LÍNGUA, ESCRITA E PODER: POR UMA RECONSTRUÇÃO
DAS HISTÓRIAS DE INSERÇÃO DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS BRASILEIRAS
NO MUNDO DA CULTURA ESCRITA
Pedro Daniel dos Santos Souza1
RESUMO
Os recentes debates sobre a história da cultura escrita no Brasil, considerando as condições
particulares de formação do português brasileiro (PB), língua que emergiu de uma sóciohistória de contatos entre o português europeu transplantado, línguas indígenas, línguas
africanas e, em contextos mais localizados, línguas da imigração, têm impulsionado uma
prospecção a arquivos e acervos, supostamente raros, que preservem a memória de como
índios, africanos, imigrantes e seus respectivos descendentes não só adquiriram o português
na oralidade, mas, sobretudo através dessa língua, foram também paulatinamente adentrando
um mundo de cultura escrita. Sob essa perspectiva, o presente estudo, apoiando-se em fontes
documentais do Estado do Grão-Pará existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
apresenta reflexões sobre a inserção de populações indígenas na cultura escrita, com vistas à
produção de novas sínteses historiográficas que tomem os índios como sujeitos históricos e os
aldeamentos como espaços de interação de grupos sociais e étnicos diversos (ALMEIDA,
2001) que podem ter gestado práticas de escrita por essas populações. Os resultados dessa
investigação, fundamentados no mapeamento dos processos de letramentos e linguageiros
havidos a partir (e mesmo antes, para com os indígenas) dos inícios da colonização,
materializam-se, na documentação, através de solicitações de contratação de professores,
ensino obrigatório de língua portuguesa, tomada de providências quanto ao uso da língua
geral e processos de letramentos diversos. Assim, revelam-se indícios das práticas sociais da
escrita e consequente inserção das populações indígenas nas culturas do escrito, em um
processo caracterizado pelos jogos de poder e estratégias de negociações e resistências.
PALAVRAS-CHAVE: Sócio-História Linguística. Cultura Escrita. Práticas Sociais. Brasil
Colônia. Populações Indígenas.
1
Sobre as populações indígenas, as práticas de escrita e a sócio-histórica do
português brasileiro: diálogos em aberto
No artigo Escolarização de aldeados no Brasil dos séculos XVII e XVIII e produção
escrita indígena, Carneiro (2012) destaca que, na demografia histórica apresentada por Mussa
(1991), em dissertação de mestrado intitulada O papel das línguas africanas na história do
português do Brasil, apresenta-se um dado que ainda foi pouco explorado nos estudos sobre a
constituição histórica do português brasileiro, ou seja, o do contingente de índios aldeados no
Brasil colonial. Ainda, para a autora, essa pouca atenção dada a esse contingente, devido ao
1
Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas e
Tecnologias, Campus XVIII - Eunápolis. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
membro do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). E-mail: [email protected].
seu rápido decréscimo no século XVII2, fundamenta-se, provavelmente, na visão
“cristalizada” do indígena colonial. Em contrapartida, diversos estudos sobre a América
indígena, a exemplo dos trabalhos de Monteiro (1992, 2001), Puntoni (1998), Almeida (2000,
2001, 2003), Pompa (2001, 2003), entre outros, têm demonstrado ser esse um mundo de
“constantes redefinições identitárias”. Nas palavras de Almeida (2001, p. 51),
Pouco valorizados em nossa historiografia, cuja perspectiva assimilacionista
apresenta sua trajetória como um processo de perdas culturais contínuas, que os
conduzia à descaracterização étnica e cultural, é surpreendente encontrá-los, no
século XIX, afirmando sua identidade e lutando juridicamente pela manutenção das
terras e das aldeias que lhes haviam sido concedidas, séculos antes, como
patrimônio. Ao contrário das expectativas, portanto, não deixaram de ser índios nem
saíram da história. Isto aponta para a possibilidade de estarmos diante da recriação
de identidades, culturas e histórias destes índios aldeados, a partir de suas
necessidades novas, vivenciadas na experiência cotidiana com vários outros grupos
étnicos e sociais no mundo colonial.
