Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flávia Florentino Varella (org.). Caderno de resumos & Anais
do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas
modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9)
A escrita de uma história para a mocidade brasileira no oitocentos: o Epítome de
História do Brasil de Caetano Lopes de Moura
Isadora Tavares Maleval1
O século XIX pode ser visto como um momento em que a preocupação com o
nacional tornou-se marcante. Esse ideal fica perceptível no que diz respeito à própria
construção da história como disciplina e profissão. Nesse sentido, apoiando-se em François
Furet2, podemos dizer que o século XIX foi o momento em que a história seria responsável
por ensinar a “evolução da humanidade” e a “civilização”, sem esquecer que essa “marcha
para o progresso” teria como artífice o Estado Nacional. A história, portanto, passou a ser a
pedagogia do cidadão e a biografia da nação.
No Brasil, houve um momento crucial para a formação desses debates. A fundação
do IHGB, a consolidação do colégio Pedro II – e a entrada, em 1858, no currículo de
História e Corografia do Brasil – e os escritos de Varnhagen são exemplos da importância
que essas questões ganharam no Brasil.
Além da dupla tarefa – escrever a história e ensiná-la à mocidade, representadas
aqui, respectivamente, pela inauguração do IHGB e do Colégio Pedro II – tornava-se
importante escrever uma história que pudesse ser transmitida àqueles que deveriam ser os
futuros cidadãos ativos do Brasil.
Nesse sentido, analisaremos o caso de Caetano Lopes de Moura, autor de um
compêndio escolar de história do Brasil, o Epítome Chronólogico de História do Brasil para
uso da mocidade brasileira.
Caetano nasceu no dia 7 de agosto de 1780, na Bahia. Provinha de origem humilde,
como conta, em sua Autobiografia: Sou pardo, como foram meu pai e minha mãe; meu avô
e avó foram também dessa cor entremeia, que alguns brancos desestimam por isso, que lhes
traz à memória a de alguns antepassados.3
Aprendeu as primeiras letras em Salvador e depois cursou uma das cadeiras régias
de gramática latina na Bahia, e, desde logo que começou a aprender, passou a dar aulas. E
1
Mestranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
François Furet, “O nascimento da história”, In A oficina da História. Lisboa, Gradiva, 1980.
3
Ver Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo. Revista da Academia Brasileira de
Letras. Rio de Janeiro, v. 4, 1912, 1ª parte, p. 277.
2
1
através dos ganhos recebidos das mesmas, partiu para Portugal, em 1802, e acabou indo
para a França, com a intenção de estudar medicina. Além disso, viajou para a Inglaterra,
nesse meio tempo, onde acabou também estudando a língua inglesa.
Viveu a maior parte de sua vida fora do Brasil e morreu na França. Atuou como
ajudante de cirurgião na Legião Portuguesa, formada por oficiais portugueses que se
incorporaram ao exército francês. Tinha, por esse motivo, forte ligação com Napoleão
Bonaparte, a quem via com grande admiração, chegando a escrever uma História de
Napoleão Bonaparte desde o seu nascimento até à sua morte, obra de caráter biográfico.
Foi tradutor de uma série de obras da literatura inglesa e francesa. E chegou a
exercer também o ofício de agrônomo, mas, quando já não conseguia sobreviver com o
pagamento desse trabalho, passou a receber mercês do Imperador Pedro II, cuja relação foi
tão próxima que chegou mesmo a escrever uma autobiografia a pedido do mesmo. Essas
mercês financiaram sua carreira de pesquisador em muitos arquivos europeus, coletando
dados relacionados ao Brasil. Tornou-se sócio-correspondente do IHGB, para onde enviava
suas pesquisas. Estas contribuíram, também, para outra atividade que exerceu: a de autor de
vasta obra de cunho didático para uso da mocidade brasileira.
O Epítome foi lançado em 1860, ano da morte de Caetano. Desde o prólogo, ficava
clara a relação entre a obra e a política imperial de Pedro II. O livro era dedicado ao
Imperador pelos editores:
Um Resumo da Historia do Brasil, escrito por um Brasileiro, para uso da mocidade
brasileira parece que de justiça, Imperial Senhor, devia ser posto debaixo da Proteção e
Amparo de Vossa Majestade Imperial, do Monarca Ilustrado, que põe toda a sua gloria em
editar, como é patente, a nação, cujo governo, para felicidade dela, foi Deus servido
confiar-lhe...
