UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA O Tribunal do Júri no contexto do Devido Processo legal: Uma crítica ao Tribunal do Júri puro em comparação com os modelos do escabinado e do assessorado: Estudo dos fatores que interferem no julgamento e na imparcialidade de suas decisões (Análise da Instituição com a Jurisprudência das Convenções Europeia e Americana dos Direitos Humanos, do Tribunal do Júri Português e da Suprema Corte Americana) IONILTON PEREIRA DO VALE Tese orientada pelo Professor Doutor Paulo Sousa Mendes Doutoramento em Direito Especialidade em Ciências Jurídico-Criminais 2014 2 "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.” (João 1: 14) 3 4 A Deus, que renova as minhas forças. "Mas os que esperam no SENHOR renovarão as forças, subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão." (Isaías 40: 31). 5 6 ABREVIATURAS MAIS UTILIZADAS A-Publicação de acórdãos referentes ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e relatórios da Comissão Europeia dos Direitos Humanos ABA- American Bar Association Ac-Acordão AcTC-Acórdãos do Tribunal Constitucional BVerfGE- Decisões do Tribunal Constitucional Federal Alemão CalLRev-California Law Review CADH-Convenção Americana de Direitos Humanos Cass Pen-Cassazione Penale CEDH-Convenção Europeia dos Direitos do Homem CRP-Constituição da República Portuguesa CPP-Código de Processo Penal CrimLR-The Criminal Law Review DUDH-Declaração Universal dos Direitos do Homem DHPP- Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa ECHD -Estado Constitucional e Humano-centrista de Direito EUA-Estados Unidos da América EuGRZ-Europäische Grundrechte-Zeitschrift LECRIM- Ley de Enjuiciamiento Criminal LOTJ-Ley Orgánica del Tribunal del Jurado MP-Ministério Público New CrimLRev-New Criminal law review PPT-Publicidade Pré-Trial PROMIS- Prosecutorial Management Information System RT-Revista dos Tribunais StGB-Código Penal Alemão STF- Supremo Tribunal Federal STJ- Supremo Tribunal de Justiça SDR- Social Decision Rule TEDH-Tribunal Europeu dos Direitos do Homem TADHP- Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos TCF-Tribunal Constitucional Federal 7 8 ÍNDICE Introdução……………….……………………………...……….........………………….Pag.19 1. Problematização: Justificação e tema, problema e razão de ordem….…….….............Pag.19 1.1. Justificação do tema e das fontes………………..….……..……...................…...….Pag.19 1.2. O tema da tese……………...……………………………….……..........……….......Pag.22 1.3. Problemática a ser enfrentada….….………….…..………………..........…......…....Pag.23 1.4. Razão de ordem e delimitação cronológica……………………....................…...….Pag.24 1.4.1. Parte 1: O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Uma investigação do procedimento do ponto de vista do processo equitativo...........................................….…Pag.24 1.4.2. A Parte 2 da Tese de Doutoramento: Análise do sistema do escabinado e assessorado e suas vantagens em relação ao Tribunal do Júri “puro” e sua aproximação com o processo equitativo…………………………………………….…..........................................…….Pag.32 1.4.3. Cronologia da Parte 1 da Tese de Doutoramento. O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Análise do sistema do escabinado e assessorado e suas vantagens em relação ao Tribunal do Júri “puro” e sua aproximação com o processo equitativo….…...………Pag.34 1.4.4. Cronologia da parte 2. O escabinado e o assessorado: Análise do seu funcionamento e da Jurisprudência dos Tribunais do Júri em Portugal…………………………...........….Pag.39 Parte 1: O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Uma investigação do procedimento do ponto de vista do processo equitativo…………........…….......……….Pag.41 Capitulo 1. O sistema do Tribunal do Júri “puro” e sua repercussão no julgamento equitativo e na imparcialidade de suas decisões júri…………..……..…………............................….Pag.41 1. O modelo do jurado “puro” no contexto de uma visão global……...……........……... Pag.41 2. Características dos jurados no sistema da Comom Law………...…..…...…........….... Pag.42 3. O Tribunal do Júri Americano: Análise da Sexta Emenda e do direito do réu a um julgamento pelo Júri…………...………………….……………..…….….……...............Pag.44 4. O Tribunal do Júri Inglês: Sistema, forma de funcionamento e declínio...…...........…Pag.51 4.1.O declínio do Tribunal do Júri inglês……………………………………...........…....Pag.52 5. O Tribunal do Júri no Brasil e a influência do sistema inglês na adoção do sistema puro……………………….……………..…………………....…….…….….….........….Pag.55 6. Vantagens e desvantagens do sistema de jurado puro: A necessidade de reformas no modelo do jurado puro……..…...................................................…………..........….…...Pag.64 6.1.Vantagens do Jurado puro…………………………………..…....….…….........…....Pag.65 6.2. Desvantagens do sistema de jurado “puro”…………………....…...…....……..........Pag.67 7. Sistemas de decisões no âmbito do Tribunal do Júri…….…………...……...…..........Pag.69 9 7.1. Dos sistemas de veredicto………….………………………....…..……………........Pag.69 8. Segue: O problema da separação entre matéria de fato e de direito na tomada de decisões do Tribunal do Júri “puro”…………………………….........…….…….......................…Pag.70 9. A questão da unanimidade e deliberação dos Jurados nos Estados Unidos e Inglaterra: Uma melhor aproximação do julgamento justo…………………...……..….….................…...Pag.72 9.1. O veredicto por unanimidade nos Estados Unidos……….…...............….............…Pag.72 9.2. A deliberação por maioria do Tribunal do Júri na Inglaterra..……...…….……........Pag.75 9.3. A comunicabilidade entre os jurados no sistema anglo-saxão…...…………….........Pag.77 9.4. A comunicabilidade dos jurados nos Estados Unidos……………..…......…........…Pag.78 9.5. A comunicação dos jurados na Inglaterra………...…………….…......……….........Pag.79 9.6. A comunicação e a unanimidade no Tribunal do Júri anglo- saxão e o pensamento de Habermas acerca da democracia…………….……...………………..........………..........Pag.81 10. O Grand Jury e o Petty Jury no sistema anglo-saxão…………..…………..…..........Pag.83 11. A competência funcional e a divisão de tarefas na fase decisória e sua influência na determinação da culpabilidade……………………..……………….....……..….........….Pag.88 12. O juízo de admissibilidade da acusação no Tribunal dos Jurados……...…...........….Pag.90 13. O Controle judicial no Tribunal do Júri: As diversas funções do juiz e dos jurados……………………………………………………………………………............Pag.92 13.1. O Controle judicial no Tribunal dos Jurados………………..…..……...…........….Pag.93 Capitulo 2. O Ministério Público e sua atuação no Tribunal do Júri: especialização, composição e instrumentos de política criminal e sua repercussão no julgamento imparcial…………...………………………………………………….............…...…....Pag.101 1. A especialização do Ministério Público no âmbito do Tribunal do Júri…..................Pag.101 2. Diversificação e acordo no âmbito do Tribunal do Júri: os instrumentos de política criminal do Ministério Público……………………...…...………….….……….......................…Pag.105 3. A Plea Bargaining no Tribunal do Júri americano………..……...….........….....…...Pag.108 4. A discricionariedade do Promotor de Justiça americano: características, finalidades, requisitos e fiscalização no Tribunal do Júri…………...……......……..…........….……Pag.110 5. Justificativa para utilização da Plea Bargaining………...…..………............…….....Pag.114 6. Plea Bargaining e a confissão da culpa…………………...…………......…........…..Pag.118 7. Plea Bargaining e subtração da competência do Tribunal do Júri…….….......…......Pag.121 8. A imunidade conferida às testemunhas e a Plea Bargaining………….….............….Pag.125 Capitulo 3. A incidência do Contraditório no Tribunal do Júri: Igualdade de armas e ampla defesa como forma de assegurar a imparcialidade no Tribunal do Júri………….....…..Pag.127 10 1. O processo equitativo e a exigência da igualdade ou paridade de armas: Uma análise a partir de julgados da Convenção Europeia dos Direitos Humanos………..................…Pag.127 2. O Adversary System como postulado do contraditório no Tribunal do Júri…......…..Pag.131 2.1. Distinção entre o princípio do contraditório e a paridade de armas O julgado NiderhostHuber……………….…………………………………….………............................….Pag.138 3. As diversas manifestações da defesa no âmbito do Tribunal do Júri…….…..........…Pag.140 3.1. O direito à defesa técnica e à autodefesa…………......………………….......….....Pag.140 3.2. A defesa material e sua efetividade………………....……..……..………...........…Pag.142 3.3. A defesa material na CEDH: Os casos Ártico e Goddi e Brozieck……...…............Pag.144 3.4. Segue: Caso Airey cl Irlanda, 9 de outubro de 1979……..……..……….......….…Pag.145 3.5. Os meios de defesa e sua efetividade no Tribunal do Júri brasileiro….........…...…Pag.146 3.6. A autodefesa do acusado no Tribunal do Júri brasileiro………….…..........……....Pag.149 4. Facultatividade da comparência pessoal do acusado e garantias de defesa no Tribunal do Júri……………………………………….…................……...…………………………Pag.149 5. A Sexta Emenda americana e a evolução do direito ao silêncio: O caso Scottsboro Boys………………………………………...…….………………………..........………Pag.151 6. A presença do defensor no julgamento criminal como garantia do contraditório.......Pag.156 7. Os diversos tipos de defensores e sistemas de defesa no Tribunal do Júri: O caso Betts…………………………………………….………………..............………......….Pag.159 8. Segue: O caso Gideon v. Wainwright…………………………..…….........….....….Pag.160 9. O reverso da igualdade de armas e do contraditório: A plenitude de defesa no Tribunal do Júri brasileiro.....…………………………...………...…..…………………..............….Pag.162 9.1. Delimitação e definição do conceito de plenitude de defesa no Direito Brasileiro e português………………………………….……………...……………….............….…Pag.162 9.2. Manifestações da plenitude da defesa no Tribunal do Júri brasileiro….……..........Pag.163 9.3. A plenitude da defesa como violação da paridade de armas entre acusação e defesa no Direito brasileiro………………………………....………………….……..............…...Pag.168 10. A prova utilizada no Tribunal do Júri sem a utilização do procedimento contraditório…………………………………………………………………….........…Pag.169 10.1. Análise da jurisprudência do TEDH: Acórdão Teixeira de Castro v. Portugal e Acórdão Jalloh………………………………………….……………….…….….........................Pag.171 Capitulo 4. O Tribunal do Júri no contexto da produção da prova……................……..Pag.173 1. As proibições de prova no Tribunal do Júri brasileiro: o direito do acusado de não ser julgado através da prova ilícita……………………………………….……..........…….Pag.173 11 2. A proibição das testemunhas de referência ou Hearsay Rule no direito anglo-americano e português……………....…………………………………………………............…..…Pag.175 3. O problema das testemunhas anônimas e sua compatibilidade com a utilização de um processo equitativo e imparcial: Acórdãos Kostovski e Van Mechelen………..........….Pag.178 4. A necessidade da imediação entre a produção da prova e a convicção do julgador……………………………………………………..………...………..........….Pag.180 5. A prova ilícita e a certeza moral do jurado ou íntima convicção…….........….......….Pag.180 6. A verdade real no âmbito do Tribunal do Júri……………………….........…..….….Pag.181 6.1. A verdade real no processo penal como valor relativo………....……….........……Pag.181 6.2. A verdade real como reconstituição da verdade histórica……………................….Pag.183 6.3. A verdade real e revisão criminal no Tribunal do Júri brasileiro……..…...........….Pag.186 6.4. O princípio da verdade real e a instrução probatória no Tribunal do Júri..........…...Pag.188 6.5. Verdade real e tempo/espaço para verificação da prova pelos jurados….............…Pag.194 6.6. A verdade real e os vários discursos justificativos………….….....……..........…...Pag.195 7. Segue: A presunção de inocência como regra probatória………….……….......……Pag.198 7.1. A presunção de inocência como regra de tratamento……...………….......…....….Pag.199 7.2. O princípio da presunção de inocência no âmbito do Tribunal do Júri e a condenação do acusado com base em seus antecedentes criminais………………….............………….Pag.202 7.3. Exigências probatórias quantitativas decorrentes da presunção de inocência..........Pag.207 7.4. A presunção de inocência e a dúvida razoável no Tribunal do Júri: a inversão do ônus da prova………………………….......………............….……….…………..............….….Pag.207 7.5. Segue: A presunção de inocência no âmbito do Tribunal do Júri: problemas de compreensão acerca do ônus da prova e da presunção de inocência...............................Pag.211 7.6. A sentença de pronúncia no Direito brasileiro e o princípio in dúbio pro societate……………………………………………………………………..........……..Pag.214 Capitulo 5. A necessidade de motivação das decisões do Tribunal do Júri: necessidade da motivação em relação à matéria de fato e de direito……………....….…….......……....Pag.217 1. A motivação das decisões como forma de controle e transparência da justiça: necessidade jurídica e elemento indispensável do processo justo e equitativo…............................…Pag.217 2. O sigilo das votações e a íntima convicção e a ausência de motivação das decisões dos Jurados em face do processo equitativo e imparcial: situação e compreensão do problema…………………………………….….………………………..........…......….Pag.222 3. O caso brasileiro: o sigilo das votações e a incomunicabilidade dos jurados…..........Pag.224 12 4. A necessidade de motivação das decisões judiciais e o sigilo das votações: O direito do acusado às razões das decisões emanadas do Tribunal do Júri como exigência do processo equitativo e imparcial………………….....................................………….........……….Pag.229 5. A motivação do veredicto do Tribunal do Júri no direito espanhol……….............…Pag.233 6. A necessidade de motivação quanto à matéria de fato……………….....…................Pag.235 7. O caso Taxquet v. Bélgica: pronunciamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acerca da necessidade de motivações das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri………………………………………………...…………..…………..........……….Pag.237 Capitulo 6. O direito a um julgamento imparcial pelo Tribunal do Júri………..............Pag.241 1. Direito a um tribunal independente e imparcial no contexto das Convenções Europeia e Americana dos Direitos Humanos……………………....…………...…...........…….…Pag.241 2. O debate acerca da instituição do Tribunal do Júri: A resistência doutrinária ao Tribunal do Júri……………………………………………………….………………..................….Pag.249 3. Argumentos favoráveis à existência do Tribunal do Júri: A independência dos jurados………………………………………….………………..…………..........…….Pag.258 4. Segue: intima convicção do jurado, participação popular e garantias para o acusado………………………………………………………………………..........…...Pag.260 5. O argumento da Colegialidade ou teorema de Condorcet………………........…..….Pag.263 6. Critica ao argumento da Colegialidade: “as armadilhas coletivas”…….........….…...Pag.264 7. A responsabilidade moral dos jurados…………...……………….…............……….Pag.266 8. A resistência jurisdicional ao Tribunal do Júri……………………….…........…..….Pag.269 8.1. A correcionalização na Europa…………………...…….………………........….…Pag.269 9. The Bushel's Case (1670) ou o Caso do Alqueire…………………..…...........…...…Pag.272 Capitulo 7. Os problemas internos acerca da imparcialidade do Tribunal do Júri......…Pag.274 1. A necessidade da imparcialidade dos jurados enquanto juízes de fato……................Pag.274 2. Principais problemas em relação à imparcialidade dos jurados………….............…..Pag.275 2.1. O julgamento do Tribunal do Júri e as percepções de arbitrariedade motivadas por raças e crenças……………………………………….……………………............................….Pag.275 3. A influenciabilidade e sugestionabilidade dos jurados……………........…...….……Pag.278 4. A falta de conhecimento jurídico e imparcialidade do Tribunal do Júri…...…...........Pag.280 5. O tecnicismo do Direito Penal e do Processo Penal e o julgamento pelo Tribunal do Júri………………………………………………………….…………..…...........…......Pag.283 6. Em busca da imparcialidade dos jurados no Tribunal do Júri clássico e no escabinado:as recusas imotivadas dos jurados…………………………………………….........…..….Pag.289 13 6.1. A prática do júri de habilitação na Inglaterra……………………..…........…...…...Pag.289 6.2. A voir dire americana e a escolha científica dos jurados………………............…..Pag.291 6.3. As recusas peremptórias dos jurados no Direito brasileiro……….......................…Pag.294 6.4. O sistema do duplo sorteio em Portugal………………………..…..........……...…Pag.295 6.5. As entrevistas aos jurados no direito espanhol…………….....…..…….........….....Pag.297 6.6. A recusa dos jurados na França e Bélgica…………………………….....................Pag.298 Capítulo 8. Variantes e estímulos externos que podem interferir no processo equitativo pelo Tribunal de Júri………….…………….…......………………..……….…................….Pag.299 1. O princípio da oralidade como base de um julgamento justo….……….....…….......Pag.299 2. O princípio da oralidade no Tribunal do Júri……………………….…...…..….........Pag.303 2.1. Os debates orais no Tribunal do Júri brasileiro…………………..….....…..............Pag.303 2.2. A tréplica da defesa e a sua plenitude………………………..………...……..........Pag.305 2.3. Os apartes………………………………………….……......…...…...…….............Pag.305 2.4. O tempo dos debates…………...…………………………….…...….…….............Pag.306 2.5. O debate instrutório em Portugal………………………………...…..…….............Pag.306 3. O processo de persuasão no Tribunal do Júri…………………..……….....…...........Pag.309 4. O efeito da palavra oral nos jurados……………….………...………..…...................Pag.313 5. A possibilidade de manipulação dos jurados no julgamento oral…........…................Pag.316 6. Rituais e simbologia do Tribunal do Júri: a encenação como objeto da ritualista do Tribunal do Júri………………………………………...…...…….…….…...…............................Pag.317 7. Fatores que influenciam a decisão dos jurados: O sentimento e a emoção….............Pag.323 7.1. O acompanhamento da prova pelos jurados…………………….........…..…..........Pag.324 7.2. O jurado e o “pânico moral”………………...….…………...………………..........Pag.326 7.3. Fatores de liderança e decisionismo no âmbito do Tribunal do Júri……….............Pag.327 7.4. O Tribunal do Júri e os crimes capitais…………………………....…….................Pag.329 7.5. O perfil médio dos jurados e sua repercussão e influência das decisões do Tribunal do Júri……………………………………………………………………………................Pag.330 7.6. O Tribunal do Júri e a questão racial nos Estados Unidos........................................Pag.336 Capitulo 9. Publicidade, mídia e o julgamento imparcial pelo Tribunal do Júri.............Pag.340 1. A incidência da publicidade no processo e suas exceções……….…………..............Pag.340 2. A publicidade no âmbito do julgamento equitativo: Análise da jurisprudência do TEDH………………………….……………………………………...….………..........Pag.344 3. A mídia e o direito à informação…………………..…….……....…...…..…............ Pag.347 14 4. Liberdade de imprensa e segurança jurídica: conflito, problematização e possíveis soluções…………………………………………………………………………............Pag.354 4.1. Segue: O caso dos assassinatos dos soldados Lebach na Alemanha, como harmonização e ponderação entre a liberdade de expressão e o direito à intimidade…............................Pag.358 5. O Tribunal do Júri e liberdade de imprensa: a influência da mídia sobre o julgamento do Júri………………………………………………………….……..……................…….Pag.361 5.1. A mídia e a presunção de inocência do acusado…………….…….…...........….….Pag.366 5.2. Mídia e o Tribunal do Júri no Direito Americano………………......……..............Pag.372 5.3. O Tribunal do Júri e a influência da mídia na Inglaterra………….…...….….........Pag.374 6. Liberdade de imprensa e possibilidade de restrição da publicidade………..…..........Pag.377 7. A publicidade pré-trial e a sua influência nas decisões do Tribunal do Júri…............Pag.381 8. O caso O.J Simpson: Aspectos da influência do julgamento pré-trial….…................Pag.385 Parte 2. O escabinado e o assessorado: Análise do seu funcionamento e da Jurisprudência dos Tribunais do Júri em Portugal……......……………………............................................Pag.388 Capitulo1. O funcionamento do escabinado: Uma aproximação do julgamento justo e equitativo e participação dos cidadãos na administração da justiça……..….…….........Pag.388 1. A transição do Tribunal do Júri “puro” para o escabinado………………..................Pag.388 2. O escabinado como opção e aperfeiçoamento do sistema do jurado “puro”...............Pag.389 3. A atuação conjunta dos juízes profissionais e leigos: Uma análise da tomada de decisões dos jurados, em face da composição conjunta do escabinado……….............................Pag.393 3.1. A tomada de decisões no escabinado Português…...................................................Pag.395 4. A relação entre os escabinos e os Juízes profissionais: A polêmica em torno da independência dos escabinos…………….......………...……………………….............Pag.399 5. O enfrentamento do terrorismo pelo escabinado e pelo Tribunal do Júri “puro”...............................................................................................................................Pag.406 6. A experiência espanhola……………………….....…………………...…...…...........Pag.410 Capitulo 2. Os sistemas de escabinado na Europa……………….…….……....….........Pag.414 1. O escabinado na França,………………………….…………….…....…...….............Pag.414 2. O escabinado em Portugal…………...…………………………...……..........…...….Pag.418 2.1. Primícias do Tribunal do Júri em Portugal……………………………...............…Pag.418 2.2. Prós e contras do Tribunal do Júri em Portugal...…………….……….......….........Pag.429 2.3. O Tribunal do Júri e a Constituição Portuguesa…………………......…....….........Pag.433 2.4. O Tribunal do Júri e sua importância prática no Direito Português….….................Pag.435 2.5. Composição do Tribunal do Júri em Portugal………………..….……...…............Pag.437 15 2.6. Discricionariedade da Intervenção no Tribunal do Júri em Portugal……................Pag.438 2.7. Legitimidade para o requerimento de constituição do júri em Portugal.…..............Pag.440 2.8. Competência do Tribunal do Júri português…………...…………...….........….….Pag.444 2.9. A bifurcação do procedimento em Portugal………………………............….....…Pag.450 2.9.1. Dos recursos das decisões do Tribunal do Júri…………...…….…...............…...Pag.452 3. A escolha dos jurados em Portugal……………...……….………...........……......….Pag.454 3.1. Impedimentos e seleção dos jurados………………........……............…….…..…..Pag.457 4. O escabinado na Itália………….…………………….………………..........…...…...Pag.459 Capitulo 3. O assessorado ou sistema misto de Tribunal do Júri……..……..........….....Pag.464 1. O sistema misto e a profissionalização do elemento leigo no júri: uma melhor aproximação com o processo equitativo…………………………....…...….……................................Pag.464 2. O Assessorado na Áustria…………………...………………………...…….........….Pag.466 3. O sistema duplo de jurados na Alemanha…………..………...…………..….............Pag.468 4. O modelo de assessor na China…………..……………………………...…..........….Pag.471 5. O modelo de Assessor na Croácia……………………...…….........…......…..............Pag.473 6. O papel do assessor na Dinamarca………………………..…………….…................Pag.475 7. O assessorado na Suíça e na Suécia…………………………………......…...............Pag.477 8. O modelo de Assessor em Angola…………………………………....……...............Pag.478 Capitulo 4. Análise da Jurisprudência a partir de processos julgados nos Juízos Criminais de Portugal ……………………………………....………….....................................…..…Pag.481 1. Justificação científica e importância da pesquisa…………….………...........……....Pag.481 2. Caso nº 1: Processo 875/92.5: Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira………………………………………………………...……......……...............Pag.481 2.1. Análise dos fatos envolvidos: os motivos do crime e a ouvida de testemunhas presenciais e elucidativas param o caso………..................................................................................Pag.481 2.2. Da investigação policial: A notitia criminis e a descoberta do corpo…...................Pag.483 2.3. Das testemunhas presenciais e da busca domiciliar no domicílio do suspeito F.M.C……………………………………………………………………………...........Pag.483 2.4. Elaboração do laudo de personalidade e a acusação do Ministério Público.............Pag.484 2.5. O julgamento pelo Tribunal do Júri……………................………….…….............Pag.484 2.6. Fatos considerados provados pelo Tribunal do Júri……..…….......…….................Pag.485 2.7. Da pena aplicada pelo Tribunal do Júri……………................................…............Pag.487 2.8. Do voto divergente do Ministro Coelho Ventura………………......……................Pag.488 2.9. Parecer consultivo do Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias….......…...........Pag.489 16 3. Caso nº 2: Processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão…………………...………………...………......………..............................….Pag.489 3.1. Problemática dos fatores envolvidos: a ausência do corpo da vítima e a fragilidade dos indícios……………………………………………………….…...….........................…Pag.489 3.2. Personalidade da vítima e maus tratos que era submetida……….…............……...Pag.490 3.3. Cronologia dos fatos……………………...………...…………….……….….........Pag.491 3.4. Das confissões conflitantes dos acusados e da prova pericial……….….................Pag.492 3.5. O julgamento pelo Tribunal do Júri…………………...……...………...….............Pag.495 3.6. Fatos considerados provados pelo Tribunal do Júri……….………....…….............Pag.495 3.7. O Julgamento do crime de homicídio sem a presença do corpo da vítima…...........Pag.496 3.8. O recurso do Ministério Público e da defesa e a decisão do Tribunal Constitucional:O acórdão do Tribunal Constitucional….......................................................................…..Pag.497 3.9. Fundamentação do Tribunal Constitucional ante a ausência do corpo da vítima…………………………………………………………………....….........……..Pag.503 3.9.1. Provas inadmissíveis e proibidas aos jurados, em conformidade com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no caso em epígrafe………………..……..……...............Pag.504 3.9.2. Da revisão da Sentença……………...……………………….........…..........……Pag.506 4. Caso nº 3: Processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial de Torre Vedras………………………………………….…………………....….…..….........….Pag.509 4.1. Dos fatos e sua investigação pela polícia judiciária……….…..….……..................Pag.509 4.2. Do julgamento pelo Tribunal do Júri………............................................................Pag.510 4.3. O especial fim do agente e o elevado grau de censurabilidade………..........…...…Pag.512 4.4. A premeditação do crime………………………………...…………..........….…....Pag.512 4.5. Decisão do Tribunal do Júri acerca da profanação de cadáver……….............……Pag.513 4.6. O crime de detenção de arma proibida……………………..…..….…................….Pag.513 4.7. Do crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art.º 256°, n. 1, alínea c) da CP………………………………………………………………………....….................Pag.514 4.8. Da ausência do corpo das vítimas e da apreciação da prova indireta…...............…Pag.514 4.9. Da medida e aplicação da pena………………….…………………..……..............Pag.515 5. Caso nº 4: Processo 93/07.Arguido: J.C.R.P. 8ª Vara Criminal de Lisboa... .........….Pag.518 5.1. Dos fatos sob análise………………………………………………............…….....Pag.518 5.2. Da escolha e recusa dos jurados…………………………….......….…...........….....Pag.519 5.3. Da instrução processual e da deliberação e decisão do júri………..……................Pag.519 5.4. Da decisão de não suspensão da pena de prisão aplicada ao recorrente…...............Pag.520 17 6. Caso nº 5: Processo 451/08.2.Arguido: W. R. N. 4ª Vara Criminal…………............Pag.521 6.1. Da investigação preliminar e do primeiro interrogatório do acusado detido............Pag.521 6.2. Da decisão colegiada do Tribunal do Júri……………………...…...…...................Pag.522 6.3. Da decisão de não suspensão da pena de prisão aplicada ao recorrente……...........Pag.522 7. Das conclusões acerca do exame da Jurisprudência dos processos 875/92.5: Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira; Processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão; Processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial de Torre Vedras, e processos das Varas Criminais de Lisboa…………………………………………………………...............................……Pag.523 7.1. Das conclusões acerca do processo 875/92.5: Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira……………………………...….………………...........................Pag.523 7.2. Conclusões acerca do processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão…….…………………………………….............................Pag.525 7.3. Conclusões acerca do processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial Torre Vedras…..........................................................................................................................Pag.526 7.4. Conclusões dos processos dos processos oriundos das Varas criminais de Lisboa …………………………………………………………...………………………...........Pag.527 Considerações Finais…………………………….……….……………..…….…...........Pag.529 Referências ………………………...…………………...….....…………………...........Pag.535 Anexos…………………………………………………….…………….…….........…..Pag.577 Anexo A: Recibo relativo ao pagamento de actos avulsos:Fotocópia do processo 39/10.8. JBLSB.Torre Vedras………............................................................................................Pag.579 Anexo B: Recibo relativo ao pagamento de actos avulsos:Fotocópia do processo 330/04.2. 1ª Vara Criminal de Portimão …………………..………………..….........................…Pag.580 Anexo C: Recibo relativo ao pagamento de acto avulso: 097460000156.2012.Fotocópia do processo 875/92.5. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz.Ilha da Madeira..............................Pag.581 Anexo D: Despacho relativo á solicitação de cópias do processo 875/92.5. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira ……….........................………….………………...…..Pag.582 Apêndice A: Tabela demonstrativa de crimes julgados pelo Tribunal do Júri no século IX.....................................................................................................................................Pag.583 18 Introdução 1. Problematização: Justificação e tema, problema e razão de ordem 1.1. Justificação do tema e das fontes A história do Tribunal do Júri, e sua necessidade jurídica em quase todo o mundo, dentro de um contexto histórico, revela o seu amplo caráter democrático, tornando-se imperativo a análise dos motivos ensejadores de seu surgimento, e sua presença nos países desenvolvidos, quer na forma de um Tribunal de Júri “puro”, com juízes tirados diretamente do povo, quer na forma do escabinado, como ocorre na maioria dos países Europeus, quer na forma do “júri misto”, como ocorre em outros países. Existe intensa polêmica em torno da instituição do júri. É deveras comum, ao folhear um livro doutrinário acerca da instituição, ou um compêndio de processo penal, um capítulo referente ao “sim ou não”, “prós e contras”, “manifestações favoráveis ou contrárias à instituição”. O júri clássico (forma de participação popular na administração da Justiça) foi provavelmente importado para a Inglaterra depois da sua conquista pelos normandos, em 1066. Nessa época, ganhou corpo a denominação juror uma vez que os cidadãos, ao se reunirem para proferir um julgamento, o faziam sob juramento. Vários ordenamentos jurídicos de inúmeros países contemplam o Tribunal do Júri, observando-se que exclusivamente nos países situados na Common Law, vale dizer, o Reino Unido e suas excolônias (Austrália, Canadá, Estados Unidos, República da Irlanda, entre outros), existe o tribunal popular, tal como concebido na Magna Carta, ou seja, o julgamento de uma pessoa diretamente pelos seus pares, com a participação do juiz togado. No mais, temos países, em que sistemas inserem-se no contexto do direito codificado, como Brasil, Espanha Rússia e Japão, mas possui um júri nos moldes britânicos.1 1 - A história da Inglaterra demonstra que, tradicionalmente, os direitos e garantias individuais do cidadão sempre foram respeitados e protegidos pelo processo penal, embora o elevado índice de criminalidade e a depressão econômica tenham imprimido um novo rumo a essa situação. Tem havido constantes pressões da sociedade para que os obstáculos ao trabalho policial sejam abrandados, facilitando com isso a proteção do cidadão de bem. O pensamento que está por trás dessa movimentação fundamenta-se na crença de que as liberdades públicas, quando cultivadas em excesso, burocratizam a investigação e a apuração dos crimes, deixando de poupar tempo e dinheiro do Estado. Justamente por isso, juristas britânicos vêm defendendo a criação de uma Carta de Direitos específica para a proteção dos direitos fundamentais do cidadão contra o 19 Depois de séculos de polêmica, o Tribunal do Júri tem assento no Poder Judiciário de alguns países, onde se espera a qualidade de suas decisões, em prol do bem comum e da coletividade, bem como, da aplicação da justiça. Colocados estes valores em confronto com o julgamento equitativo previsto quer na Convenção Europeia dos Direitos Humanos quer na Convenção Americana dos Direitos Humanos e da Jurisprudência da Suprema Corte Americana, espera-se que objetivamente, seja efetivado o estudo da instituição, presente tanto em Portugal como no Brasil, sob a ótica do julgamento equitativo, e dos cânones interpretativos, postos à lume, pela doutrina e jurisprudência acerca deste importante tema, consectário de direitos e garantias fundamentais e inserido no ordenamento jurídico destes e outros países. A análise tem em vista, entender as razões porque o Tribunal do Júri não floresceu em alguns países, ou simplesmente extinguiu-se ou foi substituído pelo sistema do escabinado ou assessorado, e qual o melhor sistema a ser adotado, do ponto de vista do processo justo e da participação dos cidadãos na administração da justiça. A justificação para a elaboração da tese, leva em conta dois fatores primordiais: a) Fortalecer a doutrina e literatura em Portugal, acerca do Tribunal do Júri, procurando esta tese dentro dos limites possíveis, aumentar o estudo da instituição em Portugal; b) Elencar dentro de um texto, a presente tese de doutoramento, um estudo da jurisprudência em torno dos três principais processos, aqueles que tiveram uma maior repercussão em solo português, tendo em vista a sua importância e complexidade, trazendo à colação, as principais conclusões do estudo dos três processos e outros, julgados nas Varas Criminais de Lisboa, acerca do processo penal português, e suas imbricações com o processo equitativo 2; c) Aprofundar os estudos do Tribunal do Júri, levando em conta os diversos sistemas, levando em conta as deficiências do Tribunal do Júri “puro” ou clássico, o Tribunal que conta apenas com a decisão dos jurados e representa, a participação popular em torno da administração da justiça 3 ;d) Proceder ao estudo do escabinado, em especial ao escabinado português, como antítese, movimento "da lei e da ordem" cada vez maior e mais influente, in: NUCCl, Guilherme de Souza. Júri Princípios Fundamentais. Ed. Juarez de Oliveira. São Paulo. 1999,p. 64. 2 - Nos reportamos aos processos: Processo 875/92.5: Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira; Processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão; Processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial de Torre Vedras. 3 - O Tribunal do Júri é a única vertente constitucional da participação do povo no Poder Judiciário. No Tribunal Popular, o jurado julga segundo a sua consciência, diferentemente do juiz togado, que está acorrentado ao texto legal. O juiz togado erra mais do que o juiz leigo. O que pode ser estatisticamente comprovado pelo grande 20 ao Tribunal do Júri “puro” e uma opção justa, à participação popular na administração da justiça. Desta forma, o contributo desta tese é a análise dos diversos institutos do devido processo legal, e a observação de sua antinomia, em alguns aspectos do Tribunal do Júri, no que tange à imparcialidade e justiça material de suas decisões. A justificação das fontes tem em vista o caráter amplo da tese, que não delimitou o espaço da pesquisa, apenas a um ordenamento jurídico, mas nos debruçamos nos sistemas de júri mundiais, para que as conclusões fossem as mais abrangentes possíveis, e verificassem um maior número de casos.4 De idêntica forma, tomamos emprestado aquilo que achamos mais relevante, e paradigma no que concerne ao Tribunal do Júri “puro”: O Direito anglo-saxão (NorteAmericano e Inglês), o Direito brasileiro e espanhol, todos estes países, com sistema de Tribunal de Júri “puro”. Esta que pode ser a parte mais paradigmática da tese tem a sua razão de ser, uma vez que procuramos nos diversos ordenamentos jurídicos que contemplam o Tribunal do Júri, o instituto jurídico, que deveria ser estudado à luz do processo equitativo. Desta forma, investigaremos o Tribunal do Júri, procurando fazer uma demonstração ao longo da tese, da fragilidade dos institutos que compõem o Tribunal do Júri “puro” ou clássico, com maior incidência, no caso brasileiro, que contempla, a íntima convicção dos jurados, sua incomunicabilidade, o sigilo das votações e ausência da motivação do voto do jurado. No Tribunal do Júri americano, inglês, e espanhol, temos fatores, que amenizam, estes e outros institutos, que longe de serem uma garantia para o jurado, representa uma funesta e caricata forma de fazer justiça. No Tribunal do Júri americano é necessário unanimidade ou pelo menos a maioria para os veredictos, e os jurados podem conversar e deliberar acerca do número de reforma de decisões proferidas por juízes de direito pelos tribunais superiores, in: STOLLEIS, Michael. O perfil do juiz na tradição europeia. Coord.Doutor Antonio Pedro Barbas Homem et. Al.2007. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p.27. 4 - Acerca das obras que tratam do Tribunal do Júri de forma sistemática, em vários ordenamentos jurídicos, cf: VIDIMAR, Neil. World jury systems. Oxford: Oxford University Press, 2000, VV.AA. Grand Jury Law and practice. 2ᵃ Ed. Vol. 2. Tomson West, 2010, MEYER Jon'a F. GRANT, Diana R. The courts in our criminal justice system. New York: Prentice Hall, 2008; MALSCHE, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in: Europan criminal justice systems. New York:Ashgate, 2004; HANS,Valerie P. The Jury System. New York :Ashgate,2006. 21 processo. Este procedimento, de forma alguma garante imparcialidade das decisões, tendo em vista a inserção de outros elementos que deveremos estar enfrentando ao longo da tese, como fatores de liderança (jurados influenciando jurados), e julgamentos por motivações raciais, influência da mídia etc. O Tribunal do Júri espanhol, em que pese a discussão de saber, se é um Tribunal do Júri “puro” ou escabinado, detém elementos que o aproximam, mais do processo justo, que os outros dois, pois neste, é dever dos jurados fundamentar o seu veredicto. 1.2. O tema da tese O tema da tese é o Tribunal do Júri, tratado não de forma histórica ou descritiva, mas principalmente pela análise de seu funcionamento. O Tribunal do Júri é visto sob o aspecto interno, e não sob o aspecto externo. Com isto, queremos dizer, que a análise feita acerca do Tribunal do Júri será do angulo do processo equitativo, como deverá ser demonstrado, mais adiante, quando da análise do problema e da razão de ordem. O Tribunal do Júri, visto sob o prisma da imparcialidade de suas decisões, ou seja, a ideia, sempre perene, se é possível ao leigo, julgar corretamente os crimes de competência do Tribunal do Júri. Colocamos como paradigma, para evitar as eternas discussões pessoais acerca da existência e conveniência do Tribunal do Júri, os dois artigos das duas Convenções, que tratam sobre o mesmo tema (julgamento imparcial ou equitativo), para nos distanciarmos de discussões apaixonadas acerca do Tribunal do Júri (respetivamente art.º 6º e 8º das convenções), bem como a jurisprudência dos Tribunais do Júri de Portugal, e a jurisprudência da Suprema Corte Americana. O tema tanto é tratado de forma teórica, como prática, tendo em vista que estudamos três grandes e complexos processos, que formaram jurisprudência em Portugal, acerca do Tribunal do Júri: Processo 875/92.5: Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira; Processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão; Processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial de Torre Vedras, e processos das Varas Criminais de Lisboa, tendo-me deslocado às diversas Varas Criminais 22 onde os casos ocorreram, examinando in loco, todos os processos. 5 Finalmente, observamos que utilizamos elementos, para justificar nosso pensamento, do Direito Brasileiro, Direito Português, Direito Norte-Americano, as Convenções Europeia e Americana dos Direitos Humanos. O escabinado é tratado logo após o exame do Tribunal do Júri “puro”, em especial o escabinado português, vindo logo depois, o estudo do assessorado. 1.3. Problemática a ser enfrentada A presente tese procura situar os problemas existentes no Tribunal do Júri, em relação à imparcialidade das decisões, tomando como paradigma a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência da Suprema Corte Americana, e em caráter supletivo a Convenção Americana dos Direitos Humanos, tendo em vista que ambos os documentos internacionais, tratam do julgamento justo ou equitativo, bem com a Sexta Emenda americana, que também trata menção ao processo equitativo ou justo. A Convenção Europeia dispõe do julgamento justo em seu artigo 6º, e a Convenção americana em seu artigo 8º, que tem a mesma redação, e garante aos acusados o direito a um julgamento justo e imparcial. Em outra vertente, aproximar o escabinado e o assessorado do processo justo. O Tribunal do Júri ao longo dos séculos vem sendo examinado por inúmeros estudiosos e doutrinadores, causando perplexidade, diante de julgamentos absurdos, que ora beiram a condenação, ora a absolvição sem que para tanto existam elementos probatórios, em face da prova produzida nos autos. Atribui-se a isto uma gama de fatores, que vão desde a ausência de conhecimento jurídico por parte dos jurados, até mesmo a uma série de vetores exponenciais, que vão desde a habilidade oral das partes, até os problemas envolvendo a utilização da mídia, que muitas vezes interfere no julgamento equitativo. De todos os procedimentos processuais penais, o julgamento do Tribunal do Júri clássico, é certamente o que tem mais problemas em relação à imparcialidade das decisões, em face dos inúmeros 5 - Acerca do papel da jurisprudência na interpretação do direito, cf: GADAMER, Hans George. Verdad y método, 4ª edição., trad de A. M. Hespanha y L.M. Macaísta Malheiros, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,2000; LARENZ, Karl. Metodologia do Direito, 5ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,2009; CAPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad: Carlos Alberto de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993; GRAU, Eros. Interpretation y aplication del derecho.Madrid: Dykinson-Constitucional; CANOTILHO. Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra: Coimbra Editora,1983. 