns problemas: “não dá para fazer a baldeação da linha W para a J, são zonas diferentes, é preciso pagar por um novo bilhete!” “mas o condutor da linha W disse que estava tudo bem.” “certo, garotos, apenas desta vez.” outros problemas: “os passes não funcionam. o limite de tempo expirou!” “ah, é? onde isso está escrito?” “vê aquele furo feito ali? Marca o número 2. isso significa que qualquer horário depois das duas é tarde demais.” “tudo bem, vamos descer...” descíamos na próxima parada e Frank puxava alguns outros passes do bolso. ele encontrou um palito de dentes na rua e começou a fazer um furo em um dos passes, depois em outro. 16 “o que está fazendo?”, perguntei. “estou alterando a validade”, ele disse. “mas assim serão dois furos...” “e daí?” embarcamos no próximo bonde. “ei”, disse o condutor, “esses negócios foram furados duas vezes.” “e daí?”, disse Frank, “não ponha a culpa em nós.” voltamos e pegamos nossos lugares. no ano passado estivéramos encantados com a igreja Católica mas aquilo logo se revelou uma chatice. agora eram os bondes. então já sabíamos sobre as garotas mas também sabíamos que pobres como nossas famílias eram e pobres como nós mesmos éramos tudo isso teria de esperar ainda um pouco. 17 seguir nos bondes à noite era o melhor raramente tínhamos a chance de fazer isso exceto quando nossos pais iam ao cinema na mesma noite o que era raro mas isso aconteceu umas poucas vezes. o carro da linha W era o melhor. poucas pessoas o tomavam à noite e os condutores realmente aceleravam, tinham todos o pé pesado. os sinais não fechavam por longos períodos ou talvez estivessem sincronizados e o negócio ficava bem selvagem às vezes, a escuridão absoluta lá fora, o velho W rasgando aqueles trilhos, o som das rodas, esquentando, lançando faíscas, o condutor totalmente maluco, tocando a campainha, com o pedal do pé, BLIM BLOM BLIM BLOM BLIM BLOM! sentávamos na parte aberta o vento a nos cortar fundo, 18 “ELE VAI MATAR A GENTE!”, gritaria o Frank e eu riria. e então ouviríamos o mesmo em casa sempre: “onde diabos você estava?” “dando uma volta.” “uma volta?” “isso.” isso os confundia. sabiam que não tínhamos grana e ainda assim sumíamos de vista por várias horas a cada vez. nosso romance com os bondes chegou ao fim, contudo. foi tudo muito triste. meu pai me tinha feito ficar em casa para trabalhar no quintal e Frank havia ido sozinho. trabalhei o dia inteiro com meu pai sentado à janela os olhos em mim. o dia finalmente terminou e eu sobrevivi ao 19 jantar e fui para o meu quarto. por volta das 20h escutei meu pai gritar: “HENRY, VENHA AQUI!” caminhei até a sala e ali estava a mãe de Frank junto à porta, ela chorava. “Frank ainda não voltou para casa”, disse meu pai, “onde ele está?” “não sei onde ele está.” “é claro que sabe.” “não, não sei.” “quero que você vá encontrar o Frank e não quero ver você por aqui até que o traga de volta!” cruzei a porta e passei pela mãe de Frank, que continuava chorando. subi colina acima, depois desci três quadras até o final da linha do bonde W. terminava em nossa vizinhança. 20 sentei no banco e esperei. vi um bonde W se aproximar. encostou e os passageiros foram saindo. nada do Frank. sentei e esperei pelo próximo W. as pessoas desceram. Frank não estava entre elas. sentei e esperei mais um pouco. o próximo W chegou. o último a descer foi Frank. parecia bastante cansado. levantei. “EI, FRANK!” ele me viu e se aproximou. “Deus, que noite! Fiquei horas e horas dando voltas! devem ter alertado todos os condutores!” “do que está falando?” “tentei retornar tomando o W, eles não aceitavam 21 nenhum dos meus passes, eles conheciam todos os meus truques e eu não tinha nenhum dinheiro!” “o que você fez?” “entrei em pânico. depois de ter sido barrado 5 vezes eu apenas pulei em um dos carros e corri até um assento nos fundos e me sentei e fingi um ataque de coreia. deste jeito!” Frank começou a me mostrar. ele se encolhia todo, a cabeça rolava, os olhos esbugalhados, baba escorria de seus lábios. “você é bom, Frank. muito bom!” “ele me deixou ir.” “Frank, sua mãe apareceu lá em casa, ela estava chorando, você está lascado.” “eu sei, meu pai vai me dar uma bica na bunda.” “não consegue inventar uma história?” 22 “não, nada irá funcionar, acabarei levando uma bica na bunda. vamos, hora de voltar para casa...” seguimos pela primeira rua. “bem”, eu disse, “suponho que esse seja o fim dos bondes. precisamos encontrar alguma coisa nova.” “garotas”, disse Frank. “garotas?” aquilo parecia um movimento ousado demais. “foi tudo o que restou”, disse Frank. caminhamos por ali sob a luz da lua pensando sobre aquilo. 23