Dessa maneira, o livro devia ser visto como uma obra à altura da instrução pública
dos futuros cidadãos ativos do Brasil. A mocidade teria, através do ensino da história do
Brasil trazido por ele, condições de torna-se, futuramente, a elite política do Brasil imperial.
E, por isso, o Imperador estaria ao lado dessa empreitada.
O Epítome, nome que deriva do latim e significa resumo de um livro, continha, assim, os
mais importantes acontecimentos da história do Brasil. Sua forma é pautada em uma
cronologia: os eventos são narrados de acordo com os anos, ou, se for o caso, através das
2
datas mais importantes. No caso do nosso objeto, a narrativa inicia-se no descobrimento do
Brasil – um “feliz acaso”4 para Caetano – e termina na década de 1830 – com abdicação de
D. Pedro, e início do período de regência. Não é, portanto, um livro que busca analisar os
acontecimentos, ou julgar a história, apesar de algumas vezes fazê-lo5.
Caetano dá maior importância a algumas questões, como a das invasões estrangeiras
(francesa e holandesa) e a expulsão dos jesuítas – e o que fazer com as aldeias indígenas
antes sob jurisdição dos mesmos 6 . Entretanto, devido ao tempo curto da presente
comunicação, restringiremos nossa análise aos eventos tratados no Epítome mais
“contemporâneos” da vida de Caetano.
A vinda da família Real para o Rio de Janeiro é um dos acontecimentos tratados
com maior importância por Caetano. Isso porque, em 1807, “somos chegados à época
marcada pela providência para a emancipação do Brasil; em breve deixaremos de ser
colônia”7. E, desde então, mostra que essa decisão foi pertinente e fundamental, pois, caso
não tivesse acontecido, a dinastia de Bragança teria perdido seu trono, como aconteceu ao
rei Fernando VII da Espanha. Além disso, a vinda da Corte para o Brasil assegurou também
a conservação de sua rica colônia.
O advento da independência mereceu, também, destaque nessa narrativa. Em
primeiro lugar, o “dia do fico”, pois evitou a partida de D. Pedro e, conseqüentemente, a
repartição do Brasil “em outras tantas repúblicas, quantas eram as suas províncias”8. Os
brasileiros que estavam em Portugal, nas Cortes, acabaram por desistir de representar o
Brasil devido à vontade que havia entre os portugueses de fazê-lo retornar à condição de
colônia. Para Caetano, ficava claro que, até aquele momento, nunca houve, por parte dos
brasileiros, uma vontade real de separação com Portugal. Muito pelo contrário:
4
Ver Epítome Chronologico da Historia do Brasil, Paris, Aillaud, Monton e Cª, 1860, p. 2.
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, “A história para uso da mocidade brasileira”, in José Murilo de
Carvalho (org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007,
p.45.
6
No ano de 1755, foi instituído o diretório para “a civilização e conversão dos Brasís em 95 artigos”, os quais
foram, em sua grande parte, transcritos por Caetano no Epítome. O autor utiliza, para abordar essa temática,
aproximadamente, 50 páginas.
7
Idem, ibidem, p. 230.
8
Idem, ibidem, p. 259.
5
3
não aspiravam os brasileiros senão a ficarem unidos com os Portugueses (...), porém as
Cortes portuguesas com uma série de decretos absurdos, inexeqüíveis e soberanamente
iníquos os impeliram a se separarem de Portugal, e a se declararem independentes.9
Seguindo os acontecimentos da história do Brasil, Caetano fala sobre o governo de
Pedro I, como Imperador. E, apesar de mostrar algumas atitudes um tanto autoritárias de D.
Pedro, demonstra o amor que esse soberano tinha pelo Brasil, até mesmo, no momento da
morte de D. João VI. D. Pedro abdicou aos direitos que tinha à Coroa de Portugal em nome
de sua filha, Maria da Glória, e devemos confessar que nessa ocasião falava o Imperador
com o coração nos beiços, e dizia o que sentia, que não era ele insensível à glória, nem tão
pouca era a que antevia lhe havia de caber no porvir de ter sido o fundador de dois
governos constitucionais, o de Portugal e do Brasil.10
Desde 1830, entretanto, o Imperador estaria passando por momentos difíceis, em
um movimento semelhante àquele que ocorria na Europa. Pouco tempo depois, ocorreu a
abdicação de D. Pedro, em favor de seu filho, iniciando-se o período de regência.