Na direção de uma renovação historiográfica da América indígena, Monteiro (2001,
p. 4), em sua tese de livre docência intitulada Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de
história indígena e do indigenismo, afirma que, entre os historiadores brasileiros, parece
haver, ainda hoje, duas noções fundamentais que foram estabelecidas pelos pioneiros da
historiografia nacional.
A primeira diz respeito à exclusão dos índios enquanto legítimos atores históricos
[...]. A segunda noção é mais problemática ainda, por tratar os povos indígenas
como populações em vias de desaparecimento [...]. Um dos perigos dessas
abordagens é que investem numa imagem cristalizada – fossilizada, diriam outros –
dos índios, seja como habitantes de um passado longínquo ou de uma floresta
distante.
Apoiando-se numa nova visão da América indígena que toma os índios como
sujeitos históricos e os aldeamentos como espaços de interação de grupos sociais e étnicos
diversos, como defendido por Almeida (2000, 2001, 2003), podemos também considerar que
esses espaços podem ter gestado uma prática de escrita por indígenas com inserção no Brasil
colonial de maneiras diversas. Considerando isso, alguns trabalhos já perseguem essa linha de
investigação. Ademais, de um lado, a historiografia aponta para a existência de um espaço
oficial para a alfabetização para indígenas no Brasil colonial sob a tutela inicial da Companhia
de Jesus, ao contrário do que ocorreu, por exemplo, com os escravos africanos e seus
2
Os percentuais apresentados pelo autor por século são os seguintes: século XVI (1538-1600), (50%); século
XVII (1601-1700), (10%); e século XVIII (1701-1800) mantendo com (8%). E a partir daí, com a transformação
dos aldeamentos em vilas, nos meados do século XVIII (1801-1850) vai de 4% para apenas 2%, entre 18511890.
descendentes e, de outro, esses espaços podem ter produzido uma escrita gestada a partir de
um ambiente que abrigou um contato multilíngue, sobretudo durante os primeiros séculos da
colonização, período marcado por uma multilinguismo generalizado, como nos aponta Mattos
e Silva (2004).
Ainda segundo Carneiro (2012), já existem várias pesquisas, embora se careça de um
aprofundamento da questão, que apresentam informações importantes que nos possibilitam
entender o complexo ambiente de relações entre indígenas, missionários e colonizadores, a
partir
do
século
XVI
e
das
linhas
essenciais
na
construção
das
dicotomias
sertão/Tapuias/Macro-Jê e costa/Tupinambá/Macro-Tupi. E, nessa direção, “o encontro entre
Tapuia e missionários na construção do espaço do ‘aldeamento’ com as implicações
linguísticas daí advindas, desde o contato de línguas até a inserção do indígena no mundo da
escrita” (CARNEIRO, 2012, p. 352), objeto também de interesse do trabalho de investigação
que temos desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa “De todos que sabiam ler e
escrever”: em busca de fontes documentais para uma reconstrução da penetração das
populações indígenas brasileiras no mundo da cultura escrita, na Universidade do Estado da
Bahia.
As questões postas e, ainda mais, o processo histórico de formação do português
brasileiro, enquanto língua que emergiu marcadamente de uma sócio-história de contatos
entre o português europeu transplantado, línguas indígenas, línguas africanas e, em contextos
mais localizados, línguas da imigração, evidenciam a necessidade de realização de pesquisas
que objetivem mapear e explorar arquivos e acervos, supostamente raros, que preservem a
memória de como índios, africanos, imigrantes e seus respectivos descendentes não só
adquiriram o português na oralidade, mas, sobretudo através dessa língua, foram também
paulatinamente adentrando um mundo de cultura escrita. As questões postas é que abrem
espaço para a necessidade de, se se pretende uma escrita do português brasileiro, lançar mão
desses também agentes da colonização: os índios aldeados.