23 fatores envolvidos. A seguir teceremos um resumo de cada um dos capítulos, procurando demonstrar a vulnerabilidade dos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri clássico ou “puro”. Para esta demonstração (ausência do julgamento equitativo no Tribunal do Júri), utilizaremos elementos da Convenção Europeia, da Convenção Americana, bem como, trazendo à colação elementos do Tribunal do Júri americano, brasileiro e do escabinado europeu, em especial o escabinado português. Na realidade, o Tribunal do Júri, do tipo “puro” conta com a ideologia de ser indispensável à democracia. A eterna crença, que os homens justos e leigos, podem decidir a sorte de um acusado, sem que detenha conhecimento jurídico apropriado.6 É de se observar, que para efeitos de uniformização, grafamos o termo Tribunal do Júri com letras maiúsculas e júri, com letras minúsculas. Os termos júri “puro” e júri clássico, tem o mesmo significado. 1.4. Razão de ordem e delimitação cronológica 1.4.1. Parte 1: O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Uma investigação do procedimento do ponto de vista do processo equitativo Para um melhor exame, organização e análise daquilo que pretendemos demonstrar, dividimos a tese de doutoramento em duas partes: A primeira versando sobre o Tribunal do Júri “puro”, assim definido pela doutrina especializada, a saber, o Tribunal de jurados, cujo número varia de acordo com os ordenamentos jurídicos diversos. Referido modelo, encontra6 - Nos EUA,o júri é um objeto de culto e um verdadeiro poder popular, transmitido pelos meios de informação e cinema. Alexis de Tocqueville já havia declarado sua admiração em relação ao júri, oriundo da Revolução Americana, uma instituição considerada de extrema importância, para a justiça americana.Na democracia, da America, Tocqueville acredita que "os homens são obrigados a cuidar de outras coisas, que não sejam seus próprios assuntos, ele luta contra o egoismo individual, que é como uma ferrugem para a sociedade. Ele percebeu que o júri é uma instituição política antes que o corpo judiciairio. O júri, diz ele, deve ser considerada "como uma escola gratuita e sempre aberta, onde cada jurado chega a instruir-se acerca de seus direitos [...]. Ele atribuia a inteligência prática e habilidade política dos norte-americanos à utilização do júri [...]. Eu olho o júri como um dos meios mais eficazes que podem ser usados para a educação da sociedade, in: GARAPON,Antoine;PAPADODOUPOLOS, Ioannis. Juger en Amérique et en France. Culture juridique française et common law. Odile Jacob, 2002, p.174. 24 se de forma mais premente ou veemente nos Estados Unidos, Brasil e Espanha, tendo notícias de sua implantação na Rússia, Japão e outros países, que ainda adotam o Tribunal de Jurados.7 É exatamente no Tribunal do Júri “puro”, que encontramos, malgrado opiniões em contrário, graves problemas no procedimento e no julgamento do processo. Procuramos, não fazer uma análise descritiva, mas demonstrativa do Tribunal do Júri “puro”, tomando como paradigma vários institutos, como instituição que carece da observância do Devido Processo Legal ou equitativo, previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e artigo 8º da Convenção Americana dos Direitos Humanos. Destaca-se que o Tribunal do Júri “puro”, já foi uma garantia do individuo, tendo em vista que em épocas remotas, os Juízes não tinham as garantias suficientes, para julgar uma questão com independência e isenção. Contudo, a partir da ruptura com o jusnaturalismo, assumindo o Juiz, garantias de independência, imparcialidade e neutralidade, não se justifica mais o julgamento por jurados. O devido processo legal preconiza que nenhum cidadão pode ser privado de seus bens ou liberdade sem o julgamento que estabelece a lei. Trata-se de um princípio reitor do processo penal, visto que todos os outros derivam dele. Significa que nenhum cidadão pode ser privado de seus bens ou liberdade sem o julgamento que estabelece a lei. O conceito de processo foi se modificando no tempo, sendo que doutrina e jurisprudência alargaram o âmbito de abrangência da cláusula ao permitir interpretação elástica, o mais amplamente possível, em nome dos direitos fundamentais do cidadão. Acerca da evolução do conceito do princípio, explica José Alfredo Baracho que as expressões law of the land e due process of law, examinadas conjuntamente na Inglaterra e nos Estados Unidos, 7 - A idéia seminal da existência de pares sociais só é possível quando se torna nítida a delimitação das esferas privada e pública, o que possibilita o exercício da liberdade de agir no mundo comum, construído a partir do consenso possível e desejável dos iguais.E é na pólis grega que esse espírito, republicano em essência, vai florescer. É exatamente o consenso, meta política da comunidade e dos homens livres e iguais, o fim último do exercício público das técnicas da retórica, essa nobre techné (saber prático) que possibilita a seu artífice a conquista da adesão dos homens que frequentam a ágora (praça pública) e a Heliéia (tribunal popular). A retórica “arte máxima do homem público grego” vai ter, portanto na pólis clássica (século V a.C.) um espaço e um momento, sem dúvida, privilegiados: o tribunal com o julgamento, em que se enuncia e se realiza concretamente o direito. ARAÚJO, Nádia de & ALMEIDA,E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4, nº 15,Julho-setembro,1995,p.200. 25 deram origem à construção jurisprudencial, com o objetivo de proteção aos direitos do indivíduo, em especial em matéria de garantias processuais. Com o tempo, a cláusula do due process of law passou a ter maior relevo, alargando-se no âmbito da doutrina. De uma garantia em face do juízo, passa a assegurar igualdade de tratamento frente a qualquer autoridade. Esta ampliação propiciou a limitação constitucional dos poderes do Estado. O instrumento está criado. Como escreve Roscoe Pound, o due process of law é um standard, pelo qual se guiam os Tribunais e, assim sendo, deve ser aplicado tendo em vista circunstâncias especiais de tempo e de opinião pública em relação ao lugar em que o ato tem eficácia. 8 Conforme aduzido e complementado por Rogério Laura Tucci, o devido processo legal, nos dias de hoje, é entendido como a exigência: “a) Elaboração regular e correta da lei, bem como sua razoabilidade, senso de justiça e enquadramento nas preceituações constitucionais (substantive due process of law, segundo o desdobramento da concepção norte-americana); b) Aplicação judicial das normas jurídicas (não só da lei, como tal e estritamente concebida, mas, por igual, de toda e qualquer forma de expressão do direito) através do instrumento hábil à sua interpretação e realização, que é o processo (judicial process); c) Assecuração, neste, de paridade de armas entre as partes, visando à igualdade substancial.”9 Neste sentido, conforme demonstraremos ao longo desta Tese de Doutoramento, o Tribunal do Júri clássico ou “puro”, ainda guarda todos os vícios e deficiências processuais, quando de sua consolidação por ocasião do Direito inglês, que pelo fenômeno da “transmigração”, foi sendo utilizado em outros países. 10 8 - BARACHO, José Alfredo. Processo e constituição: O devido processo legal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. V.28. nº23/24/25. Belo Horizonte.1982. p.90. 9 - TUCCI, Rogério Laura. Devido processo legal e tutela jurisdicional. São Paulo: RT. 1993. P. 18. 10 - De acordo com Santi Romano, o fenômeno da transmigração de um direito para além do seu país de origem não deve, sobretudo, ser confundido com outro, não menos interessante, através do qual, em países que apresentam contemporaneamente ou mesmo à distância de muitos séculos, semelhanças de condições e de desenvolvimento social, surgem, espontaneamente, instituições análogas. Substancialmente diverso é o fenômeno da transmigração ou propagação do direito, que se dá por inúmeras causas que podem ser reduzidas a duas: a) a conquista ou a colonização, que impõe ao país conquistado ou colonizado a ordenação do Estado conquistador ou da metrópole, salvo oportunas adaptações; b) a livre adoção por parte de um Estado das instituições de um outro, verificando-se aquilo que Emerico Amari dizia, com feliz expressão, 'contagiosidade do 26 Esta tese é confirmada, inclusive pela doutrina inglesa, tendo em vista que o desenvolvimento histórico na Inglaterra também teve importantes efeitos sobre os sistemas legais e constitucionais. A ascensão do Império Britânico resultou na exportação da lei Inglesa para as colônias. Esta exportação levou ao pluralismo jurídico, que é a mistura de mais de um sistema da lei dentro de um determinado país ou seção de um país. As colônias inglesas mantiveram muitas das suas leis consuetudinárias e processos de resolução de litígios, enquanto os tribunais de estilo inglês passaram a lidar com grandes crimes e matérias cíveis.11 Para que se possa entender este processo, é necessário, remontar um pouco a história, e o tempo em que o Tribunal do Júri era uma garantia para os súditos ingleses. A figura do Júri, havia substituído os Juízos de Deus no século III, e assumia relevante papel a partir do século XII, notadamente, com a instituição do Grand Jury, composto por vinte e três jurados de cada condado, competente para denunciar os crimes mais graves aos juízes (Júri de Acusação), e, do Petty Juri, composto de doze jurados, competente para ocupar-se das provas, reformando-se este último, por volta dos séculos XV e XVI para tornarse uma instituição de julgamento, confiando a acusação a qualquer habitante do reino, configurando-se então a denominada Ação Penal Popular, com a manifesta imparcialidade do júri, consubstanciando-se um sistema processual tipicamente acusatório, que persiste até hoje12. O declínio dos juízes de Deus, que no sistema continental deu lugar ao procedimento inquisitório em solo inglês, teve como consequência a afirmação paulatina de uma instituição que ainda hoje domina o sistema de justiça anglo-americana: o júri. Com isso, a solução das questões discutidas no processo, antes confiada à divindade, passou a ser atribuída a doze pessoas escolhidas entre os notáveis do lugar, que são como 'oráculos da comunidade.13 direito' , in: ROMANO, Sainti. Princípios de direito constitucional. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: RT, 1977, p. 45. 11 - FAIRCHILD, Erika S. Comparative criminal justice systems. California: Wadsworth Publishing Company, 2005, p. 46. 12 - O moderno Tribunal do Júri nasceu na Inglaterra, em 1215, com a Magna Carta, sendo que eram previstos dois júris: o de acusação (Grand Jury) e o de julgamento (Petty Jury). O Grand Jury, que funcionava com 24 jurados, foi extinto em 1948, permanecendo apenas o Petty Jury, in: JÚNIOR, Angelo Ansanelli. O Tribunal do Júri e a soberania dos veredictos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008,p.145. 13 - FILHO, Antonio Magalhães Gomes.Direito à prova no Processo Penal.Revista dos Tribunais.São Paulo.1998,p.36. 27 Como alternativa à decadência do procedimento judiciário das ordálias, os ingleses adotaram, criativamente, o trial jury (ou petty jury). O grupo de membros da comunidade, que até então, apenas pronunciava um acusado, passaria, a partir de então, a efetivamente julgá-lo com base no seu conhecimento pessoal dos fatos. O já conhecido e disseminado jury of presentment era, no entanto, necessariamente parcial, devido às suas características intrínsecas, pois se tratava de um concurso de opiniões acusatórias. O julgamento do júri deveria, portanto, ser composto de um número maior de pessoas - até quarenta e oito - para além das que haviam apresentado o suspeito, possibilitando algum equilíbrio em suas deliberações14. Ao contrário do que se passou em outros países, em Inglaterra as ordálias não foram substituídas por torturas. As autoridades quiseram encontrar outra forma de manifestações da vontade divina, sendo um país onde a crença religiosa estava muito arraigada e tinha muita força. Os dogmas e os ritos impunham-se naturalmente na cristandade inglesa. Por isso criouse uma expressão na tradição cristã que rememorava a descida do Espírito Santo. Apareceu então na instituição um pouco da simbologia dos números. Os jurados podiam ser três, porque representavam as três virtudes teológicas, sete, considerado o número sagrado, ou dez, porque representava o sistema decimal da época. O número doze é o produto dos quatro pontos cardeais para os três planos do mundo. Divide o céu, na forma de cúpula repartida por doze sectores, os doze signos do Zodíaco que são mencionados desde a Antiguidade. Por isso o ano tem doze meses desde os tempos dos Assírios e dos Hebreus. O número doze simboliza o universo no seu movimento declínio espaço-temporal. É, ao fim ao cabo, um número de equilíbrio e de perfeição. Para os escritores bíblicos foi o número eleito. Israel teve doze filhos e por isso Cristo também escolheu doze filhos simbólicos, os Apóstolos, eleitos que 14 - JUNIOR, Kempy, F.G.Historical introdution to anglo-american law, St Paul, West, 1973, p.54. A mais clássica das participações leigas no Judiciário realiza-se no Tribunal do Júri. A origem moderna dessa corte remonta à criação do Common Law na Inglaterra de Henrique II (1133-1189). O rei inglês instituiu o Writ chamado novel disseinsin, encarregando o Sheriff de reunir 12 homens para apresentar testemunho acerca de queixas de esbulho. O sistema de jurados veio a substituir a prática do duelo como método de julgamento. Inicialmente, na Inglaterra, a resolução dos conflitos ocorria pelo combate até a morte. Diante da barbaridade do método, o rei normando, com formação jurídica em Bolonha, impôs a apresentação de provas acerca das querelas levadas à Corte Real. Um meio de prova da época constituía-se na declaração de uma testemunha perante a Corte e, desse modo, havia uma espécie de jurado que não era um juiz de direito, mas sim uma testemunha do fato, in: CAMPOS, Adriana Pereira. Tribunal do júri: a participação leiga na administração da justiça brasileira dos oitocentos, in: Diálogos entre direito e história: cidadania e justiça (org. Gladys Sabina Ribeiro et. al.). Editora da UFF, 2005, p.221. 28 receberam a luz do Espírito Santo através de línguas de fogo. Não foi por isso surpreendente, que o primitivo Júri de Inglaterra, que vivia num regime monarco-religioso, fosse composto por doze homens considerados puros, como os Apóstolos de Cristo15. O júri inglês e os assises nasceram no tempo do rei D.Henrique II. O júri inglês começou por chamar-se Tribunal do Rei ou assises. O termo júri procede dos assises feudais que as Cruzadas estabeleceram em Jerusalém. E num deles, os doze magistrados estavam permanentemente investidos no poder de julgar, sob a presidência de um visconde, as controvérsias europeias e daí receberam o nome de jurados. Naturalmente a ocupação romana em Inglaterra deixou as suas marcas e tradições, como é o caso do cutelo suspenso das salas do júri, reminiscência das sentenças de cutelo romanas. Henrique II (1154-1189), bisneto, por linha materna, de Guilherme, o Conquistador; introduziu as inovações judiciárias que marcaram o início do triunfo da commom law, i.e., o direito comum a toda a Inglaterra, sobre os ordenamentos jurídicos particularistas, baseados nos costumes de cada localidade, e submetidos à autoridade de um senhor eclesiástico ou temporal inferior ao rei. Para potencializar a tendência centralizadora deste período da monarquia inglesa, o soberano recorreu, sobretudo, a duas construções de inspiração jurídica, mas com profundas implicações políticas: o conceito de king's peace e o do domínio pessoal do rei sobre a totalidade das terras. O primeiro conceito corresponde ao movimento de publicização do direito criminal, i.e., o predomínio da ideia de perturbação da paz pública sobre a ênfase no dano privado. Seus instrumentos jurídicos foram o Assize of Clarendon (1166) e o Assize of Northampton (1176), ordenações que excluíram a competência das cortes costumeiras e senhoriais para o julgamento dos crimes mais graves, atribuindo-a aos King's Justices, juízes itinerantes que iam de condado em condado acolhendo indiciamentos pelo júri 15 - MORAIS, António Manuel. O júri no tribunal: da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Hugin, 2000, p. 31- 32.O Tribunal do Júri se organiza na Inglaterra em 1933,mediante a atuação dos órgãos jurisdicionais: O Grand Jury e o Petty Jury,o jurado de veredicto.A composição do primeiro era de vinte jurados e um presidente, o xerife, com jurisdição no condado (county),cuja missão era decidir acerca da admissibilidade da acusação, em casos graves como os casos de morte violenta (homicídio),casos em que atuava juntamente com órgão denominado Coronel’s Court (Coronel’s Act 1988),oscilando a competência destes jurados entre sete e onze juízes leigos. O petty jury está composto por dez juízes leigos e por um juiz técnico, que exerce a presidência, emitindo um parecer sobre os fatos apresentados pelas partes, em um juízo oral, in: VV.AA. Comentários à ley del jurado.Coordenadores:Juan Monteiro Aroca y Juan Luiz Gómez Colomer, artigo de Iñaki Esparza Lebar. El jurado inglês. Ed. Arazandi,1999,p.72. 29 e determinando os procedimentos do juízo. Esta é a origem histórica da Court of the King Bench 16. Neste tempo, no reinado de Henrique II, a corte do rei foi centralizada em Westminster, e o país foi dividido em cinco distritos judiciais, com cavaleiros que foram nomeados como juízes itinerantes, e que tinham a incumbência de viajar por todo o reino para conhecer dos casos judiciais. Inicialmente, quem apresentava o caso no Tribunal, era o xerife17. No entanto, e uma vez que o próprio povo não depositava a sua total confiança no xerife, e tendo em vista a longa ausência dos juízes itinerantes, e pelo próprio fator tempo, que o povo tinha de sobra, o próprio povo foi desempenhando um papel em seu próprio sistema de justiça, regressando aos tempos tribais, aumentando a pressão para que as pessoas tivessem um papel mais direto na administração da justiça. Consequentemente, no ano de 1176, quando uma pessoa era acusada de um crime, tornou-se o trabalho do xerife, convocar 12 cavaleiros do Condado, quatro da cidade ou vila, para ouvir uma versão preliminar do caso. Este grupo passou a ser conhecido como o grande júri. O xerife era o responsável para apresentar provas suficientes perante o Grand jury para convencê-los que o crime realmente tinha ocorrido e que as provas mostraram que o acusado, provavelmente, o teria cometido. Se o júri admitisse as provas, o acusado era detido para o julgamento perante um juiz itinerante. Caso contrário, o acusado estava autorizado a sair livre. Consequentemente, quando o juiz itinerante chegava à vila ou cidade, ouvia apenas os casos que tinham sido selecionados pelo júri, fazendo melhor uso do seu tempo18. Ora, os Scheriff’s, e mesmo o Juiz togado, não gozavam de qualquer garantia, razão pelo qual os jurados representavam, realmente uma garantia para o indivíduo, vez que eram 16 - ARAÚJO, Nádia de & ALMEIDA,E Ricardo. O tribunal do júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual, cit.p.205. Na Inglaterra, os delitos se dividem da seguinte forma: infrações graves (indictable offences), infrações menos graves - ou sumárias - (summary offences) e, finalmente, as infrações mistas (either way offences). As infrações menos graves são de competência da Magistrate's Court, enquanto as mais graves são julgadas pela Crown Court (órgão do qual faz parte o Tribunal do Júri). No que tange às infrações mistas, se a magistrate's court se opõe a julgá-Ias, elas serão apreciadas pela Crown Court. Do contrário, ou seja, se a magistrate's court se dá por competente, o acusado pode escolher entre um ou outro órgão. Em face dessas circunstâncias, essas infrações mistas são chamadas de dupla via de julgamento, in: INGMAN, Terence. The english legal process. 7.ed. - [London] : Blackstone Press Limited, 2004, p.47. 17 - Scheriff’s 18 - PEOPLES, Edward E. Basic Criminal Procedures. 3rd Edition. Prentice Hall, 2007, p.5. 30 julgados pelos seus próprios pares.19 Contudo com a independência do Juiz Constitucional, que goza da mais completa liberdade para decidir, livre de injunções e pressões, o Júri fica cada vez mais, uma instituição obsoleta na pós modernidade.20 Nos dias atuais, o juiz tem independência, em relação à jurisdição.A independência do magistrado é uma das condições exigidas para o exercício da jurisdição. O Juiz não independente pode ser recusado pelas partes, uma vez ter interesse no objeto do processo, ou mesmo em qualquer uma das partes. O Juiz imparcial é aquele que julga de forma desapaixonada, sem comprometimento com quem quer que seja. Diz respeito à retidão, à equidade e à justiça, não buscando o interesse da parte ou terceiro interessado, ou mesmo do próprio juiz. Parte este princípio do pressuposto, que o Estado-Juiz deve interessar-se somente pela busca da verdade real. O Juiz deve ser independente, tendo em vista, que está cercado de garantias, e situar-se acima das partes (órgão super partes). O Juiz imparcial é o Juiz natural, o Juiz constitucional. O princípio do Juiz natural não apenas veda a instituição de tribunais e juízos de exceção, como também impõe que as causas sejam processadas e julgadas pelo órgão jurisdicional 19 - Os reformadores da época seguiam Jean Jacques Rousseau e Montesquieu e os costumes ingleses tinham grande aceitação na Europa Continental, onde a Justiça se regia por regras muito mais severas no que respeita ao direito criminal e por isso surgiram as filosofias liberais. Os juízes desse tempo, depois das sentenças condenatórias de Calas e do cavaleiro de la Barre, tinham uma situação muito próxima das jurisdições militares. O povo estava saturado de abusos de autoridade que se encontrava concentrada na pessoa do rei, o Iluminado, senhor de todos os conhecimentos e de todos os poderes. Tal estado de coisas conduziu ao descrédito dos tribunais, carregados de defeitos e de influências políticas. Por essa razão, enquanto a Revolução se espalhava, o estabelecimento do Júri foi muito bem recebido pela opinião pública, sendo respeitado em todo o Império desde 1790, ano em que começaram os tribunais com jurados em França, in: CAMPOS, Adriana Pereira. Tribunal do júri: a participação leiga na administração da justiça brasileira dos oitocentos, in: Org. Ribeiro, Gladys Sabina et.al., (Diálogos entre direito e história: cidadania e justiça).São Paulo: Editora da UFF,2005, (pp.219-226), p.221. 20 - O princípio do Juiz Natural assume, também, um tríplice significado. Por um lado põe em evidência em primeiro lugar o plano da fonte: só a lei pode instituir o juiz e fixar-lhe competência; em segundo afirmando um princípio da irretroatividade, ou seja, a fixação do juiz e da sua competência tem de ser feita por uma lei vigente já ao tempo em que foi praticado o fato criminoso que será objeto do processo; em terceiro lugar, vincula uma ordem taxativa e competência, que exclua qualquer alternativa a decidir arbitrária ou mesmo discricionariamente e daí a proibição de jurisdições de exceção, in: DIAS, Jorge de Figueiredo. Clássicos jurídicos - Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 324. 31 previamente determinado a partir de critérios constitucionais de repartição taxativa de competência, excluída qualquer alternativa à discricionariedade.21 Em Portugal, segundo o princípio do Juiz natural ou imparcial, nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior (art. 32º, n.º 9, da CRP). Com efeito, a repartição de competência pelos tribunais há de ser feita por lei e esta deve ser anterior à prática do facto que vai ser objeto do processo, procurando evitar-se a designação arbitrária de um juiz para um determinado processo. O princípio do juiz natural vale em pleno, quer para a fase do julgamento, quer para a fase da instrução (quanto a esta última, conforme resulta do art. 288º). A este propósito importa referir o Ac. da RC, de 27.04.2005 in CI, Ano XXX, Tomo II, p. 48, segundo o qual não existe violação do princípio do juiz natural, se num tribunal Com vários Juízes, se estabelecer que lhe ficam distribuídos os processos de inquérito do procurador "com quem trabalha".22 Registre-se que o declínio do Tribunal do Júri na Inglaterra, demonstra, que o Tribunal do Júri, não é mais aceito e não goza do mesmo prestígio, em seu país de origem, sendo responsável por menos de 3% dos julgamentos cíveis ou criminais, já tendo se cogitado de sua extinção, mantendo-se, tão-somente, por força da tradição.23 1.4.2. A parte 2 da Tese de doutoramento: Análise do sistema do escabinado e assessorado e suas vantagens em relação ao Tribunal do Júri “puro” e sua aproximação com o processo equitativo É exatamente com este pensamento, que a partir do século XIX nasce na Alemanha as cortes mistas ou mixed-courts, intituladas escabinados na Espanha, ou seja, Tribunal Popular com composição heterogênea, composto por juízes togados ou de carreira e juízes leigos e sorteados para atuar, episodicamente, nas sessões de julgamento. A Dinamarca, desde 1919, mantém o sistema de júri para crimes apenados com mais de quatro anos de reclusão24. 21 - GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira.Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 3º Edição, São Paulo: RT, 2009, p.105. 22 - CARVALHO, Paula Marques. Manual Prático de Processo Penal.´4ª Edição. Lisboa: Almedina, 2003, p.19. 23 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p.79. 24 - STOCO, Rui. Tribunal do Júri e o Projeto de Reforma de 2001, in: Revista Jurídica, ano 50, Dezembro de 2002, nº32, p.61. 32 Como se verá estudaremos detalhadamente os vários sistemas relativamente ao escabinado, seu procedimento, tomada de decisões, e a parte importante da tese de doutoramento, o estudo da jurisprudência dos três principais casos rumorosos, que foram julgados pelo Tribunal do Júri português, e outros, julgados pelas Varas Criminais de Lisboa. 25 Na França, após a revolução de 1789, foi o júri aperfeiçoado, estabelecendo-se o pequeno e o grande júri, por intermédio de uma lei de 16 de setembro de 1791, influenciada pela obra de Montesquieu (L'esprit des lois), instituiu o júri clássico naquele país, que perdurou por mais de cem anos. Hoje, a Cort D'Assise é composta por três juízes profissionais e nove leigos: é heterogênea, portanto. Também na França, em 1945, o percentual de absolvições caiu de 25% para 8%. A França, orientando-se pelo modelo inglês, emprestando caráter eminentemente político adotou desde logo a publicidade dos debates orais e escritos em causas criminais do Tribunal do Júri sendo a instrução feita publicamente com grande notoriedade.26 Desta forma, o Tribunal do Júri ganhou legitimidade na época das revoluções francesa e americana, integrando suas constituições. A França, em 1791, copiou o sistema inglês de júri e instaurou em matéria criminal as suas duas formas: júri de acusação e júri de julgamento. O primeiro decidia se existia causa para dar origem a um processo e o segundo, efetivamente, julgava a causa. Na época napoleônica, no entanto, estabeleceu-se uma crise na manutenção do júri. Advieram reformas que resultaram na abolição do júri de acusação, mantendo apenas o júri de julgamento. O Código de Instrução Criminal, de 1808, e a lei de organização judiciária, de 1810, ambos de França, estabeleceram o funcionamento dos tribunais de jurados por departamento, reunindo-se a cada três meses. Compunham o Tribunal do Júri cinco juízes profissionais, escolhidos entre os conselheiros da Cour d'appel, e um jurado formado por 12 cidadãos. 25 - Antes de sua adoção no território Inglês, Carlos Magno já havia criado o "escabinato" que se compunha de homens livres e notáveis, baseados no antigo Thibunal dos "Mau" ou "Placitum", cujos integrantes eram chamados de "rachimburgos", "bani homines" ou "escabinos", sendo que a lei sálica prescrevia que seu número seria de sete. Acrescenta, porém, que, dependendo da gravidade do crime, a quantidade de componentes do Thibunal poderia ser aumentada, para evitar o exercício de pressões ou de influências, in:Rosa, Antonio José Miguel Feu. Comentários & jurisprudência. São Paulo: Adicoas, 2000, p.40. 26 - TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT, 1999, p. 30. 33 A respeito da evolução e modernização do júri, este prosperou na Inglaterra, e daí se estendeu aos outros países do continente europeu (prevalecendo o sistema escabinado, em que os juízes leigos votam com juízes togados e sob a presidência deste), bem assim aos Estados Unidos da América, chegando, mais tarde, ao Brasil. Portanto encontramos as seguintes características do escabinado, que vão de encontro a um processo justo: a) O mecanismo de checks and balances, onde o Juiz profissional, resolve as questões de direito e os jurados leigos, as questões de fato, mas as decisões são tomadas conjuntamente (por lei as questões de direito e de fato, por todos os escabinos); b) A motivação das decisões; c) A facultatividade, como no escabinado português, em que não existe obrigatoriedade da imposição do julgamento do Tribunal do Júri; d) O recrutamento dos jurados, através das listas dos eleitores; e) O fato de um Juiz profissional conduzir a instrução do processo; f) A inexistência do sigilo das deliberações, etc. Traçamos, a seguir uma breve cronologia de cada um dos capítulos, começando pelos capítulos da Parte 1. 1.4.3. Cronologia da Parte 1 da Tese de Doutoramento.O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Análise do sistema do escabinado e assessorado e suas vantagens em relação ao Tribunal do Júri “puro” e sua aproximação com o processo equitativo Capítulo 1. O primeiro capítulo, versa sobre o Tribunal do Júri “puro”, e sua repercussão no processo equitativo, o sistema de controle judicial, de admissibilidade da acusação. Este capítulo tem como objetivo analisar o Tribunal do Júri “puro”, e suas formas de julgamento. Este capítulo visa fornecer uma visão global sobre este tipo de júri27,o seu funcionamento, o mecanismo de tomada de decisões, suas vicissitudes e variantes. O estudo 27 - Vale a pena conferir o pensamento da doutrina americana, acerca a autopoiese do Tribunal do Júri: O júri não existe por obra de um legislador, que assim o determinou, mas porque essa é a maneira pelo qual cresceu. Na verdade, a sua invenção por um legislador é inconcebível. É esta a única e possível maneira de encará-lo, pois de outro modo a ideia de um júri é ridícula e impraticável. Considerar que doze homens e mulheres, devem ser selecionados de forma aleatória; que nunca antes tiveram alguma experiência de sopesar evidências, e aplicar suas mentes para resolver um problema judicial, ou resolver um determinado assunto de natureza grave, com exercício intelectual ou pensamento prolongado. DEVLIN, Patrick. Trial by jury. London: Stevens; 1st edition 1956.p.5. 34 de uma determinada instituição sob o aspecto global, pode levar em consideração a maneira como cada um dos sistemas funciona, fazendo com que se possa perceber as autênticas distinções entre um e outro sistema. O fundamento e funcionamento do Tribunal do Júri são muito diversos em cada período histórico, dentro das coordenadas de uma época e um contexto histórico. Esta é a base do estudo a partir do qual pode obter-se uma série de construções sociais acerca desta figura. Figura esta que se relaciona com uma multidão de questões relativas à justiça, destacando a busca da verdade através de um processo. Precisamente o sentido etimológico da palavra veredicto, se refere a decidir com a verdade, que com a evolução atual, se trata de decidir com a verdade presente nos autos de um processo28. O Estudo do Tribunal do Júri no direito comparado tem como escopo verificar os pontos de contatos, os pontos de divergência, e aqueles modelos em que não vigora mais o Tribunal do Júri com intensa participação popular. Neste capítulo, é essencial a análise do funcionamento e do procedimento do Tribunal do Júri “puro”, o controle judicial, a interação entre o Juiz profissional e o Juiz leigo, as formas de admissão da acusação e o procedimento bifurcado, que se divide geralmente em uma fase de admissão da acusação, bem como de fixação da competência de um júri, e a segunda fase, que é o julgamento por um Tribunal de jurados. Capítulo 2. O capítulo dois, traz à lume, a acusação do Ministério Público no Tribunal do Júri americano, introduzindo a especialização do Ministério Público no Tribunal do Júri, o que leva ao seu excessivo protagonismo, nesta área de atuação (diferente do cível, por exemplo), e os instrumentos de diversificação no âmbito do Tribunal do Júri, em especial a plea bargaining do direito americano, que tem como escopo a definição de uma política criminal especial, que visa a atribuição da culpa ao acusado e subtração da competência do Tribunal do Júri. 29 28 - MARTÍNEZ, Gema Varona. El jurado y la arquitetura de la verdad juridico-penal. San Sebastián (Secundino Esnaola, 15), 2001: G. Varona, 2000,p.15. 29 - Um mito público foi criado ao longo dos anos pela mídia e indústria do entretenimento sobre a natureza do processo penal e até que ponto os casos são resolvidos por acordo. Contudo, relativamente poucos casos nunca vão a julgamento,por força da plea bargaining. No entanto, muitos dos casos graves vão a julgamento: casos em que a defesa tem muito a perder a partir de uma convicção dos jurados, e as partes possam sofrer uma execução. O sistema adversárial ainda está vivo e bem, particularmente nos casos graves. É aqui que os dois lados, entram em confronto no campo de batalha, cada um usando todos os conhecimentos jurídicos que possuem, procurando 35 O resultado de uma tal mutação é a progressiva desjurisdicionalização (ou, se se quiser, a administrativização) e informalização do processo penal, agora obcecadamente reduzido a instrumento de gestão eficiente de problemas, numa sociedade em que a que a ideia do direito penal como ultima ratio da política social, há muito que ganhou foros de mera proclamação vácua, tudo enquadrado num pano de fundo mais vasto de uma “cultura de controlo”", onde o valor da segurança, em detrimento da igualdade, da verdade e da justiça, assume acentuada, quando não exclusiva, proeminência. 30 Daí advém as noções de confissão (que é o objetivo principal da plea bargaining) e de instrumento de política criminal do Ministério Público, que filtra os processos, que irá submeter a julgamento. Referidos instrumentos do Tribunal do Júri americano, não se submetem ao devido processo legal, porquanto não trata de forma igual, todos os jurisdicionados, e causa desequilíbrio na balança entre acusação e defesa. Capitulo 3. O capítulo três começa a abordar a igualdade de armas, também conhecido como contraditório, e por vezes sendo confundido com a ampla defesa. Novamente, tomamos emprestado um instituto do direito norte-americano (apenas um capitulo), para abordar o Adversary System, postulado da igualdade de armas, existente tão-somente no direito anglosaxão, em que o Ministério Público, se comporta como parte no processo, disposto a vencer a disputa, a qualquer preço. Lançamos notas acerca dos diversos tipos de defensores no Tribunal do Júri, e da efetividade da defesa, que no Tribunal do Júri é nota essencial. Trazemos á discussão à chamada “plenitude da defesa”, instituto brasileiro, existente somente nos procedimentos do Tribunal do Júri, em que a defesa goza de maiores prerrogativas que a acusação, o que fere a imparcialidade e igualdade de armas.31 fazer a verdade real emergir, in: PEOPLES,Edward E. Basic Criminal Procedures. 3rd Edition.Prentice Hall,2007,p.128. 30 - ALBERGARIA, Pedro Soares. Plea bargaining.Aproximação à Justiça Negociada nos EUA. Coimbra: Almedina, 2007,p.58. 31 - O contraditório diz mais respeito à paridade de armas, à igualdade entre acusação e defesa. Correta a lição de Francisco Dirceu Barros, quando diz: “Alguns doutrinadores definem o princípio do contraditório como corolário da ampla defesa. Entendo ser um grande equívoco, pois o princípio em estudo é consequência lógica da igualdade. De forma analógica, podemos dizer que em uma guerra devem-se propiciar as mesmas armas aos contendores, e, em nenhuma hipótese, será possível conceder um melhor armamento a uma das partes. Veja que o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa, portanto, qualquer restrição ilegal poderá acarretar: a) cerceamento de defesa; b) cerceamento de acusação”. 2) O segundo momento do contraditório é o tempo necessário para uma eficaz contrariedade. Desta forma, se a acusação junta documentos que podem 36 Capítulo 4. A análise da prova no Tribunal do Júri. Aqui se verifica o exame da prova proibida no âmbito do Tribunal do Júri, como por exemplo, a proibição de referência a testemunhas anônimas ou da prova indireta (hearsay rule), á questão da prova ilícita, e como os jurados leigos poderão identificá-la. Mas importante questão, ligada diretamente á questão da imparcialidade, deriva da verdade real, uma vez que no direito brasileiro, os jurados só tomam conhecimento do processo, por ocasião dos debates, e isto, durante apenas uma hora e meia. Desta forma, a ausência de elementos por parte dos jurados, certamente compromete a sua visão, e, por conseguinte as suas decisões. Também, podemos vislumbrar no princípio da presunção da inocência e na decisão da pronúncia no Direito brasileiro, que ocorrem graves problemas em relação ao processo justo e à imparcialidade.32 Capítulo 5. O capítulo cinco trata de uma importante parte dispositiva da sentença penal, a saber, a motivação das decisões, inexistente no Tribunal do Júri. Trazemos um estudo do caso Taxquet v. Bélgica, em que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, entendeu violado uma decisão da Cours d’assise Belga, em relação processo equitativo, o sistema de motivação do Tribunal do Júri espanhol, que abre uma precedência neste sentido. Defendemos a necessidade de motivação das razões do veredito do Tribunal do Júri. O direito à motivação está consagrado em documentos internacionais, como, por exemplo, no art. 2.º do Protocolo 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor desde 1.º de novembro de 1984: 1. Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um Tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a incriminar o acusado (uma escuta telefônica autorizada, por exemplo), é necessário que o juiz conceda à defesa o tempo necessário para contrariar o documento lançado pelo Ministério Público ou querelante ou mesmo produzir uma contra-prova;3) Já o terceiro momento é o da reação. Esta reação é caracterizada por uma postura dinâmica e ativa da parte. Com propriedade, leciona Antônio Magalhães Filho que neste momento o contraditório adquire uma feição dinâmica, caracterizando-se pela possibilidade de participação ativa de seus protagonistas em todos os atos do procedimento, com o objetivo de influenciar positivamente o espírito do juiz e obter, assim, a tutela pretendida, in: BARROS, Francisco Dirceu. Direito Processual Penal. Vol. II. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p.138-139. 32 - No Tribunal do Júri não existe necessidade de provas plenas, para a sentença de pronúncia, ante o fato do Juiz Natural do Tribunal do Júri, ser composto por um órgão colegiado, composto de 26 integrantes. É vedado ao Juiz-Presidente condenar o réu, na primeira fase do Tribunal do Júri, condenar o acusado, tarefa, reservada pela Constituição ao órgão colegiado, composto de juízes leigos e togados, daí a possibilidade do réu ser pronunciado com base em indícios, in: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Saraiva, 15ª ed., 2008,p.260. 37 condenação. O exercício deste direito, incluindo os motivos pelos quais pode ser exercido, é regulado pela lei. 2. Este direito pode ser objeto de exceções relativamente a infrações menores, definidas na lei, ou quando o interessado foi julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição. Capítulo 6. O capítulo seis ingressa no “cerne” da presente discussão, ou seja, o debate acerca da imparcialidade do Tribunal do Júri, trazendo considerações acerca do problema da imparcialidade dos jurados, elencando os argumentos favoráveis e desfavoráveis á instituição, como o argumento da colegialidade e da responsabilidade moral dos jurados.33 Capítulo 7. O capítulo sete segue analisando o problema da imparcialidade do Tribunal do Júri, sob o aspecto interno. Verifica-se o tecnicismo (principalmente atual) do Direito Penal e do Processo Penal, da sugestionabilidade dos jurados, e dos problemas advindos de sua formação, raça, preconceitos e como tudo isto, tem impacto em suas decisões. 33 - Não se confunde independência, neutralidade e imparcialidade. A imparcialidade do juiz é distinta de sua independência, definida como ausência de vínculos entre o juiz e as partes ou entre o juiz e os poderes executivo e legislativo. O princípio de imparcialidade deve ser aplicado a todos os tipos de tribunais, compreendidos aqueles comportando um júri (Puliar c/ Reino Unido, 10 de junho de 1996, § 32). O risco de parcialidade pode ser evitado, quando o presidente de um júri popular se dirige a este júri e lembra em termos firmes que os jurados devem evitar todo pré-julgamento, de qualquer forma que seja (Gregory c/ Reino Unido, 25 de fevereiro de 1997). A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há-de ser estranho ao conflito. A independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo, quando o exijam a Constituição e a lei, mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas. A imparcialidade é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes das partes nos processos judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes. A independência diz com a função, com o ofício de julgar. É a porção técnica jurisdicional do Estado. Já a imparcialidade diz com o juiz, com o homem julgador. É a conexão subjetiva do órgão. Como a idéia de independência pressupõe a indispensável moralidade do julgador, pode-se dizer que é a independência que gera a imparcialidade. Por evidente, temática tão relevante e de caráter tão geral, não pode esbarrar em particularismos que mais atinem com as ciências penais (em caso do juiz corrupto), com a psiquiatria (no caso do juiz autoritário), enfim com a responsabilização pessoal de quem abusou de sua independência, in: PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 1995, p. 73 38 Capítulo 8. O capítulo oito trata dos aspectos externos, que interfere no julgamentos dos jurados, como o efeito da palavra oral, a persuasão, a simbologia e rituais, fatores de liderança, e o perfil médio dos jurados, e como este perfil pode influenciar as suas decisões. Capítulo 9. O capítulo nove trata de uma das mais importantes vertentes discussões atuais acerca da imparcialidade dos jurados: A relação do jurado com a mídia, tratando substancialmente de todas as relações, em especial da chamada publicidade pré trial, ou publicidade antes do julgamento final, questões de ponderação entre o direito á informação e a imparcialidade do julgamento. 