As dificuldades da fala e da escrita pela perspectiva da Psicanálise Por Mariana Bacigalupo Martins* Falar errado, fazer trocas e omissões de letras ou ter uma escrita ilegível são problemas que muitas crianças apresentam e desafiam professores, psicopedagogos, fonoaudiólogos e psicanalistas a encontrar o diagnóstico certo para o tratamento. A neuropsicologia entende que tais disfunções são déficits nos processamentos ou funções cerebrais; seja de ordem visual-espacial, no processamento de informação ou de memória, por exemplo. Já a psicanálise compreende que por trás dessas alterações há uma relação inadequada da criança com a linguagem. Isto é, antes de haver um déficit neuro-anatômico ou neuro-funcional, há um problema na relação da criança com a língua sendo que a língua só pode ser adquirida pela mediação de um outro, normalmente a mãe. Isso significa que quando a criança apresenta dificuldades de fala ou escrita há um problema na relação da criança com a mãe que atrapalha o ingresso dessa criança nas leis da castração. É claro que ao se escutar uma criança com dificuldades de compreensão e expressão linguística, é preciso diagnosticar possíveis lesões fisiológicas, anatômicas, funcionais e déficits de aprendizagem. Porém, além dessas situações, um psicanalista pode fazer um diagnóstico dos motivos que fizeram a criança “emperrar” no uso adequado da língua. Muitas vezes, o que está em questão é que a mãe insatisfeita em seu desejo faz de seu filho objeto de todo seu investimento e de sua atenção levando a criança a crer que ela pode suturar a insatisfação materna e completar a mãe. O resultado desta dinâmica que é inconsciente e onde a intervenção da figura paterna não alcança - são os fracassos escolares e as dificuldades com a língua. Portanto, antes de corrigir o déficit pedagógico ou cognitivo funcional, caberá ao analista deslocar a criança do significante que a aliena ao desejo materno, intervenção que não exclui o apoio pedagógico ou as condutas medicamentosas se assim for necessário. No tratamento, o sintoma da dificuldade com a fala e com a escrita não é o objeto de intervenção da psicanálise, mas a partir da transferência e do discurso da criança e dos pais o psicanalista pode manejar o lugar do Outro – que no processo de constituição do sujeito é inicialmente representado pela mãe – para quem a criança se oferece como objeto de satisfação. Na transferência o analista assume uma versão diferente deste Outro levando a criança a tomar consciência e deslocar sua resposta sintomática rígida e repetitiva, frente à demanda e o discurso dos pais. Miller (1998, p.5) comentando o texto Nota sobre a criança do psicanalista francês Jacques Lacan, afirma que o sintoma da criança impede que a mãe acesse sua própria verdade. Diz que o sintoma acontece na relação dual entre elas e que revela imediatamente o que falta à figura do pai. A língua é a espinha dorsal que estrutura uma sociedade, pois é a partir dessa ferramenta que podemos compartilhar experiências, aprender com o passado e planejar o futuro. Sem ela não poderíamos falar de nossas memórias e emoções. Nossa língua é expressão da cultura e a partir dos primeiros cuidados maternos, é que os sons e regras linguísticas são transmitidos para nós. Para a psicanálise, a língua também é muito importante principalmente no processo de constituição do sujeito, pois ao ingressar na linguagem a criança precisa perder satisfação, isto é, precisa recalcar pulsões. Assim, essa perda de satisfação deixa marcas no sujeito infantil ao mesmo tempo em que instaura uma falta nesse sujeito; falta marcada pelo recalque das pulsões. Para que uma criança faça um uso adequado do sistema de regras e sons da língua, ela precisa se submeter a esse sistema, ou seja, tem que aceitar a “regra do jogo” que o sistema linguístico impõe e que para a psicanálise significa aceitar as leis da castração, isto é, aceitar a falta em si e no outro decorrente do recalque. O que muitas vezes acontece nos sintomas de dificuldades com a língua é que tanto a criança como a mãe, não conseguem abrir mão da satisfação pulsional que está em jogo no sintoma e é nessa dinâmica que um analista pode operar. Para fazer uso da linguagem a criança também precisa compreender que a língua falada ou escrita tem a função de comunicar e que veicula um sentido para o outro. Nesse estágio inicial da aquisição da fala, a criança deve ter uma intenção de provocar o outro a partir dos sons emitidos. Através destes sons é que a mãe poderá atender ou não, ao pedido de uma criança. Ter a intenção de comunicar, também implica que a criança passe com sucesso pelo processo de constituição do sujeito e pela castração. A aquisição da escrita é uma etapa posterior e não menos complexa, pois exige que a criança