Em seu ensaio, hoje já clássico, O português no Brasil, o filólogo e lexicógrafo
Antônio Houaiss (1992 [1985]) reflete sobre alguns caminhos essenciais para explicar o
português do Brasil, tanto falado quanto escrito, pontuando que o enfrentamento da
problemática quanto à explicação de suas origens e natureza deve partir de quatro vias de
investigação, assim delineadas:
1) a do levantamento exaustivo de depoimentos diretos e indiretos sobre todos os
processos linguageiros havidos a partir (e mesmo antes, para com os indígenas e os
negros) dos inícios da colonização [...]; 2) o mapeamento confiável da dialetologia
brasileira [...] – mapeamento do qual, pelas igualdades unitárias e globalizantes, será
possível “recapitular” o processo passado que terá gerado o presente descrito por
essa dialetologia; 3) o incremento da dialetologia vertical em tantos quanto possíveis
grandes centros urbanos e focos rurais antigos, a fim de se poder ver a
interinfluência entre o rural e o urbano na transmissão adquirida e induzida; 4) a
penetração da língua escrita no Brasil, das origens aos nossos dias [...]. Tudo isso
parecerá algo mítico ou irrelevante para os que – metódica e filosofantemente –
acham que só é história o que sobrenada e sobrevive do passado nos presentes.
Ainda que fora assim, porém, o “presente” e os “presentes” brasileiros são tão
carentes de compreensibilidade e inteligibilidade, que se pode querer penetrá-lo: e a
via não é outra, senão a reconstrução dos passados (HOUAISS, 1992 [1985], p. 137138).
Sobre a quarta via apresentada nas palavras de Houaiss (1992 [1985]) acima –
“penetração da língua escrita no Brasil, das origens aos nossos dias” –, apesar de,
sabidamente, o Brasil ser um país de escolarização e imprensa tardias, como destaca Galvão
(2007), paradoxalmente, é através dos espaços institucionais formais – sobretudo a escola,
entendida como a agência do letramento por excelência – que se tem buscado traçar a história
da penetração da língua escrita no Brasil. No entanto, esta é uma perspectiva possível, mas
não exclusiva nem principal para o enfrentamento da questão. Concebida como um espaço
interdisciplinar, a construção dessa via, contrariamente à perspectiva apontada por Houaiss,
não poderá ser só “essencialmente linguística”, mas envolver olhares diversos. Assim, no
âmbito dos estudos em Linguística Histórica, abrem-se caminhos para novas perspectivas de
pesquisa que dialoguem com outras áreas do saber, notadamente a História, a Antropologia, a
Sociologia, os Estudos Culturais, entre outras.
Considerando essa perspectiva e indo ao encontro do programa de pesquisa
apresentado por Houaiss (1992 [1985]), cujo enfrentamento diz respeito à “penetração da
língua escrita no Brasil”, temos desenvolvido investigações quanto ao levantamento de fontes
que possibilitem uma reconstrução da história da penetração das populações indígenas no
mundo da cultura escrita. Sob essa perspectiva, é preciso ressaltar aqui a importância da
renovação historiográfica advinda das rupturas realizadas no âmbito da denominada História
Cultural, que abriu espaço para novas formas de fazer História, dando voz aos marginalizados
da historiografia tradicional que era marcada pela escrita de fatos e feitos de grandes
personagens.
Do ponto de vista da linha da cultura escrita e dos estudos em Linguística Histórica,
temos perseguido, portanto, o objetivo de alargar as nossas perspectivas de estudos sobre a
formação da língua portuguesa no Brasil. Além do mais, é preciso considerar que uma língua
ágrafa que entra em contato com uma língua já em fase de escrita avançada como a
portuguesa é provável que suscite situações não descritas, o que torna interessante entender
esse universo colonial do Brasil. Como os índios enfrentaram esse universo, desde a entrada
dos "aculturados" na máquina administrativa ou as estratégias que usaram frente a esse mundo
burocrático e às estratégias do colonizador? E os instrumentos pedagógicos/evangelizadores?