Exatamente, nesse ponto, Caetano termina o seu Epítome. Justifica tal decisão
porque os eventos, que se seguiram a esse fato, eram muito próximos, e, conforme se
acreditava na própria história produzida pelo IHGB, não eram passíveis de serem
trabalhados pelos escritores da história. Essa seria uma tarefa das próximas gerações.
Como podemos perceber, o livro de Caetano, que se pretendia uma narrativa
objetiva – segundo os próprios ideais da época de uma escrita da história “científica” – foi
feito de acordo com uma escolha que mostrava a construção de um Brasil segundo o
projeto de colonização portuguesa. Mesmo que, por vezes, o autor mostrasse certos “erros”
ou incertezas nesse intento, é perceptível que, ao mesmo tempo, ele deseja mostrar quão
importante foi a obra lusa em sua colônia.
Dessa maneira, Pedro I, mesmo que tivesse cometido enganos, era um “imprudente
fundador”11, o que fazia com que não deixasse de ser o fundador dessa nação. E o mesmo
sentimento demonstrava para seu pai e para seu avô: o Brasil só conseguiu chegar a tal
patamar de civilidade através da força desses grandes homens, que fizeram da colonização
9
Idem, ibidem, p. 266.
Idem, ibidem, p. 290.
11
Idem, ibidem, p. 319.
10
4
desse território uma grande preocupação. Todo esse processo teve sua “coroação” – em
duplo sentido – com a vinda da família real em 1808 e com a independência de 1822.
Assim, mesmo vivendo na segunda metade do século XIX, Caetano ainda
relacionava a história da nação brasileira a uma herança portuguesa, não como forma de
vergonha ou atraso, mas, pelo contrário, como aquilo que fizera, efetivamente, a nação
brasileira12. Ora, a própria vivência de Caetano poderia explicar sua forma de entender a
gênese da nação brasileira, pois morou a maior parte da vida na Europa e, portanto, não
vivenciou aquele ambiente intelectual ativamente, conforme ocorria no Brasil13.
Apresentava, no entanto, forte relação com a política imperial, já que recebia mercês
de Pedro II. Nesse sentido, duas características devem ser levadas em consideração na
escrita do Epítome: em primeiro lugar, o fato de que, para Caetano, o Brasil iniciou-se em
1822 sob o regime monárquico de um herdeiro da casa dos Bragança, em contraste, com a
fragmentação da América Espanhola14. Em segundo lugar, a defesa da manutenção da
unidade territorial do Brasil, para evitar o perigo da anarquia e do desmembramento das
províncias, o que seria essencial para poder reconstituir o “Estado Brasileiro”.
Essa unidade, que deveria ser transmitida nos livros de história do Brasil,
alimentando, assim, a construção de um sentimento nacional, ainda estava ligada à figura
do monarca. Por tal motivo, autores como Caetano buscavam na tradição e na herança
portuguesa, assim como Varnhagen, o passado comum que podia oferecer o alicerce para
uma identidade “unificada” no Brasil.
12
Nesse ponto, diferia de Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, uma vez que este buscava encontrar um
“mito fundador”, autenticamente brasileiro e, mesmo, em quase oposição à antiga metrópole. Por isso
valorizava tanto o índio, diferente de Caetano que, apesar de dedicar boa parte de sua obra à questão indígena,
o faz em detrimento sempre de uma obra colonizadora. O índio, nesse sentido, só existe enquanto algo que
devia ser civilizado.
13
Enquanto Macedo esteve presente de forma efetiva nos debates do IHGB e tinha o magistério como
vocação, Caetano serviu ao lado dos franceses durante as guerras napoleônicas, não mais regressando ao
Brasil – “desterrado da Pátria por amor das letras, quando solteiro, e por amor dos filhos, depois de
casado”.
14
Lúcia M. B. P. das Neves, 2007, p . 6 3 .
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