entenda o sistema de representação simbólica. Por exemplo, quando uma criança passa a nomear o seu rabisco no papel e diz “casa”, ela sabe que a casa não está lá, mas que o rabisco pode representá-la, isto é, a criança precisa compreender o valor simbólico da escrita. Outro desdobramento no processo de aquisição da escrita é a criança perceber que as figuras nos livros contam uma história que está relacionada ao texto. Apesar de essa idéia ser bastante natural para nós que dominamos o código, identificar a sílaba “Chá” no texto e compreender que ela diz algo sobre o que se passa na história com os personagens ilustrados, é um salto muito importante para que a criança se torne um futuro leitor - autor de seus próprios textos. Abaixo, segue o resumo do relato de um caso de Fragelli (2011, p.212) publicado em sua tese de doutorado em que durante os atendimentos, a dificuldade com a escrita vai se caracterizando como uma resposta da criança frente ao lugar inconsciente que ela ocupa no discurso da mãe e na dinâmica familiar. Trocas e omissões: oralidade e escrita - B. tem 11anos, é falante, inteligente e apesar de ser capaz de ler não é possível entender o que ela escreve. Em avaliação com a psicanalista, se identifica que B. mantém a dimensão da fala na escrita, pois faz uma correspondência som-signo sem se submeter totalmente às leis ortográficas. A autora observa que B. articula a oralidade na escrita. Em entrevista, a mãe conta que há alguns anos perdeu 40kg e que sua filha está obesa precisando perder algo em torno de 30kg. Há seis anos buscam profissionais para resolver os problemas de ortografia e da obesidade da filha. A hipótese diagnóstica apresentada pela autora é que a mãe sustenta uma posição anoréxica inconsciente, satisfazendo sua voracidade, pulsão oral, dando de comer ao outro. A incontinência alimentar da paciente responde diretamente ao desejo de comer recalcado da mãe. Por outro lado, B. se satisfaz com sua condição sem demonstrar nenhum constrangimento em tanto comer ou com as trocas na escrita. Diz que não vê problema nisso e nas sessões adota uma postura de quem já sabe tudo, e de que não há nada para interrogar sobre seu sintoma. A autora questiona se é possível que ela aprenda as regras ortográficas uma vez que B. não considera que tem um problema. Portanto, segundo Fragelli (2011, p.216), a paciente penhora seu corpo num jogo sintomático dual com a mãe onde a impossibilidade de se submeter ao código está articulada à impossibilidade de se separar da demanda inconsciente desta mãe e se pode acrescentar, recalcar a pulsão oral. A autora considera que a intervenção seria o tratamento da satisfação com o sintoma – compulsão oral - por meio da fala, dando algum sentido a este comer sem limites que colocasse barreira à demanda da mãe. Por outro lado, se pode pensar que além de atribuir algum sentido para o sintoma na direção de estancar a compulsão, a analista pode procurar situações em que B. se confronte com sua verdade localizando em seu sintoma algum mal-estar. Além disso, o atendimento dos pais se faz necessário para que eles possam localizar em que medida matém a satisfação de B. com seu sintoma. Segundo Santiago (2003, p.40), quando a criança detém os conteúdos e os conhecimentos necessarios sobre a matéria e ainda assim, insiste e repete os erros, a insistência e repetição, veicula um sentido inconsciente. A autora entende que a partir do momento em que uma criança pode desenvolver uma questão, sobre sua dificuldade, em um espaço reservado para ela falar do que lhe aflige, erro que repete fica esvaziado do sentido subjetivo. Dessa maneira, o diagnostico clinico-pedagógico, possibilita que a questão da criança seja desvelada pela palavra e não apenas falada por meio de uma dificuldade de aprendizagem e seu sintoma deixa de ser pura determinação anatomofuncional, mas resposta sintomática à posição dos pais, diz. Referências Bibliográficas FRAGELLI. Ilana K.Zaguri. Alfabetização: Perspectivas da Articulação sujeito escrita. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, 2011. FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol. XX pp.81-171) Trad. J. Salomão. Rio deJaneiro: Imago, 1996. ------. Além do princípio do prazer (1920). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol.XVIII, pp. 11-89) Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. LACAN, Jacques. O seminário 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1995. ------, Jacques. Nota sobre a criança. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. MILLER, Jacques-Alain. Duas notas sobre a criança. Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia Ed., n. 21, Abril de 1998. SANTIAGO, Ana Lydia. A inibição intelectual em Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.