Com essas questões em mente, fizemos uma prospecção no Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), por meio da coleção de CD-ROM do Projeto Resgate de Documentação Histórica
Barão do Rio Branco, disponibilizada no Laboratório de Ensino de História do Departamento
de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT) do Campus XVIII da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), e identificamos algumas fontes documentais que nos permitiram refletir
sobre uma reconstrução da história da penetração das populações indígenas no mundo da
cultura escrita, pós Diretório Pombalino ou dos Índios, que instituiu uma política linguística
de ensino do português e proibição dos usos da língua geral (ou línguas gerais).
Considerando as discussões sobre a inserção das populações indígenas brasileiras no
mundo da cultura escrita, segundo Carneiro (2012, p. 349), embora “sejam raras as provas
materiais de uma escrita indígena, isso, por si só, não a nega”. E, nessa direção, investigando
a prática de escrita entre populações indígenas, Neumann (2005, p. 178), em tese intitulada
Práticas letradas Guarani: produção e usos da escrita indígena (séculos XVII-XVIII), referese a uma intensa troca de bilhetes, cartas e avisos entre os Guarani das Missões em meados do
século XVIII, e destaca as palavras utilizadas pelo jesuíta missioneiro, Thadeo Xavier Henis,
no seu diário: mientras volaban correos por los pueblos. Além do mais, o pesquisador
observa que essa prática de escrita não estava circunscrita a troca de bilhetes, informando-nos
ainda o caso do cacique da redução de Santa Maria La Mayor, Nicolas Yapuguai que, em
1727, recriou, em língua guarani, o livro Sermones y Ejemplos em Lengua Guarani.
Na tese anteriormente referida, Neumann (2005) faz uma detalhada análise desse
tema e mostra como os contextos socioculturais no processo de evangelização gestaram a
prática da escrita que culminou em uma produção escrita Guarani nos séculos XVII e XVIII,
descrevendo não só o uso de suportes de escrita, o papel dos copistas, como também
especificando a sua produção, que envolvia gêneros textuais diversos como cartas, memórias,
atas de cabildos, diários, narrativas históricas, entre outros.
Para além dessa situação descrita por Neumann (2005), quanto aos usos sociais da
escrita por populações indígenas, acreditamos que diversos são os testemunhos escritos que
podem lançar luz sobre a penetração de tais povos nas culturas do escrito. É evidente que há
muitos percalços, inclusive há de se perguntar sobre a opacidade da documentação colonial no
que diz respeito às práticas de escritas associadas aos aldeados. No entanto essa é a função da
Linguística Histórica em sua orientação sócio-histórica, como de forma apropriada pode ser
sintetizada na metáfora tomada aqui de Lass (1997, p. 45), “hearing the inaudible”, ouvir o
inaudível.
Nessa busca de “ouvir o inaudível” e com vistas a investigar, a posteriori, a história
da penetração das populações indígenas no mundo da cultura escrita é que nos propusemos a
fazer uma prospecção nas fontes do AHU, a fim de identificar, catalogar e editar documentos
que testemunhem as práticas sociais da escrita pelos povos indígenas. A preservação e a
difusão do patrimônio documental do AHU, digitalizado e disponibilizado aos pesquisadores
brasileiros por meio do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, representa um verdadeiro
divisor de águas sem precedentes e com efetivo impacto cultural e historiográfico. Afinal de
contas, os usos e abusos dessa documentação têm possibilitado um novo olhar para a história
e memória, descortinando novos temas e objetos, a exemplo das questões relativas à estrutura
e dinâmica territorial, movimentação e crises demográficas, exportação e economia de
subsistência, instituições e ideias coloniais, cultura, poder e sociabilidades políticas, trabalho,
escravidão e liberdade, assim como reavendo para a memória histórica o lugar e o papel
desenvolvido por grupos sociais, políticos e étnicos pouco estudados ou nunca trabalhados na
historiografia, como degredados, índios, jesuítas, prostitutas, pobres, bígamos, negros,
mulheres, hereges, gays, mestiços, padres e, no nosso caso, a possibilidade de refletir sobre a
penetração das populações indígenas no complexo mundo da cultura escrita, entre muitos
outros.