1.4.4. Cronologia da parte 2. O escabinado e o assessorado: Análise do seu funcionamento e da Jurisprudência dos Tribunais do Júri em Portugal A parte 2 da presente Tese de Doutoramento está assim estruturada: Capítulo 1. O primeiro capítulo irá tratar do escabinado na Europa, abordando os três grandes escabinados Europeus, a saber, o escabinado na França (que parte da doutrina, entende que é assessorado),o escabinado em Portugal, que nos debruçamos, com mais vigor e minudências e o escabinado na Itália.34 Capítulo 2. O capítulo dois irá tratar do funcionamento do escabinado, da tomada de decisões e da função exercida pelo Juiz profissional e pelos escabinos. Verificar-se-á o enfrentamento do terrorismo pelo escabinado, como forma de aferir sua independência, bem como a relação existente entre o Juiz profissional e o Juiz leigo, também como forma de aferir a sua independência. Capítulo 3. Este capítulo irá tratar do assessorado ou sistema misto de Tribunal do Júri, sendo esta, consoante a doutrina especializada a melhor forma dos três sistemas de Júri. Descreveremos com as implicações em torno do processo justo, acerca do assessorado na 34 - As sementes do Júri também são encontradas no direito romano, na instituição denominada inquisitio. Era a forma pela qual os governadores de províncias inquiriam pessoas mais importantes, para inferir as condições econômicas de cada uma, a fim de lhes impor uma adequada tributação. A inquisitio teria sido absorvida pelos normandos bárbaros que invadiram a Inglaterra no ano 1066 da era cristã, subjugando os anglo-saxões e, com estes, mesclando seu sangue e suas instituições, in: TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 27. 39 Áustria, do sistema duplo de jurados na Alemanha (que contém o escabinado e o sistema misto de forma concomitante),do modelo de assessor na China do modelo de Assessor na Croácia, do papel do assessor na Dinamarca, do assessorado na Suíça e na Suécia, e do modelo de Assessor em Angola. Capítulo 4. O capítulo quatro trata do exame da jurisprudência do Tribunal do Júri em Portugal, como já mencionado no início desta exposição. Trata do exame do Processo 875/92.5:Arguido: F.M.C. 2ª Vara Criminal de Santa Cruz. Ilha da Madeira; Processo 330/04.2 JAPTM: Arguidos: J.M.D.C. e L.M.D.C. 1ª Vara Criminal de Portimão; Processo 39/10.8. JBLSB. Arguido: F.J.C.L. Círculo Judicial de Torre Vedras, e processos das Varas Criminais de Lisboa e suas respectivas conclusões O júri tem tradição no ordenamento processual penal português, uma vez que originariamente os julgamentos eram feitos pelo povo. Mais tarde pertenceram a delegados do povo. De forma que perdurou em Inglaterra, onde a França foi buscar a instituição dos jurados, como um meio de pôr um dique no poder central exercida sobre os tribunais, quando formados de empregados do Estado. O júri teve o seu período áureo no século XIX35. Este capítulo é o mais importante da tese, inobstante estar figurando como último capítulo da tese de doutoramento. O que se deve ter em vista, não é a posição topográfica, mas a importância da pesquisa, ocasião em que nos debruçamos em processos com mais de 10 volumes, de uma intensa complexidade, de modo a analisar as balizas do processo penal português, e do procedimento do Tribunal do Júri, em particular em Portugal. O ineditismo da tese repousa, sobre o exame destes três casos e outros em particular, nas Varas Criminais de Lisboa, além de fazer um amplo estudo, sobre o funcionamento dos sistemas de júris: O Tribunal do Júri clássico ou “puro”, o escabinado e o assessorado. 35 - HENRIQUES, M.Leal; SANTOS, M Simas; PINHO, D Borges D. Código de processo penal, v.1. Lisboa: Rei dos Livros, 1996, p.46. 40 Parte 1: O Tribunal do Júri “puro” e o Devido Processo Legal: Uma investigação do procedimento do ponto de vista do processo equitativo Capitulo 1. O sistema do Tribunal do Júri “puro” e sua repercussão no julgamento equitativo e na imparcialidade de suas decisões 1. O modelo do jurado “puro” no contexto de uma visão global O júri inglês não ficou confinado à sua influência, junto à sua maior colônia, os Estados Unidos. Muitos outros aspectos da sua cultura foram transportados para suas colônias na Africa, Ásia e Caribe, quando a Inglaterra construiu um império. Em outros casos, o júri Inglês foi espalhado por uma rota indireta, acompanhando a Revolução Francesa. Napoleão incluiu o júri no Código de 1808. Através das conquistas napoleônicas, outros sistemas de júri foram introduzidos em outras partes da Europa, incluindo a Bélgica, a Alemanha, Suíça, Áustria, Hungria, Sardenha, Grécia, Rússia, Espanha e Portugal, Por influência da Espanha e Portugal, os júris foram sendo introduzidas em países da América do Sul e central, como Equador, Uruguai, Paraguai e Bolívia.36 O modelo de jurado puro se encontra vigente nos Estados Unidos, Reino Unido, Suécia, Dinamarca, Noruega, Austrália e Canadá, países que atualmente assistem a decadência do júri, uma vez que de cada cem delitos cometidos nos Estados Unidos, somente dez por cento são efetivamente apreciados pelo Tribunal do Júri, devido a utilização da cláusula jury waiver (Rule 23 Federal Rules of Criminal Procedure), que trata da opção, que o acusado pode fazer em ser julgado por um Tribunal do Júri ou por um Juiz profissional, A opção pelo julgamento pelo Tribunal do Júri, não é feita nos noventa por cento restantes dos acusados37. Apesar da doutrina exaltar as condições do Tribunal do Júri, em especial, o seu declínio, verifica-se que, quando começamos o século XXI, o júri criminal aparece vivo e muito bem na Austrália, Canadá, Inglaterra e País de Gales, Irlanda do Norte, República da Irlanda, Nova Zelândia, Escócia, Estados Unidos, e em 46 outros países ao redor do globo. Por exemplo, os júris são uma parte inerente dos sistemas jurídicos em África (por exemplo, Gana, Malawi), 36 - VVAA. World Jury Systems. (Edited by Neil Vidmar).Oxford, 2000, p.152 37 - VVAA. Comentários á ley del jurado. AROCA, Juan Montero; COLOMER, Juan Luiz Gómez (coord), Madrid: Editorial Azarandi,1999, p.54. 41 Ásia (por exemplo, Sri Lanka, Hong Kong), Mediterrâneo (Gibraltar, e Malta), O Pacifico Sul (por exemplo, Tonga, e as ilhas Marshall), América do Sul (por exemplo, Guiana, Brasil) e Caribe (por exemplo, Montserrat, Barbados e Jamaica),Na Espanha e Rússia foram recentemente reintroduzidos o julgamento por júri, e no Japão, que teve um sistema de júri de 1929 até 1943, tem sido discutido sobre a possibilidade de seu revigoramento. Dinamarca, Áustria, Bélgica e Noruega têm variações sobre o júri que ainda estão ativas e sendo utilizadas.38 O desmantelamento das ditaduras socialistas em parte da Europa Oriental e Central e da União Soviética e as tentativas de construir um Estado democrático e uma economia de mercado exigiram reformas profundas dos sistemas judiciais. Um dos eventos mais surpreendentes neste contexto foi a reintrodução do julgamento pelo júri na Federação Russa em 1993. Apesar disso, o julgamento pelo júri só foi introduzido preliminarmente em 9 das subdivisões da Rússia, e em cerca de 89 subdivisões, que existe lado a lado com o tribunal, integrado por um juiz profissional e dois assessores leigos, que tinha sido introduzida por Lênin em 1917 para substituir as 12 pessoas do júri russo dos tempos czaristas. Este tribunal Leninista misto foi posteriormente adotado pela maioria dos obedientes países do bloco socialista após a conquista da Segunda Guerra Mundial.39 2. Características dos jurados no sistema da Common Law O Júri clássico (forma de participação popular na administração da Justiça) foi provavelmente importado para a Inglaterra depois da sua conquista pelos normandos, em 1066. Nessa época, ganhou corpo a denominação juror uma vez que os cidadãos, ao se reunirem para proferir um julgamento, o faziam sob juramento. A Magna Carta de 1215,do rei João sem Terra, em sua cláusula 39, já previa o direito de um homem livre ser julgado por seus pares. Em 1367 foi estabelecida a necessidade de unanimidade dos veredictos. No início, os jurados, doze como os apóstolos reunidos no dia de Pentecostes, eram selecionados em razão do conhecimento técnico específico que tivessem sobre a causa. 40 38 - VVAA. World Jury Systems. (Edited by Neil Vidmar).Oxford, 2000, p.3. 39 - CONSO, Giovanni. Séance d’ouverture/opening session, in: Le jury dans le procès penal au XXI siècle, conference internationale, Syracuse Italie, 26-29 mai, 1999, Ères, p.23. 40 - GOMES, Luiz Flávio & Ana Paula Zomer Zica.Tribunal do Júri no Direito Comparado.Revista Jurídica Consulex.São Paulo:Editora Consulex.Ano IX, nº 274, dez.2005, p.22. A mais clássica das participações leigas no Judiciário realiza-se no Tribunal do Júri. A origem moderna dessa corte remonta à criação do Common Law 42 Podemos citar como características principais dos jurados na Common Law: independência frente ao juiz, irresponsabilidade de seus integrantes, como consequência da não exigência de motivação do veredicto emitido, segredo das deliberações, unanimidade do veredicto e carácter cívico-obrigatório.41Existem ainda outras características do Tribunal do Júri do tipo “puro”: a) Os juízes são tirados do povo; b) Decidem por íntima convicção (jurados) e através do livre convencimento motivado (Juiz-Presidente); c) Tratam matérias de fato (jurados) e de direito (Juiz-Presidente); d) Há divisão de trabalho entre o jurado e o JuizPresidente; e) No Brasil, tutela o direito de liberdade, visto que se encontra no art.º 5º,XXXVIII da Constituição Federal42; f) Tem competência diversa para o julgamento de diversos crimes, no direito comparado; g) É um órgão especial da justiça comum, estadual e federal e h) É um órgão colegiado heterogêneo e temporário. Celso Ribeiro Bastos et.al. discorrendo acerca das verdadeiras características do Júri puro, afirma que, em países como o Brasil, embora o júri seja adotado desde a primeira das nossas Constituições, a instituição não foi cercada daqueles mesmos antecedentes históricos dos países de influência anglo-saxônica, ou seja, não surgiu como uma conquista popular em face dos órgãos judiciais oficiais, impondo a participação popular como corolário da aplicação da justiça e o julgamento perante os iguais como um direito individual. Enfim, o júri não apresenta aqui a mesma univocidade em torno da sua defesa nem uma coesão popular voltada à sua manutenção.43 na Inglaterra de Henrique II (1133-1189). O rei inglês instituiu o Writ chamado novel disseinsin, encarregando o Sheriff de reunir 12 homens para apresentar testemunho acerca de queixas de esbulho. O sistema de jurados veio a substituir a prática do duelo como método de julgamento. Inicialmente, na Inglaterra, a resolução dos conflitos ocorria pelo combate até a morte. Diante da barbaridade do método, o rei normando, com formação jurídica em Bolonha, impôs a apresentação de provas acerca das querelas levadas à Corte Real. Um meio de prova da época constituía-se na declaração de uma testemunha perante a Corte e, desse modo, havia uma espécie de jurado que não era um juiz de direito, mas sim uma testemunha do fato. Cf: CAMPOS, Adriana Pereira. Tribunal do Júri: a participação leiga na administração da justiça brasileira dos oitocentos, in: Diálogos entre direito e história: cidadania e justiça (org. Gladys Sabina Ribeiro et. al.). Editora da UFF, 2005, p.221. 41 - MENADAS, Salvador Vilata.Sobre el jurado:Uma análise desde uma perspectiva distinta.El derecho a juzgar y el derecho a se juzgado.Editorial Prática de Derecho, SL,2001, p.184. 42 - A doutrina é vaga no que diz respeito ao bem jurídico que é tutelado pelo Tribunal do Júri. Caso o Tribunal do Júri encerre algum direito fundamental, ou apenas um direito, deve corresponder ao de ser julgado pelo povo, por seus próprios pares. 43 - BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, v.2.São Paulo:Saraiva.1989, p.207. 43 Outra característica dos chamados júris puros é a separação das tarefas de julgamento. Como forma indissociável da separação das tarefas de julgamento (competência funcional pelo objeto do juízo), temos a existência de dois órgãos distintos, como o Grand Jury e o Petit Jury ou Trial Jury americanos, o juiz-presidente e os jurados no escabinado, e em países como a Espanha, Rússia e Brasil, o Conselho de Sentença. Desta forma, temos a separação absoluta das funções de julgar, julgando os jurados o fato, isto é, o acontecimento despido de seu aspecto judicial, tais como, crime, legitima defesa, injusta provocação, violenta emoção etc. Embora nem sempre é fácil a dissociação destas duas categorias, daí o fracasso do Tribunal do Júri, em diversos países e seu declínio na atualidade. (confira o item 8 do presente capitulo, que trata do problema da separação entre matéria de fato e de direito na tomada de decisões do Tribunal do Júri “puro”) O sigilo das votações reside no fato de decidir o jurado de forma sigilosa; não podendo após o sorteio comunicar-se com outrem, nem emitir opinião sobre o processo. Esta regra sofre mitigação no Tribunal do Júri anglo-saxão, visto que, os jurados podem deliberar entre si, sob a presidência do Foreperson. Podendo formular perguntas à testemunha; indagar sobre ponto dos autos referidos pelas partes e terminados os debates pedir esclarecimentos acerca das questões de fato. Também se encontra presente no formato das cédulas, feitas de papel opaco e facilmente dobráveis que são recolhidas de forma a assegurar o sigilo das respostas, forma de votação em regra do Tribunal do Júri “puro”. 3. O Tribunal do Júri Americano: Análise da Sexta Emenda e do direito do réu ao julgamento pelo Júri Nos Estados Unidos, o Júri veio inserido na Constituição de 17 de setembro de 1787, dispondo seu artigo III, Seção 2: “Todos os crimes, à exceção dos casos de impeachment, serão motivos de julgamento pelo Tribunal do Júri, e o processo tramitará no Estado em que o crime tenha sido cometido; quando não se suscitar a competência territorial de um Estado, o julgamento ocorrerá no lugar ou nos lugares em que o Congresso tenha estabelecido por lei”. Quatro anos mais tarde, em 1791, foi promulgada a Emenda V - tão conhecida da sociedade daquele país -, dispondo que “Ninguém poderá responder por crime capital ou infamante, exceto por denúncia ou julgamento perante um grande júri, salvo situações ocorridas em tempo de guerra, no serviço ativo do exército, da marinha ou na milícia, ou em caso de perigo público; ninguém poderá pelo mesmo delito ser duas vezes ameaçado em sua vida ou personalidade; ninguém poderá ser obrigado a testemunhar contra si mesmo em um processo 44 criminal, nem ser privado de sua vida, sua liberdade ou seus bens, sem o processo legal regular (due process of law); não será possível qualquer expropriação no interesse público sem justa autorização”.44 Também conhecido por “júri clássico”, o modelo originário da Inglaterra foi introduzido e bem aceito nas 13 colônias norte-americanas e lá mantido, quando, mais tarde, elas foram convertidas em Estados daquela Federação.45 O fato é que, nos Estados Unidos, o júri é, realmente, uma garantia fundamental do cidadão, prevista na Constituição, e que precisa ser respeitada por todas as cortes, tanto nas cortes Federais, como nas cortes Estaduais. O julgamento pelo Júri é um direito do povo americano, de modo que somente por vontade do próprio acusado é possível a realização do julgamento por um juiz monocrático, e desde que conte tal pedido com a concordância do promotor e do juiz.46 Em um sistema onde os juízes e promotores são eleitos ou nomeados pelo Poder Executivo, inexistindo concurso público de admissão, onde prevalece o sistema do direito costumeiro, mais frágil do que o princípio da reserva legal recomenda, bem como onde se privilegia a participação do cidadão leigo na administração de justiça, o júri é uma garantia que o réu tem contra a opressão eventualmente assacada contra sua pessoa por um acusador parcial, em campanha eleitoral, buscando destacar-se na mídia, ou contra um juiz, igualmente em campanha, pretendendo mostrar aos seus eleitores que é severo no combate ao crime. 44 - SILVA, Edson Pereira Belo. Tribunal do Júri. Ampliação da competência para julgar os crimes dolosos com evento morte. São Paulo:RT,2006,p.39. 45 - SILVA, Edson Pereira 1 do Júri, cit. p.39. Ao tratar do júri norte-americano, Rogério Lauria Tucci assim se manifesta: "Com essas características, e, como anota Ruy Barbosa, antes mesmo de irradiar-se no continente europeu, o júri inglês estabeleceu-se na América do Norte; tendo sido consagrado, formalmente, na Carta Régia outorgada ao primeiro grupo de imigrantes incumbidos da civilização colonial. Assim é que - complementa -, verbis: 'a patente dada, em 1629, aos colonos de Plymouth, os paes da América actual, assegurava-lhes, entre 'as livres liberdades do livre povo inglez', santificadas quase na mesma linguagem da Magna Carta quatro séculos antes, o julgamento pelo jury. Já então se reputava, entre americanos, uma das leis fundamentaes"'. Continua o autor: "E, ainda no século XVII, do mesmo modo que na Inglaterra, e antes de constituir-se nação independente, o processo do júri ali generalizou-se como 'padrão comum', abrangendo o 'julgamento geral de todas as causas"'. E conclui: "Por isso que, consagrado pela Constituição norte-americana, e, igualmente, nas dos Estados federados, os cidadãos estadunidenses continuaram e continuam tendo a instituição do júri como “o baluarte de sua liberdade”, in: TUCCI; Rogério Lauria. Tribunal do júri: origem, evolução, características e perspectivas, cit., p. 28-29). 46 - AZEVEDO, André Mauro Lacerda. Tribunal do Júri: Aspectos Constitucionais e Procedimentais.São Paulo: Verbatim, 2011,p.86. 45 Sentindo-se, pois, pressionado pela máquina estatal, pode invocar, como garantia, o julgamento pelo júri, conseguindo que seus pares decidam seu destino. Entretanto, apesar de nítida garantia, o júri americano não tem a mesma força que o tribunal popular auferiu na Constituição brasileira, pois o réu tem possibilidade de refutar esse direito, enquanto, no Brasil, a regra constitucional é irrenunciável.47 Com essas características, e, como anota Ruy Barbosa, antes mesmo de irradiar-se no continente europeu, o júri inglês estabeleceu-se na América do Norte; tendo sido consagrado, formalmente, na Carta Régia outorgada ao primeiro grupo de imigrantes incumbidos da civilização colonial. Assim é que - complementa - verbis: “a patente dada, em 1629, aos colonos de Plymouth, os paes da América actual, assegurava-lhes, entre as livres liberdades do livre povo inglez, santificadas quase na mesma linguagem da Magna Carta quatro séculos antes, o julgamento pelo jury. Já então se reputava, entre americanos, uma das leis fundamentais”. Continua o autor: “Ainda no século XVII, do mesmo modo que na Inglaterra, e antes de constituir-se nação independente, o processo do júri ali generalizou-se como 'padrão comum', abrangendo o julgamento geral de todas as causas"'. E conclui: "Por isso que, consagrado pela Constituição norte-americana, e, igualmente, nas dos Estados federados, os cidadãos estadunidenses continuaram e continuam tendo a instituição do júri como o baluarte de sua liberdade.48 A característica mais marcante do sistema processual nos EE.UU é o processamento de causas cíveis e penais perante o Tribunal do Júri. 49Os juízes togados exercem a função de direção dos debates, moderação dos interrogatórios e a decisão das questões de direito, presidindo a seção na função de guardião dos direitos consagrados nas emendas constitucionais norte-americanas, pois o princípio acusatório puro rege o processo penal nos EUA, cabendo ao Ministério Público, exclusivamente, o ônus da prova de que existem indícios de criminalidade contra o acusado em igualdade de condições perante a defesa técnica.50No processo penal americano, o Ministério Público (prosecutor) tem papel preponderante, pois o júri, onde atua, é uma das garantias do Due process of law.51 47 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri. Princípios Constitucionais, cit., p.72. 48 - VV.AA. The Juri and democracy. How jury deliberation. Promotes civic angagement and political participation. Oxford, 2010, p.6 49 - BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Introdução de Roberto Lyra, in: Revista brasileira de criminologia. Rio de Janeiro, a. 3 n. 8 (jul. Set. 1949), p. 27. 50 - MÍNGUEZ, Elisabeth Cardona. El Jurado: su tratamiento em El Derecho Procesal Español. Madrid: Dykinson. 2000, p.81. 46 As partes mesmo em matéria civil têm o direito a um julgamento justo, preciso e oportuno, perante o júri, em conformidade com a lei. Em matéria civil o direito de julgamento por júri pode ser dispensada nos termos da legislação aplicável, mas a dispensa não deve ser presumida, nem exigida quando os interesses da justiça exigem o contrário. No que diz respeito aos processos penais: 1. A renúncia do acusado ao direito de julgamento por júri deve ser voluntária, e aceita pelo procurador e pelo tribunal. 2. O tribunal não deve aceitar uma renúncia a menos que o acusado, após ser aconselhado por um tribunal de seu direito a um julgamento por júri e as consequências de sua renúncia, pessoalmente, renuncia ao direito de julgamento pelo júri por escrito ou em audiência pública sobre o registro. 3. O acusado não pode se retratar de uma renúncia voluntária, por uma questão de direito, mas o tribunal, a seu critério, poderá permitir a retirada da renúncia, antes do início do julgamento. 4. Um acusado pode retirar uma renúncia de júri, bem como o procurador pode retirar seu consentimento acerca de uma renúncia, tanto por uma questão de direito, se há uma mudança de juiz na direção do julgamento.52 Tratado no art.º 3º, Secção II, item 3, da Constituição de 1787, o júri acabou sendo consagrado no sistema daquele país, com asseguração de que todo acusado, em processos criminais, tem direito ao julgamento pelo tribunal popular e imparcial do local onde o crime foi cometido.53 A participação cidadã que se produz no direito na administração da justiça dos Estados Unidos se dá através do Grand Jury, com função de instrução e admissibilidade da acusação e o Petty Jury, como juiz julgador. Ambos se constituem por membros leigos, cuja seleção parte de listas eleitorais, e cuja nomeação se chega através de vários sorteios. Suas funções são distintas: o Grand Jury, onde o jurado de acusação estuda a acusação que se formula e declara a admissibilidade do procedimento posterior, que se dará perante o pequeno júri (Petty Jury), o jurado de classificação, a quem competirá o julgamento definitivo da causa.54 51 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris.2009, p.50. 52 - REFO, Patricia Lee. Principles for Juries and Jury Trials. 2005: American Bar Association, p.3. 53 - VV.AA. Criminal Justice: Introducion to the criminal justice system in England and Wales.London & New York: Longman, 1995, p.189. 54 - LOPEZ,Pastor. El processo penal ingles (estudo comparativo de suas directrizes fundamentais). Madri: RDP,1967,I,p 85 e ss. 47 Nos Estados Unidos a instituição constitui de resto um direito fundamental do cidadão, consagrado na Emenda VI da Constituição de 25 de Setembro de 1789, pois aí consta o direito do réu a ser julgado por um Júri imparcial, texto importado da Inglaterra. A V Emenda reconhece necessidade da acusação por parte do Grand Jury nos casos de delito capital ou outro infamante, sendo que o Grand Jury somente se aplica nos processos criminais e não nos cíveis. O Grand Jury é chamado de escudo e espada. Escudo, por significar uma garantia posta entre o acusador e o acusado, protegendo este contra a persecução penal opressiva e infundada, e de espada, porque pode atuar como órgão de investigação contra um suspeito. A VI Emenda estabelece que todos os acusados têm direito a um julgamento público e rápido, por meio de um jurado imparcial e selecionado no Estado e no Distrito onde o delito foi cometido, distrito este que será previamente estabelecido por lei; direito de ser informado da plenitude da acusação e de ser julgado pelos seus vizinhos, ou seja, julgado entre seus pares.55 A tradição do julgamento pelo júri deriva de um momento, em que um júri de pares é um órgão composto de moradores da comunidade geográfica onde o réu resida e onde o alegado crime foi cometido. Seus semelhantes padrões morais e sociais foram assumidos como os critérios que iram trazer para os tribunais, o critério para julgar os seus cidadãos. No direito inglês, pelo menos em teoria, o homem nas ruas de Londres tornou-se um jurado prototípico, isto é, um sujeito honesto que estava pensativo em suas considerações e o mais decididamente imparcial. Nos Estados Unidos, ele era o pequeno proprietário rural, artesão, o senhor do comércio e finanças. Contudo, não houve esforço para incluir membros de diferentes grupos raciais e étnicos, das classes socioeconômicas, e as mulheres eram consideradas incapazes de cumprir os deveres de cidadania. No entanto, o conceito de um júri através de seus pares mudou. O júri imparcial solicitado na Sexta Emenda da Constituição dos Estados Unidos é agora interpretado como um júri, que reflete o preconceito racial, de classe, étnicas, de gênero e composição da comunidade.56 Nos Estados Unidos da América do Norte, e como desenvolvimento do artigo III da sua Constituição, a maioria das causas criminais é apreciada por um júri de doze membros, número este que pode reduzir-se a pedido do acusado. Os Juízes dos “Tribunais” ou “Julgados” do Distrito, dos “Tribunais de Apelação” e do “Supremo Tribunal” são nomeados 55 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica,cit., p.50. 56 - LITAN, Robert E.Verdict. The Brookings insitution. Washigton DC, 2003, p.142. 48 pelo Presidente dos Estados Unidos, com o parecer e o assentimento do “Senado”, estabelecendo-se, por esta forma, um sistema de eleição popular indireta dos juízes.57 Apesar de ter demorado quase dois séculos, a fim de garantir este direito no direito constitucional americano, a Suprema Corte americana agora reconhece os direitos dos cidadãos habilitados a participar nesta experiência poderosa. Em 1991, Powers v. Ohio completou uma longa lista de casos que remontam à era de reconstrução pós-guerra civil, que não estabeleceu apenas os direitos dos acusados para estarem diante de um júri, retirados da comunidade plena, mas também os direitos dos indivíduos para servir como jurados.58 Podemos dizer, acerca da estrutura do Poder Judiciário americano, que os tribunais norte-americanos não estão compreendidos em uma única estrutura judiciária ou governamental, não existindo uma única entidade que possa ser designada como o sistema judiciário norte-americano. Ao invés, existem múltiplas fontes para o direito americano. Os tribunais de um sistema são muitas vezes instados a aplicar e interpretar o direito gerado por outro sistema. Ademais ocorre frequentemente, a concorrência de jurisdição de dois ou mais sistemas sobre um mesmo caso. Estas e outras circunstâncias, afirma o autor, combina-se para compor a ordem jurídica extraordinariamente complicada dos Estados Unidos da América. 59 Nos Estados Unidos, tanto o governo federal como os governos estaduais têm autoridade para processar e julgar crimes. O governo federal possui suas próprias leis penais, seu sistema judiciário, seu corpo de juízes, promotores e defensores públicos e suas próprias agências de investigação policial. O mesmo se dá a nível estadual com a peculiaridade de que cada estado é autônomo para criar seu próprio sistema e suas próprias leis. Diante desta autonomia dos 50 estados federados, estes podem ser observados como 50 diferentes laboratórios. O National Institute of Justice foi criado diante da preocupação do governo federal com a enorme disparidade entre os estados mais ricos e aqueles com menos recursos. O Instituto observa as realidades locais, toma conhecimento de programas que apresentam resultados positivos, sugere o desenvolvimento de programas semelhantes em outros estados com realidades semelhantes. Pode-se dizer que os pesquisadores e observadores têm uma 57 58 - VV.AA. Grand Jury Law and practice.seconde Edition.V.2 Tomson West, 2010, p.141. -VV.AA. The Juri and democracy. How jury deliberation. Promotes civic angagement and political participation. Oxford, 2010, p.6. 59 - MEADOR, Daniel John. Os Tribunais nos Estados Unidos. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.West Publishing co.1996, p.7 49 visão panorâmica da realidade nacional, o que os capacita a fornecer informações preciosas que, de outra forma, não atingiriam aqueles estados mais pobres.60 A instituição do júri, entretanto, enquanto locus processual privilegiado do direito inglês foi extremamente bem-sucedida em terra americana. Desde a época colonial, o julgamento, pelo júri foi amplamente incorporado às práticas judiciárias da nação emergente. A privação, em muitos casos, dos benefícios do julgamento pelo Júri, foi um dos consideranda invocados por Jefferson, na Declaração de Independência, para justificar o rompimento da submissão política aos soberanos britânicos. 61 Neste país, o realismo sociológico definiu o estatuto teórico que tornou filosoficamente aceitável o sistema da Commom Law, com o seu o seu governo, pelos juízes e através do povo, em que direito e sociedade estão cotidianamente renovando sua seiva e alimentando-se mutuamente. Já as características da tradição política do povo americano, possibilitaram o surgimento de um espírito cívico e de uma consciência jurídica comum, que tornam materialmente exequível o júri como regra e não a exceção.62 No sistema jurídico americano, a instituição do Júri, foi arraigada e configurada. A importância destes tribunais nos Estados Unidos provém da importância que historicamente tiveram como cidadãos no processo de independência entre as colônias e a metrópole 60 - OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de Oliveira. A política criminal nos Estados Unidos da America-notas de viagem, in: Revista brasileira de ciências criminais, nº19, p.79. 61 - LOPES, Maurício António Ribeiro, em seu artigo, Do sigilo e da incomunicabilidade no júri: comentários, crítica, jurisprudência, aproximação ao direito norte-americano, proposições, in:TUCCI, Rogério Lauria (Coord.) Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição brasileira, cit., p. 283), lembra que “a garantia essencial do júri no sistema norte-americano existe desde a Declaração de Direito do Bom Povo de Virgínia, de 12 de junho de 1776, onde se acha, no nº VIII, que em todo processo criminal, incluídos aqueles em que se pede a pena capital, o acusado tem direito de saber a causa e a natureza da acusação, ser acareado com seus acusadores e testemunhas, pedir provas em seu favor e ser julgado, rapidamente, por um júri imparcial de doze homens de sua comunidade, sem o consentimento unânime dos quais, não se poderá considerá-lo culpado”; [...]"'. 62 - ARAÚJO, Nádia de & ALMEIDA, E. Ricardo. O tribunal do júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4, nº 15, Julho-setembro, 1995, p.209. A garantia de um julgamento justo (que inclui a publicidade) merece toda a Sexta emenda: “ln all criminal procecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the State and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation, to be confronted with the wimesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the Assistance of Consel for his defense” 50 (Londres), onde desempenhou um importante papel como elemento de oposição a Justiça real da coroa inglesa.63 4. O Tribunal do Júri Inglês: Sistema, forma de funcionamento e declínio O júri inglês na sua forma moderna compreende um sistema bifurcado, em que a validade das fontes de cognição é sindicada no quadro da controvérsia entre as partes contrapostas, pelo tribunal na sua composição técnica (o juiz presidente e os tribunais de recurso), enquanto a valoração é objeto do processo deliberativo do júri. O sistema inglês e de um modo geral os países de “Common law”, não têm jurisdição de instrução e desconhecem uma instituição com as características do Ministério Público europeu continental. A fase preparatória do processo, ou aquilo que lhe corresponde, compete só às polícias.64 Na Inglaterra, existe para uma designação de juízes, uma seleção e eleição, entre profissionais do direito e também entre leigos sem preparação jurídica alguma, para o exercício de profissão de julgar, que, dentro do sistema democrático burguês, representa uma lógica mais próxima do ideal de urna democracia (de modelo burguês) que os sistemas de seleção dos juízes nos países latinos e de influência jurídica romanística, Só que de tal sistema resultaram juízes fortemente integrados na classe burguesa (Os juízes leigos são assistidos por um assessor advogado, que os elucida em questões de direito). Mesmo assim, o direito inglês conhece diferentes categorias de júris. Suficientemente numerosas. As listas de jurados são constituídas, pelos funcionários da administração local, entre homens e mulheres que reúnem certas condições. Tais listas são apresentadas aos Tribunais, no começo das suas sessões, delas se recolhendo, por ordem, as pessoas que hão-de formar o júri, cuja função é obrigatória. Portanto, há diferentes categorias de júris. Assim, em assuntos penais, funciona o “Grande Júri do Condado” (obsoleto depois da nova regulamentação da “Justiça de Paz”), que se reúne para formular acusações contra aqueles que tenham sido processados pelos “juízes de paz” ou, pelo contrário, para rejeitar a acusação, se a consideram infundada. Também 63 - AVANZINI, Alfredo. El reclutamento dei giurati nei paisi di Common law, in: I giudice senza toga.esperienze e prospecttive della partezipazione popolore ai giudici penali.Cord.E.Amodio.Guiffré. Milan, 1979, p.267. 64 - MOURA, José Souto de Moura. Inquérito e instrução. Jornadas de Direito Processual Penal. Almedina, 1989, pág. 86. 51 funciona o “Pequeno Júri”, aquele que, sob a direção do Juiz, profere os veredictos de culpabilidade ou inocência, nos delitos graves. Para que seja condenatório, exige-se unanimidade. Caso esta não seja obtida, entende-se declarada a não culpabilidade e, concretamente, a absolvição, podendo o acusado ser submetido a novo julgamento, em outra reunião do júri, pelos mesmos factos. Em matéria cível, quando a resolução leve implica uma acusação de carácter moral contra qualquer das partes, esta pode pedir, quando o deseje, o veredicto de um júri, que funciona da mesma forma que no domínio penal.65 Foram criados o Grand Jury, com um grande número de cidadãos e o pequeno júri (petit or trial jury) com 12 cidadãos. O júri tem uma longa história na Inglaterra e País de Gales. O sistema de júri foi desenvolvido há longos séculos, e sobreviveram aos dias atuais. O júri, composto por 12 jurados, que julgam apenas crimes graves, quando o réu não admite a culpa de um determinado crime, que lhe é imputado. Os casos de competência do júri são julgados em um Tribunal da Coroa, que também lida com decisões, através de um Tribunal de Magistrados em recurso. No Tribunal de Apelações este magistrados são presidido por um juiz profissional da Crown Court.66 Na Inglaterra, as funções de governo, são realizadas pelo primeiro-ministro e os ministros do gabinete, que geralmente são membros do Parlamento. Assim, neste país, há muito pouco da separação legal de poderes entre as funções legislativa e executiva como se opera nos Estados Unidos. Desde o Act of Settlement de 1700, que teve o poder de nomear juízes sem a intervenção do rei, a Inglaterra teve um Judiciário independente, com o Parlamento mantendo o poder de remover de juízes.67 4.1. O declínio do Tribunal do Júri inglês O Júri é usado no Tribunal da Coroa (Crown Court). 68 Não há júri em tribunais dos magistrados, que julgam cerca de 98% dos casos criminais. O júri é usado assim 65 66 - INGMAN, Terence. The english legal process. 7. ed. - [London]: Blackstone Press Limited, p.190. - MALSCHE, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in Europan criminal justice systems. Ashgate, 2004, p.39. 67 - FAIRCHILD, Erika S. Comparative Criminal Justice Systems. California: Wadsworth Publishing Company, 2005, p.46. 68 - A Crown Court é formada pelos jurados e pode ser integrada por juízes do Tribunal Superior de Justiça ou juízes da circunscrição, ou por recordes (advogados que atuam como juízes auxiliares), que exercerão a função 52 (teoricamente) em apenas 2% do casos penais, que tenham competência no Tribunal da Coroa. Na prática, no entanto, o júri é utilizado até mesmo menos que isso (cerca de 0,7 por cento dos processos penais), pois 63 % dos réus no Tribunal da Coroa se declaram culpados e não precisam de um julgamento com júri.69 As causas cíveis podem ser julgadas nos tribunais do condado, através de um júri de oito a 12 pessoas70 estando atualmente o julgamento por júri praticamente obsoleto nestes casos. O Tribunal de doze pessoas julgam causas relacionadas ao direito de família, sendo que o julgamento pelo júri, nestes casos, também é obsoleto. No âmbito cível, um júri é usado em, talvez, apenas 1% de todos os casos. A utilização do júri em processos cíveis diminuiu consideravelmente nos últimos 135 anos. Antes de 1854 os casos julgados nos tribunais da commom law eram julgados pelo júri. Contudo, uma lei de 1854(Common Law Procedure act 1.854) estabeleceu que as ações que poderiam ser julgadas pelo júri, deveriam ser previamente acordadas pelas partes. Houve um declínio, ainda maior, após a reorganização da estrutura dos tribunais efetuada pela lei Judicature acts em 1875.A Section 6 of the administration of justice (Miscellaneus provisions) Act 1933 reduziu severamente o uso do júri em processos cíveis. As disposições da Lei de 1933 foram revogadas e substituídas pelo Supremo Court Act 1981, S. 69, estabelece que existe um direito a um julgamento por júri apenas quando há crimes de fraude, e nos pedidos de calúnia, difamação, acusação maliciosa ou cárcere privado. Atualmente, contudo, uma disposição na S. 66 cat 1984, circunscreveu as ações do júri aos crimes de difamação. No âmbito criminal, onde o júri ganhou as feições que se conhecem hoje, o Tribunal do Júri é responsável por apenas 1 a 2% dos casos criminais, desde que houve a abolição do chamado Grand Jury em 1933, pela Administration of Justice Act (miscellaneos Provisius), e suas funções foram assumidas pelos Magistrates' Court.cuja história remonta às origens do de árbitros do litígio, in: HENDLER, Edmundo S. Sistemas procesales penales comparados. ADHOC, 1996, p. 289. 69 - (Judicial Estatísticas} 994, Cm 2891, 1995, p. 67). Se a audiência preliminar não é realizada, o juiz procede à identificação do imputado (arraignment) e lê para ele a acusação formal (indictment).Assim, da mesma forma que nos Estados Unidos, há a possibilidade do acusado realizar uma espécie de acordo, uma vez que, se o acusado se declara culpável (guilty), não haverá julgamento pelo Tribunal do Júri, sendo que o processo se reduz ao mínimo (cracked trial). Destarte, a acusação apresentará um resumo das provas coligidas, juntamente com os dados referentes aos antecedentes do indivíduo, e a defesa apresentará as atenuantes pertinentes. O juiz da Crown Court fixará a pena que entender cabível. 70 - County Courts Act de 1984, S5. 66 e 67 53 Common Law na própria Inglaterra.71Apesar do percentual baixo de julgamentos, a Royal Commission Justiçe de 1993, não recomendou a extinção do Tribunal do Júri.72 Deve ficar claro, no entanto, que há um grupo muito pequeno de casos em que ainda é possível ter um Júri na Inglaterra. Estes incluem assuntos como a acusação de fraude, ou crime de calúnia, difamação, denunciação caluniosa, cárcere privado, sedução, ou quebra de promessa de casamento. Estes podem ser julgados por um júri, a menos que o juiz, forneça uma opinião que o julgamento, em tal caso seria necessário um exame prolongado de pericias, ou de qualquer investigação científica ou locais que não podem ser convenientemente feita com um júri; em tal situação seria, então, que ser julgado por um juiz sozinho. Mas, mesmo quando isto não é verdade, a decisão de ter ou não ter um júri, está dentro do critério do tribunal, e não é uma questão de direito absoluto para as partes. É interessante notar que os tipos de casos que poderiam ter um júri, visivelmente não incluem ações de danos por lesões pessoais. Esse é o tipo de ação judicial que está emperrando os tribunais norte-americanos e, muitas vezes atrasando a justiça até cinco ou seis anos. Não há atrasos comparáveis em tribunais britânicos e os juízes não têm a mesma situação existente nos Estados Unidos.73 71 - VV.AA. Processos Penais da Europa. Organizado por Mireille Marty-Delmas, artigo de J.R. Spencer, O Sistema Inglês, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris,2005,p.383. 72 - VV.AA. Criminal Justice: Introducion to the criminal justice system in England and Wales.London & New York: Longman, 1995, p.186. Mediante a Lei de Procedimentos e Investigações Criminais de 1996, deve ser designada uma audiência preliminar (Plea and Directions hearing) para os casos complexos, destinada a requerer do imputado sua declaração de culpabilidade ou inocência e a obter das partes a identificação dos pontos fundamentais do caso. Assim, temos que tal audiência serve para tentar, na verdade, realizar uma forma de julgamento sumário, mediante confissão do acusado, ou, em caso contrário, a prolação de verdadeiro despacho saneador. A designação dessa audiência, contudo, não é obrigatória in: HENDLER, Edmundo S. Sistemas procesales penales comparados.ADHOC,1996, p. 287. Se a audiência preliminar não é realizada, o juiz procede à identificação do imputado (arraignment) e lê para ele a acusação formal (indictment).Assim, da mesma forma que nos Estados Unidos, há a possibilidade de o acusado realizar uma espécie de acordo, uma vez que, se o acusado se declara culpável (guilty), não haverá julgamento pelo Tribunal do Júri, sendo que o processo se reduz ao mínimo (cracked trial). Destarte, a acusação apresentará um resumo das provas coligidas, juntamente com os dados referentes aos antecedentes do indivíduo, e a defesa apresentará as atenuantes pertinentes. O juiz da Crown Court fixará a pena que entender cabível Se o imputado não se declara culpável (not guilty), será então designado julgamento. Se a infração for de competência exclusiva do Tribunal do Júri, como os delitos mais graves (homicídio, estupro), não há opção para o acusado: ele será submetido a julgamento perante o Tribunal Popular. 73 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice, cit., p 51. 54 O litigante na Inglaterra de hoje, não tem um direito absoluto a um júri. Este direito formal, com efeito, finalmente desapareceu com o a resolução de uma ato da Administração da Justiça em 1933(Administration of justice act in 1933). O relatório do Comitê, Inglês para Negócios dos Tribunais, publicado em 1933, está assim redigido: Não temos dúvida de que o atual sistema [de júris] leva a um aumento das despesas de tempo no julgamento de ações civis, e à imposição sobre os jurados de um fardo considerável. Também tem sido discutido com muita propriedade que o resultado de um julgamento com um júri é mais incerto do que a de um julgamento por um juiz singular e que há sérios riscos de desacordo que pode levar a um novo julgamento, e que implicam grandes gastos. Há também o risco de que o juiz pode desorientar o júri, caso em que, depois de um apelo com seu custo de atendimento, há um julgamento novo. Deve ser lembrado que esta oposição aos júris em Grã-Bretanha desenvolveu mesmo que o sistema tem muitos pontos fortes, em seu favor do que a sua homóloga americana. Por exemplo, o juiz tem um controle muito maior do seu tribunal e à nomeação de seus júris. 