Nessa direção, os documentos coloniais foram concebidos, ao longo do
desenvolvimento de nosso trabalho, em suas múltiplas possibilidades, mas, sobretudo, quanto
às solicitações das populações indígenas de contratação de professores de língua portuguesa,
reformas e construções de escolas, usos linguísticos, processos de letramentos diversos, entre
outras questões que tematizavam a inserção dessas populações no mundo da cultura escrita.
Como caudatários das experiências humanas, os manuscritos pesquisados armazenam a
memória histórica, sendo a função do documento histórico “ajudar a sociedade a se lembrar
do seu passado, de suas raízes, de sua história”, como pontua Cook (1998, p, 23).
Ademais, o presente artigo, inserindo-se no âmbito dos estudos sobre a história da
cultura escrita no Brasil, busca contribuir para uma reflexão sobre a escrita da história social
do PB e, notadamente, focaliza a abertura de espaço para uma renovada historiografia
indígena, na medida em que, apoiando-se em fontes documentais do Estado do Grão-Pará
existentes no AHU, apresenta reflexões sobre a inserção de populações indígenas na cultura
escrita, com vistas possibilitar a produção de novas sínteses historiográficas que tomem os
índios como sujeitos históricos e os aldeamentos como espaços de interação de grupos sociais
e étnicos diversos, como defende Almeida (2001, 2003), que podem ter gestado práticas de
escrita por essas populações. Consequentemente, a investigação proposta também poderá
contribuir para uma maior compreensão do complexo mundo da cultura escrita no Brasil
colonial.
2
Políticas linguísticas e populações indígenas no Brasil colonial: reflexões ainda
preliminares
Integrados à administração portuguesa no Brasil colônia, na condição de aliados, os
povos indígenas tornaram aldeados e, na condição de súditos do Rei, passaram a assumir
diferentes papéis na nova configuração da sociedade que se formava. Inevitavelmente, alguns
desses diferentes papéis, possivelmente, também poderiam passar por um domínio, embora de
forma rudimentar, de práticas de escrita. Nessa perspectiva, é preciso considerar que, embora
sejam ainda raras as provas materiais, num intenso contato multilíngue, haja vista os
aldeamentos terem sido espaços de interação de grupos étnicos diversos, como pontua
Almeida (2001), e num país generalizadamente multilíngue, como defendido por Mattos e
Silva (2004), e, ainda mais, considerando os novos papéis assumidos por índios na
administração colonial, podem ter sido gestadas práticas de escrita indígena que,
possivelmente, poderão contribuir para uma melhor compreensão da constituição histórica do
português brasileiro.
Tendo esse quadro brevemente esboçado, torna-se necessário refletir sobre o projeto
pombalino de imposição da língua portuguesa aos índios, explicitamente uma política
linguística que reafirma a relação de poder colonizador-colonizado, na medida em que proíbe
o uso da língua geral indígena (ou línguas gerais), considerada como uma ameaça à
hegemonia da língua portuguesa, sob o discurso da integração dos índios à sociedade colonial.
Nesse ínterim, é preciso destacar que o aprendizado sistemático da língua geral, feito
indistintamente por moradores da colônia, acabou por produzir comunidades de fala opacas ao
entendimento da metrópole. Essa configuração histórico-linguística, nos termos usados por
Mariani (2004), levou à institucionalização de um processo de “colonização linguística”
imposta por Portugal. Para a autora, refletir sobre
a trajetória histórico-lingüística constitutiva da institucionalização da língua
portuguesa no Brasil é estabelecer uma relação com o projeto colonizador português
de civilizar o Novo Mundo. Trata-se de um projeto de colonização lingüística
constituído com base no catolicismo jesuítico e em consonância com um imaginário
em torno da relação língua-nação vigente do século XVI ao XVIII. (MARIANI,
2004, p. 21)
As bases dessa política linguística se encontram no Directorio, que se deve observar
nas povoaçoens dos índios do Pará, e Maranhaõ em quanto Sua Magestade naõ mandar o
contrario, conhecido como Diretório Pombalino ou dos Índios, lei criada em 1757, através da
qual se extinguiu a administração eclesiástica dos aldeamentos, emancipando assim os povos
indígenas da tutela dos missionários jesuítas. Elaborada, inicialmente, para servir ao Estado
do Pará e Maranhão, região que dependia extremamente do trabalho indígena e encontrava-se
dividida em várias missões religiosas, o que, consequentemente, dificultava o controle da
Coroa portuguesa sobre a organização econômica e os lucros da região, em 1758, foi
expandida a todo território brasileiro, sendo revogada em 1798.
Nesse documento, o Marquês de Pombal deixa expressa a intenção de “civilizar” os
índios pela língua. Assim, a colonização linguística sustenta idelogicamente o próprio ato de
expansão marítima e religiosa, no discurso que oficializa em definitivo a língua como uma das
instituições nacionais portuguesas na colônia:
Sempre foi maxima inalteravelmente praticada em todas as Naçoens, que
conquistáraõ novos Dominios, introduzir logo nos Póvos conquistados o seu proprio
idiôma, por ser indisputavel, que este he hum dos meios mais efficazes para
desterrar dos Póvos rusticos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado
a experiencia, que ao mesmo passo, que se intoduz nelles o uso da Lingua do
Principe, que os conquistou, se lhes radîca tambem o affecto, a veneraçaõ, e a
obediencia ao mesmo Principe. [...]” (Directorio, p. 3, cap. 6)3
Para Oliveira (2002, p. 84), o Estado Português e, depois da independência, o Estado
Brasileiro, sempre adotou, “como política, durante quase toda a história, impor o português
como a única língua legítima, considerando-a ‘companheira do Império’ (Fernão de Oliveira,
na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536)”. Nesse sentido, a política linguística
do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio através do
que o autor denomina de “deslocamento linguístico”, caracterizado por substituição pela
língua portuguesa. Dessa forma, podemos considerar que a história linguística do Brasil
reflete sucessivas políticas linguísticas homogeneizadoras e repressivas e seus consequentes
resultados marcados pela morte de línguas. E é nessa trajetória, marcada pelo glotocídio, que
3
Texto extraído da edição fac-similar de Almeida (1997).
podemos entrever as consequências de implantação do projeto pombalino de imposição do
português e proibição da língua geral, como expresso no texto do Directorio:
[...] Observando pois todas as Naçoens polîdas do Mundo este prudente, e sólido
systema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidáraõ os
primeiros Conquistadores estabelecer nella o uso da Lingua, que chamaráõ geral;
invençaõ verdadeiramente abominavel, e diabólica, para que privados os Indios de
todos aquelles meios, que os podiaõ civilizar, permanecessem na rustica, e barbara
sujeiçaõ, em que até agora se conservávaõ. Para desterrar este perniciosíssimo
abuso, será hum dos principáes cuidados dos Directores, estabelecer nas suas
respectivas Povoaçoens o uso da Lingua Portugueza, naõ consentindo de modo
algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem ás Escólas, e todos
aquelles Indios, que forem capazes de instrucçaõ nesta materia, usem da
Lingua propria das suas Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da
Portugueza, na forma, que Sua Magestade tem recõmendado em repetidas ordens,
que até agora se naõ observáraõ com total ruina Espiritual, e Temporal do Estado
(Directorio, p. 3-4, cap. 6, grifo nosso).
Explicitamente, o Diretório Pombalino, ou dos Índios, apresenta uma política
linguística que prevê o glotocídio das línguas indígenas, aqui representadas pela “Lingua
própria das suas Naçoens, ou da chamada geral”, em favor da hegemonia da língua
portuguesa, tomada como a língua de civilização e que serve ao ideal colonizador português.