5. O Tribunal do Júri no Brasil e a influência do sistema inglês na adoção do sistema puro Conforme Gilmar Ferreira Mendes, et.al. no Brasil, o Júri surge no Direito brasileiro com o Decreto Imperial de 18/06/1822 e destinava-se exclusivamente a julgar os crimes de imprensa. Esse Júri seria composto por 24 jurados, autorizando-se a recusa de 16 nomes e compondo-se o conselho de jurados com 8 nomes. Posteriormente, foi instituído o Júri de acusação (Lei de 20/09/1830). O Código de Processo Criminal, de 29/11/1832, ampliou a competência do Tribunal do Júri. Essa ampliação de competência seria revista pela Lei n. 261, de 03/12/1841, tendo o Regulamento nº 120, de 31/01/1842, suprimido o Júri de acusação. O Decreto nº 707, de 09/10/1850 excluiu do âmbito do Júri o julgamento dos crimes de roubo, homicídios praticados em municípios de fronteira do Império, moeda falsa, resistência e tirada de presos. A Lei nº 2.033, de 1871, voltou a ampliar a competência do Júri. Na República, o Decreto n. 848, de 11/10/1890, que organizou a Justiça Federal, previu expressamente o Júri federal.74 O Tribunal do Júri sempre teve matiz e competência constitucional, indicando a preferência do legislador constituinte pela Justiça do Tribunal do Júri. 74 - VV.AA. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 624. 55 No Brasil, é consenso que foi o Júri instituído pela Lei de 18 de julho de 1822, que fixou sua competência relativamente apenas aos crimes de imprensa. Era ele então, composto por 24 juízes de fato, cidadãos selecionados "dentre homens bons, honrados, inteligentes e patriotas", e do seu pronunciamento cabia apelação para o Príncipe. As demais Constituições, à exceção da Constituição de 1937, incluíram a instituição como direito e garantia individual, por influência de Ruy Barbosa, grande admirador da instituição, assim permanecendo até os dias atuais. O Brasil ainda era uma colônia portuguesa, quando o príncipe regente D. Pedro de Alcântara, por influência de José Bonifácio de Andrade e Silva, introduziu o Júri no Brasil através da Lei de 18 de Junho de 1882. Esta se dirigia à liberdade de imprensa e o tribunal, composto por 24 jurados, julgava a matéria de fato. Dos 24 jurados, os réus podiam recusar dezesseis e os oito restantes compunham o conselho de julgamento.75 No seu preâmbulo, afirmava o príncipe que, “procurando ligar a bondade, a justiça e a solução pública sem ofender, a liberdade bem entendida da imprensa, que desejo sustentar e conservar, e que tantos bens têm feito à causa sagrada da liberdade brasileira... As leis antigas e semelhantes ao respeito são muito duras e impróprias das ideias liberais dos tempos que vivemos os juízes de direito regular-se-á, para imposição da pena, pelos artigos 12 e 13 do título 11 do decreto e das Cortes de Lisboa, de 4 de Junho de 1821, que mando nesta última parte aplicar no Brasil. Os réus só podem apelar para a minha real clemência.”76 A criação do Tribunal do Júri coube ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigindo-se, em 04/02/1822, ao Príncipe Regente D. Pedro, para sugerir-lhe a criação de um "juízo de Jurados". A sugestão, atendida em 18 de junho, por legislação que criou os “Juízes de Fato”, tinha a competência restrita aos delitos de imprensa77. A nomeação desses juízes vinte e quatro homens bons, honrados, inteligentes e patriotas - competia ao Corregedor e aos Ouvidores do crime. Da sentença dos “Juízes de Fato” cabia somente o recurso de apelação direta ao Príncipe. Promulgada a Constituição Política do Império, em 25 de março, de 1824, 75 - AZEVEDO, Franco Ary. O Júri e a constituição federal de 1946. (comentários à lei nº 263,de 23 de fevereiro de 1984). 2. Ed. Rio de Janeiro: Revista Forense,1956, p. 11 76 - MENDES, João. O processo criminal brasileiro, v.1, 2. Ed., aumentada, Ed. Livraria Francisco Alves, 1911, p.144, n. 112. 77 - A idealização do Tribunal do Júri, para os julgamentos dos delitos de imprensa, teria como motivação a uma carta injuriosa publicada com as inicias RPB no Diário Fluminense, dirigida a Francisco Alberto Ferreira de Aragão, então Intendente-Geral de Polícia da Corte. Cf.: Whitaker. F., apud MARQUES, José Frederico. A instituição do Júri. Bookseller, 1977, p37. 56 veio o Tribunal do Júri a ser novamente consagrado, na parte relativa ao Poder Judiciário (artigos 151 e 152), ganhando competência para todas as infrações penais e ainda para fatos civis. Posteriormente, a Lei de 20/09/1830 organizou o Júri de forma mais específica, prevendo o “Júri de Acusação” e o “Júri de Julgação”.78 O Tribunal do Júri reuniu-se pela primeira vez a 25 de junho de 1825 no Rio de Janeiro. Após a independência ter sido proclamada a 7 de setembro de 1822, o júri continuou a fazer parte integrante da Constituição Imperial de 25 de março de 1824, constando dos seus artigos 151 e 152. Previa a sua atuação no julgamento de matéria de fato em questões criminais ou cíveis. Mais uma vez comprovando a inspiração francamente inglesa do tribunal popular, a lei de 20 de setembro de 1830, que tratava sobre o abuso da liberdade de imprensa, criou o Júri de acusação e o Júri de julgamento. Cabia ao primeiro (artigos. 20 a 23) julgar a admissibilidade da acusação. Após ouvir a acusação e a defesa, bem como testemunhas, se fosse o caso, e tomar ciência das provas, o conselho de jurados se reunia a portas fechadas para decidir, por maioria absoluta, se "achou ou não achou matéria para acusação" (art.º. 21). O passo seguinte era reunir o Júri de julgamento para, ouvindo as alegações das partes, colhido as provas e respondendo aos quesitos elaborados pelo juiz de direito, deliberar em sala secreta, por maioria absoluta, acerca da culpa do réu (artigos 24 a 36).79 De acordo com Santi Romano, o fenômeno da transmigração de um direito para além do seu país de origem não deve, sobretudo, ser confundido com outro, não menos interessante, através do qual, em países que apresentam contemporaneamente ou mesmo à distância de muitos séculos, semelhanças de condições e de desenvolvimento social, surgem, espontaneamente, instituições análogas. Substancialmente diverso é o fenômeno da transmigração ou propagação do direito, que se dá por inúmeras causas que podem ser reduzidas a duas: a) a conquista ou a colonização, que impõe ao país conquistado ou colonizado a ordenação do Estado conquistador ou da metrópole, salvo oportunas adaptações; b) a livre adoção por parte de um Estado das instituições de um outro, verificando-se aquilo que Emerico Amari dizia, com feliz expressão, 'contagiosidade do direito'.80 Esta tese é confirmada, inclusive pela doutrina inglesa, que o desenvolvimento histórico na Inglaterra também teve importantes efeitos sobre os sistemas legais e 78 - TUBENCHLAK, James. Tribunal do Júri: Contradições e soluções. Rio de Janeiro: Forense. 1990, p. 5. 79 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri. Princípios constitucionais, cit., p. 37. 80 - ROMANO, Sainti. Princípios de direito constitucional. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: RT, 1977, p. 45. 57 constitucionais. A ascensão do Império Britânico resultou na exportação da lei Inglesa para as colônias. Esta exportação levou ao pluralismo jurídico, que é a mistura de mais de um sistema da lei dentro de um determinado país ou seção de um país. As colônias inglesas mantiveram muitas das suas leis consuetudinárias e processos de resolução de litígios, enquanto os tribunais de estilo inglês passaram a lidar com grandes crimes e matérias cíveis.81 A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 dispunha em seu artigo 151 (verbis), que “o Poder Judicial independente, e será composto de Juízes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Cível, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem” (ipsi literis). A Constituição de 1824 colocava os jurados como integrantes do Poder Judiciário com competência (territorial) tanto no cível como no crime, e lhes dava competência para decidirem sobre o fato e aos juízes para aplicarem a lei (cf. artigos 151 e 152 da Constituição de 1824).82 Como forma indissociável da separação das tarefas de julgamento (competência funcional pelo objeto do juízo), previa o art.º. 152 da referida Carta política (verbis), “que os Jurados deveriam se pronunciar sobre o facto, e os Juízes aplicam a Lei”. Já se delineava a separação absoluta das funções de julgar, decidindo os jurados o fato, isto é, o acontecimento despido de seu aspecto judicial, tais como, crime, legitima defesa, injusta provocação, violenta emoção etc., embora nem sempre seja fácil a dissociação destas duas categorias, daí o fracasso do Tribunal do Júri, em diversos países e seu declínio na atualidade. A Lei 261/1841, regulada pelo Decreto 120/1842, veio restringir a atuação do Júri, já que aboliu o primeiro Conselho de Jurados e retirou-lhe a competência para o processo e julgamento dos crimes de contrabando e dos funcionais, determinando que a indenização fosse pedida através de ação cível. Esta medida causou grandes relações públicas, mas somente trinta anos depois, pela Lei n° 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulada pelo Decreto n° 4.824, de 22 de novembro desse ano, o Júri voltou a ter as prerrogativas anteriores, cabendo-lhe toda a competência criminal.83 Com a proclamação da República, o Júri foi mantido no Brasil. O Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, criou o Júri federal (capítulo IX), determinando, no art.º. 40, que "os crimes sujeitos à jurisdição federal serão julgados pelo Jury". A Lei n. 515, de 3 de novembro de 1898, alterando a competência do Júri federal, retirou-lhe a possibilidade de apreciar os 81 - FAIRCHILD, Erika S. Comparative criminal justice systems. California: Wadsworth Publishing Company, 2005, p. 46. 82 83 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica, cit., p. 63. - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no tribunal: da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Hugin, 2000, p. 60. 58 delitos de moeda falsa, contrabando, peculato, falsificação de estampilhas, selos, adesivos, vales postais e outros. O Decreto n. 4.780, de 27 de dezembro de 1923, outra vez restringiu a atividade do Júri, retirando-lhe também o julgamento dos crimes de violação do sigilo de correspondência, desacato e desobediência, testemunho falso, prevaricação, resistência, tirada de preso do poder da justiça federal, falta de exação no cumprimento do dever, irregularidade de comportamento, peita, concussão, estelionato, roubo, furto, dano e incêndio, quando “incidirem na competência da Justiça Federal” (art.º. 40).84 A instituição do júri, ante a qual recuou a própria reação de 1841, atravessou incólume a história imperial. Expedindo o decreto nº 1030, de 14 de novembro de 1890, que organizou a justiça no distrito federal, precedeu-o o Dr. Campos Sales de uma sólida exposição de motivos, onde se consubstancia e sintetiza o sistema, que animava e modelava a sua reforma. Nesse trabalho, procurando imprimir todo o relevo aos caracteres, um dos pontos, que teve especialmente em mira o ministro da justiça foi acentuar que o ato do governo provisório não desfalcava os direitos adquiridos pela população às antigas instituições protetoras da liberdade em vez de lhes reduzir a área de ação.85 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, na seção II, coloca pela primeira vez o Tribunal do Júri, como um direito fundamental, uma vez que a instituição irá figurar na Declaração de Direitos, mais precisamente no art.º. 72, que dispunha que a Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, assegurando no § 31, a manutenção da instituição do Júri. Essa redação levou João Mendes Júnior a afirmar que a Constituição quis manter a instituição do Júri, tanto para a jurisdição federal como para as jurisdições estaduais, tal como estava no tempo do Império. Assim, os Estados, desde que mantivessem as formas da instituição e as formas da Constituição, podiam, quanto às formas assistentes, ou simplesmente regulamentares, fazer alterações.86 Ruy Barbosa, por seu turno, assevera que a atenção do intérprete deve fixar-se na expressão “manter”, aqui excepcionalmente empregada pelos autores da Constituição. Manter é conservar o que está em condições que lhe não alterem a identidade. O legislador, nesta parte, não se limita a assegurar a instituição do Júri, à semelhança do que faz em relação a outras garantias liberais: manda respeitá-la na situação em que a encontrou. Isto é, não contente de lhe afiançar a existência, 84 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri. Princípios constitucionais, cit., p. 38. 85 - BARBOSA, Rui. O Júri sob todos os aspectos, cit.,p. 47. 86 - ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes. O processo criminal brasileiro. 4. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. II, p. 379. 59 caracteriza-o, prorrogando a duração da entidade preexistente. Essa cláusula tem, portanto, o duplo valor de uma garantia e uma definição. Resolvem continuar as formas tutelares do Júri, tais quais as fixara o uso nacional, apoiado no das outras nações.87 Discorre ainda, com magnitude, o ilustre jurista baiano, que a palavra adotada nesse texto significa o apreço extraordinário, que, entre todas as formas protetoras da liberdade, merecia aos constituintes esse tribunal. Ela não fossiliza o Júri, cerrando-o hermeticamente a alterações acessórias, que possam melhorá-lo, fortalecendo-lhe e aprimorando-lhe as virtudes: melhorá-lo na direção das suas qualidades essenciais. É, sem dúvida, conservá-lo. Não obsta de modo inflexível a inovação, que, sob o nome de reforma, o modifiquem organicamente, moldando-lhes as feições características, e interessando-lhe os elementos substanciais.88 Mais tarde, o Código de Processo Criminal do Império, de 1832, ampliou consideravelmente as atribuições do júri, criando dois Conselhos: o Júri de Acusação e o Júri de Sentença, formados por eleitores de "reconhecido bom senso e probidade". A ele se sucederam a Lei 261, de 03/12/1841, e o Regulamento 120, de 31/01/1884, que alteraram a organização judiciária, inclusive a do Júri, extinguindo o Júri de Acusação, e incumbindo da formação da culpa e da sentença de pronúncia autoridades policiais e juízes municipais.89 Alterou-se, substancialmente, o procedimento, estabelecendo-se que o Conselho de Sentença seria formado por quarenta e oito jurados e as decisões dispensavam a unanimidade. Para a aplicação da pena de morte seriam necessários dois terços dos votos e as demais decisões seriam por maioria absoluta de votos e, caso ocorresse, o empate favoreceria o réu. Quando da alteração do procedimento subtraíram-se da competência do júri os crimes de moeda falsa, roubo, homicídio nos municípios de fronteira do Império, resistência e tirada de presos e bancarrota. Nessa época, era atribuição dos chefes de polícia, delegados e subdelegados a formação da culpa e pronúncia do acusado, ressalvada a competência do chefe de polícia quando o crime era grave ou envolvia pessoa influente e que pudesse vir a prejudicar a ação da justiça.90 A Constituição de 1937 olvidou a instituição. Conhecida como a “polaca”, tendo em vista a forte inspiração advinda do regime corporativista fascista italiano, foi elaborada por Francisco Campos, e por ter caráter nitidamente autoritário, fruto de golpe de Estado, não 87 - BARBOSA, Rui. O Júri sob todos os aspectos, cit., p. 48. 88 - BARBOSA, Rui. O Júri sob todos os aspectos, cit., p. 48. 89 - ALMEIDA, João Batista. Manual do tribunal do Júri. Judicium accusationis e judicium causae, cit., p.23. 90 - FILHO, Mário Rocha Lopes. O Tribunal do Júri e algumas variáveis potenciais de influência. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 14. 60 contemplou a instituição democrática do Tribunal do Júri. De acordo com Marcos Vinícius Amorim de Oliveira, é interessante notar que, como nos regimes ditatoriais, o Tribunal do Júri perde prestígio dentro da organização estatal.91 Apesar disso, Magarino Tôrres que ocupava o lugar de Presidente do Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, defendia a sua subsistência dizendo que tal falta não constituía só por si a sua extinção, quando o Júri militar se mantinha e ao mesmo tempo o artigo 183 da referida Carta dizia que continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariem as novas disposições.92 Perante tal parecer, o governo brasileiro acabou por nomear uma comissão para elaborar uma nova lei sobre o Júri, sendo a mesma composta pelo insigne jurista António Vieira Braga, e os seus colegas Nélson Hungria Hoffbauer e Narcélio de Queirós. Do trabalho efetuado acabou por surgir o DecretoLei n° 167, de 5 de Janeiro de 1938, salientando-se no seu preâmbulo as seguintes palavras do então Ministro Francisco Campos: “É motivo de controvérsia a sobrevivência do Júri após a Constituição de 10 de Novembro.”93 Desta forma, em 05.01.1938, o DL nº 167 afirmou a subsistência desse Tribunal Popular, mas sem a mantença do princípio da soberania dos veredictos.94 Através do citado Decreto-Lei n° 167, o Tribunal do Júri foi regulado para todo o Brasil até a chegada do Código Nacional de Processo Penal. Na verdade, dispunha o artigo I ° que a legislação era uniforme para todo o território brasileiro. Foi o primeiro passo para que passasse a existir unidade processual em todo o país no que respeitava à matéria penal, o que veio a suceder mais tarde pelo Decreto-Lei n° 3689, de 3 de Outubro de 1941, entrado em vigor a 1 de Janeiro de 1942, o Código Nacional de Processo Penal.95 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, também previu no capítulo referente aos Direitos e Garantias individuais, mais precisamente no capítulo II, em seu art.º. 141, que a Constituição assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade. O § 28 do referido artigo, declarava que é mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e 91 - OLIVEIRA, Marcos Vinícius. Tribunal do Júri popular na ordem jurídica constitucional. Curitiba: Juruá, 2002, p. 63. 92 - BARBALHO, João. Comentários à constituição Brasileira. 2. Ed. Póstuma. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1924, p. 457. 93 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no tribunal: da sua origem aos nossos dias, cit., p. 61. 94 - STOCO, Rui. Tribunal do Júri e o projeto de reforma de 2001, cit., p. 58. 95 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no tribunal: da sua origem aos nossos dias, cit., p. 62. 61 garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A Constituição de 1946, basicamente delineia a estrutura constitucional que o júri detém até então: o sigilo das votações, a plenitude da defesa, a soberania dos veredictos. A Constituição de 1946 deu ênfase à competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, declarando neste ponto a “obrigatoriedade” do julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art.º. 141§28). Quando novamente o Brasil voltou à democracia, houve por bem o constituinte de 1946 restabelecer tudo aquilo que entendeu ter sido extirpado por força da violência do totalitarismo. Dentre essas tendências, fez ressurgir, mais forte e com maiores garantias, o Tribunal do Júri. Sob o Título IV (Da Declaração de Direito), Capítulo II (Dos Direitos e das Garantias Individuais), estabeleceu, no art.º. 141, § 28, que "é mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude de defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”96 A Constituição de 1967, em seu art.º. 150 § 18 dispunha acerca da manutenção do tribunal do Júri, declarando expressamente que “são mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. Apesar de tentativas, entre 1948 e a Constituição de 1967, por parte do Legislativo de, através de projetos de lei, tentar enfraquecer ou acabar com a Instituição do Júri, este bravamente resistiu, inclusive sendo previsto na Carta de 1967, em plena ditadura militar, no capítulo destinado aos direitos e garantias, no art.º. 150, § 18: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 18. São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”97 Em certo retrocesso, não fez qualquer remissão à plenitude da defesa ou ao sigilo das votações. No lugar da tradicional soberania dos vereditos, fez menção à soberania do júri, em evidente impropriedade técnica legislativa. A expressão “é mantida a instituição do Júri”, adotada pela Emenda nº 1, de 1969, omitindo referência à “soberania” que fora mencionada pela Constituição de 1967 (“São mantidas a instituição e a soberania dos veredictos”) e pela Constituição de 1946 (“É mantida a 96 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri. Princípios constitucionais,cit., p. 40. 97 - LIMA, Marcellus Polastri. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris. 2010, p. 796. 62 instituição do Júri... e a soberania dos veredictos”), e agora restabelecida pela Constituição de 1988, permitiu entendimento pelo afastamento da soberania, em cumulação com a identificação de ausência de lei originária regulando a devolução do exame do mérito à Segunda Instância7-1, e entendimento pela manutenção da soberania, implicitamente contida na norma constitucional quando mantendo a instituição do Júri, não sendo necessário mencioná-la porque ínsita na previsão da existência da instituição do Júri.98 De acordo com Carlos Maximiliano manter é conservar o que está em condições que lhe não alterem a identidade. O legislador, nessa parte, não se limita a assegurar a instituição do Júri, à semelhança do que faz em relação a outras garantias liberais: manda respeitá-la na situação em que a encontrou. Isto é, não contente de lhe afiançar a existência, caracteriza-o, prorrogando a duração da entidade preexistente. Essa cláusula tem, portanto, o valor de uma garantia e uma definição.99 A Constituição de 1988, em seu título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, reconheceu no art.º. 5º, XXXVIII, a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. As mudanças em relação à Constituição de 1946 e 1967 foram nítidas, uma vez que topograficamente situou estrategicamente o Tribunal do Júri como direito fundamental, logo após os princípios fundamentais, demonstrando a revalorização do legislador constituinte pelo Tribunal do Júri. Restaurou o constituinte as características do Tribunal do Júri, tal como exposto na Constituição de 1946, delimitando as suas principais características agora alçados à categoria de direito fundamental e cláusula pétrea. Na atual Constituição, é prevista no art.º. 5.º, XXXVIII, com a seguinte redação: “é reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. A instituição do Júri popular é reconhecida nas Constituições brasileiras, desde a Constituição de 1824, figurando em todas as outras Constituições, sendo tradição no direito brasileiro. 98 - PORTO, Hermínio Marques. Júri. Procedimentos e aspectos do julgamento. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36. 99 - MAXILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira. 7. ed..V.I, São Paulo: Freitas Bastos, 1954, p. 186. 63 6. Vantagens e desvantagens do sistema de jurado puro: A necessidade de reformas no modelo do jurado puro Consoante a doutrina especializada, pode-se encontrar três tipos de jurados: o jurado puro, o jurado misto e o escabinado. No modelo tradicional de jurado puro, em que decidem os fatos, o veredito é composto por cidadãos leigos, não conhecedores do direito, que são dirigidos por um magistrado, conhecedor do direito, que se pronunciam sobre a totalidade dos mesmos: Posteriormente o magistrado técnico incluirá os fatos em uma norma e quantificará a pena. Historicamente a formação mais arcaica e limitada do papel dos jurados, é a pronunciação de um mero “sim” ou “ não”. Posteriormente este modelo se irá aperfeiçoando em que o veredito se dará através de um questionário, em que se incluem perguntas de contestação silábica, mais tarde se incluiriam questões mais amplas, como elementos fáticos determinantes de circunstâncias modificativas da vontade.100 Um dos melhores estudos sobre jurados foi conduzido pelo American Bar Asssociation’s, que, com a permissão do juiz do caso, conseguiu que as sessões com os jurados fossem filmadas. Este método possibilitou o ABA101, contornar a proibição do costume contra gravação ou publicização das reais deliberações do júri em pelo menos quatro casos de deliberação real. A conclusão do comitê foi que “os jurados foram muito confusos, que não compreendiam as instruções do juiz, não conseguiam se lembrar das evidências, e sofriam enormemente de tédio e frustração”102. Flores Richmond M., Procurador-Geral do Alabama, defende reformas no Tribunal do Júri, uma vez que a reforma do júri é básica e urgente. É algo que requer uma ação em escala nacional, incluindo medidas pelo Congresso e por meio dos poderes dos tribunais federais. Flores, apenas derrotado na corrida para governador pela Sra. Lurleen Wallace, tinha tido a coragem de denunciar a absolvição de um homem branco por um júri em um assassinato de direitos civis como um triunfo da intolerância. Ele tinha desafiado outro júri, aberta e declaradamente supremacista branco, tendo sido esta a causa da perda da eleição para governador103. 100 - REBOLLO, Beatriz Sanjurjo.Los Jurados en USA y en España: Dos Contenidos distintos de la misma expresión.Madrid: Dykinson, 2004, p.43. 101 - American Bar Association – a ordem dos advogados dos EUA. 102 - ADLER, J. Sthepen. The jury. Trial and error in the American courtroom. Timesbook, 1956, p. 46. 103 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 31. 64 6.1. Vantagens do Jurado puro Aqueles que querem favorecer o sistema de júri declaram que ele floresceu na Europa e na Inglaterra durante a sua longa e orgulhosa história. Isso é tudo verdade. Mas para fazer a história completa, também deve ser dito que os júris têm desaparecido na Inglaterra, onde tinham o maior poder; que eles têm sido muito modificados na França e Alemanha; que um grande movimento tem pretensões de eliminá-los na Escócia; que também foi extinto na Índia, e que democracias progressistas como Israel nunca tiveram o Tribunal do Júri.104 Outro argumento a favor do sistema puro de jurados, é que pela sua composição o jurado saído de todos os meios sociais, pode jactar-sede uma soma de experiência no bom sentido, de um conhecimento da vida, um conhecimento da vida e do homem, que dificilmente reuniria um colegiado. A instituição pura de jurados tem ainda a vantagem de estar familiarizado com seu meio, suas preocupações, sua maneira de pensar e de ser e oferece ao cidadão comum (o homem médio), a vantagem de ser julgado por seus pares. Não julga com a fria noção do direito, com o artigo do Código Penal. Os conceitos de infração, tentativa, dirimentes, tentativa etc. Os jurados retém, não juridicamente, segundo um critério abstrato de moral ideal, senão de acordo com o grau de culpabilidade.105 Existe, a sempre repetida educação cívica do povo, sua participação na democracia direta, seu envolvimento com os negócios do Estado.106 Do ponto de vista procedimental, a instituição apresenta grandes vantagens. Assegura uma instrução do assunto, porque o jurado se mostra severo, sobre a prova e admite a culpabilidade, muito dificilmente. Incita de maneira geral, pela presença e controle dos cidadãos, a um cumprimento mais conscientizado de sua tarefa, por parte de magistrados e funcionários. Impõe os grandes princípios da oralidade e publicidade dos debates, da administração direta e patente da prova. O veredicto popular teria, pelo menos, ao seu favor a grande presunção de resultar de sua coincidência com a opinião popular, além de atender de modo mais eficaz, os princípios processuais envolvendo a acusação, da publicidade, da 104 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice, cit., p. 35. 105 - GUILLÉN, Fairén Víctor. Los tribunales de jurados en la constitución española de 1978. Madrid: Civitas, copy.1979. 106 - LARRAZ, Gustavo López-Munoz. Comentários a la Ley Orgânica 5/95 del tribunal del jurado,cit., p.123 65 audiência, do contraditório, da oralidade, da imediação, da concentração, identidade física do juiz, da publicidade de seus atos, entre outros.107 O juiz leigo é menos distante das mutações sociais que o togado, podendo fazer com que a lei se adapte à realidade e não ao contrário. Além disso, sem o encastelamento na técnica e no saber jurídico, o jurado, pessoa extraída do povo, tem mais condições de realizar justiça, pois penetra em considerações morais, éticas, psicológicas, econômicas, entre outras, que também fazem parte da vida humana. A doutrina portuguesa cita algumas vantagens do sistema de júri puro: a) os elementos populares antes de mais reforçam a base democrática do poder judicial, dando uma nota sensível de que o povo participa efetivamente no exercício do Poder Judicial. Não se esqueça de que, o art.º 205 da Constituição estabelece de forma expressa que os Tribunais administram a justiça em nome do povo. Esta representação não assenta 'entre nós, ao contrário do que se passa noutros países, em mecanismos jurídicos de transmissão de poderes - não temos juízes eleitos, mas unicamente recrutados com bases em critérios técnicos; b) os elementos populares, em segundo lugar, poderão prestar um contributo significativo para a humanização do direito. Humanização do direito, não no sentido de moderarem uma eventual tendência dos juízes profissionais para a severidade 'excessiva na aplicação da lei penal; c) em favor dos juízes populares costume ainda 'invocar-se o seu contributo para 'atenuar as “dependências culturais” dos magistrados de carreira. É óbvio que hoje, restauradas as democracias, não faz sentido falar-se - como no tempo da criação dos Tribunais de Júri - do papel dos “jurados” como garantes dos direitos e liberdades dos cidadãos perante a manipulação dos tribunais pelo poder político. Mas a independência dos tribunais, de que hoje tanto nos orgulhamos e da qual os magistrados, tão ciosos se mostram, afirma-se face ao poder político e às pressões exteriores: d) a presença de elementos populares permita ainda aos juízes profissionais a partilha de responsabilidades - o que pode mostrar-se vantajoso, sobretudo quando se trate de crimes e/ou condenações de carácter particularmente grave ou controverso; e) por ultimo e contra aqueles que se pronunciam contra toda e qualquer participação de elementos laicos nos tribunais, argumentando com a sua incompetência para aplicarem o Direito Penal moderno, diríamos que, pelo contrário, o pensamento criminal 107 - RAMOS, João Alberto Garcez.O Júri como instrumento de efetividade da reforma penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994, p.130. 66 moderno só poderá ser atuado através de uma ampla participação dos cidadãos na administração da justiça.108 Há também em grande parte da doutrina, aqueles que se opõe ao sistema de jurado puro, uma vez que a relação com as vantagens relacionadas do Tribunal do Júri, enquanto instituição favorecedora dos princípios do processo e do procedimento penal, o Tribunal do Júri, não acrescenta nada de novo, que já esta consagrado em nossa Carta Magna, e mais, a aplicação fidedigna da LECRIM (texto que como chegou a afirmar um insigne processualista, se modificará, sem sequer ter sido efetivamente aplicado), permitiria eliminar muitas das corruptelas processuais, que efetivamente supõe um menoscabo grave aos princípios que informam o processo e o procedimento penal.109 6.2. Desvantagens do sistema de jurado “puro” O sistema de jurado puro é um modelo mais complicado, fundamentalmente por problema de dissociar os fatos do direito, que comporta um componente sociológico, relativo ao aumento de sentenças absolutórias que podem produzir-se, e que na determinação da pena pelo juiz, muitas vezes exasperadas ao máximo pelo juiz técnico, pode levar aos jurados, a preferência pela absolvição, ante uma pena desproporcionada. É de observar, que quanto ao Poder judicial, a Constituição, depois de confiar o disposto no art.º 1.2 c/c com a 117-a justiça emana do povo, estabelece como principal meio de participação, a instituição do jurado em seu art.º 125. A intervenção do cidadão é diferente, da intervenção dos outros poderes, que se limita a eleger umas pessoas, que são aquelas que legislam e governam, enquanto no Tribunal do Júri, o povo é quem pessoalmente julgará, formando parte do Tribunal.110 Em relação às desvantagens ressalta a doutrina, que o papel do juiz profissional fica reduzido a nada, cuja função se refere unicamente, a descobrir o texto apropriado ao caso concreto, e aplicá-lo automaticamente. O juiz, portanto, será apenas, um arauto da lei, aceitando a decisão dos jurados sem discussão ou oposição.111 108 - GERSÃO, Eliana.Júri. A participação dos cidadãos na justiça, in: Ministério Público-1989.Revista do Ministério Público, ano 11, n°41,1989, p33-34. 109 - MARTÍN, Pérez-Cruz. La competencia del Tribunal del jurado.Granada:Comares,1996, p.,7. 110 - GISBERT, Gisbert. En defensa del jurado, in: RGD, Valência, fevereiro de 1986, p.43. 111 - GRAVES, Jean Raports. Le júry face au droit pénal moderne.Bruxelles: Ètablissements Èmile Bruylant, 1967, p.5. 67 A doutrina brasileira considera o “juiz leigo muito acessível a injunções e cabala; em segundo lugar, conforme Ferri, o jurado, mais que qualquer outro, é a encarnação da justiça de classe”. Para Marques, repele-se também o magistrado profissional, em favor do juiz leigo, sob a alegação de que aquele, afeito ao ofício de julgar, encara os casos criminais com maior rigidez e menos benignidade, argumento não bem-posto em suas premissas. “O que em verdade se critica na justiça togada não é a sua conduta inflexível, mas, em última análise, o seu repúdio consciente à impunidade que, tão facilmente, campeia nos tribunais populares". 112 As críticas envolvendo o jurado possuem como argumentos a insegurança jurídica gerada pela falta de conhecimentos jurídicos para julgar, a subjetividade, a fragilidade diante das influências exteriores, a possibilidade de corrupção e a maior probabilidade de decisões injustas ou equivocadas.113 A tão propalada identificação com o Estado democrático, não passa de uma falácia, uma vez que o jurado é subordinado ao Poder Judiciário e ignorante da ciência jurídica. Ademais se argumenta que a democracia direita, se encontra em fase de desaparecimento no mundo moderno, salvo o semicantão de Appenzell (semicantão de Ausserrhoden).114 Tal qual a Democracia, o júri popular também é uma falácia, um simulacro de sociedade. Cidadãos despreparados, na maioria dos casos semianalfabetos e sem nenhuma formação técnico-jurídica cometem por ignorância por pressão dos poderosos, as maiores aberrações, em nome do quem se chama 'Soberania do veredicto popular'. Nos Estados Unidos, o veredicto tem que ser unânime, caso contrário o corpo de jurados é dissolvido e constituído outro. No Brasil, predomina o mito da soberania do júri popular, frase de efeito que permite aos jurados cometerem os maiores disparates e absurdos, como se realizasse um jogo de futebol, por qualquer escore: 4X3; 5X2; 6X1 ou 7X0; meses depois um outro corpo de jurados absolve o mesmo réu confesso, por 4X3.115 112 - MARQUES, José Frederico. A instituição do júri, cit.p.23. 113 - JUNIOR, Aury Celso Lima Lopes. Juizes inquisidores e paranóicos. Uma crítica à prevenção a partir da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ano 11, nº127, p.10. 114 - FAIRÉN GUILLÉN, Victor: El jurado: Cuestiones prácticas, doctrinales y póliticas de las leyes españoles de 1995, cit., p.98. 115 - D’ALVA FILHO, Oscar. O júri, a Candelária e Pedro Canário. Revista da Associação Paulista do Ministério Pública, ano 11, nº 16, março de 1998, p.13. 68 Finalmente podemos encontrar duas outras desvantagens do sistema puro de jurados: A incomunicabilidade, e a ausência de participação de todas as classes sociais no tribunal do Júri, tornando-o órgão de autêntica representação da democracia. A isto se some o dispêndio e o complicado sistema administrativo de alistamento dos jurados, além dos desencontros frequentes entre a magistratura togada e os juízes leigos, no que tange à separação das funções. 7. Sistemas de decisões no âmbito do Tribunal do Júri 7.1. Dos sistemas de veredicto Existem dois sistemas de apuração de veredito: o sistema americano e o sistema francês. No sistema americano, os jurados deliberam livremente, sempre em número de onze ou mais, acerca da culpabilidade ou não do réu. No sistema Francês, do qual, o Brasil é oriundo, existe um questionário, muitas vezes ininteligível ao jurado médio, na qual ele responde sim ou não, à medida que as perguntas são formuladas. Na França, após os debates travados entre as partes, O juiz lê publicamente, as questões ou quesitos, que o Tribunal do Júri deve responder. Esta leitura não é obrigatória, se as perguntas estão articuladas na decisão. A primeira pergunta diz respeito à questão principal, e tem o seguinte enunciado: “o acusado é culpado de cometer o crime?” Depois seguem as perguntas relacionadas especificadas no dispositivo da sentença, que pronunciou o acusado.Uma segunda pergunta, diz respeito a cada circunstância agravante. A terceira questão, é referente a causa de isenção ou redução de pena.116 Os motivos de irresponsabilidade criminal previstos nos artigos 122-1 (primeiro parágrafo), 122-2, 122-3, 122-4 (primeiro e segundo parágrafos), 122-5 (primeiro e segundo parágrafo) e 122-7 do Código Penal, podem ser questionados a pedido da defesa da seguinte formão acusado em relação a este ato, a partir do conceito de irresponsabilidade criminal prevista no Código Penal, é penalmente responsável? 116 - Lei n º 92-1336 de 16 de dezembro de 1992 Artigo 20, Jornal Oficial de 23 de Dezembro de 1992 em vigor em 1 de Março de 1994; Lei n º 2000-516 de 15 junho de 2000 art.24, Jornal Oficial 136, de 16 de Junho de 2000. 69 O Juiz-Presidente, com o acordo das partes, pode apenas fazer uma pergunta simples sobre a irresponsabilidade penal, em relação a todas as acusações apresentadas contra os acusados. É inegável a superioridade do primeiro sistema sobre o segundo, tendo em vista que o Sistema Francês ao qual o Brasil se filiou, sempre foi fonte de perplexidade e erros dos jurados, que muitas vezes votam sem saber exatamente o que estão votando. Em nossa experiência como Promotor de Justiça do Júri, não raras vezes vimos votações sendo renovadas, ante expressa contradição entre a resposta anterior dos jurados e o quesito posterior. 117 Apesar da simplificação dos quesitos, no Brasil, a matéria não deixa de ser tormentosa, pois ainda é possível que os jurados deixem de entender determinada tese explanada em juízo, durante os debates, e colocadas no questionário a pedido da acusação ou da defesa.118 As dificuldades de encaminhamento de questões jurídicas a pessoas sem conhecimento do Direito não são poucas. Com efeito, nos procedimentos do Tribunal do Júri, a apresentação de quesito corresponde à formulação de uma pergunta. E o que é pior: uma pergunta cuja resposta será necessariamente sim ou não. Não é por acaso que muitas anulações de processos do júri originam-se equívocos tanto na formulação dos quesitos como na contradição das respostas.119 8. Segue: O problema da separação entre matéria de fato e de direito na tomada de decisões do Tribunal do Júri “puro” No Tribunal do Júri “puro”, temos a separação entre matéria de fato e matéria de direito. O problema da cindibilidade entre fatos e direito, uma vez que tal separação parece indissociável, uma vez que é inegável que entre as questões fáticas, aparecem algumas imbricadas com estas, de tal maneira que é impossível a sua separação. Também a colegialidade tende a desaparecer, no Tribunal do Júri puro, em face da incomunicabilidade, 117 118 - TUBENCHLAK, James. Tribunal do Júri: Contradições e soluções. Rio de Janeiro: Forense, 1990.p.34. - Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: (Redação da LEI Nº 11.689/09.06.2008, com vigência em 09 de agosto de 2008),I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. 119 70 - OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris.2013, pag.740. salvo no direito americano, em que há de fato uma intensa comunicação entre os participantes.120 Os jurados no sistema puro de júri decidem acerca dos fatos, oriundos do processo, e não acerca da matéria de direito, que é atribuição do Juiz-Presidente. No entanto, distinguir, o que é matéria de fato, e o que matéria de direito, não é tarefa das mais fáceis. Desta forma, não admira, pois, que a distinção entre a questão de fato (Tatfrage) e a questão de Direito (Rechtsirage) permaneça extremamente controvertida. Tal “distinção entre fato e Direito, na economia da decisão, é um dos alvos preferidos dos cultores do não raciocínio: falam desdenhosamente dela como sendo o produto de uma cultura jurídica positivista. Positivismo ou não, o problema consiste em estabelecer se os juízos diferem no sentido de que alguns predicam a existência ou inexistência de um facto e outros, o valor jurídico de um facto já afirmado ou suposto como existente”. 121 Na Alemanha, por exemplo, a opinião dominante é a de que uma separação lógica entre o juízo sobre a existência dos factos e a respectiva valoração jurídica é inviável. Argumentase, sobretudo que na questão da sindicabilidade dos conceitos jurídicos indeterminados - verbi gratia, a “desfiguração grave”, prevista no artigo 144, alínea a), do Código Penal- ou na determinação da medida da pena, frequentemente sobrepõem-se ambas as operações de um modo impossível de distinguir uma da outra, Todavia, em tais casos, a delimitação sempre seria possível, pelo menos, do ponto de vista teleológico. 122 Como quer que seja, as fórmulas da mihi factum, dabo tibi ius, ou iura novit curia exprimem a ideia da separação que existe entre o juízo jurídico e o dever incondicional de o juiz o emitir, por um lado, e os factos alegados pelas partes, por outro. Acresce que a Lei, ao aludir a “recurso em matéria de Direito (artigo 410, nº 2), a “matéria de Direito” (artigos 412 n.º 2, e 433, nº 1) e a “questão de Direito” (artigo 437, nº 1), a “matéria de facto” (artigo 412, nº 2), e a “recurso em matéria de facto” (artigo 428, n.º 2), quer essa distinção. Que as premissas jurídicas da decisão e as respectivas premissas históricas são distintas resulta evidente sempre que, como frequentemente acontece, os juízes valorizam de modo diferente os mesmos factos.123 120 - FAIRÉN GUILLÉN, Victor: El jurado: cuestiones prácticas, doctrinales y póliticas de las leyes españoles de 1995. Madrid: Pons, 1997, p.31. 121 - PIMENTA, José da Costa. Recursos em matéria de fato, in: Conferência:o processo penal em revisão.Comunicações.Lisboa:UAL,1997, p.140. 122 - ROXIN, Klaus.Strafverfahrensrecht.22ª edição.Munique,1991, p.368. 123 - PIMENTA, José da Costa. Recursos em matéria de fato, cit., p.369. 71 Contudo, é de se observar, que no caso concreto, esta duas matérias estão ligadas e indissociáveis, pois “Quando se diz matéria de fato, não se quer dizer que os jurados não julgam o direito. Julgam, claro que julgam. Quando são indagados sobre se o réu deve ser absolvido, isso é matéria de direito, pois envolve a punibilidade, ou seja, o direito de punir do estado. Quando são perguntados sobre uma qualificadora do crime de homicídio, isso também é matéria de direito. Jurados julgam, portanto, tanto o fato como o direito”.124 No mesmo prisma, Frederico Marques, reproduzindo ideia anteriormente exposta por Carrara, afirma que tal situação - separação entre o juízo sobre o fato e o juízo sobre o direito - é falsa, pois o juízo de tipicidade, feito logo na votação do primeiro quesito, é um juízo de direito.125 9. A questão da unanimidade e deliberação dos Jurados nos Estados Unidos e Inglaterra: Uma melhor aproximação do julgamento justo 9.1. O veredicto por unanimidade nos Estados Unidos A característica mais marcante do sistema processual nos EUA é o processamento de causas cíveis e penais perante o Tribunal do Júri. Os juízes togados exercem a função de direção dos debates, moderação dos interrogatórios e a decisão das questões de direito, presidindo a seção na função de guardião dos direitos consagrados nas emendas constitucionais norte-americanas, pois o princípio acusatório puro rege o processo penal nos EUA, cabendo ao Ministério Público, exclusivamente, o ônus da prova de que existem indícios de criminalidade contra o acusado em igualdade de condições perante a defesa técnica. No processo penal americano, o Ministério Público (prossecutor) tem papel preponderante, pois o júri, onde atua, é uma das garantias do Due process of law.126 A competência dos jurados americanos está delineada na seção segunda do artigo 3º da Constituição dos Estados Unidos, atuando em todos os juízos criminais, sendo que a Emenda VI consagrou o direito, ao Tribunal do Júri. Cada Estado tem um sistema de jurado próprio, 124 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 262. 125 - MARQUES, José Frederico. Tribunal do Júri. Considerações críticas à Lei 11.690/08 e 11719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 46. 126 - MÍNGUEZ, Elizabeth Cardona. El Jurado: su Tratamiento em el Derecho Procesal Espanol, Madrid: Dykinson, 2000, p. 81. 72 pois somente sete Estados, exigem um júri de doze membros submetido ao critério de decisão por unanimidade, tanto em causas cíveis como criminais. O tamanho do corpo de jurados varia, entre seis e doze membros, e quanto à decisão esta pode ser por unanimidade até a maioria de dois terços de votos, dependendo do Estado. Contudo, no júri federal, a composição é de doze pessoas, e o veredicto tem de ser unânime para todos os casos criminais. No júri estadual, a Constituição não impõe um número determinado de jurados, razão pela qual a matéria é disciplinada pelo Tribunal Supremo Federal. Em se tratando de delitos graves, a composição de doze membros no júri, bem como decisão unânime são exigidos em quase todos os Estados, com exceção dos Estados de Arizona e Utah, que permitem um corpo de jurados formado por oito membros, e os Estados de Connecticut, Florida, Massachusetts e Nebraska, onde é possível um corpo de jurados integrado por seis membros, desde que a decisão seja por unanimidade.127 Em um júri federal, o veredicto há de ser unânime, enquanto em cortes estaduais tem sido possível proferir decisões condenatórias, por maioria, desde que não se trate de infrações penais graves ou punidas com a pena de morte. O Juiz-Presidente tem a tarefa de dirigir os trabalhos no júri, julgando a admissibilidade das provas apresentadas pelas partes e instruindo o Conselho de Sentença para julgar de acordo com a lei e com os fatos. Nenhuma declaração sua, que possa influenciar os jurados, deve ser proferida. O respeito à liberdade é tão grande que no caso de decisão por maioria de votos, a Suprema Corte, tem declarado sua inconstitucionalidade quando o júri é composto por menos de seis membros (cfr.: Ballew v. Geórgia, 1978 e; Burch v. Louisiana, 1979).A decisão, no júri americano, portanto, em regra, não só é unânime, assim como, principalmente, deve ser discutida entre os integrantes do corpo de jurados, pois é fruto do exercício da cidadania que simboliza e encarna a participação popular nas decisões judiciais. Não há como exercer cidadania e direito ao voto (no sentido de condenar ou absolver o indivíduo) senão por meio do debate, do diálogo, sem descuidar a ética no exercício do poder.128 Contudo, através de uma série de sentenças da Suprema Corte, o caráter do júri americano está mudando. Em uma sentença de 1970, o Tribunal rompeu com uma tradição 700 anos e confirmou uma decisão da Florida, que condenou um acusado de roubo por um 127 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 49. 128 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri, cit.,p.50. 73 júri de seis pessoa Agora quase metade dos Estados, permitem o uso de júris menores como uma maneira de cortar os custos de julgamento. Em um caso sem precedentes, a Suprema Corte, declarou que os Estados poderiam aceitar veredictos de júris anteriormente suspensos, com base em "três quartos da maioria”. Posteriormente, em 1960, a Suprema Corte, também decidiu que certos casos cíveis podem ser complexos para um júri, e vários juízes tem usado a decisão para negar pedidos, que de outro modo seria legítimo, a utilização de um júri. Finalmente, em l986, o Tribunal resolveu duas questões controversas relativas à seleção dos júris. Se pronunciou, pela primeira vez, que os advogados não poderiam excluir jurados, de uma forma que discriminasse sistematicamente os grupos raciais. Em seguida, determinou que os jurados podem ser excluídos em casos de pena capital, se eles indicam uma falta de vontade de votar pela pena de morte, mesmo que eles se declarem imparcial sobre a culpa ou inocência de um réu.129 O júri em matéria cível é composto por doze leigos (laymen), os jurados (jurors), selecionados entre pessoas da comunidade, que são admitidas a integrá-lo, após um procedimento contraditório entre as partes, a voir dire examination. Decide matéria de fato, em procedimentos orais, devendo os documentos existentes no processo serem novamente produzidos em audiência de forma oral, ou simplesmente ignorados. A seleção dos 12 cidadãos que participarão do julgamento (integrantes do pequeno júri) ocorre em etapa prévia, denominada voir dire, momento em que as partes podem oferecer suas recusas, justificadas ou não. Há um limite às recusas imotivadas, como nos casos sujeitos à pena de morte, em que as partes podem recusar imotivadamente até 20 jurados cada uma. 130 Na fase da escolha, possuem as partes ampla liberdade na formulação de indagações aos jurados (visando à seleção dos que irão compor o conselho de sentença), diferentemente do que ocorre no Reino Unido, onde costumeiramente quem interroga é o juiz, havendo um limite ao número de perguntas que se autorizam às partes, sendo raras as recusas neste sistema. Feita a seleção dos jurados que irão compor o pequeno júri e instalada a sessão de julgamento, as partes apresentam suas alegações iniciais, oportunidade em que o órgão julgador toma conhecimento da imputação e de sua negativa, bem como das provas que serão produzidas. Em tal momento, a atuação das partes cinge-se à elaboração de sucinta exposição 129 - KASSIN, Saul M; Wrightsman. The American jury on trial. Psychological perspectives. New York: Hemisphere Publishing Corporation, 1998, p.38. 130 74 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri. Princípios Constitucionais,cit.p.72. dos fatos que pretendem provar. Cuida-se de momento significativo do procedimento, pois ao júri é feita exposição do fato a ser julgado. Do órgão julgador, invoca-se atenção para os meios de prova que serão produzidos. Nenhuma alusão ao direito aplicável à espécie é feita nesse instante, tampouco há referência a argumentos jurídicos. Ao órgão acusador incumbe, primeiramente, apresentar seus meios de prova. Em seguida, à defesa reserva-se momento para prova de sua assertiva. O jurado assume, nesse contexto, postura passiva, considerando a adoção do sistema adversarial, cuja característica é a de confiar toda iniciativa processual, em particular a probatória, às partes. Contudo, embora não se reconheça ao jurado direito à formulação de perguntas às testemunhas, não há norma que proíba ao juiz conceder oportunidade ao júri de formular alguma indagação. Assim, se de forma discricionária for autorizada formulação de pergunta, ela deverá ser submetida por escrito /ao magistrado. Caso seja pertinente a indagação, será formulada à testemunha.131 9.2. A deliberação por maioria do Tribunal do Júri na Inglaterra Na Inglaterra, o júri pode decidir por unanimidade ou por maioria, A unanimidade constitui a regra, mas o artigo 17 da lei de 1974 sobre os júris (Juries Act 1974) habilita o juiz de primeira instância a aceitar um veredicto por maioria, depois de pelo menos duas horas de deliberações infrutíferas do júri, Este veredicto é efetivo se obtiver adesão de dez jurados em um Júri de onze ou mais, ou de nove em um júri de dez. Se o júri não chegar a nenhum acordo, unânime ou por maioria, o Juiz, pode desonerá-lo da sua tarefa; mas tal medida não equivale a uma absolvição, e o acusado pode tornar a ser julgado por um segundo júri. Se este também não conseguir decidir, a acusação geralmente não fica provada.132 Diferentemente da Escócia, em que o sistema é muito diferente do sistema inglês, em que o júri pode retornar com um veredicto, refletindo uma pequena maioria (ou seja, uma 131 - GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do Júri.Aspectos críticos em relação à prova,cit.,p.78. 132 - Sentença de 1992.12.16. Caso Edwards cl Reino Unido.Sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. 75 divisão 8-7) para qualquer convicção ou absolvição, 133 o Tribunal do Júri inglês, funciona com o sistema de maioria dos veredictos, que foi introduzido pelo Criminal Justice Act 1967, são agora tratados pela s. 17 do Act Jury de 1974. Em 1994, dos condenados no Tribunal da Coroa, 19 por cento foram condenados em sentenças majoritárias. (Estatísticas Judiciais de 1994, Cm 2891, 1995, p. 68). No Tribunal da Coroa, um veredicto da maioria é aceitável: (a) há, pelo menos, doze jurados e dez deles concordam com o veredicto; (b) há dez jurados e nove deles concordam com o veredicto.134 Em ambos os casos, o Jurado-Presidente de um júri em que se chegou a um veredicto de culpado, deve indicar o número de jurados que concordaram e discordaram da sentença (sem, é claro, fornecer seus nomes). O cumprimento deste preceito é obrigatório (e não meramente diretório ou instrutório), antes de um juiz do Tribunal da Coroa aceitar um veredicto de maioria dos jurados em relação à culpa do acusado. Caso esta fase do procedimento seja suprimida, eventual condenação do réu pode ser anulada. Assim, no acórdão R v Barry [1975] 2 Ali ER 760, CA, verificou-se que o juiz aceitou o veredicto de culpado, por maioria sem que o chefe do júri (foreperson) afirmar, mesmo sendo convidado a indicar, o número de jurados que concordaram ou discordaram do veredicto. O Tribunal de Recurso da época permitiu a apelação do recorrido e anulou sua condenação.135 Não há obrigação de declarar o número de jurados que concordaram e discordaram, no caso de um veredicto de absolvição. Há disposições destinadas a assegurar que o júri não delibere acerca de uma sentença de maioria apressadamente. O juiz deve encorajar o júri a chegar a um veredicto unânime. Nas cortes do júri, a deliberação deve abranger, pelo menos, duas horas. 136 Além disto, Instruções Práticas emitido pelo Tribunal de Apelação determinou que se os membros do júri, não acordaram, depois de duas horas devem ser enviados de volta para a sala do júri, ao menos uma vez, com vista a alcançar a unanimidade. Depois (se necessário) devem ser 133 - BRIGHAN, John C. The jury system in the United State of américa, in: KAPLAN, Martin F; MARTIN, Ana M.Understanding world jury systems through social psychological research.New York: Psychology Press, 2004, p.26. 134 - Júries Act 1974, s. 17 (1) (a) e (b). 135 - No mesmo sentido:acórdão R Reynolds [1981J 3 AlI ER 849; R v R Pigg [1982] 2 All ER 591 136 - Jurie Act 1974, s. 17 (4). 76 enviados de volta pelo menos uma vez para ver se eles podem alcançar maioria necessária (ver [1967] 3 Ali ER 137 e [1970] 2 Ali ER 215). Se estes esforços falharem, o júri será desincumbido de sua missão, e o caso pode ser revisto diante de outro júri. 9.3. A comunicabilidade entre os jurados no sistema anglo-saxão Nos Estados Unidos e na Inglaterra, não há motivação do voto, mas existe uma extensa deliberação do Tribunal do Júri, que assume contornos de um autêntico e comprometido engajamento do cidadão com a aplicação do direito em sua comunidade. Na Inglaterra, a comunicação entre os jurados é plena, pois os mesmos decidem com base no juramento (ou promessa solene) que fazem de “julgarem fielmente o acusado e darem um veredicto verdadeiro de acordo com as provas apresentadas”.137 A fase crítica do serviço de júri para os jurados, começa quando eles entram na sala de deliberação. Eles sentam-se juntos durante o julgamento, através de almoços, através de longos atrasos e paradas, nunca discutindo o caso em si, mas seguros para pensar e emitir uma opinião acerca do que eles ouviram no tribunal. Nesse ponto, concordam com o jurado designado para chefiar a votação (denominado de Foreperson), que recomenda a adoção de um voto preliminar, que serve em muitos casos para dirimir as dúvidas e resolver a questão.138 A questão da deliberação entre os jurados americanos e ingleses, é sem duvida um momento latente da democracia. Contudo existem fatores, que podem diminuir o amplexo democrático, da deliberação franca e honesta, para uma imposição de um grupo majoritário de jurados, ou até mesmo do jurado presidente, como no exemplo fornecido por John Gastil,et.al., em que um dos jurados tinha sido designado Foreperson por atribuição aleatória, e à medida que as deliberações do júri foram passando, ficou claro que o Forepersor estava inclinado para um veredicto de assassinato em segundo grau, enquanto o resto do júri estava convencido de que o réu era culpado de premeditação ou "homicídio em primeiro grau”, que 137 - MCNAUGHT, John. Inglaterra Y Gales. Gómez, Ramón Maciá (Org.). Sistema de Proceso En Europa. Barcelona: Cedecs, 1998, p. 224. 138 - VV.AA. The Juri and democracy. How jury deliberation. Promotes civic angagement and political participation. Oxford, 2010, p.73. 77 prevê uma pena muito mais dura, o que deu ensejo ao seu afastamento e sua substituição por um jurado suplente. 139 Não há dúvida, portanto, de que há no júri, expresso exercício de poder que, como tal, deve ser democrático, sob pena de invalidar a decisão dos jurados. Logo, não basta a decisão ser apenas por maioria; ela tem de estar comprometida com a liberdade do outro, ou seja, deve haver um compromisso ético, na decisão, que somente será alcançado pela plena comunicação entre o conselho de sentença e sua necessária fundamentação.140 Este sistema, indubitávelmente é melhor do que o sistema da “íntima convicção”, brasileiro, uma vez que se exige unanimidade ou plena maioria, para a condenação ou absolvição, e a comunicação entre os jurados, inobstante eventuais falhas do sistema, contribui, para o conhecimento da causa, e a descoberta da verdade real, acerca do crime que está sendo julgado. 9.4. A comunicabilidade dos jurados nos Estados Unidos Nos Estados Unidos a deliberação entre os jurados também é plena e envolve a unanimidade, com a direção do Foreperson. A íntima convicção dos jurados é tomada através das máximas da experiência, que são princípios da experiência, que se extraem da própria experiência141. Os jurados para alcançar um veredicto devem aplicar essas máximas da experiência, uma vez que muitas delas são conhecidas pela própria experiência do jurado, ou são introduzidas por perito. Não se pode olvidar que esta operação é uma operação mental, em que a premissa maior é uma máxima da experiência e a conclusão a afirmação da existência ou inexistência dos fatos que se pretende provar. A aplicação das máximas da experiência aportadas pela prova pericial se dará nos casos de difícil compreensão para os juízes leigos142. 139 - VV.AA. The Juri and democracy. How jury deliberation, cit.,p.74. 140 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri, Cit,p.19. 141 - CARNELLUTI, Francesco. Massime di esperienza e fatti notori, in: Revita di diritto Processuale, num. 4,1959, p.639. 142 78 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 285. Nos Estados Unidos, não há motivação do voto, mas existe uma extensa deliberação do Tribunal do Júri, que assume contornos de um autêntico e comprometido engajamento do cidadão com a aplicação do direito em sua comunidade. A fase crítica do serviço de júri para os jurados começa quando eles entram na sala de deliberação. Eles sentam-se juntos durante o julgamento, através de almoços, através de longos atrasos e paradas, nunca discutindo o caso em si, e inseguros de pensar e emitir uma opinião acerca do que eles ouviram no tribunal. Nesse ponto, concordam com o jurado designado para chefiar a votação (foreperson), que recomenda a adoção de um voto preliminar, que serve em muitos casos para dirimir as dúvidas e resolver a questão143. Não há dúvida, portanto, de que há no júri expresso exercício de poder que, como tal, deve ser democrático, sob pena de invalidar a decisão dos jurados. Logo, não basta a decisão ser apenas por maioria; ela tem de estar comprometida com a liberdade do outro, ou seja, deve haver um compromisso ético na decisão, que somente será alcançado pela plena comunicação entre o conselho de sentença e sua necessária fundamentação144. Como se observa, a deliberação dos jurados americanos, apesar de ser um melhor modelo, não deixa de sofrer também pressões por parte do líder ou da maioria. 9.5. A comunicação dos jurados na Inglaterra Na Inglaterra, a comunicação entre os jurados é possível, pois estes decidem com base no juramento (ou promessa solene) que fazem de “julgarem fielmente o acusado e darem um veredicto verdadeiro de acordo com as provas apresentadas”. Logo, a decisão é produto de um sistema de plena comunicação entre os jurados, o que facilita a compreensão do julgamento, e coloca em ação os standarts da democracia, evitando, assim, o arbítrio ou abuso de poder, escondido atrás do anonimato145. 143 - VV.AA.The Juri and democracy. How jury deliberation. Promotes civic angagement and political participation. Oxford, 2010, p.73. 144 - RANGEL, Paulo.Tribunal do Júri, Cit,p.19. 145 - MCNAUGHT, John. Inglaterra Y Gales. Gómez, Ramón Maciá (Org.). Sistema De Processo En Europa. Barcelona: Cedecs, 1998, p. 226. 79 Na Inglaterra, quer nos casos civis quer nos casos criminais, as deliberações do júri são realizadas em sigilo, não envolvendo a motivação da decisão dos jurados146. Contudo, um fato em particular veio a colocar em xeque o sistema do sigilo das votações na Inglaterra. Em 1979, um político, Jeremy Thorpe, foi acusado com outros na Corte Criminal Central de conspiração para o assassinato de Norman Scott, e, separadamente, acusado de incitação ao assassinato. Após deliberação, o júri retornou com o veredicto de “não culpados” em junho de 1979 (R v Holmes e outros 22 de junho de 1979). Após o julgamento, surgiram rumores que o júri não havia sido imparcial, porque as restrições de informação tinham sido levantadas a pedido de apenas um dos réus. Em vista da enorme publicidade em torno do caso e a consequente dificuldade de encontrar um júri imparcial, o veredicto de “não culpado” foi visto por muitos como uma demonstração notável de um julgamento parcial pelo júri. Logo ficou claro que fatores externos tinham estado a trabalhar nas mentes dos jurados, principalmente o fato amplamente divulgado que a imprensa tinha “comprado” algumas testemunhas de acusação. O jornal Sunday Telegraph, por exemplo, havia concordado em pagar uma testemunha, Peter Bessel (que, aliás, teve concedido, pelo Estado, a imunidade da acusação, mesmo por perjúrio), a soma de f 25, 000 para a sua história, ou f 50, 000, se o Sr. Thorpe fosse condenado. O contrato foi rescindido após críticas da opinião pública, e em especial pelo juiz do caso, Cantley J. Logo após a absolvição do Sr. Thorpe, a revista New Statesman147 publicou uma entrevista com um dos jurados, que se manteve no anonimato e não foi pago pela sua cooperação (A propósito: New Statesman, 27 jul 1979). Foi dito na matéria que os membros do júri tinham-se convencido para absolver o réu, no primeiro dia de julgamento. O Procurador-Geral interpôs recurso de desacato ao tribunal no Tribunal de Divisão da Queen's Bench, contra o New Statesman. No julgamento de Attorney-General v New Statesman [1980] foi decidido que a simples divulgação de segredos na sala do júri não configura o delito em questão, a menos que interferiram com a finalidade de veredictos do júri, ou com a atitude futura dos jurados para as suas responsabilidades. Sobre os fatos, o New Statesman não cometeu desacato ao tribunal, uma vez que cada caso de divulgação deve ser julgado à luz das circunstâncias em concreto. O alerta do Tribunal foi dado para que se tivesse 146 - cf: Devons, Serving as a juryman in Britain, (1965) 28 MLR 561; letter in (1973) 123 New LJ 952; McCabe and Purves, The Jury at Work, 1972, and The Shadow Jury at Work, (1974); Barber and Gordon (eds), Members of the Jury, (1976); see also the sedes of articles in (1990) 140 New LJ 1257 and at ppo 1264-76) 147 80 - cf: Thorpe‘s .Trial: how the jury saw it, New Statesman, 27 July 1979. o cuidado de não abandonar totalmente o sigilo da sala do júri porque isso levaria ao abandono do julgamento pelo próprio júri (por Lord Widgery CJ, p. 649)148. O Contempt of Court Act de 1981 vedou a divulgação ou solicitação de quaisquer elementos das declarações feitas, às opiniões expressas, os argumentos avançados ou votos expressos pelos membros de um júri no âmbito de suas deliberações em qualquer questão legal processo, seja penal ou civil. A proibição estende-se, assim, às deliberações de qualquer júri149. 9.6. A comunicação e a unanimidade no Tribunal do Júri anglo-saxão e o pensamento de Habermas acerca da democracia Como se sabe, um dos grandes argumentos, se não o maior, para a manutenção de júris, como forma da administração da justiça, é o apelo à democracia, conforma já defendia Blackstone.150 Em Habermas, iremos encontrar uma concepção que, embora aparentemente distinta quanto ao modo de sua constituição, aponta também na mesma direção. Para ele, o Direito fundamenta-se precisamente nos direitos humanos (plano da validade) e na soberania popular (plano da facticidade). 151 Habermas apresenta uma sugestão procedimentalista de atuação das cortes constitucionais. Desta forma, numa visão do ilustre pensador, a democracia ocorreria de forma plena, em uma zona de consenso e deliberação, tal como ocorre no Tribunal do Júri anglo-saxão (Estados Unidos e Inglaterra). A democracia exige instituições em que se formem e que se exprima a vontade do povo, instituições que tornem o povo presente e atuante na tomada de decisões politicas. Essas instituições deverão ser: a) participação, não só através da eleição como também através do consenso resultante da explicação dos seus atos perante os cidadãos e da sujeição à critica de todas as correntes de opinião; b)dotadas de autoridade para sobreporem constantemente a prossecução do interesse coletivo às pressões de certos interesses, aos particularismos, às 148 - INGMAN, Terence.The english legal process 7.ed. - [London] : Blackstone Press Limited, p.207. 149 - Contempt of Court Act 1981, ss. 8 (1) e 19). 150 - DEVLIN, Patrick. Trial by jury. London: Stevens; 1ª edition, 1956.p.5. 151 - TOLEDO, Cláudia. Direito adquirido e Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Landi.2008, p. 116. 81 conveniências partidárias ou à popularidade fácil; c)prestigiadas, não por privilégios conferidos aos governantes, mas pela disponibilidade destes para o exercício dos cargos que ocupem, pelo seu sentido de responsabilidade e pela lucidez histórica que revelem.152 O modelo proposto por Habermas, para interpretação do direito se funda em uma teoria discursiva, conforme anota Moreira, busca afastar a ideia da existência necessária de um modelo específico, vinculativo para o ordenamento jurídico, de tal modo que a criação do direito e do ato jurídico seja um processo contínuo e permanente, por meio de um sistemático consenso entre os participantes do discurso jurídico. Nessa participação, ou exigência de ampla participação, é que se delineia o tipo de procedimento necessário à instituição de uma liberdade comunicativa, na qual a renovação dos argumentos, em cada momento histórico, é que determinará o sentido da normatividade desejada.153 Desta forma os debates devem ser realizados no âmbito da comunidade dos intérpretes da Constituição. O entendimento resultaria em um ambiente discursivo, do qual sobressair-se-ia o melhor argumento. Estas situações dialógicas envolveriam três elementos: a ausência de óbices à participação dos cidadãos, ausência de violência durante as sessões, e a seriedade, que é a busca cooperativa pelo acordo ou consenso. 154 Habermas consegue juntar o procedimentalismo de John Hart, com o modelo de Dworkin, abandonando o positivismo cego, mas substituindo o juiz Hércules, para a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.155 Embora guarde um certo paralelismo com a obra de Luhmann, para Habermas, a comunicação constitui a base em que se obtém um acordo normativo que legitime a ordem social. Neste sentido, a tese de Habermas supõe, junto a Rawls, uma importante contribuição ao renascimento da teoria clássica do contrato social.156 Portanto, Habermas parte do pressuposto de que todos os participantes do discurso encontram-se em situação de igualdade no ato de comunicação, entendendo que para aquele 152 - MIRANDA, Jorge. Constituição e democracia. Lisboa: Livraria Petrony,1976,p.19. 153 - OLIVEIRA, Eugénio Pacelli. Processo e Hermenêutica na tutela dos direitos fundamentais, cit,p.16. 154 - HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: Entre a facticidade e validade, 2ª edição. Trad.Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v.1, p.190-191. 155 156 - RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.214. - VALLESPÍN,Ona F. Diálogo entre gigantes.Rawls y habermas, in: Claves de razón práctica,num 55,1995, p.48. 82 que age, estrategicamente, a norma jurídica visa estabelecer um limite ao seu arbítrio. Contudo, para aquele que age comunicativamente a norma jurídica vem a ser uma espécie de guardiã objetiva de sua liberdade.157 O consenso Habermasiano só é alcançado pela superioridade do melhor argumento, ou seja, entre os interlocutores há um que possui superioridade intelectual em relação aos outros. Logo, seus argumentos acabam prevalecendo.158 Neste sentido, Habermas, afirma que a verdade é produto do consenso entre os interlocutores do discurso que possuem como pano de fundo a situação ideal de fala.159 Em outras palavras, em uma visão Habermasiana do júri, a chamada verdade envolve uma questão com a qual não se pode transigir e aqui haverá um problema na Teoria Consensual da Verdade: Com liberdade e vida não se pactua consensualmente, pelo menos enquanto eticamente considerados. Este aspecto da democracia deliberativa, como um debate informal e equitativo entre cidadãos racionais, em conformidade com a visão de Habermas, a democracia deliberativa, encoraja o respeito mútuo entre os cidadãos. É portanto, na democracia deliberativa, que o debate entre os cidadãos pode ser legitimado.160 10. O Grand Jury e o Petty Jury no sistema anglo-saxão No Tribunal do Júri, o devido processo legal demarca todo o procedimento, a começar pelo Juiz Natural, delimitado pelo Juiz-Presidente na primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, consistente no juízo de admissibilidade da acusação, e dos integrantes do Tribunal do Júri na segunda fase do julgamento pelo Tribunal. 157 - MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habemas.2ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,p.123. 158 - MONTEIRO, Cláudia Servilha. Teoria da argumentação jurídica e nova retórica. 2.ed.Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 169. 159 - HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade, 2ª edição. Trad.Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003, v.1, p.58. 160 - MALSCHE, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in Europan criminal justice systems. Ashgate, 2004, p.59. 83 Esta primeira fase, conhecida como juízo de admissibilidade, permite que um juiz togado (no caso do Brasil), ou mesmo outro júri (no caso dos Estados Unidos e Inglaterra), venha através de um juízo prévio de admissibilidade, declarar acerca da possibilidade de vir o réu a ser julgado por seus pares, no Tribunal do Júri. Na Inglaterra, substituindo os Juízos de Deus no século III, e assumindo relevante papel a partir do século XII, a instituição do Grand Jury, composto por vinte e três jurados de cada condado, competente para denunciar os crimes mais graves aos juízes (Júri de Acusação), e, do Petty Jury, composto de doze jurados, competente para ocupar-se das provas, reformandose este último, por volta dos séculos XV e XVI para tornar-se uma instituição de julgamento, confiando a acusação a qualquer habitante do reino, configurando-se então a denominada Ação Penal Popular, com a manifesta imparcialidade do júri, consubstanciando-se um sistema processual tipicamente acusatório, que persiste até hoje161. Assim, inicialmente a função dos jurados não era propriamente a de julgar, mas de recolher informações e prestar testemunhos sobre os fatos investigados (jury of proof); dessa prática parece ter resultado, em matéria criminal, a instituição do Grand Jury, composto por doze homens de boa reputação e sem antecedentes criminais, cuja tarefa consistia primeiramente em apurar crimes e apresentar comunicações a respeito; posteriormente, a atribuição desse órgão transformou-se em resolver sobre a admissibilidade das acusações (júri de acusação).162 O Judicial Studies Board 1991 - órgão inglês estabelece as funções distintas dos jurados e juízes em ações criminais. O Chief Justice, como juiz, escreve assim na primeira pessoa a um corpo de jurados: “It is my job to tell you what the law is and how to apply it to the issues. As to the law, you must accept what I tell you. As to the facts, you alone are the judges”.163 Como alternativa à decadência do procedimento judiciário dos ordálios, os ingleses adotaram, criativamente, o trial jury (ou petty jury). O grupo de membros da comunidade, que até então, apenas pronunciava um acusado, passaria, a partir de então, a efetivamente julgá-lo com base no seu conhecimento pessoal dos fatos. O já conhecido e disseminado jury of 161 - O moderno Tribunal do Júri nasceu na Inglaterra, em 1215, com a Magna Carta, sendo que eram previstos dois júris: o de acusação (Grand Jury) e o de julgamento (Petty Jury). O Grand Jury, que funcionava com 24 jurados, foi extinto em 1948, permanecendo apenas o Petty Jury, in: JÚNIOR, Ângelo Ansanelli. O Tribunal do Júri e a soberania dos veredictos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p.145. 162 - FILHO, Magalhães Gomes. Direito à prova no processo penal, cit., p. 36. 163 - VIEIRA, Andréa Costa. Civil Law e Common Law.Os dois grandes Sistemas Legais Comparados. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor,2007,p.76. 84 presentment era, no entanto, necessariamente parcial, devido às suas características intrínsecas, pois se tratava de um concurso de opiniões acusatórias. O julgamento do júri deveria, portanto ser composto de um número maior de pessoas - até quarenta e oito, para além das que haviam apresentado o suspeito, possibilitando algum equilíbrio em suas deliberações164. Nos Estados Unidos, a estrutura do júri do tribunal não é igual em todos os Estados, pois não existe uma organização judicial comum, nem um Código Processual Penal uniforme para toda a Federação. Citamos a título de exemplo o Estado de Massachusetts, onde o juiz pode anular o veredicto do Júri, podendo a parte prejudicada optar pelo recurso dessa decisão. Há uma diferença entre o Grand Jury, referido na Emenda V à Lei Fundamental, com funções na instrução e o Petty Jury, que funciona como um órgão julgador, como se infere do Artigo 3°, lI, 3 e nas Emendas VI e VII da Lei Fundamental.165 O Grand Jury é formado por um grupo de pessoas que pode variar entre 18 e 23 pessoas, sendo necessário o acordo de doze delas para formular a acusação. Se esta maioria 164 - JUNIOR, Kempy, F.G. Historical introdution to anglo-american law, St Paul,West, 1973, p.54.Não está estabelecido de forma pacifica o sistema de aquisição de conhecimento pelo juri de julgamento até o século XVI.Existe alguma controvérsia sobre o modelo de cognição dos júris ingleses até quinhentos,desde que foi posta em causa a tese, anteriormente pacifica, de que até esta data o juízo do júri se manteve essencialmente sustentado na informação previamente detida pelos elementos do júri, e não pela prova produzida no tribunal. Os júris de julgamento, progressivamente, deixaram de se basear no conhecimento próprio, passando a ouvir testemunhas, primeiro apenas as apresentadas pela coroa, tendo-se fixado na transição de modelos o princípio de que os membros do júri com conhecimento dos factos deveriam prestar depoimento ajuramentado em julgamento como as outras testemunhas. (cfr.: MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime. Estudo sobre a prova no sistema penal português, à luz do sistema norte-americano. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p.169) 165 - Ao discorrer sobre a procedência do Grande Júri, Maria-Angeles Pérez Cebadera diz o seguinte: A história do Grand Jury na Inglaterra se encontra na Declaração de Clarendom (Assize of Clarendom ) , que o rei Henrique II emitiu no ano 1166 . Nela, o rei ordenou que um grupo de doze pessoas que vivem em uma comunidade informassem, qualquer ato criminoso que tinham conhecimento. Assim, os cidadãos foram chamados como testemunhas, já que os vizinhos de um determinado local tinham contato direto com os acontecimentos de sua comunidade e estes foram usados pelo rei para controlar seus súditos, não esquecendo que este grupo de pessoas não agiam de forma independente, uma vez que foram obrigados a responder sob sanções, se negavam a acusar " Acrescenta a autora : "Desta forma, o Grand Jury (Júri de apresentação) foi composto por membros de pequenas comunidades que eram requeridos por juízes itinerantes, nomeados pelo rei para denunciar crimes pelos quais eles estavam cientes. Este grupo de cidadãos é considerado precursor do atual Grand Jury, que em vez de uma garantia do cidadão, era um instrumento par a Coroa estender e consolidar o seu poder " (Las instrucciones al jurado. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 45-46). 85 não existir, não se acusa. O Grand Jury tem duas funções: investigar a conduta dos funcionários públicos, agências do Governo, escândalos públicos. Por lei na maioria dos estados, cada município deve ter um grande júri. O número de jurados que um município deve ter também é determinado por lei, e variam de nove jurados nos condados rurais muito pequenos, para 23 jurados nas comarcas que tem uma grande população. Em alguns Estados, é possível, ainda ter um segundo Grande Júri, a critério do tribunal superior respectivo.166 Nos Estados Unidos, portanto, temos dois júris entrelaçados e com funções distintas: o Grand Jury, com função de instrução e admissibilidade da acusação e o Petty Jury, como juiz julgador. Ambos se constituem por membros leigos, cuja seleção parte de listas eleitorais, e cuja nomeação se chega através de vários sorteios. Suas funções são distintas: o Grand Jury, onde o jurado de acusação estuda a acusação que se formula e declara a admissibilidade do procedimento posterior, que se dará perante o pequeno júri (Petty Jury), o jurado de classificação, a quem competirá o julgamento definitivo da causa.167 Enfim, para parte da doutrina, a atuação do Grand Jury e do Petty Jury é garantia do due process, pela imparcialidade tanto do juiz, funcionário do sistema judiciário, quanto dos jurados leigos, devendo-se ter em consideração que ambos são julgadores imparciais (impartial arbiters).168 Depois que alguém é preso pela polícia, ou após o indiciamento por um Grand Jury, ele enfrentará uma audiência preliminar (em alguns casos chamado de acusação), onde ele será 166 - PEOPLES, Edward E. Basic Criminal Procedures. 3rd Edition. Prentice Hall, 2007, p.121. 167 - LOPEZ, Pastor. El processo penal ingles estudo comparativo de suas directrizes fundamentais. Madri: RDP,1967, I, p 85 e ss.Conforme Paulo Dá Mesquita, a marca política e ideológica acentuada nos Estados Unidos da América, dado à democratização ínsita ao extraordinário alargamento da base do recrutamento dos jurados. O tribunal bifurcado constitui, desde então, um elemento central da legitimidade do julgamentos nos Estados Unidos, sem paralelo em nenhum outro lugar, essencialmente centrado na desconfiança dos decisores, juízes e jurados, em que as regras de prova funcionam como contrapeso do poder, in: MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime. Estudo sobre a prova no sistema penal português, à luz do sistema norte-americano. Coimbra: Coimbra Editora,2001, p.172. 168 - Sobre o tema, Magalhães Gomes Filho diz o seguinte: "Assim, inicialmente a função dos jurados não era propriamente a de julgar, mas de recolher informações e prestar testemunhos sobre os fatos investigados (jury of proal); dessa prática parece ter resultado, em matéria criminal, a instituição do grand jury, composto por doze homens de boa reputação e sem antecedentes criminais, cuja tarefa consistia primeiramente em apurar crimes e apresentar comunicações a respeito; posteriormente, a atribuição desse órgão transformou-se em resolver sobre a admissibilidade das acusações, in: Direito à prova no processo penal, São Paulo: Saraiva, 1980, p. 36). 86 oficialmente acusado do crime, e terá permissão para confessar-se culpado, inocente, ou mesmo aceitar a pena, sem admitir culpa. Se o suspeito alega que não é culpado, o juiz irá considerar a possibilidade de permitir que o réu permaneça em liberdade após pagar uma fiança. O caso típico penal envolve várias audiências de pré-julgamento, em que o acusado por vezes movimenta o processo, de forma que seja adiado ou até mesmo rejeitado. Há frequentemente audiências em que o réu pede que determinadas provas sejam excluídas, por causa da maneira inconstitucional pelo qual foi obtida. Ou a prova pode ser tão sensacionalista, como, uma fotografia gráfica de um assassinato, que pode, assim, impressionar os jurados, não tendo o réu um julgamento justo. Embora essas audiências de supressão sejam frequentemente abertas ao público, são particularmente problemáticas já que os repórteres podem estar revelando ao público informações que não serão permitidas no julgamento.169 Se o jornalista descobre de antemão que uma audiência será fechada, ele pode apresentar uma moção para que a audiência seja aberta. Um desses casos foi o movimento bem-sucedido da imprensa para obter acesso à acusação de assassinato em relação à Michael Skakel, sobrinho de Robert F. Kennedy. Skakel, eventualmente, foi condenado por ter assassinado sua vizinha de quinze anos, Martha Moxley, em Greenwich, Connecticut, quando ela era adolescente (Connecticut v Skakel, 2000). Por vezes, porém, a imprensa não tem êxito em obter acesso a uma audiência preliminar. Em 2002, em Baltimore, um caso envolvendo um adolescente de dezessete anos de idade, John Lee Malvo, um dos dois atiradores suspeitos em um caso que resultou em treze mortes em cinco estados e em Washington, DC, foi fechado para a imprensa. 170 A divisão do órgão judiciário em dois outros órgãos, repercute no procedimento e na duração do processo, uma vez que a passagem do juízo de admissibilidade da acusação propriamente dita, que é realizada pelo Grande Júri (Grand Jury), e a acusação (Petty 169 - Guido Fernando Silva Soares esclarece: “Recebidas as informações da polícia, o promotor público, prosecutor, instaura o processo penal, apresentando uma acusação formal contra o acusado. Nas cortes federais, o grande júri deve ser composto por um número de membros não inferior a 16 nem superior a 25,14 bastando o voto da maioria para que a acusação seja aceita contra o réu, encaminhando-o a julgamento pelo pequeno júri”, in: Common Law: introdução ao direito dos EUA. 2ª ed. São Paulo: RT, 2000, p.56. 170 - PEOPLES, Edward E. Basic Criminal Procedures. 3rd Edition. Prentice Hall, 2007, p.123. 87 Jury),envolve a prática de numerosos atos, desde a ouvida de testemunhas na primeira fase, escolha dos jurados, e várias sessões de julgamento.171 Nos Estados Unidos da América, o Júri tem duas funções: a primeira função é de vigiar e investigar. O júri é como um cão de guarda sobre o governo do condado e um de seus papéis é o de investigar as ações dos órgãos governamentais e oficiais para garantir a honestidade no governo local. De acordo com essas atribuições, o Grand Jury serve como órgão de investigação e consultoria e relata suas descobertas, juntamente com quaisquer recomendações, anualmente ao juiz do condado e ao conselho de supervisores para análise e eventual ação em torno de fatos delituosos. A segunda função de um Grand Jury é a de servir como uma espécie de painel, para ouvir e analisar as provas em matéria penal, a cargo e direção do promotor. Em alguns Estados, notadamente nos Estados do leste, a lei exige que o procurador utilize o processo do Júri em cada matéria crime criminal. 172 No escabinado, os escabinos, participam do debate oral e elaboram a decisão com os juízes leigos, acerca da matéria de fato e de direito. 11. A competência funcional e a divisão de tarefas na fase decisória e sua influência na determinação da culpabilidade Uma das consequências da utilização do júri é a bifurcação do procedimento, ou sua apresentação em duas fases, visto que a impossibilidade prática de impor aos membros do júri que assistissem a várias audiências, cada uma das quais podia ter curta duração, deu nascimento ao conceito da audiência única e ininterrupta em que se colhem as provas, se 171 - Sobre o tema, Magalhães Gomes Filho diz o seguinte: “Assim, inicialmente a função dos jurados não era propriamente a de julgar, mas de recolher informações e prestar testemunhos sobre os fatos investigados (jury of proal); dessa prática parece ter resultado, em matéria criminal, a instituição do Grand Jury, composto por doze homens de boa reputação e sem antecedentes criminais, cuja tarefa consistia primeiramente em apurar crimes e apresentar comunicações a respeito; posteriormente, a atribuição desse órgão transformou-se em resolver sobre a admissibilidade das acusações) ”, in: Direito à prova no processo penal, cit., p. 36. 172 - PEOPLES, Edward E. Basic Criminal Procedures, cit., p.121.Os prosecutors (Promotores) são altamente sensíveis ao seu público mais imediato, a polícia, que persistentemente defendem o tratamento rigoroso dos criminosos. Para aquelas razões, em San Diego os promotores se sentiram impelidos a resistir a qualquer frase explícita de negociação. Uma lei de 1970 da Califórnia tem permitido frases para ser estipuladas no acordo entre acusação e defesa, sujeita à aprovação pelo tribunal (Califórnia Penal Code, Seção 1192,5), in: MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor ed. - Beverly Hills [u.a.] : Sage Publ., 1979. - 279 S. - (Sage criminal Justice System Annuals; 11), 1979,p.107. 