Mesmo assim, precisamos ainda considerar que, embora dotadas de caráter repressivo, essas
leis, em específico o Diretório, não tenham, por si só, mudado o perfil linguístico do Brasil,
ou ainda que tenham sido obedecidas tranquilamente pela população, como pontuado por
Oliveira (2002).
Fazendo uma prospecção nas fontes do AHU, podemos identificar a preocupação
com o ensino de língua portuguesa aos nativos antes mesmo do Diretório. É assim que, em
carta para o rei D. João V, datada de 13 de setembro de 17284, o governador e capitão-general
do Estado do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire, apresenta expressamente a sua
preocupação em dar notícias à Coroa portuguesa sobre a ordem que havia dado para que todos
os religiosos ensinassem a língua portuguesa aos índios. A mesma preocupação é expressa na
carta do governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, para o Superior Vice-Provincial da Companhia de Jesus, datada de 18 de
novembro de 17515, ordenando que nos trabalhos de catequização e civilização dos índios, os
missionários das aldeias procedessem ao ensino da língua portuguesa, escrita e falada, a fim
de os nativos possam melhor servir aos interesses das capitanias e da Coroa. Interessante
destacar aqui a preocupação também com o ensino da escrita e não com a oralidade. Aspecto
4
5
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 11, Documento 972.
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 32, Documento 3063.
relevante num contexto em que alguns espaços passam a ser ocupados, preferencialmente, por
índios, como definido na política pombalina de assimilação.
Outro documento que identificamos e que também trata do processo de letramento
dos povos indígenas em língua portuguesa é um ofício do governador e capitão general do
Estado do Maranhão e Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, datado de 1º de
fevereiro de 1754, para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte Real, que versa sobre a administração das Missões e as formas de “civilizar” os índios
da capitania, bem como aborda questões relativas à visita às aldeias indígenas e ao
estabelecimento de escolas para ensino da língua portuguesa6.
Essa documentação, anterior ao Diretório, já deixa transparecer a preocupação da
Coroa portuguesa na inserção das populações indígenas nas culturas do escrito, sob o
argumento de “civilizar os índios”. Essa forma de ação se materializa de forma mais clara no
Diretório, quanto se destaca a imposição da língua do colonizador aos espaços conquistados
como uma forma de civilizar, visto ser “hum dos meios mais efficazes para desterrar dos
Póvos rusticos a barbaridade dos seus antigos costumes” (Directorio, p. 3-4, cap. 6).
Em atendimento ao disposto quanto ao “uso da Lingua Portugueza, naõ consentindo
de modo algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem ás Escólas, e todos aquelles
Indios, que forem capazes de instrucçaõ nesta materia, usem da Lingua propria das suas
Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da Portugueza” (Directorio, p. 3, cap. 6),
localizamos ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão, Manuel
Bernardo de Melo e Castro, datado de 15 de outubro de 1760 7, para o secretário de estado da
Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, dando notícias dobre a
aprovação das providências tomadas a respeito do uso da língua geral e ao estabelecimento da
língua portuguesa em todas as povoações de índios.
Ao lado dessa documentação, que trata explicitamente do projeto pombalino de
imposição de língua portuguesa aos índios, gerando um processo de “deslocamento
linguístico” que teve como consequência o glotocídio de línguas indígenas, também
observamos uma excessiva preocupação com os espaços institucionais de ensino. Nessa
direção, identificamos dois documentos: um ofício do capelão Manuel Eugénio da Cruz,
datado de 20 de junho de 17618, para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, no qual se faz referência à necessidade do estabelecimento de
6
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 36, Documento 33323.
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 47, Documento 4306.
8
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 49, Documento 4511.