88 ouvem os arrazoados e ao fim da qual o júri profere o veredicto. Sem dúvida, para que o processo se desenvolva de maneira eficaz, é essencial uma fase pré-julgamento. Há, portanto uma divisão bem nítida entre duas fases. Durante a fase pré-julgamento cumpre que se instaure o processo e que as partes se preparem para a futura luta que é o julgamento, mas é de essencial importância que se definam do modo mais preciso possível as questões a serem resolvidas pelo júri. Eis aí a razão principal do procedimento do requerimento. Outrora muito técnico, ele não é, na era moderna, senão uma simples troca de escritos de declarações escritas que devem conter exclusivamente as alegações de fato, e, quanto ao réu, as, alegações necessárias das alegações do adversário, nas quais o litigante se apoia para fundar a demanda ou a defesa, conforme o caso. A comparação das petições das partes mostrará quais são as questões de fato controvertidas.173 A competência funcional diz respeito aos atos processuais, sendo fruto da especulação da moderna ciência processual. É a distribuição feita pela lei entre diversos juízes da mesma ou de instância diversas para que num mesmo processo, ou em um segmento ou fase do seu desenvolvimento, praticar determinados atos. Existem dois elementos que caracterizam a competência funcional: a) existência de um único processo; b) a existência de dois ou mais juízes que praticam atos próprios de jurisdição, tais como proferir decisões ou despachos ordinatórios. Nestes casos, leva-se em conta a especialização dos magistrados, a divisão de trabalho ou maior ou menor capacidade funcional. Quanto à competência, a competência funcional, pode ser dividida: a) competência horizontal, que subdivide-se na competência pelas fases do processo e na competência funcional pelo objeto do Juízo; b) competência vertical, que subdivide-se em competência recursal e competência originária nos casos de foro por prerrogativa de função. No Tribunal do Júri brasileiro, prevalece, a competência horizontal, que se dá quando, dois ou mais órgãos jurisdicionais da mesma instância praticam atos em um mesmo processo. A competência horizontal existe sempre que dois ou mais juízes da mesma instância praticam atos e atividades no mesmo processo. Esta competência se divide: a) fases do processo: como o próprio nome está a indicar, a competência pelas fases do processo, significa a distribuição de poderes instrutórios entre dois ou mais juízes, como exemplo encontramos o procedimento do Tribunal do Júri, em que a Lei de organização judiciária pode indicar um juiz competente 173 - JOLOWICZ, J.A. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? in: Revista Forense, volume 328, outubro, novembro, dezembro de 1994, p. 62. 89 para instrução e outro para o julgamento, ou ainda temos o juiz do processo de conhecimento que profere a decisão condenatória e o juiz da execução, que trata de todos os incidentes da execução, tais como o livramento condicional, sursis, audiência admonitória, a reabilitação criminal, o indulto individual, a progressão de regime e assim por diante; b) objeto do Juízo: a competência funcional por objeto do juízo diz respeito à distribuição de determinadas funções a diferentes juízes. Enquanto a competência funcional pelas fases do processo, diz respeito aos atos instrutórios, que podem ser presididos por cada um dos juízes, a competência funcional pelo objeto do processo diz respeito às decisões que em um mesmo processo são proferidas pro dois ou mais juízes. Ora, no Tribunal do Júri, o juiz togado aplica a pena, dirige o julgamento e decide as questões de direito, enquanto os jurados decidem a causa, decidindo as questões de fato. 174 No escabinado português também temos à competência funcional, vez que o procedimento é dividido em duas fases, a primeira conduzida por um Magistrado togado, de carreira, e a segunda conduzida pelo Tribunal dos Escabinos, momento, em que conjuntamente decidem acerca dos fatos e da matéria de direito, existente no processo. O artigo 13 do Código de Processo Penal Português estabelece a competência material e funcional do Tribunal do Júri. A competência funcional está fixada logo nos nº 1 e 2, enquanto estabelecem que a este tribunal apenas compete julgar os processos, quer dizer, apenas lhe é deferida a competência para a fase do julgamento. Os números 1 e 2 delimitam a competência material do Tribunal do Júri. 175 12. O juízo de admissibilidade da acusação no Tribunal dos Jurados: Uma análise do Direito americano e brasileiro A distinção entre fase preparatória e fase de julgamento envolve outros, que nela estão pressupostos: a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade. No Tribunal do Júri, do modelo “puro”, o devido processo legal é marcado pelo juízo de admissibilidade da acusação (pronúncia e grande júri),seguido pelo julgamento do acusado pelos painéis dos jurados. (conselho de sentença, pequeno júri). O procedimento do júri é complexo, bifurcado e bifásico. Dispõe o art.º. 411, § 9.º do CPP brasileiro, que “encerrados os debates, o juiz proferirá a sua decisão, ou o fará em 10 174 - FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. São Paulo. Editora Saraiva. 2009, p.654. 175 - PIMENTA, José da Costa. Código de Processo Penal Anotado.2ª edição. Lisboa: Rei dos Livros, 1991,p.67. 90 (dez) dias, ordenando que os autos para isso lhe sejam conclusos”. Surgem para o juiz quatro opções processuais: a decisão interlocutória da pronúncia, da impronuncia, da desclassificação e da absolvição sumária. Destas só nos interessa examinar o conteúdo da decisão da pronúncia, pois é nesta que vigora o brocardo in dubio pro societate. No Brasil a função de pronúncia no Brasil é feita com extremo comedimento no Brasil, para que não influencie o convencimento dos jurados. Como assinalado pelo Supremo Tribunal Federal, a fundamentação da sentença de pronúncia deve observar os limites inerentes ao juízo de admissibilidade da acusação, restringindo-se a declinar as razões para o convencimento acerca da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria. Precedentes: HC 94274/SP, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, DJ de 4/2/2010; AI 458072ED/CE rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJ de 15/10/2009; RE 521813/PB, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ªTurma, DJ de 19/3/2009. 3. A fórmula ideal para a fundamentação da sentença de pronúncia encontra-se no art.º. 413, § 1º do CPP, na redação da Lei nº 11.689/2008, que aperfeiçoou a redação outrora disposta no art.º. 408 do CPP, atentando para o problema do excesso de linguagem discutido amplamente na doutrina e para os julgados do Supremo e do STJ acolhendo a tese.176 Diz ainda Vicente Greco: "Usando expressões populares, pode-se dizer que compete ao juiz evitar que um inocente seja jogado 'às feras', correndo o risco de ser condenado, ou que o júri pode fazer uma injustiça absolvendo, não podendo fazer uma injustiça ao condenar." E conclui: O raciocínio do juiz da pronúncia, então, deve ser o seguinte: segundo minha convicção, se este réu for condenado haverá uma injustiça? Se sim, a decisão deverá ser de impronuncia ou de absolvição sumária.177 Parece-nos inegável que teria sido possível, sem atentar contra a soberania do júri ou do juiz singular do fato, ampliar em certa, medida os poderes do juiz durante a fase pré-trial. No entanto, até data muito recente, não se podia detectar tendência alguma a explorar tal possibilidade. É concebível que, na fase, pré-trial, o juiz possa controlar, senão as pretensões das partes, ao menos a determinação das questões que o júri terá de resolver. Há, aliás, uma disposição legislativa a esse respeito. "Entende a jurisprudência, porém, que o juiz não pode ordenar de ofício a reforma dos plearlings. É concebível até que o juiz chegue a crer que seria útil ao descobrimento da verdade ouvir-se uma testemunha qua1quer. Mas, segundo a prática 176 - HC 101698, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/10/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-227 DIVULG 29-11-2011 PUBLIC 30-11-2011. 177 - FILHO, Vicente Greco. Tribunal do Júri:questão polêmicas sobra a pronúncia, in :Tucci, Rogério Lauria (Coord). Tribunal do Júri: Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, p.118. 91 consagrada por bem, conhecida decisão, nenhum poder tem o juiz de convocar à audiência, pessoa que não foi chamada como testemunha por uma ou por outra das partes, a menos que estas deem sua expressa concordância. Na prática, não ocorre a convocação de testemunha pelo juiz. 178 Nos Estados Unidos, a função da admissibilidade da acusação repousa no Grande Júri (Grand Jury). Portanto, antes, contudo, de o réu ser submetido a julgamento pelo tribunal popular, necessário é que os argumentos da acusação tenham sido aceitos pelo Grand Jury (indictment) ou, ainda, que a formal acusação tenha sido formulada pelo próprio Grand Jury (presentment). Exerce, assim, o Grande Júri um juízo de admissibilidade da imputação, tarefa similar à do juiz da pronúncia no modelo brasileiro (decisão que encerra o judicium accusationis).179 13. O Controle judicial no Tribunal do Júri: as diversas funções do juiz e dos jurados É na França, com a Lei de 5 de Março de 1932 concluiu-se a fase da separação recíproca, que estava dominada pela ideia da diferenciação dos factos e do direito, passandose à fase da separação unilateral. O Tribunal e o júri depois do veredicto deliberavam e votavam em comum sobre aplicação da lei. Atribuía-se ao júri, a faculdade de determinar a existência ou não das circunstâncias atenuantes, da responsabilidade e por último, o veredicto. O Tribunal e o júri deliberavam e votavam em comum sobre a aplicação da lei. Na fase da separação unilateral, o Júri continuava a deliberar sobre a realização dos factos e a sua imputabilidade ao autor, mas também era chamado a deliberar com o Tribunal sobre os demais quesitos que até então tinham escapado à sua apreciação, fundamentalmente sobre a aplicação da pena. A operar esta reforma, o legislador queria evitar a repetição de veredictos contraditórios. Os jurados, apesar da evidência dos factos e da confissão do acusado, normalmente respondiam “não culpado” à pergunta sobre a sua culpabilidade por temerem a severidade da pena que tinha que ser decidida pelo Tribunal de Direito. Os autores da Lei de 5 de Março de 1932 esperavam que ao darem ao júri a decisão da pena, evitavam que ele fugisse à verdade contida nas perguntas que haviam feito.180 178 - JOLOWICZ, J.A. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? in: Revista Forense, volume 328, outubro, novembro, dezembro de 1994, p. 62. 179 - GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do Júri. Aspectos críticos em relação à prova.cit.p.13. 180 - ARAÚJO, Nádia de & ALMEIDA, E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual cit., p.209. 92 13.1. O Controle judicial no Tribunal dos Jurados As diferentes funções de juiz e júri em processo penal na Inglaterra são explicados na direção de modelo a seguir, emitido pelo Conselho de Estudos Judiciários em 1991 e aprovado pelo Lord Chief Justica, que um juiz é obrigado a esclarecer ao júri: É o meu trabalho lhes dizer qual é a lei e como aplicá-la para as questões de fato que vocês têm para decidir e para lembrá-los das evidências importantes sobre estas questões. Conforme a lei, vocês tem que aceitar o que eu digo. Quanto aos fatos, vocês são os únicos juízes. Também é seu dever decidir que provas você aceita, que provas você rejeita e aquelas dos quais você não tem certeza. Se uma das partes apresentar uma prova ou fato com os quais você não concorda, deve rejeitar esta prova ou fato. Se uma menção ou prova enfatizar aquilo que você considera como sem importância, deve ignorar essa evidência. Se uma das partes mencionar o que não considera importante, deve seguir o seu próprio ponto de vista em relação às provas que deve tomar em consideração.181 No Brasil, o controle judicial, ao invés de pernicioso à soberania dos veredictos, é saudável, pois filtra, dentro dos postulados previstos pelo devido processo legal, o que é atribuição do júri apreciar e o que é fora da sua competência. Não é qualquer caso que o constituinte entregou à decisão soberana do tribunal popular, mas somente os que envolvam delitos dolosos contra a vida. Dessa forma, respeitadas as regras processuais e constitucionais (juiz natural, devido processo legal, ampla defesa, contraditório, entre outros), cabe ao Judiciário avaliar se a hipótese é de ser julgada pelo júri. Existem opiniões em contrário. Escreve Pontes de Miranda: “De iure condendo, todos os crimes contra a vida deviam ser da competência do júri. A peneira se 'houve dolo ou não’, feita pelo juiz nomeado, em vez de ser função do júri, deturpa o instituto e permite, na prática, ao juiz nomeado e aos tribunais a determinação da competência do júri. (...) De lege ferenda, seria aconselhável riscar-se, em revisão constitucional, a expressão 'dolosos', para que o próprio júri responda se houve dolo, ou não.”182 O Tribunal do Júri é um órgão Judicial composto por duas secções. A primeira delas é composta por cidadãos, designados segundo as leis de cada país. Pela sua parte, a segunda é formada por juízes profissionais, cuja missão será presidir ou dirigir as sessões orais e ditar a sentença segundo as declarações sobre os factos contidas no veredicto. Desde uma perspectiva 181 - INGMAN, Terence. The English legal process. 7. ed. - [London]: Blackstone Press Limited, p.182. 182 - NUCCI, Guilherme de Souza.Júri.Princípios Constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira,1999, p.91. 93 mais psicossocial, podemos definir o Tribunal do Júri como um grupo constituído por um número determinado de elementos que, após uma deliberação, devem chegar a uma decisão penal, segundo uma regra que determina o número de elementos necessários para poder emitir um veredicto final.183 A falta de uma explicação ao júri, de seu papel ao longo das linhas de direção modelo, pode atingir um desvio que poderia resultar na anulação da condenação do acusado em sede de recurso. Ver, por exemplo, contra R v Jackson [1992] Crim LR 214, CA, onde o juiz deu uma direção totalmente inadequada nas funções de juiz e júri e sobre a forma em que o júri levasse em conta os comentários que ele poderia fazer durante a súmula. O juiz deve, em todos os tempos, estar em posição de dar aconselhamento adequado e preciso para um júri, sobre qualquer questão de direito ou de fato que causa dúvidas aos jurados. É importante que, como regra geral e por uma questão de imparcialidade e transparência, não deve existir comunicação privada ou secreta entre o júri e o juiz. Durante as deliberações do júri, qualquer comunicação ao júri, deve ser normalmente tratados com o juiz em audiência pública, na presença de todo o júri e do réu e seu advogado, bem como do Ministério Público. A inobservância desta prática pode ser resultar em nulidade, a ser deduzido pelo juiz em sede de recurso por se tratar de uma irregularidade material no decorrer do julgamento e poderá resultar na anulação da condenação do réu.184 Ê também função do juiz instruir os jurados acerca dos elementos básicos do crime, o que significa a presunção de inocência e assim por diante. Nos Estados Unidos, o júri decide os fatos relacionados ao caso, mas o juiz determina a aplicação da lei. Este instrui o Tribunal do Júri quanto ao significado da lei, e sua aplicação aos fatos do processo. Estas instruções ao júri incluem discussões sobre princípios gerais do Direito Processual Penal (o sujeito é inocente até que seja provada a sua culpa, além de uma dúvida razoável, e assim por diante), bem como instruções específicas sobre os elementos do crime no caso e as ações específicas que o governo deve provar antes que possa haver uma convicção. O defendente pode alegar 183 - DE PAUL, P(1993). De la composicion del veredicto del jurado, in:Jueces para la democracia, p.84. 184 - Cf: os seguintes julgados:R v Lamb (1974) 59 Cr App R 196, CA (conviction quashed); R v Townsend [1982] 1 All EH. 509, CA (conviction quashed); R v Rose [1982] 2 Ali ER 536, CA (conviction quashed); R v Rose gave rise to other proceedings in the House of Lords: see [1982]2 All ER 731 and para 6.3.2.3; R v Woods (1988) 87 Cr App R 60, CA (irregularity, but conviction not quashed); R v Anderson and Mason [1990] Crim ,LR 873, CA (no írregularity); R v Sipson Coachworks Ltd [1992] Crim LR 666, CA (conviction quashed); R v Obellim (1996) The Times, 29 February, CA (conviction quashedj). ln R v Gorman (1987] 2 All ER 435 (no irregularity) 94 qualquer coisa em sua defesa, como a insanidade ou coação. O juiz instrui o júri quanto ao significado destas defesas de acordo com a lei e a Constituição.185 Os Juízes, como sabemos, têm um forte impacto sobre os jurados e sua convicção tem que ser conhecida durante a seleção do júri. Portanto, é importante lembrar que o juiz de seu papel na definição do cenário para voir dire. Os jurados querem agradar o juiz e se o juiz diz aos jurados, para serem abertos e honestos, eles são mais aptos a serem abertos e honestos. Também é útil analisarmos, o que o juiz diz aos jurados antes do interrogatório começar. Há maneiras de transmitir, o que o tribunal sinceramente quer ouvir, o que os jurados têm a dizer, onde não existem respostas certas ou erradas.186 O protagonismo excessivo do magistrado, no Tribunal do Júri, é uma questão levantada pela doutrina espanhola, quando afirma que a figura do magistrado-presidente, adquire uma relevância inquestionável a partir do momento, em que o juiz de instrução, convoca as partes para comparecerem, ante a audiência provincial. Esta posição privilegiada do magistradopresidente começa a destacar-se, desde sua primeira intervenção, por ocasião do art.º 36 da LOTJ, acerca de todas as questões processuais, bem como o pronunciamento acerca do art.666 da Ley de Enjuiciamiento Criminal, e sobre toda a relação com a possível vulneração de algum direito fundamental.187 Mas exatamente a independência do juiz, que vai garantir a possibilidade de julgamento pelos jurados. Duas são as modalidades de independência pessoal do juiz. A externa visa a protegê-lo das ingerências e pressões externas (ad extra) em suas atividades jurisdicionais, que devem ser guiadas unicamente pelo ordenamento jurídico (vale dizer: pelas fontes de direito constitucionalmente reconhecidas). Essa é a independência política do juiz, que é violada quando o Poder Judiciário está subordinado ao Poder Político (Informe Anual da Comissão interamericana de Direitos Humanos, 1982/1983, p. 18, Nicarágua. No mesmo sentido: Informe Anual da Comissão Interamericana ele Direitos Humanos, 1985/1986, p. 190, Paraguai; Informe Anual da Comissão interamericana de Direitos Humanos, 1992/1993, p. 181, Cuba). A independência pessoal interna, por sua vez, visa a amparar o juiz dentro de sua própria instituição, seja em relação aos demais órgãos judiciais, seja principalmente em relação às ingerências elos que ocupam cargos de direção ou governo da Magistratura. É a independência funcional do juiz. Até mesmo dentro do seu próprio órgão colegiado (Câmara, 185 - VV.AA. Race and the jury.Racial Disenfranchisement and the search for justice. London. Plenum Press, 2004, p.367. 186 - VV.AA. Grand Jury. Law and practice. Seconde Edition.V.2. Tomson West, 2010, p.175. 187 - MARTÍN PALLÍN, José Antonio. El jurado, otra forma de justicia? cit., p.224. 95 Seção, Turma etc.) deve o juiz contar com total independência, sendo fundamental nesta circunstância o instituto do voto vencido. Na independência interna, as decisões judiciais não estão sujeitas à fiscalização dos outros poderes do Estado. Não significa isso que não haja um controlo da decisão judicial. Há-o, jurisdicional através das instâncias de recurso, quando legalmente admissível. Os tribunais de recurso podem, por um lado, confirmar, alterar ou infirmar as decisões dos tribunais recorridos, mas “nenhum tribunal pode dar ordens ou instruções a qualquer outro”. Nenhum tribunal está, portanto, vinculado a acatar ordens ou instruções de qualquer órgão jurisdicional. O tribunal de recurso não pode vincular o juiz a essa decisão fora do caso concreto, ou seja, o juiz pode, em outro processo em que se discuta igual problema, decidir da mesma forma que decidira anteriormente, como pode decidir de forma diferente. É o mesmo no tocante aos tribunais de recurso. Estes podem decidir de forma idêntica à anterior ou diferentemente, qualquer que seja a instância, segunda ou terceira. Assim se formam as correntes jurisprudenciais.188A independência pessoal interna, em conclusão, destinam-se a evitar que haja ingerência, limitações, restrições.189 Não restam dúvidas, que o juiz é o garantidor dos direitos e das garantias fundamentais do cidadão. Claus Roxin, citado por Raul Soares de Veiga, no seu Manual de Processo Penal, em capítulo dedicado às medidas de coação e ataques a direitos fundamentais, refere os seguintes direitos fundamentais afetáveis nessa matéria: liberdade pessoal (na detenção e na prisão preventiva, nas buscas e revistas, na submissão forçada a exames médicos em estabelecimentos adequados), disponibilidade do próprio corpo (nas colheitas de sangue e 188 - VASCONCELOS, Pedro Carlos Bacelar. Teoria geral do controlo do poder público.Lisboa:Edição Cosmos,1996,p.185. No direito comparado impõe-se dar relevo (desde logo) a uma das decisões mais importantes nessa matéria: na Espanha adota-se o juizado de instrução, ou seja, quem preside a investigação inicial é um juiz. Durante muitos anos discutiu-se se esse mesmo juiz (investigador, instrutor) podia ou não presidir a fase processual. O Tribunal Constitucional espanhol, fundado na preocupação de se assegurar a imparcialidade do juiz, que é princípio constitucional atrelado ao devido processo e ao juiz natural, em 12.07.1988 (Sentença 145/1988), declarou a inconstitucionalidade do art.º. 2.º da Lei Orgânica 10/1980, que permitia ao juiz de instrução presidir a fase contraditória posterior. Entendeu-se que o juiz que preside a colheita de provas na fase preliminar não pode ser o mesmo que preside o “processo”. cf. : GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado. São Paulo: RT, p. 145; e SANTOS, Andrés De La Oliva. Jueces imparciales, fiscales investigadores y nueva reforma para la vieja crisis de la justicia penal. Barcelona: PPU, 1988, p. 13 e ss. e especialmente p. 25 e ss. 189 - GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos (pacto de São José da Costa Rica) 3 edição, São Paulo:RT,2009, p.97. 96 encefalogramas forçados), propriedade (nas providências conservatórias de objetos e locais e nas apreensões e também na caução como medida de coação privacidade (nas buscas domiciliárias), sigilo das comunicações (nas escutas e apreensões de correspondência), até mesmo a liberdade profissional (na suspensão das funções). Mas todas essas e outras restrições de direitos fundamentais hão de estar bem limitadas, de modo a que não seja ultrapassada a estrita medida do necessário à investigação criminal e do que é proporcional relativamente à gravidade dos factos em investigação.190 Wayne Lafave et al., destacam que uma função importante e legítima do exame voir dire de jurados é obter informações que possam estabelecer uma base para os desafios da causa. Este objetivo que muitos não veem como legitima, é a de doutrinar os potenciais jurados sobre o mérito do caso e do julgamento em desenvolvimento. O juiz tem poder discricionário considerável na decisão que as perguntas podem ser feitas do caso aos jurados, excluindo as questões que se destinem exclusivamente para realizar algum propósito impróprio ou que não são formuladas de forma neutra e não argumentativa, de forma a restringir a análise dos jurados dentro de limites razoáveis, de modo a agilizar o julgamento e na ocasião para restringir a questionar, a fim de dar alguma proteção à privacidade dos jurados.191 O procedimento da voir dire é um ponto essencial e tradicional no júri americano, que é utilizado em todos os procedimentos do Tribunal do Júri, quer no campo criminal, quer no campo cível, quer na concessão ou cassação de medidas cautelares, como é o caso da fiança e caução. Um conjunto eficaz de instruções do júri pode ser um veículo ideal para educar o júri quanto à natureza única da transação referente à caução, uma vez que o conselho de julgamento deve começar o processo de educação em voir dire, garantindo que os jurados saibam a diferença entre uma companhia de seguros e uma garantia, e extrair quaisquer ressentimentos quanto a pessoa do acusado. Já em voir dire, durante discurso de abertura, e em todo julgamento, o advogado deve esforçar-se para personalizar a garantia, de modo que o júri se identifique com o indivíduo em particular.192 Em muitos países, incluindo Estados Unidos, que usam os júris para determinar o resultado dos julgamentos, os leigos sem treinamento ou formação especial ou legal podem 190 VEIGA, Raul Soares. O juiz da instrução e a tutela dos direitos fundamentais, in: Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais. Coordenação de Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p.186. 191 - VV.AA. Criminal procedure. St. Paul, MN: Thomson/West, c 2004, p.1037. 192 - NIESLEY, Robert C. Model jury insructions for surety cases.American Bar Association, 2002, p.4. 97 servir como jurados. Como resultado, essas pessoas, devem ser educadas sobre as leis e as regras processuais que são aplicáveis ao caso em questão. Isto é tipicamente feito através de instruções entregues pelo juiz. A suposição é que os jurados podem ser suficientemente educados através deste processo, e pode, como resultado, dar uma sentença que se baseia na compreensão adequada da lei. No entanto, uma pesquisa em ciências sociais, revelou que os jurados têm normalmente grande dificuldade em compreender as instruções que lhes são apresentadas. Uma das queixas mais comum dos jurados é que ninguém tenha tido tempo para informá-los sobre o processo de julgamento. A orientação do júri é o fórum adequado para preparar os jurados para o que vai acontecer, e seu papel no processo. Aos jurados deve primeiro ser dito como é que se dá a escolha do júri, como os advogados ou o juiz vão fazerlhes perguntas sobre suas experiências e opiniões. Eles devem ser informados de que este é o momento em que devem ser totalmente honestos sobre qualquer coisa que ouviu, acredita ou sente, sobre uma determinada situação. Deve-se compreender que o jurado adequado é aquele que é aberto e honesto, independentemente de serem ou não escolhidos para esse caso particular.193 As instruções ocorrem em três momentos distintos: (a) logo após a seleção dos jurados; (b) durante a produção da prova; (c) antes da deliberação sobre a responsabilidade do réu quanto à imputação, e a prolação da sentença. Assim, preliminarmente, o juiz informa o conselho de sentença sobre seus direitos e deveres, explicando-lhes a natureza do caso a ser julgado. Indica-lhes ainda o réu e faz referência à imputação que sobre ele recai. Já durante a produção da prova, embora não haja previsão legal, é costume, nas cortes federais, adotar o magistrado conduta consistente em explicar aos jurados as regras que regem o direito probatório. Encerrada a produção da prova, o juiz novamente os instrui, reiterando suas primeiras informações, fazendo alusão àquelas surgidas durante a instrução probatória, bem como fornecendo outras necessárias à deliberação. Os jurados, nesse momento, são informados sobre o direito material aplicável ao caso e, de maneira particularizada, são advertidos quanto aos fatos que devem considerar, a fim de que possam emitir um veredicto (cfr.: Maria-Ángeles Pérez Cebadera, Las instrucciones ai jurado, cit.).194 193 - VVAA. Grand Jury. Law and practice. Seconde Edition.V.2. Tomson West, 2010, p.141. 194 - Não há uma lei clara, declarando como devem ser estas instruções. Elas podem ser realizadas na forma de um filme, ou de um folheto ou cartilha, que descrevem com precisão o trabalho dos jurados, para ouvir as informações e determinar o que eles acreditam que a partir dos fatos. Outros contam aos jurados que eles não 98 Embora os efeitos das instruções ao júri sejam geralmente fracos, as instruções preventivas podem ajudar a aumentar a sensibilidade dos jurados sobre a evidência da confissão e potencialmente reduzir o risco de falsas e errôneas convicções. Alguns Tribunais estaduais concentraram-se em instruções como uma maneira de reformar as práticas de interrogatório e garantir o uso de evidências mais confiáveis de veredictos do júri mais precisos195. A Suprema Corte Judicial de Massachusetts decidiu que qualquer confissão resultante de um interrogatório não gravado confere o direito ao réu, a pedido de sua defesa de uma instrução de júri: "... advertindo ao júri que, por causa da ausência de qualquer gravação, no caso antes do veredito, eles devem pesar evidências, a alegada declaração do defendentes com grande cautela e cuidado”. Mais recentemente, um comitê especial designado pelo Supremo Tribunal de New Jersey, recomendou que os réus, em New Jersey, têm o direito de uma instrução de advertência, no caso em que a Polícia de New Jersey, não registre eletronicamente o interrogatório do suspeito em sua totalidade (Relatório da Comissão especial acerca dos interrogatórios eletrônicos dos presos, 2005). 196 Note-se que no Canadá os juízes devem determinar os meios apropriados de transmitir a lei para os jurados e muitas vezes deve transmitir a lei utilizando a linguagem exata usada pelo Parlamento Europeu ou a linguagem dos tribunais. Como resultado, a lei canadense acrescenta camadas de complexidade acadêmica em cima das regras do direito comum. Além disso, o juiz deve transmitir a teoria da acusação e da defesa. Como resultado, parece que as instruções do júri canadenses são difíceis de entender.197 Além das facetas do processo de julgamento, os jurados devem ter questões logísticas esclarecidas. Os jurados são geralmente preocupados com coisas pequenas como onde estacionar o seu carro, onde almoçar, onde tomar um café ou uma bebida suave, onde são os banheiros e outras coisas que podem ajudá-los a se sentir mais familiarizado em um ambiente desconhecido. Os modos com o qual os jurados são abordados durante a voir dire, devem ter opiniões ou pensamentos, explicando a eles, que, durante a voir dire, é errado para eles a divulgar informações ou expressar uma opinião. 195 196 197 - Commonwealth v. DiGiambatrista (2004) - KRAUSS, Daniel A.; LIEBERMAN, Joel D. Psychological expertise in Court, V.II.Ashgate, 2003, p.49. - STEELE, Walter W. Jr.; THORNBURG, Elizabeth G. Jury Instructions: A Persistent Failure to Communicate. North Carolina Law Review, Vol. 67, 1998-1999,p.120. 99 geralmente é feito por meio de um interrogatório. O advogado que conduz a orientação destas perguntas pode fazer uma grande diferença na forma como os jurados se sentem sobre esta experiência. 100 Capitulo 2. O Ministério Público e sua atuação no Tribunal do Júri: especialização, composição e instrumentos de política criminal e sua repercussão no julgamento imparcial 1. A especialização do Ministério Público no âmbito do Tribunal do Júri No presente capitulo examinaremos o excessivo protagonismo do Ministério Público no Tribunal do Júri, tendo como modelo, o Ministério Público americano, pois neste sistema, que o Promotor de Justiça, tem uma maior independência e poder, utilizando os instrumentos de negociação (plea bargaining) como fortalecimento de seu poder, e até mesmo influenciando e ditando a politica criminal dos Tribunais americanos, consoante a doutrina mais especializada.198 A especialização do membro do Ministério Público, por evidente, se reflete em sua atuação no Tribunal do Júri, uma vez que seus integrantes cada vez mais se tornam altamente especializados nas áreas atinentes ao Tribunal do Júri, tais como: especialização na escolha dos jurados, eficiência como orador nos debates do Tribunal do Júri, conhecedor das áreas da criminologia, psiquiatra e psicologia forense, criminalística e medicina legal, entre tantas outras áreas relacionadas ao seu intenso trabalho nas lides do Tribunal do Júri. Nos Estados Unidos, cada município tem um promotor, conhecido como o Promotor Distrital (district attorney), ou Procurador do Condado (county prossecutor), que geralmente é eleito pelo público a cada quatro anos. O Ministério Público americano é o único órgão com a autoridade legal para acusar alguém de um crime. O seu papel não é apenas julgar casos criminais, mas garantir que a justiça seja feita para no lugar em que o crime foi cometido. Portanto, o Ministério Público americano não é obrigado a processar uma pessoa a menos que a evidência seja suficiente para justificar um julgamento. O promotor público tem uma pesada responsabilidade, um grande de poder e uma grande quantidade de energia. O escritório do procurador distrital é composto por uma série de outros promotores (ou vice advogados do condado), e, dependendo do tamanho do escritório e da carga de trabalho de acusação, a cada promotor é atribuída uma função específica dentro do departamento, podendo ser atribuídas funções junto a um tribunal inferior para representar o estado durante todo o processo inicial de pessoas acusadas por um crime. Outro advogado pode realizar todos os exames preliminares; outro pode processar os infratores nas contravenções ou lidar com todos os 198 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª Reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 475. 101 assuntos de trânsito, enquanto outro advogado mais experiente pode ficar com os processos de maior repercussão e importância199. Contudo, hoje se trabalha na base da especialização. A acusação vertical (vertical prossecution) é um método relativamente novo, em que um membro do Ministério Público americano trata de todos os casos referentes a um determinado assunto. As jurisdições estão começando a usar este método em casos sensíveis, tais como abuso sexual infantil ou assédio sexual. Isso também permite que a vítima lide com apenas um procurador, com quem ele ou ela pode desenvolver um relacionamento, e permite que o Ministério Público desenvolva uma especialização em determinados casos. Promotores do condado estão usando esta abordagem em certos tipos de casos, como agressão sexual, acusação de quadrilha e roubo de carros. Como ressaltado por William F. Mcdonald, no âmbito do Ministério Público americano, alguns promotores podem controlar o calendário do tribunal; alguns na defesa de populações hipossuficientes, outros através de decisões de condenação e de barganha; outros fazendo investigação extensa e trabalho policial; alguns desempenhando um papel ativo no Serviço Especial de proteção de vítimas e testemunhas, e outros participando ativamente do lobby no Legislativo estadual200. A discricionariedade do Promotor de Justiça americano, também é muito grande, uma vez que lhe cabe apreciar a suficiência das provas, a legalidade do comportamento do policial, a gravidade do crime, o comportamento da vítima, o risco para a segurança pública, os sentimentos da comunidade quanto à infração, a possível punição após a condenação e se a punição é obrigatória, o papel da pessoa no crime, os antecedentes do infrator, a vontade do acusado de cooperar com a investigação ou processo penal, os motivos do reclamante, bem como o impacto do julgamento sobre a vítima, especialmente se a vítima é jovem. Ressalte-se que esta não é uma lista exaustiva201. O Ministério Público americano ainda dispõe de assistência jurídica, e uma estrutura de investigação, podendo intimar diretamente a as testemunhas e ter controle direto sobre as provas que são trazidas diretamente para eles. Isto dá ao promotor uma grande quantidade de controle sobre o processo. O controle de um promotor deriva de manusear o inquérito e é reforçado por outros fatores: os promotores costumam desenvolver uma relação de confiança trabalhando com jurados, no qual eles estão dispostos a confiar no julgamento do promotor e 199 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3ª Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 107. 200 - MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor ed. - Beverly Hills [u.a.]: Sage Publ., 1979. - 279 S. - (Sage criminal Justice System Annuals; 11), 1979, p. 18. 201 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3ª Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 108. 102 seguem a sua liderança. Em casos federais que tendem a envolver crimes que são mais complexos do que os processos em causa no Estado, os jurados também confiam no promotor de orientação para lidar com as complexidades legais de uma investigação. A sua dependência do Ministério Público é exacerbado pela não permanência de um grande júri, e o fato dos jurados servirem por um tempo limitado e normalmente se reunirem apenas uma ou duas vezes por semana202. Ao Ministério Público como instância formal de controle do crime interessa, de forma quase exclusiva, a sua função de deduzir a acusação ou de ordenar o arquivamento no processo penal. A sua importância como instância de seleção advém, na verdade, do fato de ele ser o gate-keeper do sistema jurisdicional de resposta ao crime e, por isso, o responsável principal pela mortalidade dos casos criminais. Como afirma Sessar, “se a vítima é a instância mais importante quanto à iniciativa de controle do crime, o Ministério Público é seguramente a mais importante no que toca ao seu desfecho”203. Apesar disso, a ação penal é, para o Ministério Público, indisponível. Podemos destacar a importância do princípio em estudo afirmando que ele preserva os fundamentos essenciais do Estado de Direito, porquanto põe a Justiça Penal a salvo de suspeitas e tentações de parcialidade e arbítrio. Se fosse possível aos órgãos públicos encarregados do procedimento penal apreciar da conveniência do seu exercício e omiti-la por inoportuno, avolumar-se-ia o perigo do aparecimento de influências externas, das ordens mais diversas, na administração da Justiça Penal e, mesmo quando tais influências não lograssem impor-se, ocorreria o perigo de diminuir (ou desaparecer) a confiança da comunidade na incondicional objetividade daquela administração204. Modelo de legalidade e natureza judiciária da função do Ministério Público que são determinantes, no início do século XX: “se a soberania está interessada em promover o procedimento criminal, o órgão ao qual deve caber essa função tem de ser o judiciário, visto que a este compete restaurar a ordem que foi perturbada (...), portanto, o Ministério Público quando promove a ação penal, não deve considerar-se como representante do Poder Executivo; apenas representante do Estado e órgão da lei”. O que lhe permitia concluir de forma decidida: “O Ministério Público deverá, como os magistrados judiciais, reconhecer 202 - BRENNER, Susan W.; LOCKART, Gregory G. Federal grand jury practice. Criminal pratice Series, Lockhart. Edition, 2005, p. 34. 203 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2. Reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 471. 204 - DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 128 103 apenas o império da lei e a ação disciplinar dos seus superiores, que por sua vez devem ser absolutamente independentes do Governo”205. A especialização do membro do Ministério Público, por evidente, se reflete em sua atuação no Tribunal do Júri, uma vez que seus integrantes cada vez mais se tornam altamente especializados nas áreas atinentes ao Tribunal do Júri, tais como: especialização na escolha dos jurados, eficiência como orador nos debates do Tribunal do Júri, conhecedor das áreas da criminologia, psiquiatra e psicologia forense, criminalística e medicina legal, entre tantas outras áreas relacionadas ao seu intenso trabalho nas lides do Tribunal do Júri. No Brasil, a única instituição que saiu de fato fortalecida foi o Ministério Público, com ampliação das suas garantias e funções, tornando-se um verdadeiro Poder Social, do qual se espera a maior combatividade possível, pois, desatrelado do Executivo, tanto na órbita federal como na estadual, assim como impedido de exercer a política partidária, poderá tornar-se um órgão realmente independente, capaz de velar pela Constituição e suas leis, lutando em favor da sociedade. É o que todos esperamos dessa instituição206. O Ministério Público é um órgão autônomo de administração da justiça, “autônomo” no sentido de independente dos tribunais, embora com ele material e funcionalmente conexionado, e dotado de estrutura e organização próprias, e também dos demais órgãos do poder central, regional e local, e de administração da justiça, enquanto participando da realização do direito no caso concreto, atua unicamente subordinado aos valores da verdade e da justiça. É em razão dessa qualidade do Ministério Público que se considera que atribuir-lhe a competência para dirigir as investigações pré-acusatórias - o inquérito - é ainda uma garantia para os cidadãos e uma garantia para a coletividade, uma garantia de realização da justiça207. No Brasil, o art.º 127 da Constituição Federal declara que o Ministério Público é instituição, permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis. O que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento do Estado moderno, é por um lado à divisão do trabalho, por outro a monopolização da tributação e da violência física. Em nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as mesmas funções. O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração 205 - MESQUITA, Paulo Dá. Processo Penal. Prova e sistema judiciário. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 35. 206 - NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 8-9. 207 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 418. 104 (não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos incisos do art.º. 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (art.º. 129, I da Constituição Federal). Esta especialização indica que existem promotores especializados, para a defesa da ordem jurídica como um todo (constitucionalmente e na federação), bem como parcialmente (nos Estados-membros e nas varas especializadas). No Tribunal do Júri, notadamente, o Promotor de Justiça especializado, defende a vida, uma vez que no Brasil o Tribunal do Júri é competente, para o julgamento dos crimes dolosos, tentados ou consumados, contra a vida. Encontramos as seguintes características do Tribunal do Júri no Brasil: a) os juízes são tirados do povo; b) decidem por íntima convicção (jurados) e através do livre convencimento motivado (Juiz-Presidente); c) tratam matérias de fato (jurados) e de direito (Juiz-Presidente); d) há divisão de trabalho entre o jurado e o juiz-Presidente; e) tutela o direito de liberdade, visto que se encontra no art.º. 5º, XXXVIII da Constituição Federal 208; f) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados: homicídio doloso, simples, privilegiado ou qualificado; participação em suicídio; infanticídio; aborto e genocídio; g) é um órgão especial da justiça comum, estadual e federal; h) é um órgão colegiado heterogêneo e temporário. Ressalte-se, que esta especialização leva a um excessivo protagonismo do Ministério Público no Tribunal do Júri, levando a um desequilíbrio das partes no processo, e tendo repercussão no processo justo e imparcial. 2. Diversificação e acordo no âmbito do Tribunal do Júri: os instrumentos de política criminal do Ministério Público Neste capítulo, vamos introduzir os instrumentos de acordo do Ministério Público, ainda na forma de protagonismo no Tribunal do Júri, e como estas formas de acordo vão de encontro a uma política criminal ditada pelo Ministério Público americano. 