7
escolas de ler e de gramática na vila Viçosa de Santa Cruz do Cametá; e outro, datado de 17
de novembro de 17619, agora do governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão,
Manuel Bernardo de Melo e Castro, também para o secretário de estado da Marinha e
Ultramar, informando sobre a necessidade de recrutamento de mestres para as escolas das
vilas e lugares da capitania. Isso reflete as consequências da expulsão dos jesuítas: a escassez
de professores, como evidenciado pela excessiva documentação. Quanto à questão de
contração de professores e o funcionamento das escolas, era preciso considerar que
Para a subsistência das sobreditas Escolas, e de um Mestre, e uma Mestra, que
devem ser Pessoas dotadas de bons costumes, prudência, e capacidade, de sorte, que
possam desempenhar as importantes obrigações de seus empregos; se destinarão
ordenados suficientes, pagos pelos Pais dos mesmos Índios, ou pelas Pessoas, em
cujo poder eles viverem, concorrendo cada um deles com a porção, que se lhes
arbitrar, ou em dinheiro, ou em efeitos, que será sempre com atenção à grande
miséria, e pobreza, a que eles presentemente se acham reduzidos. No caso porém de
não haver nas Povoações Pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderão
estas até a idade de dez anos serem instruídas na Escola dos Meninos, onde
aprenderão a Doutrina Cristã, a ler, e escrever, para que juntamente com as
infalíveis verdades da nossa Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o
uso da Língua Portuguesa (Directorio, p. 4, cap. 8, grifo nosso).
Aqui, mais uma vez, o Diretório associa o ensino da leitura e escrita à catequese,
destacando a possibilidade da aprendizagem dos dogmas da fé cristã e da língua portuguesa,
como ações integradas. Para Almeida (2010), coerente com a política pombalina de
assimilação dos povos indígenas, entre as medidas inovadoras, deu-se ênfase à proibição dos
costumes indígenas nas aldeias, incluindo a imposição da língua portuguesa que deveria
substituir a língua geral (ou línguas gerais). Embora, de forma lacunar, a documentação tem
atestado os esforços no sentido de implementar essa política nos mais diversos espaços da
América portuguesa. E, nessa direção, as reflexões aqui apresentadas se apesentam como
preliminares à uma investigação maior sobre a inserção das populações indígenas brasileiras
no mundo da cultura escrita. Tarefa árdua, dada a escassez de documentação e as limitações
consequentes.
3
Por hora, a título de conclusão
Uma aproximação aos processos de escolarização e letramentos das populações
indígenas no período pós Diretório Pombalino só será possível através de uma prospecção em
9
Arquivo Histórico Ultramarino. Pará. Caixa 51, Documento 4690.
arquivos e acervos que tratem, sobretudo, da aplicação dessa lei, que se pautava numa política
de assimilação configurada num projeto de “civilizar” os povos indígenas por meio da
imposição do ensino de língua portuguesa e proibição da língua geral (ou línguas gerais).
Nesse sentido, a breve análise da documentação referente ao Estado do Grão-Pará permitiunos perceber uma preocupação das autoridades com a implementação da política pombalina,
no que diz respeito aos domínios da leitura e escrita em língua portuguesa pelas populações
indígenas. Sob o argumento da civilidade, institucionaliza-se, então, o glotocídio de inúmeras
línguas indígenas, numa política linguística que ratifica a relação de dominação dos
portugueses “civilizados” sobre os povos indígenas “rústicos” e “bárbaros”.
Em contrapartida, aos novos espaços e papéis, que podiam ser ocupados por índios,
como previsto no Diretório, associou-se a exigência quanto ao domínio de uma cultura escrita
e que também poderia ter sido utilizada pelas populações indígenas como uma forma de
negociações, acordos, reivindicações para a manutenção de direitos conquistados num
processo caracterizado pelos jogos de poder e estratégias de negociações e resistências. Sobre
essa questão, Almeida (2010, p. 91) destaca que ler e escrever em português constituía-se num
“instrumento eficaz para alguns deles [índios], sobretudo lideranças, reivindicarem suas
mercês ao Rei em moldes bem portugueses”. Assim, as populações indígenas passaram
também a adotar as novas práticas culturais e políticas como forma de sobrevivência, atuando
também como agentes colonizadores, marcados por processos de reconstruções identitárias
que envolviam, entre outras questões, sua inserção nas culturas do escrito.
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língua, escrita e poder - IV Congresso Internacional de História