208 - A doutrina é vaga no que diz respeito ao bem jurídico que é tutelado pelo Tribunal do Júri. Caso o Tribunal do Júri encerre algum direito fundamental, ou apenas um direito, deve corresponder ao de ser julgado pelo povo, por seus próprios pares. 105 Em regra, não existe lugar para o acordo no Tribunal do Júri, tendo em vista que cabe à instituição o julgamento dos crimes mais graves do ordenamento jurídico, mas existem exceções, como se verá oportunamente. 209 Particularmente, quanto ao aspecto teleológico da integração funcional, a resultante decorre da aproximação entre as finalidades procuradas com a adoção dos acordos em sede do processo penal e aquelas perseguidas através da imposição das sanções penais: retribuição na medida da culpabilidade, prevenção geral e especial. É de se registar, inclusive, que o defendido diálogo necessário entre o Direito Penal e o Processo Penal, particularmente em relação aos ritos consensuais, não deve ser estabelecido apenas num único sentido, ou seja, aquele partindo do segundo para o primeiro; diversamente, também o Direito Penal deverá moldar-se aos novos ritos processuais, fornecendo a tutela indispensável para que eles tenham plena atuação. Fala-se mesmo em “una riforma indiretta e non dichiarata del diritto penal e sostanziale”, pela via do processo penal, particularmente no que se refere às hipóteses em que o consenso pressuponha uma redução operada na medida da pena a ser imposta. Adequada, pois, a advertência de Marzadurl de que a adoção de novos ritos processuais com base em acordo entre as partes exige uma “articulação calibrada” de todo o sistema penal, não sendo acertada a atribuição a uma Lei Especial, limitada na sua possibilidade de reforma, a responsabilidade da introdução de uma “orgânica e complexa operação de política processual a favor de um radical potenciamento das formas de flexibilidade do rito”210. Na Espanha, as partes podem acordar quanto à dissolução do júri caso haja consenso no sentido de se condenar o réu, mas a pena não poderá ser superior a seis anos de privação de liberdade, isoladamente; ou cumulativamente, pena de multa ou privação de direitos. Na mesma orientação, não obstante o Ministério Público estar sujeito ao princípio da legalidade, atuando com sujeição à Constituição, às leis e demais normas do ordenamento jurídico 209 - Acordo" ou “conciliação” no processo penal são eufemismos que presumivelmente designam a reação do processo penal à sua saturação. Esta saturação deve ser creditada à específica hipertrofia do direito penal material, pelo que também ela é um problema “moderno”. Não é por mera coincidência que precisamente as matérias penais “modernas” - ambiente, droga e sistema económico - são apontadas pela doutrina como os campos mais apropriados para a realização de acordo ou conciliação. No estado catual, ainda não é possível prever qual dentre as formas de conciliação indicadas pela acirrada discussão doutrinária irá prevalecer e impregnar o processo penal do futuro. Ainda assim, já é possível avistar onde esta viagem vai dar e quais os traumas político-legislativos ficarão pelo caminho, in: HASSEMER,Winfried. História das ideias penais na Alemanha do Pós-Guerra. Lisboa: Associação Acadêmica Faculdade de Direito de Lisboa, 1995,p.68. 210 - FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2004, p.157. 106 espanhol (art.º 105 da LECRIM), pode ele dispor do conteúdo material do processo e com “imparcialidade, objetividade e independência funcional” retirar a pretensão acusatória com consequente dissolução do conselho de sentença e prolação de sentença absolutória 211. Como nos países em que o sistema acusatório permite a independência do Ministério Público, o Ministério Público espanhol pode postular pela absolvição, sendo que neste caso o conselho é dissolvido e o réu, absolvido. Ou seja, não se submete ao júri se o Ministério Público retirar a pretensão acusatória. Há forte inspiração e respeito ao princípio acusatório no Direito espanhol por força do art.º. 6.1 do CEDH em face da interpretação jurisprudencial efetuada pelo TEDH, o que, por si só, desautoriza julgamento se não há mais pretensão acusatória212. É, no entanto, necessário dizer que o Código de Processo Penal traz uma distinção clara entre os crimes graves e os pequenos crimes. São criados dois diferentes espaços, a favor de uma solução ou consentimento nos casos dos pequenos crimes. No caso da criminalidade grave ou violenta, a lei, permite uma rutura entre o acusado e a estrutura social e requer formalização e a instauração do Juízo, enquanto na pequena criminalidade existe uma aposta na reconciliação entre o acusado e sociedade, através de um processo de pacificação e até mesmo da eliminação da reação do Direito Penal. O pequeno e o médio crime são terrenos naturais para criar os espaços de assentimento. Mas é nestes que surgem no Código as 211 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 55. 212 SENDRA,Vicente. Derecho Procesual Penal. 3ª ed. Madrid: Codex, 1999, p. 78. Em segundo lugar, um outro exemplo, mais recente ainda, que ilustra bem a tendência aludida, é o das controversas alterações de Março de 2003 ao já citado Protect Act e que tomaram o nome do republicano da Flórida (Tom Feeney) que as propôs (Feeney Amendment) já chamadas “( ... ) the saddest and most counterproductive episode in the evolution of federal sentencing doctrinee?'. Para o que aqui nos importa, do que se tratou aí, a pretexto de uma excessiva indulgência dos juízes, foi de limitar a possibilidade de aplicarem pena abaixo do previsto nas guidelines (downward departures), eliminando-se muitas das hipóteses até aí previstas. Mas, como nota Bibas, do que se tratou, na verdade, foi de limitar o poder de o juiz fazê-lo unilateralmente; ou melhor ainda, ao fazer depender as atenuações de pena - seja por aceitação de responsabilidade, seja por cooperação com as autoridades, ou no âmbito de um fast-track program - de requerimento do M.P., do que se curou foi, uma vez mais, de conferir ao prosecutor um poderoso instrumento de negociação. Posto que as atenuações por substancial assistance, não eliminadas pelo Feeney Amendment, ocorrem em um sexto de todas as penas aplicadas no âmbito das Fed. Sent. Guid., é bem provável que a ratio do Feeney Amendment esteja mais no fortalecimento da posição do M.P. do que numa tentativa de contrariar a suposta indulgência dos juízes,In: Albergaria, Pedro Soares. Plea bargaining.Aproximação à Justiça Negociada nos EUA.Coimbra: Almedina, 2007, p.98. 107 oportunidades e o consenso, porque que o Ministério Público tem sobre a acusação várias soluções, além de julgamento e punição213. 3. A plea bargaining no Tribunal do Júri americano Comecemos este capítulo com a “época da descoberta da “plea bargaining”. Essa descoberta foi fruto de várias comissões que, na década de 20/30 do séc. XX e a diferentes níveis (federal, estatal e local), estudaram o funcionamento da justiça penal norte-americana, então mergulhada em profunda crise. Uma delas, destinada ao estudo da justiça penal na cidade de Cleveland, foi entregue à direção de um dos mais famosos juristas (e também eminente botânico) norte-americanos da primeira metade do séc. XX, Roscoe Pound, que depois convidou para ser seu codiretor Felix Frankfurter. Essa comissão surgiu, como as demais, no contexto do crime wave que então assolava os meios urbanos, mas teve como curioso elemento detonador o escândalo subsequente ao julgamento midiático de um juiz, acusado de conspiracy num homicídio, que, absolvido, veio a saber-se ter subornado uma testemunha. O relatório serviu de ampla base a uma das mais significativas obras de Pound, Criminal Justice in América, escrita em 1930. Em geral, a experiência norte-americana não divergiu sensivelmente da inglesa, na qual tem boa parte das suas raízes, durante muito tempo avessa à guilty plea. Como refere Fanchiotti, citando Blackstone, só no último quarto do séc. XIX a guilty plea “encontra hospitalidade com uma certa frequência nos repertórios jurisprudenciais ingleses”. Antes, e desde o séc. XVII é encarada com “uma feroz oposição seja por parte da doutrina seja por parte da jurisprudência (...) inclinada a encorajar o arguido confesso a retratar a declaração transformando-a numa plea of not guilty”214. De entre a multiplicidade dos fatores sociais e econômicos que se vêm alinhando como tendo força explicativa do desenvolvimento e afirmação do fenômeno da plea bargaining, conta-se a intensa industrialização da nação americana posterior à guerra civil, industrialização que então se consolidava e colocava a América, nesse particular, como segunda potência mundial, e, bem assim, o exponencial aumento da população (de 4 milhões em 1800 para 81 milhões em 1920), sobretudo a população urbana (de meio milhão em 1830 213 - MOURA, José de Souto. Le procés pénal au Portugal. Procès pénal et droits de l’homme, in: DELMAR- MARTY, Mireille (Coord.). Paris: Press Universitaires de France, 2003, p. 95. 214 - FANCHIOTTI, Inoltre. Politica criminale e giudizio direttissimo. Milano, 1980, p. 62. Também sobre essa resistência inicial, V., SPENCER, European Criminal Procedures, Cambridge: Cambridge University Press, p. 17., e ALSCHULER, L. & Soe'y Rev., 13 (1979), p. 214 e ss. 108 para 30 milhões em 1900), devido, nomeadamente, às compactas vagas de imigrantes que chegavam aos portos americanos. Como é óbvio, essa efervescência, além de potenciá-los, proporcionou a redefinição dos conflitos interpessoais, agora mais refratários às questões que atormentavam a velha América rural, e complexificou-os. Portanto, mais intenso recurso a mecanismos de resolução formal de conflitos, em detrimento daqueles outros informais (v. g., a família, as organizações religiosas, etc.), e o consequente aumento da pressão processual215. O aumento da pressão das pendências é, todavia, tão só a “cara” de que o refinamento e complexificação do processo penal é a “coroa”: ambas determinaram um significativo aumento do trabalho. Com efeito, conforme demonstrou Feeley, a tensão naturalmente resultante da morosidade do julgamento por júri não se fez sentir até ao século XIX. Até então o jury trial ocorria em geral sem a presença de advogados em representação da defesa e da acusação; e o arguido, mais do que clamar por inocência e pugnar pela absolvição, concentrava os seus esforços na obtenção de clemência e benevolência. Tudo justificava a caracterização do jury trial pela conhecida expressão de mera “alteração” entre o arguido e o representante da acusação perante o juiz e o júri e a aproximação singular do seu figurino àquele outro da atual sentence hearing ou do processo de plea bargaining. Assim, pode bem dizer-se com aquele autor que a existência de uma “época de ouro” do jury trial não passa, em certo sentido, de uma mistificação histórica: entre o jury trial do século XVIII e o processo de plea bargaining do século XIX existirão menos soluções de continuidade do que se poderia supor. É que mesmo tendo por correto que o “nascimento” do adversary system e as garantias processuais que lhe são próprias e o complexificam (a hearsay rule, as ruies of evidence, a utilização de peritos, a participação de advogados em representação da defesa e da acusação, etc.) se situa no início do séc. XVIII, consolidando-se do ponto de vista positivo, em 15 de dezembro de 1791, com a entrada em vigor das IV, V,VI e VII Emendas à Constituição relativas ao processo penal, o certo é que essa mutação formal ficou, salvo casos excepcionais (e, em geral, em função do relevante estatuto e possibilidades do arguido), longos anos (sensivelmente até meados do século XIX) como que “adormecida”, sem manifestação prática. Só no século XIX, com a maciça afluência dos juristas ao processo penal, quer em representação da defesa, quer da acusação, numa palavra, com a profissionalização (lawyerization) do processo, é que as inovações processuais formalmente introduzidas no século XVIII se tornaram em law in action, fazendo 215 - FISHER, George. Plea bargaininng’s triumph. A history of plea bargaining in America. California: Stanford, 2003, p. 34. 109 muito mais morosos os julgamentos por júri e necessária a procura de formas expeditas de resolução de casos criminais. Estava criado o “processo bifurcado”: “um decrescente número de casos era tratado por um Tribunal de Júri cada vez mais complicado e um crescente número de casos era resolvido num processo rápido de guilty pleas e plea bargaining dominado por advogados”216. 4. A discricionariedade do Promotor de Justiça americano: características, finalidades, requisitos e fiscalização no Tribunal do Júri Como se observa uma das características mais marcantes do sistema americano é a discricionariedade dos atos do Promotor de Justiça. O promotor controla e supervisiona todo o inquérito, sendo o responsável pela correção e efetividade da colheita de elementos probatórios. O Chefe da Promotoria é, na maioria das vezes, eleito, dispondo de verbas significativas e pessoal próprio e efetuando diligências com razoável autonomia, sendo requerida autorização judicial nos casos em que estão envolvidos direitos básicos dos investigados. Pode arquivar inquéritos por conta própria; quando dá curso à ação, submete a denúncia, em alguns estados, ao Grand Jury. Geralmente, ele oferece a denúncia diretamente ao juiz-presidente do Petty (ou Petit) Jury. É aí que tem lugar a plea bargaining, oportunidade 216 - FEELEY, Malcolm M. Legal Complexity and the Transformation of the Criminal Process: The Origins of Plea Bargaining. Israel L. Rev., 31, 1997, p. 190. Os acordos desformalizam o processo penal, abreviam-no, tornam-no mais barato e aumentam a capacidade da justiça penal de processar maior número de casos. Os acordos têm uma série de princípios constitucionais e processuais fundamentais como inimigos evidentes: publicidade das audiências (porque a conciliação requer discrição e sigilo); juiz legal (porque a tendência para introduzir a participação de juízes leigos também nas audiências de julgamento está pouco desenvolvida); princípio da legalidade (porque, compreensivelmente, não será o conteúdo do direito penal material aplicável ao caso que guiará a decisão final, e sim a avaliação oportunista das perspectivas de desfecho do processo e da disposição dos “partners” para o acordo); princípio inquisitório (porque o “grande achado” do acordo consiste exactamente em evitar investigações de outro modo inevitáveis); nemo tenetur se ipsum accusare (porque só faz sentido participar numa conciliação se se tem algo para oferecer); igualdade de tratamento (porque se deve proceder de tal modo que o acusado pouco disposto ou pouco capaz de cooperar seja, por esta mesma razão, tratado com mais rigor), in:HASSEMER,Winfried.História das ideias penais na Alemanha do PósGuerra.Lisboa:Associação acadêmica Faculdade de Direito de Lisboa, 1995,p.69. 110 em que a acusação pode pleitear uma plea of guilty de iniciativa do acusado em troca de uma capitulação do crime mais branda217. O estatuto jurídico do Ministério Público diferencia-se, desde logo, pela extensão do seu domínio, isto é, pelo número e importância das atribuições que lhe são legalmente cometidas. Quanto a isto, é manifesta e exemplar a distância que separa v. g.,o prosecutor americano do Ministério Público europeu continental, de modelo francês. A história do Ministério Público na América é a história da progressiva e irreversível expansão do seu domínio, acabando por sobrepor em larga medida à da polícia e do tribunal. É sistemático, a este propósito, o que se passou com a plea negotiation, segundo McDonald uma nítida incursão no terreno do tribunal e uma manifestação típica da confusão de papéis que existe na administração de justiça americana. De apenas tolerado ou implicitamente aceite, o instituto da plea bargaining acabou por ganhar foros de cidadania. A ponto de hoje decorrer, pode dizer-se, à margem do controle do tribunal, o qual, na prática, se limita a homologar os seus resultados. Ainda na linha da expressiva caracterização de McDonald: “a indústria da justiça criminal americana converteu-se, nos últimos dois séculos, de uma pequena tarefa de amadores, a gigantesca engrenagem burocrática ocupada por profissionais o tempo inteiro. O velho sistema assentava 217 - ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual. in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4 , nº 15, Julho-setembro, 1995, p. 211. Cf: a doutrina portuguesa, na defesa de uma maior margem de discricionariedade real do MP: Nesta mesma linha, da restrição das margens da discricionariedade real, parece-nos importante atribuir densidade à obrigação do MP de fundamentar a decisão de não encaminhar o processo para as formas consensuais, designadamente o processo sumaríssimo, verificados que sejam os pressupostos abstratos respetivos. Essa forma de fundamentação de pendor "negativo", concisa mas com base em factos determinados, parece-nos ser mais incisiva no desencorajamento do recurso indevido à forma comum. A consagração expressa de nulidade para a violação desse dever de fundamentação reforçará claramente esse potencial. Por fim, é manifesto que o locus processual próprio para a atualização desse dever é o despacho de encerramento do inquérito. Naturalmente, a obrigação do MP, até aqui vigente, de fundamentar pela negativa, mas em concreto a não aplicabilidade de pena de prisão (artigo 394.º do CPP), deixa de fazer sentido à luz do caminho que propomos de, em certos pressupostos, estender esta forma processual às penas de prisão; e a mais disso, aproveitamos o ensejo para observar que aquela redação vigente se mostra inadequada e até contraproducente do ponto de vista do objetivo de maximização dessa forma consensual, uma vez que na prática resulta em que os concretos agentes do MP se veem mais onerados quando seguem a via a que a lei alegadamente atribui preferência! Estas razões justificam uma proposta de alteração da regra, passando o MP, sob pena de nulidade, a ter de fundamentar, de modo conciso mas com base em factos determinados, a razão pela qual não promove a aplicação da suspensão provisória do processo ou do processo sumaríssimo, in,VV.AA. Mudar a Justiça Penal. Linhas de Reforma do Processo Penal Português (coordenação, António Latas). Lisboa: Almedina, 2011,p.92. 111 em três componentes fundamentais: a vítima, o juiz e o júri, sendo o julgamento pelo júri a forma principal de solução. Os principais componentes do sistema atual são a polícia, o Ministério Público, o juiz e os estabelecimentos de correção, sendo a decisão do Ministério Público de não aceitar ou de arquivar o processo a forma mais corrente de solução. Acresce que a maior parte das condenações são obtidas mediante negociações em que o Ministério Público normalmente participa. Desta transformação resultou que a figura do Ministério Público passou, de um papel virtualmente inexistente, a ocupar aposição de protagonista do sistema. Muito deste crescimento deu-se à custa da deslocação de outras componentes, (...) a polícia, o tribunal (...) o juiz e o júri, a quem o Ministério Público continua a retirar a competência para determinar a culpa e proferir a sentença”218. Um dos limites ao exercício da ação penal por parte do Ministério Público corre sob a denominação de proibição da selective prosecution, isto é da ação penal exercida de forma discriminatória. Com esta proibição, de criação jurisprudencial, pretende-se evitar que o Ministério Público exerça o seu poder seletivamente, com base em critérios arbitrários, como a raça, o sexo, o credo, etc. A sua matriz constitucional é, portanto, a equal protection clause, constante da XIV Emenda à Constituição Federal. A origem daquela doutrina remonta a um famoso caso (Yick Wo v. Hopkins) apreciado pelo Supremo Tribunal Federal em 1886. Esse caso, porém, relevou da ordem administrativa pelo que só muito mais tarde, em 1962 (Oyler v. Boles), ela se estendeu à ordem penal, onerando o Ministério Público. De todo o modo, a prova dos requisitos que a jurisprudência estabeleceu como exigíveis para a procedência de uma alegação de discriminatory prosecution é de tal forma difícil para o arguido que os casos de sucesso são extremamente raros. Esses requisitos são dois, um objetivo e outro subjetivo: de acordo com o primeiro, que com algum luxo classificatório pode também subdividir-se, tem o arguido que alegar e provar não só que foi selecionado como tal em função de um critério arbitrário, nos termos sobreditos, mas ainda que outros indivíduos colocados nas mesmas circunstâncias não o foram (discriminatory effect); de acordo com o segundo, impende sobre o arguido o ônus de alegar e provar que a singularização dele no caso concreto, segundo critério arbitrário, ocorreu na sequência de uma opção consciente e deliberada por parte do acusador (discriminatory purpose). O Ministério Público, desta forma, pode simplesmente optar por não arquivar as peças de investigação. Se o assunto for menor e realmente parecer ser mais de um litígio civil entre 218 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2. Reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1977.p. 475. 112 duas pessoas do que um crime público, o prossecutor pode chamar ambas as partes para o escritório e tentar resolver a situação sem ação judicial. Em alguns casos que são menores, mas de natureza criminosa, o promotor pode chegar a um acordo com a defesa, e suspender os processos criminais por algum período de tempo, um ano, por exemplo. Se o réu não reincidir, o processo ou o inquérito policial é arquivado219. A diretiva da American Bar Association, separando-se de sua posição inicial adotada em 1968, reconhece ao juiz um papel ativo, como presidente das sessões negociais, indicando o acordo aceitável e suas consequências. Esta ideia de uma plea bargaining trata de legalizar o procedimento advindo das confissões obtidas, que caracteriza o cenário negocial, mormente ante a soberania ilimitada do órgão público de acusação, próprio do sistema americano220. A plea bargaining, sem sombra de dúvida, coloca excessivo poder, nas mãos do Ministério Público americano, que tem em seu favor a balança da acusação. Como veremos adiante, uma das principais finalidades da plea bargaining,é a obtenção da confissão do acusado, que muitas vezes confessa o delito, tão-somente para livrar-se dos inúmeros interrogatórios e da acusação do Ministério Público. Referida diretiva, ofende o devido processo legal, no que tange ao processo imparcial e justo, tendo em vista, que os acusados, aceitam a barganha para livrar-se do peso do processo penal. Tem entendido a doutrina brasileira que a simples submissão de uma pessoa ao processo penal, por si só, é causa de constrangimento, em não havendo a chamada “justa 219 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 108. Por fim, não só ao nível legislativo se nota um progressivo empobrecimento do poder sentenciador do juiz, em favor do M.P. Também como resultado prático da recente e marcante decisão da Suprema Corte em Apprendi v. New Jersey, aquele poder do M.P. terá saído fortalecido. Nela, o Tribunal quebrou a distinção, mais ou menos sedimentada, entre elementos do crime (elements of an offense) e factos relevantes para a pena (sentencing facts), em termos de aqueles terem de ser provados perante um júri e beyond a reasonable doubt e de bastar, quanto aos últimos, serem determinados pelo juiz e mediante mera preponde rance of the evidence, e declarou que “The Constitution requires that any fact that increases the penalty for a crime beyond the prescribed statutory maximum, other than the fact of a prior conviction, must be submitted to a jury and proved beyond a reasonable doubte” O sentido dessa decisão é o de, aparentemente, fortalecer a participação dos cidadãos na administração da justiça, redesenhando o equilíbrio de poderes entre o juiz e o júri, rectius, limitando, em favor do órgão popular, a judicial discretion em matéria setenciadora,In: Albergaria, Pedro Soares. Plea bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos EUA.Coimbra: Almedina, 2007, p.75. 220 - Standards for criminal justice, plea discussions and plea agreements, 1 980, stand, 14.3.3 113 causa”, que alguns identificam como a quarta condição da ação.221 Afrânio da Silva Jardim, também partidário do entendimento de que o processo já é em si uma espécie de pena para quem responde injustamente, entende que a justa causa é suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. 222 5. Justificativas para a utilização da plea bargaining Em coadunação com o capítulo anterior, verificamos o superfortalecimento de uma parte (MP), em detrimento das outras partes e do próprio Tribunal do Júri. È da plea bargaining, que ele tira sua força, pois a maior parte dos casos é negociável, e tem em mira a necessidade criada em torno da instituição, para “ganhar” os casos ou mesmo selecioná-los, para julgamento. 223 O critério fundamental que preside a conduta do Ministério Público resulta da necessidade de ganhar casos ou, talvez mais rigorosamente segundo Skolxick, da preocupação de acima de tudo não os perder. É esta preocupação que dita a atitude inicial do Ministério Público quando, para se decidir pela aceitação ou não do processo, começa por classificar os casos como “bons” ou “fracos”. E também aqui a vítima, com a sua 221 - Reputamos correta a lição de Maria Thereza Rocha de Assis Moura, sustentando que a justa causa, em verdade, espelha uma síntese das condições da ação. Inexistindo uma delas, não há justa causa para a ação penal, in: Justa causa para a ação penal- doutrina e jurisprudência: Revista dos Tribunais. São Paulo, p. 221. 222 - JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 2ª Ed.. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 1999. P. 95. 223 - Em segundo lugar, um outro exemplo, mais recente ainda, que ilustra bem a tendência aludida, é o das controversas alterações de Março de 2003 ao Protect Act e que tomaram o nome do republicano da Flórida (Tom Feeney) que as propôs (Feeney Amendment) já chamadas “( ... ) “the saddest and most counterproductive episode in the evolution of federal sentencing doctrinee?'. Para o que aqui nos importa, do que se tratou aí, a pretexto de uma excessiva indulgência dos juízes, foi de limitar a possibilidade de aplicarem pena abaixo do previsto nas guidelines (downward departures), eliminando-se muitas das hipóteses até aí previstas. Mas, como nota Bibas, do que se tratou, na verdade, foi de limitar o poder de o juiz fazê-lo unilateralmente; ou melhor ainda, ao fazer depender as atenuações de pena - seja por aceitação de responsabilidade, seja por cooperação com as autoridades, ou no âmbito de um fast-track program - de requerimento do M.P., do que se curou foi, uma vez mais, de conferir ao prosecutor um poderoso instrumento de negociação. Posto que as atenuações por substancial assistance, não eliminadas pelo Feeney Amendment, ocorrem em um sexto de todas as penas aplicadas no âmbito das Fed. Sent. Guid., é bem provável que a ratio do Feeney Amendment esteja mais no fortalecimento da posição do M.P. do que numa tentativa de contrariar a suposta indulgência dos juízes, in:Albergaria, Pedro Soares. Plea bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos EUA.Coimbra:Almedina,2007, p.32. 114 competência de ação, desempenha um papel de relevo. É o que mais uma vez demonstra, de forma impressiva, o estudo de Holmstrom e Burgess sobre a vítima da violação, na sua interação com o Ministério Público. À semelhança da polícia e do pessoal do hospital, também o Ministério Público tem um estereótipo do que seja a vítima ideal do crime de violação e dos casos que podem fornecer “boas testemunhas”. “Querem uma vítima que desempenhe um bom papel de testemunha. Se o caso termina em absolvição há a tendência para censurar a vítima pelo insucesso (...). Para ser uma boa vítima, ela deve acima de tudo ser capaz de oferecer um testemunho explícito e consistente”224. Como justificação para a plea bargaining, os partidários do instituto buscam a justificação de sua validez na eficácia que se obtém desde a perspectiva da redução de cortes do serviço judicial que se evitam mediante esta prática. Também se busca dar o tratamento adequado a cada caso específico, bem como a proteção do acusado frente a reação dos jurados em determinados delitos225. Para além da tentativa de fundamentação filosófica, uma base criminológica para o modelo de diversão e, por via de consequência, para a justiça penal consensual, pode ser procurada a partir da teoria do labeling approach. Esta teoria criminológica parte do substrato comum de que “as questões centrais da teoria e da prática criminológica deixam de se reportar ao 'delinquente' ou mesmo ao 'crime', para se dirigirem, sobretudo, ao próprio sistema de controle, como conjunto articulado de instâncias de produção normativa e de audiências de reação”. O campo natural de investigação dessa criminologia deixa de ser os “motivos” do delinquente para centrar-se sobre os critérios de seleção utilizados pelas agências ou instâncias formais de controle 226 . Uma das justificativas mais comuns para a negociação é a necessidade de solucionar os casos o mais rapidamente possível, uma vez que, caso contrário, o sistema do tribunal pode chegar a um impasse. Como forma de pressões para a diminuição do número de casos, a influência das decisões de negociação, no entanto, permanece incerta. Alschuler acredita que essas pressões são fatores de fundo que não determinam nem que casos devem ser negociados ou em que termos. Pelo contrário, estas pressões atuam à distância e simplesmente exigem que apenas uma parte do número de casos sejam negociados. Mills descreve as pressões em relação ao número 224 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2. Reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 475. 225 - ALSCHULER, A. Prosecutor’s role in plea bargaining. In: Law review. Vol. 36, 1968, p. 62. 226 - FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal, cit., p. 147. 115 de casos como tendo um impacto direto e angustiante no mecanismo da plea bragaining227. Um estudo do discurso também pode fornecer uma teoria que explica completamente a prevalência de decisões negociadas. Como as atuais teorias que sugerem que as altas taxas de declarações de culpa são devido à sobrecarga das cortes, uma negociação com justiça substantiva, ou a troca feita entre acusação e defesa claramente não conseguem acomodar alguns fatos sobre o fundamento da negociação, e até mesmo a reconhecer outros. Acredita-se que cada teoria não leva em conta os mecanismos do comportamento humano, para prever como os profissionais do direito resolvem os casos como uma prática cotidiana em interação direta228. A gravidade do crime penal também pode ser considerada um fator por vários pesquisadores americanos, com o qual concordamos, uma vez que a gravidade do crime é de fato um fator de influência na negociação. Mas descobrimos que, dentro e entre as jurisdições existem diferenças substanciais na forma como a seriedade é definida na prática. Alguns juízes permitiram um registro de prévias convicções para ser usado apenas em discussões de condenação; e, esta política é compartilhada pelo Ministério Público na sua avaliação de casos de apelo para negociação. Por outro lado, em outros lugares os promotores e juízes prontamente consideram registros de prisões e até mesmo a suspeição do envolvimento do réu em atividades criminosas como base para determinar a possibilidade da negociação.229 A força do caso, isto é, a produção probatória com fortes evidências contra o réu, também contribui para a plea bargaining. A suposição de importância crucial por trás da tomada de decisão no sistema de justiça criminal é a crença de que os advogados são capazes de avaliar a derrota no Tribunal. Os advogados acreditam que são capazes para estimar a probabilidade de um caso ir a julgamento, resultando em uma condenação. O programa inicial de triagem opera na suposição de que os casos fracos podem ser identificados de forma confiável e resolvidos prontamente. A decisão de barganha e os termos do acordo judicial são relatados por praticamente todos os pesquisadores que abordam esta questão, posicionam-se pela influência da força do caso. O advogado, em regra, aceita a barganha quando prevê a possibilidade de uma condenação para o seu cliente.230 227 - MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor ed., Cit. p. 153. 228 - MAINARD, Douglas W. Narratives and narratives struture in plea bargaining. in: Law societat rewiew. Vol 22, nº 3, 1988, p. 67. 229 - ALSCHULER, A. Prosecutor’s role in plea bargaining, p. 64. 230 - MAINARD, Douglas W. Narratives and narratives struture in plea bargaining, p.76. 116 Um estudo informal pelo Instituto de Direito e Investigação Social fornece alguns motivos para acreditar que sob certas circunstâncias os advogados são incapazes de avaliar com precisão a força do caso. Um dos recursos na versão inicial do PROMIS 231 (Sistema de Gestão do Ministério Público) foi um sistema de classificação do caso. O sistema é atualizado diariamente, de acordo com uma fórmula que combina três critérios, um dos quais é a estimativa do promotor acerca da probabilidade de uma condenação.232 Os atributos pessoais de advogado têm sido apontados para confirmar que certos atributos (do Ministério Público e da defesa) podem influenciar tanto a decisão de fundamento quanto os termos da negociação. Um atributo é a reputação do advogado. O segundo é a relação pessoal entre os advogados com a parte adversária. A reputação de um advogado é baseada em várias coisas, incluindo sua honestidade, sua disposição de ir a julgamento, e sua capacidade de julgamento. O julgamento é um trabalho árduo em que ambos, promotor e advogado de defesa, tentam minimizar ou evitar, até certo ponto. Alguns advogados são conhecidos por nunca irem a julgamento. Também há relatos de advogados de defesa, que nunca levaram um caso a julgamento para fazer a negociação. É pouco conhecido o papel da vítima nos fundamentos da negociação. Em uma pesquisa nacional, salientou-se que os desejos da vítima raramente eram considerados na barganha em relação à tomada de decisão, exceto para os casos particularmente notório e em algumas jurisdições, notadamente em casos de estupro. 233 A última conclusão encontrada pelos estudos de especialistas são as circunstâncias, bem como vários atributos do réu ou da vítima ou outras especiais circunstâncias relacionadas com o crime podem ser consideradas como “atenuantes”, e acredita-se influenciar a decisão da barganha e os termos do acordo 234. 231 - Prosecutorial Management Information System. 232 - MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor, cit., p.102. 233 - MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor, cit., p.98. 234 - JOHANNA TERESA LAGOY et al. Plaintiffs and Appellants, v. Kenneth Leroy Clements et al., Defendants and Respondents.Disponivel em: «http:// www. lawlink. com/ research/ caselevel 3/ 60048 ». Acesso em 22 de março de 2012. 117 6. Plea bargaining e a confissão da culpa A plea bargaining, do Direito americano, também resulta de procedimentos consensuais em busca da confissão, e aplicação de uma pena atenuante, fruto do acordo entre o Ministério Público e a defesa. O instituto aplica-se também aos crimes de maior potencial ofensivo. No instituto americano, visa-se de forma precípua a declaração de culpa, sendo esta a sua finalidade principal. O Ministério Público, ante o fato de ser o sistema judiciário americano acusatório puro, dispõe de uma maior discricionariedade na aplicação da plea bargaining235. De qualquer sorte, pelo instituto da plea bargaining, vê-se que a atuação do Ministério Público é irrestrita, pois vige o princípio da oportunidade pura. Ademais, este tipo de negociação implica reconhecimento de culpa (guilty plea) e oferta de alguma vantagem (acusação por crime menos grave ou número menor de crimes) para se obter a confissão, o que inocorre no modelo brasileiro da transação penal. Então, evidente no sistema americano o desequilíbrio entre Acusação e Defesa. Aliás, o próprio termo bargaining, traduzido para o vernáculo - barganha -, significa "transação fraudulenta; trapaça".236(grifo do autor) Investigações sobre a história de barganha, como por exemplo, Alschuler, Friedman, Heumann, têm mostrado que confissões de culpa tornaram-se um importante fator para a negociação, no final do século XIX e início do século XX no país, ocasionando uma maior taxa de criminalidade e número de casos criminais a serem resolvidos. A negociação tem sido realizada por pressões colocadas sobre os tribunais em razão do número de casos e, assim, contribuído para o aumento das taxas de negociação, acrescido de declarações de culpa. Estas taxas de aumento também devem ser vistas, no entanto, em relação a uma série de fortuitos acontecimentos históricos, incluindo a disponibilidade da confissão de culpa, a resistência ao uso de testes de ADN e outros, como a ascensão do Ministério Público como uma profissão, a criação de modernos departamentos de polícia e o declínio frequente da autoridade do tribunal, o surgimento de uma “nova penologia”, enfatizando a individualização da pena, e o crescimento do Direito Penal 237. 235 - NAVES, Luciana Freire. Plea Bargaining: A Transação Penal nos Estados Unidos da América. in: Revista da Fundação Escola Superior Do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Ano 3, nº 5, janeirojunho,1995, p. 235. 236 - ZANNATA,Airton. A Transação Penal e o Poder Discricionário do Ministério Público. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris.2001, p.30. 237 - MAINARD, Douglas W. Narratives and narratives struture in plea bargaining. in: Law societat rewiew. Vol. 22, nº 3, 1988, p. 68. 118 Senhor indiscutível e primeiro da plea bargaining foi e é, como se sabe, o Ministério Público. Foi na respectiva esfera que antes de todos se gerou a motivação e o incentivo para a imposição de penas através e na sequência de um processo de negociação da declaração de culpa. Para a emergência daquelas motivações e incentivos contribuiu, sem dúvida, a pressão do trabalho, como vimos fruto da conjugação do aumento das pendências com a morosidade e complexidade do processo. Mas ficar por aqui seria redutor, não podendo descartar-se, antes pelo contrário, as respectivas especificidades institucionais e de carreira. Em primeiro lugar, e como ponto essencial, não pode esquecer-se o modo de provimento dos elementos do Ministério Público no cargo correspondente. Com efeito, uma das preocupações da presidência dos Tribunais americanos, sob a direção de Andrew Jackson foi a da democratização das instituições, democratização essa que, sensivelmente a partir de 1820, ao nível dos estados federados, intentou alcançar-se através da eleição não só do State Attorney General (figura central do Ministério Público ao nível estadual), mas também do Municipal Attorney, do County Attorney e do District Attorney. Assim é, ainda hoje (e, aliás, desde 1850), em todos os Estados, à exceção de New Jersey, Connecticut, Rhode Island e Delaware 238. Na decisão Blackledge v. Allison ficou assentado que “a confissão de culpa e da barganha, muitas vezes concomitantes, são componentes importantes do sistema deste país de justiça criminal. Corretamente administrados podem beneficiar todos os envolvidos”239. Em outra decisão, Bordenkircher v. Haye ficou decidido que não há violação a cláusula do devido processo da Décima Quarta Emenda quando o promotor realiza uma negociação para persuadir o acusado a confessar, outras acusações mais graves em que ele está claramente sujeito a processo, se ele não se declarar culpado para o crime com a qual ele foi originalmente processado240. No corpo do acórdão verifica-se que a suprema corte americana considerou que em cada caso a solução mais rápida e eficaz aumenta o número de condenações, proporcionando a solução mais rápida e eficaz para cada caso.241 238 - MC CONVILLE, Mike; MC CONVILLE, Michael; MIRSKY, Chester. Jury Trials and Plea Bargaining: A True History. New York: Hart Publishing, 2005, p. 56. 239 - Blackledge v. Allison, 431 EUA 63 , 431 EUA 71 . Pp. 434 US 361 -362 Pp. 434 EUA 361 -362 240 - Bordenkircher v. Hayes, 434 US 357 (1978). 241 - Efetivamente, a hipervalorização da confissão que se extrai da esmagadora prevalência de pleas of guilty ocorre porque o sistema está desenhado para ser coercivo e, porque o é, dá em que ao arguido sejam subtraídas, por renúncia, as garantias e direitos processuais que estão preordenados as assegurar um processo justo. Não vamos aqui repetir o que foi dito antes, acerca das tácticas usadas pelo M.P. para coagir o arguido a declarar-se 119 No caso Alford, a Suprema Corte dos Estados Unidos afirmou que não existem barreiras constitucionais em vigor, para impedir um juiz de aceitar uma confissão de culpa de um réu, que quer se declarar culpado, mesmo que protestando a sua inocência. Este tipo de apelo que se tornou conhecido como Alford guilty plea 242, que difere um pouco do nolo contendere, é o fundamento em que o arguido compromete-se a ser condenado pelo crime, mas não admite culpa 243. O caso Alford também foi célebre, tendo em vista, que o acusado confessou o crime, procurando o acordo, para fugir da pena capital. Um dos pontos mais fortes do plea bargaining system, em confronto com o julgamento por júri, é, sem dúvida, o da alta previsibilidade da pena aplicável a um determinado crime quando as partes se dispõem à negociação: seja em função da natureza e circunstâncias do crime, seja em função da consistência das provas em poder das partes, seja, enfim, em atenção aos antecedentes criminais do arguido. Essa previsibilidade, que se afirma, sobretudo, no local courts, é fruto do tratamento rotineiro e burocrático da matéria processual e da interiorização de determinadas “normas de grupo”, com base nas quais, cada sujeito processual sabe mais ou menos com o que contar. Como refere Walker: “ao longo dos anos, procuradores, advogados de defesa, juízes e outros agentes da justiça estabelecem um entendimento comum acerca de duas questões básicas: como os casos rotineiros devem ser resolvidos e qual a punição previsível para os vários crimes. A última é comumente conhecida como a going rate”244. culpado, nomeadamente aquelas que desbordam dos limites legal e jurisprudencialmente impostos (como a overcharging, a overrecomendation ou o bluffing). Apenas queremos sublinhar duas características, por assim dizer estruturais, do sistema, que colocam sobre o arguido uma enorme pressão no sentido de aceitar a oferta do M.P. que implica, claro está, a declaração de culpa. Em primeiro lugar, a extrema severidade das penas aplicáveis e aplicadas aos arguidos que sejam condenados na sequência de julgamento, em confronto com as penas aplicadas na sequência de negociação e declaração de culpa; em segundo lugar, a assimetria material entre a acusação e a defesa, em prejuízo desta, no que respeita à informação relevante exercício de adivinhação, um exercício de táctica processual que, amiúde, influi mais sobre o desfecho do processo do que a verdade dos factos e do que fatores penológicos. Uma tal relevância das escolhas tácticas no desfecho do caso não é certamente, como refere Alschuler, a marca de contraste de um sistema justo, in: Albergaria, Pedro Soares. Plea bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos EUA. Coimbra: Almedina,2007,p.47. 242 - SHEPHERD, Jr.; ROBERT E. (November 2000). Annual Survey of Virginia Law Article: Legal issues involving children. University of Richmond Law Review (University of Richmond Law Review Association) 34: 939. 243 - North Carolina v. Alford, 400 EUA 25 (1970 244 - WALKE, Samuel. Taming the System: The Control of Discretion in Criminal Justice. Oxford: University Press, 1993, p.56. 120 Desta forma, a confissão da culpa, muitas vezes sem estar formada ou comprovada, demonstra o excessivo protagonismo do Ministério Público americano, e abala a delicada relação entre as partes, como já referido acima, tendo reflexo sobre a imparcialidade das decisões que norteiam o Tribunal do Júri. 7. Plea bargaining e subtração da competência do Tribunal do Júri Contudo há quem veja na plea bargaining, um instrumento nas mãos dos poderosos, uma vez que serve no campo criminal de batalha dos tribunais criminais, para aumentar o poder dos juízes e promotores, dentro de uma história que destaca o jogo de forças sociais e minimiza o papel dos atores humanos. Segundo estudos recentes, a plea bargaining aumentou nos Estados Unidos diante da pressão eleitoral de novos imigrantes, e da nova indústria de criação de “linha de montagem de justiça”, que foi criando força à medida em os atores externos, especialmente os legisladores, desempenharam um papel na luta entre os que apoiavam e os que não apoiavam a instituição do júri, tomando partido daqueles que defendiam o júri. E na medida em que as forças sociais mais amplas, tais como a imigração e a industrialização, foram influenciando o resultado do conflito, fizeram aumentar o número de casos criminais, de um lado, e o número de casos civis do outro, alterando assim os interesses e opções de promotores e juízes 245. Quanto à fase específica da plea bargaining, os autores tem posto em evidência um conjunto de fatores que relevam diretamente os imperativos de eficiência e de sucesso. O Ministério Público dispõe-se normalmente a oferecer e a aceitar a negociação da culpa quando as dificuldades da prova, a complexidade e as circunstâncias do caso (v. g., o fato de a polícia ter obtido a prova à custa da violação dos direitos constitucionais do suspeito) tornam o resultado final aleatório ou moroso. Ou, segundo a impressiva expressão de um prosecutor americano: “A primeira pergunta que me coloco a mim próprio ao decidir o que devo fazer com a plea guilt em relação a um arguido é: Quanto tempo posso dispor no tribunal? A segunda é: Posso provar a acusação?” O processo penal através do sistema é caro, especialmente se esta pessoa opta por um julgamento com o júri. Além disso, o resultado de um processo criminal pode não resultar em condenação, com a consequente absolvição do réu. Para evitar desperdício de tempo, esforço 245 - FISHER, George. Plea bargaininng’s triumph. A history of plea bargaining in America. California: Stanford, 2003, p. 17. 121 e dinheiro para o Estado e para evitar um registro criminal para certos tipos de ofensas que merecem uma segunda chance, as legislaturas em muitos estados criaram uma variedade de leis que tratam da diversão. Diversão é definida como a suspensão temporária do processo penal com o consequente encaminhamento do acusado para algum tipo de educação, formação, ou tratamento programado. O tratamento programado mais comum é a escola de trânsito, em que uma pessoa indiciada por um delito menor de trânsito, frequenta cursos educativos para aprender sobre condução segura e defensiva. Muitas vezes, este tipo de ensino é ministrado em programas de educação, por quaisquer fornecedores privados, ou faculdades locais, e o infrator de trânsito paga uma taxa para ter este tipo de educação. Depois de completar a escola de trânsito, o processo é arquivado e os antecedentes do acusado(a) não sofrem qualquer alteração246. A plea bargaining tem (pelo menos) duas ou mais influências e repercussões no âmbito do Júri americano: a primeira, não muito benéfica, subtrai do Tribunal do Júri a sua competência, uma vez que feito o acordo, o caso não irá a julgamento. Este primeiro efeito não deixa de também ser benéfico à justiça, pois descongestiona e cria meios de evitar um processo caro, demorado e incerto para as partes. Os meios, contudo, que impulsionam a plea bargaining, é que podem ser questionáveis, uma vez que há uma preocupação excessiva com a admissão e confissão da culpa pelo acusado por parte do Ministério Público. Por outro lado, há também o juízo sobre a lei penal incriminatória, a sua legitimidade, a adequação e justiça das respectivas sanções, a influência da decisão do prosecutor americano. O recurso à plea bargaining é muitas vezes um expediente através do qual ele dá curso às críticas que lhe suscita a ação do legislador. Sabido, por exemplo, que o júri e o tribunal propendem para moderar a aplicação de sanções consideradas desproporcionadas e excessivas, pode o Ministério Público, para evitar, em todo caso, a impunidade, manipular o objeto da acusação de modo a tornar óbvia e aceitável uma sanção mais moderada. Tal terá, além do mais, a vantagem não despicienda de lhe permitir sobrepor ao do tribunal o seu próprio código ético e as representações político-criminais que lhe subjazem. É o que ilustra o exemplo relatado por Newman: “Por ter vendido a um amigo um cigarro de marijuana, um jovem de 17 anos foi processado por tráfico de drogas. Embora a venda se pudesse provar, o Ministério Público reduziu a acusação para o delito menos grave de detenção ilícita de estupefacientes.” E explicava: “Não podemos introduzir estes casos em julgamento. Desde logo, porque a lei não é clara quanto a eles. Depois, quando um júri verifica que a pena para o 246 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 110. 122 tráfico de drogas oscila entre um mínimo de 20 anos e a prisão perpétua, ele limita-se pura e simplesmente a absolver. Quem, com efeito, se disporia a mandar para a prisão por 20 anos, um jovem de 17 anos?” 247. Além da plea bargaining, as pressões criadas pelo aumento das demandas e a correspondente despesa e delonga levaram não apenas a um aperfeiçoamento do gerenciamento de feitos antes do julgamento, mas também à busca de outros métodos de solução das controvérsias. Essa pesquisa determinou o surgimento do movimento conhecido como Alternative Dispute Resolution (formas alternativas de solução de litígios), conhecido abreviadamente como ADR. O movimento é informado por três preocupações diversas, mas frequentemente superpostas. Uma é a preocupação com a sobrecarga dos tribunais, conjugada com o desejo de reduzir a quantidade de trabalho judicial. Outra é a preocupação quanto à necessidade de acesso a um processo menos dispendioso e trabalhoso que a litigância tradicional. Outra preocupação ainda é a de que os tribunais não são os melhores agentes para a resolução de determinados tipos de controvérsias. O processo adversário é visto como inadequado para a solução de disputas quando as partes entretêm um relacionamento prolongado e que pretendam venha a se estender no tempo. Tais relacionamentos podem envolver membros de uma família, proprietários e inquilinos, escolas e estudantes ou consumidores e comerciantes. Seja qual for a motivação, o movimento teve seguimento, e programas de ADR foram criados por todo o país 248. Todavia, o direito do acusado de renunciar ao julgamento pelo júri, optando pelo julgamento pelo juiz, e a prerrogativa da acusação de negociar com os indiciados uma denúncia mais branda, em troca de uma admissão de culpa - que é quase sempre aceita pelo juiz - fazem com que o número de ofensas criminais que efetivamente vão ao julgamento pelo júri seja extremamente menor do que o número de casos que chegam ao conhecimento da Justiça249. Anote-se ainda a existência no direito italiano do instituto nolo contedere (não quero contender), em que não se discute a culpabilidade, podendo esta existir ou não. Trata-se de 247 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2. Reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 491. 248 - MEADOR, Daniel Jonh. Os Tribunais nos Estados Unidos. West Publishing - GB- serviços de divulgação culturais dos EUA, 1991, p. 74. 249 - ARAÚJO, Nádia; ALMEIDA, E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4 , nº 15, Julhosetembro, 1995, p. 212. 123 renúncia recíproca, quer do Estado, em seu poder punitivo, quer do acusado, em face da presunção de inocência250. Nos Estados Unidos é possível a negociação com os próprios jurados entre si. É possível a negociação entre os grupos que formam o Tribunal do Júri americano, porque muitas vezes os júris têm várias opções de veredicto, há sempre espaço para compromisso entre diferentes facções no júri. Por exemplo, os jurados podem ter de escolher entre condenar o defendente em homicídio em segundo grau, homicídio involuntário, ou absolver. Dado o veredicto, tais escolhas, não são mais suscetíveis de negociação. Oportunidades semelhantes de negociação e de compromisso existem nos casos que envolvem múltiplos crimes em série, ou múltiplas acusações que variam em gravidade. A dinâmica do grupo de negociação na sala do júri desempenha um papel importante na prevenção de júris suspensos. A "troca de favores" é uma forma particular de compromisso entre o júri, quando há vários réus acusados pelo mesmo incidente, oportunidade em que os jurados podem condenar um dos réus, mas não os outros, mesmo que a prova seja a mesma no julgamento conjunto de todos os arguidos251. Reputamos, por conseguinte, consequência natural da plea bargaining, é a subtração do julgamento pelo Tribunal do Júri, feito pelo MP, em nome da celeridade e do eficaz funcionamento do sistema. Isto naturalmente pode levar a disparidades, como o não julgamento de um individuo realmente culpado, em troca de uma sentença mais branda. 250 - GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: RT, 2005, p. 256. 251 - MEYER Jon'a F. GRANT, Diana R. The courts in our criminal justice system. New York: Prentice Hall, 2008, p. 363. Nos Estados Unidos, tanto o governo federal como os governos estaduais têm autoridade para processar e julgar crimes. O governo federal possui suas próprias leis penais, seu sistema judiciário, seu corpo de juízes, promotores e defensores públicos e suas próprias agências de investigação policial. O mesmo se dá a nível estadual com a peculiaridade de que cada estado é autônomo para criar seu próprio sistema e suas próprias leis. Diante desta autonomia dos 50 estados federados, estes podem ser observados como 50 diferentes laboratórios. O National Institute of Justice foi criado diante da preocupação do governo federal com a enorme disparidade entre os estados mais ricos e aqueles com menos recursos. O Instituto observa as realidades locais, toma conhecimento de programas que apresentam resultados positivos, sugere o desenvolvimento de programas semelhantes em outros estados com realidades semelhantes. Pode-se dizer que os pesquisadores e observadores têm uma visão panorâmica da realidade nacional, o que os capacita a fornecer informações preciosas que, de outra forma, não atingiriam aqueles estados mais pobres. (cf: OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt. A política criminal nos Estados Unidos da America-notas de viagem. in: Revista brasileira de ciências criminais, nº 19, p. 79.) 124 8. A imunidade conferida às testemunhas e a plea bargaining Outro exemplo de barganha no direito norte-americano é a concessão de imunidade à testemunha, em troca de um depoimento favorável à acusação252. Um problema adicional de frente para o Ministério Público é a diferença no depoimento obtido a partir de uma testemunha imunizada que obteve a imunidade, mas que está interessada em ser cooperativa e que tem resistido a ser imunizada e profundamente se ressente de ser compelida a se tornar uma testemunha governamental. O promotor pode ser capaz de obrigar o depoimento de uma testemunha imunizada que não está interessada em cooperar, mas o processo pode vir a ser mais difícil, muitas vezes, não valendo a pena. Uma testemunha pode ser obrigada a testemunhar sob juramento verdadeiro, mas ela não pode ser obrigada a reunir-se com o promotor antes de julgamento, entregar informações voluntárias ao Ministério Público, ou sugerir linhas frutíferas de questionamento. Para se proteger contra o risco de obter um depoimento inútil em troca de uma subvenção de imunidade, os promotores normalmente procuram uma oferta detalhada do depoimento da testemunha, através do advogado de defesa antes da obtenção de imunidade. Quando a testemunha não aceita a imunização, é claro que o advogado de defesa vai normalmente recusar a proposta do Promotor de Justiça (ou sugerem que a testemunha não tem nada útil para oferecer a acusação). Nesse cenário, o promotor deve obter um trunfo nas mãos, e de alguma forma arriscar, ante o fato da testemunha ser útil ou não para a acusação, após a concessão da imunidade. Se o palpite acaba por ser errado, os promotores podem ter perdido os seus esforços, mas, ao mesmo tempo, a concessão de imunidade torna ainda mais restritas as suas opções de ganhar o processo 253. A concessão de imunidade é também extremamente importante para o advogado de defesa. A negociação para obter uma concessão de imunidade pode vir a ser o serviço mais valioso que um advogado de defesa pode apresentar para um cliente. No início da investigação de um caso complexo, o governo muitas vezes é confrontado com a questão de saber quem pode oferecer a imunidade, dentre os participantes suspeitos, para obter provas 252 Nos EUA consagrou-te um sistema base que se afasta de modo importante do inglês, uma vez que existe o Ministério Público, detentor de latos poderes de oportunidade, mas não da tarefa de investigação, que com base nas provas recolhidas pela polícia, terá de acusar ou não, competindo-lhe desta forma aduzir o material probatório da culpa do arguido detido e reclamar uma "audiência preliminar”. (cf: VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal. Tomo I. Lisboa: Almedina, 1997, p. 58.) 253 - VV.AA. Grand Jury Law and practice.seconde Edition.Vol.2 Tomson West, 2010, p. 7-4. 125 contra os outros. Muitas vezes, está longe de ser óbvio que assunto ou assuntos devem ser imunizados. Nesse cenário, o advogado de defesa pode desempenhar um papel crítico no caso da negociação com o governo sobre como obter imunidade para o cliente254. A concessão de imunidade às testemunhas do processo, também tem repercussão no processo justo e imparcial, pois retira a acusação dos menos culpados, para garantir a punibilidade, daqueles que tiveram uma maior participação na atividade criminosa. Neste capítulo, continuamos a mesma linha de pensamento, que é a concessão do governo americano de favores, em troca de resultados rápidos em relação ao julgamento. São fatores que interferem no julgamento isento e imparcial do Tribunal do Júri. 254 - As partes mesmo em matéria civil têm o direito a um julgamento justo, preciso e oportuno, perante o júri, em conformidade com a lei. Em matéria civil, o direito de julgamento por júri pode ser dispensada nos termos da legislação aplicável, mas a dispensa não deve ser presumida, nem exigida quando os interesses da justiça exigem o contrário. No que diz respeito aos processos penais: 1. A renúncia do réu ao direito de julgamento por júri deve ser voluntária, e aceita pelo procurador e pelo tribunal. 2. O tribunal não deve aceitar uma renúncia a menos que o acusado, após ser aconselhado por um tribunal de seu direito a um julgamento por júri e as consequências de sua renúncia, pessoalmente, renúncia ao direito de julgamento pelo júri por escrito ou em audiência pública sobre o registro. 3. Oacusado não pode se retratar de uma renúncia voluntária, por uma questão de direito, mas o tribunal, a seu critério, poderá permitir a retirada da renúncia, antes do início do julgamento. 4. Um acusado pode retirar uma renúncia de júri, bem como o procurador pode retirar seu consentimento acerca de uma renúncia, tanto por uma questão de direito, se há uma mudança de juiz na direção do julgamento, in: REFO, Patricia Lee . Principles for Juries and Jury Trials. American Bar Association, 2005, p. 3. 126 Capitulo 3. A incidência do Contraditório no Tribunal do Júri: igualdade de armas e ampla defesa como forma de assegurar a imparcialidade no Tribunal do Júri 1. O processo equitativo e a exigência da igualdade ou paridade de armas: Uma análise a partir de julgados da Convenção Europeia dos Direitos Humanos A igualdade e armas são essenciais em qualquer processo, mas no Tribunal do Júri, por força das pesadas penas que são impostas aos acusados, exige-se, cada vez mais uma aproximação do sistema adversarial (adversary sistem), com a busca da verdade real. Encontramos algumas discrepâncias, no que tange à referida igualdade, ora com a balança pesando a favor do Estado, ora pesando a favor da defesa, como oportunamente se verá. Faremos uma análise de alguns julgados da CEDH, e a seguir abordaremos institutos típicos do contraditório no Tribunal do Júri brasileiro, bem como fazendo uma ponte entre o contraditório e o direito ao silêncio. O processo equitativo e a exigência da igualdade de armas valem, em regra, para o cível e para o penal, embora a latitude dos Estados seja maior naquele do que neste; nos litígios sobre interesses privados, a igualdade de armas implica a obrigação de oferecer a cada parte a possibilidade de apresentar a sua causa, incluindo as suas provas, em condições que a não coloquem em situação de nítida desvantagem em relação ao seu adversário. Com a concretização deste princípio colocam-se as partes, no processo, em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, de idênticas possibilidades de obter justiça que lhes seja devida, impedindo, quanto possível, que a igualdade jurídica seja frustrada em consequência de uma grave desigualdade de fato255. É próprio da jurisprudência do TEDH que o direito ao processo equitativo que envolve necessariamente um procedimento contraditório, utiliza o conceito de "proceedings", ou seja, não intenciona limitar este direito ao procedimento principal. Em essência, este direito significa que a acusação e a defesa devam conhecer as manifestações e as provas da parte contrária respectiva e que possam formular suas réplicas em relação a elas256. 255 - BARRETO, Irineu Cabral. A Convenção Europeia dos direitos do homem. 4ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 17. 256 - AMBOS, Kai. Processo Penal europeu. Preservação das garantias e direitos individuais (princípios processuais e análise da convenção Européia de direitos Humanos). Trad. Marcellus Polastri Lima. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 79. O contraditório tem como pressuposto o direito à informação. No plano processual, uma das informações mais importantes (ao réu) se dá por meio da citação, que é o ato pelo qual o acusado toma conhecimento do teor da peça acusatória. Logo depois de concretizada a citação, impõe-se 127 O princípio da igualdade de armas encontra-se constitucionalmente consagrado, no art.º 32º, n. 1, da CRP que, ao estabelecer que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, funciona como “cláusula geral englobadora de todas as garantias, embora não explicitadas”. A Lei n. 43/86, de 26 de setembro (lei de autorização legislativa em matéria de processo penal), estabeleceu, no seu art.º 2.º, n. 2, al. 3), a “parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os atos do processo e incrementação da igualdade material de "armas" no processo” e, na al. 9), a “garantia efetiva da liberdade de atuação do defensor em todos os atos do processo, sem prejuízo do caráter não contraditório da fase de inquérito preliminar”. O que significa que, na fase de inquérito o princípio da igualdade de armas é claramente limitado em razão da estrutura não contraditória do mesmo257. O caso Murray v. Vereinigtes Königreich, decisão de 8 de fevereiro de 1996 (EuGRZ 1996, p. 587) foi paradigmático na TEDH, que entendeu que o contraditório e a paridade de armas, já devem constar ou existir no procedimento preliminar ou investigação policial, com aplicação do art.º. 6º par. 1º da Convenção Europeia de Direitos Humanos258. conceder ao acusado "tempo e meios necessários para a pre-paração da sua defesa". A exigência do "tempo" significa que o interrogatório do acusado não pode ser feito abruptamente, aceleradamente, sem que o acusado tenha chance de estruturar sua defesa. Quando aos meios necessários podem ser citados: o direito à perícia, direito de inspeção, direito à defesa jurídica (a ser feita por profissional habilitado) etc. (Corte Interamericana, Caso Loyaza Tamayo, Sentença de 17.09.1997, parágrafo 62). 257 - GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João. A prisão preventiva e as restantes medidas de coacção. A providência do habeas corpus em virtude de prisão ilegal. Coimbra: Almedina, 2003, p. 44. 258 - Em relação á aplicação do contraditório na investigação policial, conferir outras decisões e bibliografia citada por Kai Ambos, in: Processo Penal Europeu, em nota de rodapé, p.81: Magee v. Vereinigtes Königreich, decisão de junho de2000 (Crim.L.R. 2000, 681), par. 41; Ocalan (nota 74), par. 140. Em Imbrioscia v. Schweiz,decisão de 24 de novembro de 1993 (O JZ 1994, p. 517), par. 36, o TEDH determinou que a aplicação do art .6, par. i, da CEDH não pode ser excluída do procedimento de investi gação. Conf. também Grünbuch der EG-Kommission zum Schutz der finanziellen Interessen der EU und zur Schaffung einer eropäischen Staatsanwaltschaf, 11 de dezembro de 2001, KOM (2001) 715 [Livro Verde sobre a proteção penal dos interesses financeiros comunitários e a criação do Promotor Europeu), p. 48, segundo o qual os direitos de defesa (previstos na CEDH) são aplicáveis já no procedimento preliminar. conf. também Frister, StV 1998, pp. 159 e s.; Wasek-Wiaderek (nota 74), pp. 20 e s.; Rzepka (nota 15), p. 58; Esser (nota 14), p. 453; também Haefliger/SchürJnann(nota 33), p. 219; Sommer (nota 82), p. 1125; Thney, International Journal of Evidence and Proof 5 (2001), pp. 39, 46 e s.); com dúvidas Villiger, Handbuch (nota 32), p. 309. Para a aplicação do princípio de eqüidade para todo o processo conf. também Steiner, Fairnessprinzip im StrafprozeB, p. 150; Rönnau, Absprache im StrafprozeB p. 208; Eisenberg/Conen, NJW 1998, p. 2248; N. Schmid, Strafprozessrecht, 3il ed. 1997, p. 67; outra opinião, todavia, em BGE 106 IV p. 87; J. Schulz, Recht und Politik VII (Thessaloniki 1984), 128 Na Espanha, a adoção de resoluções no procedimento principal não responde a uma configuração de um sistema exclusivo, portanto, não inquisitório, nem adversarial ou contraditório, senão misto. Em princípio, as partes solicitam ao Juiz Instrutor primeiro a prática de diligências de investigação (art.º. 311, I, Ley de Enjuiciamiento Criminal), e depois o Tribunal determina a prática de determinados meios de prova (arts. 656, I, 728, 790.5, II y 791.2 Ley de Enjuiciamiento Criminal), decidindo e decretando sua admissão, sempre que são pertinentes (arts. 24.2 Constitución española y 659, I y 792.1 Ley de Enjuiciamiento Criminal). Por sua parte, o Juiz Instrutor pode praticar de ofício todas as diligências que considere necessárias para alcançar os fins próprios do procedimento preliminar, sem necessidade de requerimento das partes (arts. 315, II y 789.3 Ley de Enjuiciamiento Criminal), e o Tribunal tem certos poderes para introduzir no processo provas de ofício (artículo 729-21 Ley de Enjuiciamiento Criminal), que na Espanha se vê como uma exceção inquisitiva ao imperante princípio acusatório nesta fase, que deve estar de acordo com a acusação (v. Sentencias del Tribunal Supremo de 1 de diciembre de 1993, Repertorio de Jurisprudencia Aranzadi 9225; y de 23 de septiembre de 1995, Repertorio de Jurisprudencia Aranzadi 6755, entre outras). Um caso específico do procedimento ante o Tribunal do Jurado é que as faculdades de ofício de órgão jurisdicional estão subordinadas injustificadamente ao princípio acusatório259. Os princípios da lealdade processual e da igualdade de armas devem ser um obstáculo para a tentação de flexibilizar em excesso, a entrada de elementos probatórios que não figurem nos escritos da acusação ou da defesa. A igualdade de armas está implícita no direito a um processo equitativo, segundo expressão do art.º. 6.1 da Convenção para a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais europeias - ou conforme a terminologia adotada pela Constituição espanhola, um direito a um juízo com todas as garantias de um julgamento equitativo260. p. 171.Na doutrina em língua portuguesa cf: ROVÉGNO, André. O inquérito policial e os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. São Paulo: Bookseller, 2009; BARROS, Caio Sérgio Paz de. A incidência do contraditório no inquérito policial. São Paulo: Edmor, 2001. 259 - COLOMER, Jean-Luis Gòmez. La instruccion del proceso penal en España y los dererchos del imputado. RBCCRIM n. 34. São Paulo: RT, 2000, p. 34. 260 - MARTÍN PALLÍN, José Antonio. El jurado, otra forma de justicia? Poder judicial, Madrid, 3. Época n. 45, 1997, p. 228. 129 De acordo com o caso Delcourt v Bélgica, um processo não pode ser justo se impuser condições tais que coloque o acusado em situação de evidente desvantagem, tendo em vista a participação de um membro do Ministério Público nas decisões da corte de apelação261. As partes devem ter a mesma oportunidade de acesso, de comentário e de refutação das provas e de outros elementos do processo, assim como idêntica possibilidade de interrogar testemunhas e peritos. O princípio do contraditório, assim como as normas relativas à distribuição do ônus da prova, necessita ser integrados com o princípio da igualdade de armas; com a concretização destes princípios colocam-se as partes “no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, de idênticas possibilidades de obter justiça que lhes seja devida”, impedindo, “quanto possível, que a igualdade jurídica seja frustrada em consequência duma grave desigualdade de fato”. Este princípio se reveste de suma importância no processo penal; contudo o Tribunal Constitucional lembrou que “embora não expressamente formulados na Constituição para o processo cível, os princípios da igualdade processual das partes e do contraditório não podem deixar de serem exigências constitucionais também neste domínio, pois tal decorre da própria ideia de Estado de Direito”, precisando que o direito de acesso aos Tribunais para a defesa dos seus direitos (art.º. 20º da Constituição da República Portuguesa)262. O princípio da igualdade de armas implica, nomeadamente, que nenhum elemento para o exame do caso seja adquirido quando uma das partes está presente e a outra não. Os Casos Delcourt, A, n. 11, págs. 16-20, § 30 e 42, e Borgers, de 30 de outubro de 1991 (A 214-A), ed. prov., págs. 9-10, § 27 e 28, oferecem uma curiosa aplicação desta vertente: o Tribunal tinha entendido, no primeiro caso, que, face ao sistema processual penal belga, a presença do procurador-geral durante as deliberações do Tribunal de Cassação não violava o n. 1 do art.º. 6.° da Convenção, posição que reviu no segundo caso. Se, desde os julgados Neumeister (27 de junho de 1970) e Delcourt cl Bélgica, de 17 de janeiro de 1970, a Corte Europeia de Direitos Humanos reconhece a existência do princípio de paridade de armas, ela somente admite sua violação na decisão Borgers. Desde a decisão Neumeister, a Corte reconhece que o princípio de paridade de armas constitui um aspecto da noção mais ampla de processo equitativo diante de um tribunal independente e imparcial (§ 22; Borgers, § 24) mesmo se este princípio não esgota o 261 - Sentença 2689/65. 262 - Acórdão do Tribunal Constitucional nº 8/87, no DR, 1,9-02-87, e no BMJ, nº 363, pág. 163. 130 conteúdo do art. 6, § 1 (Delcourt, § 28). Na decisão Delcourt, a Corte precisa que “mesmo na ausência de uma parte acusatória, um processo não será equitativo se ele se desenvolver de modo a colocar injustamente um acusado em uma situação desvantajosa” (§ 34). O princípio de paridade de armas consiste na possibilidade razoável para cada parte, considerando-se inclusive os litígios que opõem interesses privados, de apresentar sua causa em condições que não o coloquem em uma situação de clara desvantagem em relação ao seu oponente. Todo e qualquer desequilíbrio relativo aos direitos processuais reconhecidos às partes, constitui uma violação a este princípio263. 2. O adversary system como postulado do contraditório no Tribunal do Júri Nos Estados Unidos, a principal garantia é a da igualdade de condições (fairness) no esforço pela descoberta da verdade. O confronto, ainda que violento, faz com que a verdade apareça das provas durante os debates apresentados durante o julgamento. Trata-se da demonstração prática daquilo que os jusfilófosos americanos de teoria do direito já haviam delineado em seus trabalhos, como Oliver Holmes e Roscoe Pound. Este último nos dá uma visão bastante clara dessas ideias quando descreve o que considera as três características dos padrões legais: (01) Que eles envolvem um julgamento moral sobre a conduta certa, que é ser “justo” de acordo com a “consciência”, “razoável”, “prudente” ou “diligente”; (2) Que eles não exigem conhecimentos jurídicos exatos para sua aplicação, mas o senso comum sobre coisas comuns ou a intuição sobre as coisas referentes à experiência de todos; (3) Eles não são formulados de forma absoluta e tem um conteúdo preciso, seja por legislação ou por decisão judicial, mas são relativos ao tempo e lugares e circunstâncias e são aplicados ao fazer referência aos fatos do caso. Eles reconhecem que, dentro dos limites fixados pela lei, cada caso é até um certo ponto único264. 263 - LIMA, José Farah Lopes de Lima. Convenção europeia de direitos humanos. São Paulo: Mizuno, 1987, p. 128. 264 - ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual. in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4 , nº 15, Julho-setembro, 1995, p. 210. Consoante Scarance Fernandes, o contraditório é essencial à reação defensiva ao direito de ação e, "ao garantir essa contraposição, revela-se o contraditório, definido por dois elementos: informação e reação. O acusado deve ser informado da acusação, dando-se-lhe a oportunidade de a ela reagir e, assim, de exercer a sua defesa" Realmente, a paridade de armas neste aspecto advém do sistema. da comow law, do chamado adversarial system, mas não se pode identificar competamente tal sistema com o sistema acusatório 131 Neste país, as dificuldades que o sistema adversarial tem em lidar com as evidências científicas, é em grande medida estrutural. O sistema assume uma luta justa entre duas partes, que desenvolvem suas pretensões perante uma terceira parte neutra. Contudo, os réus criminais costumam ter muito menos recursos do que os procuradores. Estes, em regra, dispõem de laboratórios, investigadores de polícia e experts 265. Também ficou decidido que a natureza não recíproca de recursos do governo em compilação de dados sobre jurados viola a Cláusula de Proteção Igualitária, que não permite que a defesa seja privada das ferramentas básicas de uma defesa adequada, em razão da desigualdade de armas. Esta prática cria um desequilíbrio favorecendo injustamente a acusação, e à cláusula do devido processo legal, previsto na Quinta Emenda, aplicável aos Estados por força Décima Quarta Emenda, que trata do equilíbrio de forças entre o acusado e seu acusador 266. No âmbito do CEDH, existe o leading case Losavio v Mayber,ocasião em que o tribunal considerou que o arguido tinha o direito de descobrir os registros policiais de jurados na posse do Ministério Público. Segundo a concepção moderna, a igualdade de armas exige que as partes possam apresentar o caso sob condições que não impliquem nenhuma posição desvantajosa a respeito da parte contrária267. Neste sentido parece enveredar a doutrina alemã, a propósito do sistema alemão, quando refere a necessidade de separar as funções institucionais de juiz e de Ministério Público de modo “a garantir amplamente, na medida do possível, a neutralidade do juiz”. A admissibilidade desta interconexão de sistemas deve, no entanto, atentar nos inúmeros riscos que é adotado no Brasil, de origem europeu continentaL É que naquele a regra fundamental é a iniciativa das partes, ficando o juiz na neutralidade, cabendo às partes a iniciativa probatória. Ocorre que um processo pode ser acusatório sem que haja esta exclusividade na iniciativa das provas, sendo que o que é certo é que, tal qual naquele sistema, o sistema acusatório prestigia a separação nas funções da acusar, julgar e defender; in: AMBOS, Kai. Processo Penal europeu. Preservação das garantias e direitos individuais (princípios processuais e análise da convenção Européia de direitos Humanos). Trad. Marcellus Polastri Lima. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 161. 265 - KROPPEN, Peter J. Van; PENROD, Steven D. Adversarial versus inquisitorial justice. Psychological perspectives on criminal justice systems. New York: Plenum Publisher, 2002, p. 240. 266 - Wardius v.Oregon,412 U.S. 470,474,93 SCt. 2208,2211,37 L.Ed2d 82(1973). 267 - A respeito cf: Borges v. Belgica, decisão de 30 de outubro de 1991 (EuGRZ 91, p. 519), par. 33; Dombo Beheer BV v.Niederlande (Holanda), decisão de 27 de outubro de 1993 (ÓJZ 1994, p. 664), par. 33;Bulut (nota 74), par. 44; Lanz (nota 74), par. 57; Fischer (nota 74), par. 18; AB. (nota 74),par. 55; Ócalan (nota 74), par. 159 132 dos sistemas anglo-americanos, nomeadamente os riscos de amplificar uma luta de partes, em que o acusado depende demasiado da qualidade e habilidade do seu defensor268. A transformação da concepção do princípio da igualdade de armas pode ser vislumbrada com facilidade na modificação da postura do Tribunal com respeito à posição e o papel do Procurador-Geral austríaco e do Procurador-Geral belga269. Mesmo que no princípio este tenha sido considerado como um guardião do direito de forma que, mesmo postulando sua pretensão relativa à sentença, não atuava como um “inimigo” do imputado, em processos julgados posteriormente (em razão de uma concepção mais favorável ao imputado) a manifestação do Procurador-Geral (chamada croquis no direito austríaco) começou a ser vista como uma tomada de partido contrariamente ao acusado e, assim, deveria ser dada a este a oportunidade de replicar. O acusado se encontraria em uma posição particularmente desvantajosa, se ao menos não pudesse ter ciência e conhecer a opinio do Procurador-Geral e, em razão disto, ficasse sem a oportunidade de replicar270. O princípio de igualdade de armas entre a acusação e a defesa, à semelhança do que se passa no processo civil entre as partes, é um princípio instrumental e também inerente ao processo acusatório. O processo há-de assegurar as mesmas possibilidades à acusação e à defesa para fazerem valer as suas posições processuais perante o tribunal. A imparcialidade do juiz pressupõe que ao acusador e ao defensor sejam proporcionadas idênticas possibilidades de fazer valer as suas razões no processo, o que se manifesta desde logo no princípio do contraditório. A igualdade de armas é, porém, mais ideal do que real. A igualdade jurídica, processual, formal, necessária para assegurar o pleno contraditório, pode ser desvirtuada pela desigualdade factual, real271. Diante, portanto, das colocações acima, não se justifica em qualquer hipótese, o pendor da balança em direção à defesa no procedimento do Júri, em face da construção doutrinária e jurisprudencial da chamada plenitude de defesa ou mesmo ao protagonismo da acusação, conforme visto em capitulo próprio. 268 269 - ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal Alemán, Buenos Aires: Del Puerto, 2007, p. 129. - AMBOS, Kai. Processo Penal europeu. Preservação das garantias e direitos individuais (princípios processuais e análise da convenção Européia de direitos Humanos). Trad. Marcellus Polastri Lima. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 78. 270 - SANTOS, Fernando Ferreira. Direitos fundamentais e democracias. O debate Habermas- Alexy. Curitiba: Juruá, 2008, p. 108. 271 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002,p. 68. 133 Outro ponto importante é a preponderância das partes e a inércia do juiz, face a filosofia do adversary system, que domina o processo penal britânico. Não obstante o virtual desaparecimento do júri, ao juiz só compete decidir o litígio que lhe é submetido, levando em consideração exclusivamente as pretensões contidas nos pleadings das partes e as provas por estas ministradas e oferecidas ao tribunal. O juiz não tem poder algum de ordenar de ofício, medida de instrução. Tampouco tem o poder de ordenar de ofício a correção dos requerimentos ou o comparecimento pessoal das partes. Se, no plano teórico, o juiz pode conhecer de ofício de questão de puro direito, sob a condição de respeitar ele próprio o princípio do contraditório, se configura aí, um poder limitado. Efetivamente, a procura das regras de direito aplicáveis à espécie não pode ultrapassar o âmbito das alegações de fato constantes dos requerimentos (pleadings), das quais as partes querem valer-se272. O sistema adversarial tem como característica o fato que a maioria das vantagens processuais está do lado do acusado, ou seja, o direito a um advogado, o direito de permanecer em silêncio, o direito a não incriminação, o direito de confrontar os seus acusadores, o direito de recorrer, e assim por diante. Contudo, estas regras devem ser desenvolvidas com responsabilidade e sem abusos, por reis e governantes e as partes processuais de modo geral. O sistema adversarial consagra um “processo limpo”, sequência do Estado de Direito e social. O acusado é uma parte e o juiz é um órgão super partes que decide, em princípio, imparcialmente. Dizemos em princípio, porque todos nós sabemos que a nossa imparcialidade, por vezes, cai por terra, por múltiplas e complexas razões, nomeadamente por 272 - FAIRCHILD, Erika S. Comparative Criminal Justice Systems. California: Wadsworth Publishing Company, 2005, p. 46. Discorrendo acerca da figura central do adversary system aduz Macdonald , que o Ministério Público nos países anglo-saxões, é uma instituição ético-conservadora,visando a aplicação da lei e abraçando valores e identificando como seu dever à proteção da comunidade contra os infratores,em uma atuação que se projeta em sua atuação profissional . Em conformidade com Skolnick, o procurador "procura manter, na medida do possível, uma reputação de credibilidade absoluta, com uma verdade inevitável, quase de invencibilidade"(Skolnick, 1967:57). E desta forma, zelando pela sua reputação, incluindo a derrota no tribunal ou a evidência de uma posição conciliatória nas relação criminais, deve ser evitada. Esta postura baseia-se em parte de um conceito defensável ,de responsabilidade territorial, mas também é evidente em abraçar uma ideologia de aplicação da lei, e da ética,como uma força institucional do Ministério Público,frente ás vulnerabilidades politicas.As qualidades do Ministério Público,neste sistema abrange a negociação, a tenacidade, o endurecimento da politica criminal,como forma de minimizar as ocasiões para o risco politico,In: MACDONALD, William Frank [Hrsg.]: The Prosecutor ed. - Beverly Hills [u.a.] : Sage Publ., 1979. - 279 S. (Sage criminal Justice System Annuals; 11), 1979. 134 força da nossa formação que é ordenada por axiomas de toda ordem. Pois os preconceitos sociais e econômicos fazem quebrar em muito a imparcialidade proclamada como princípio fundamental de uma administração de Estado de Direito Democrático. A nossa subjetividade sobrepõe-se normalmente aos dados muitas vezes demasiado objetivos273. Deve-se enfatizar que o processo penal nos Estados Unidos da América tem um caráter marcadamente acusatório, em função do papel predominante do promotor, o promotor de justiça (prosecutor), em detrimento do papel do juiz de direito, que tem as suas funções inquisitoriais praticamente anuladas. A pessoa acusada (accused), contra quem há um indício, inclusive pela imprensa, sem qualquer formalidade procedimental, tem a seu favor a proteção do due process, ou seja, as salvaguardas constitucionais que garantem os direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de anulação por completo do processo penal (reversal of a conviction), nos procedimentos recursais274. O sistema judicial nos Estados Unidos é contraditório, com as partes indo de encontro umas às outras, em um processo realizado de acordo com as devidas garantias processuais, conforme a Constituição dos EUA. Tanto o governo federal como os estaduais apoiam os sistemas de corte, cada uma dividida em três níveis: tribunais de julgamento, onde um caso geralmente começa; tribunais intermediários ou de apelação, que tem o poder de rever as ações dos tribunais de julgamento; e um tribunal superior, usualmente chamado de Suprema Corte, que tem a última palavra sobre todos os tribunais de sua jurisdição. Cada estado desenvolve seus próprios sistemas judiciais. Em nível Federal existem noventa e quatro varas, trinta corte de apelações e uma corte superior a Suprema corte em Washington D.C275. A característica mais marcante do sistema processual nos Estados Unidos da Americana é o processamento de causas cíveis e penais perante o Tribunal do Júri. Os juízes togados exercem a função de direção dos debates, moderação dos interrogatórios e a decisão das questões de direito, presidindo a seção na função de guardião dos direitos consagrados nas emendas constitucionais norte-americanas, pois o princípio acusatório puro rege o processo penal nos EUA, cabendo ao Ministério Público, exclusivamente, o ônus da prova de que existem indícios de criminalidade contra o acusado em igualdade de condições perante a 273 - VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal. Tomo I. Lisboa: Almedina, 1997, p. 18. 274 - SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: Introdução ao direito dos EUA. 2ª ed.. São Paulo: RT, 2000, p. 126-127. 275 - ALEXANDER, S.L. Media and American courts. Oxford: ABCCLIO, 2002, p. 15. 135 defesa técnica276. No processo penal americano, o Ministério Público (prosecutor) tem papel preponderante, pois o júri, onde atua, é uma das garantias do Due process of law277. Sendo, o sistema americano, o adversarial, que se caracteriza por uma disputa travada entre duas partes processuais perante uma autoridade imparcial que, além de deter o poder decisório, examina, de forma inerte, todo o material probatório que é apresentado por aquelas,“as partes processuais detêm, assim, tanto o poder de investigar os fatos, como o de instruir o feito, inquirindo testemunhas, consultando peritos e até mesmo determinando o que será “objeto de indagação”. Temos, portanto, as seguintes características do sistema adversarial, em que o exame do ordenamento processual penal que adotam a cartilha 276 - MÍNGUEZ, Eliabeth Cardona. El Jurado: su tratamiento em El Derecho Procesal Español. Madrid: Dykinson. 2000, p. 81. Os Estados Unidos da América, conforme já estudado anteriormente, não são um sistema puro da Common Law (no sentido lato), em comparação com a Inglaterra da atualidade, por várias razões. Preliminarmente, é necessária cautela ao dizer “direito dos EUA”: a organização federal do país, com as autonomias dos Estados-membros ferrenhamente instauradas e defendidas por eles, e a existência de uma realidade normativa federal paralela aos mesmos (sendo dado que nos aspectos reservados à competência da União existe tanto a Common Law como a statute law, naquelas matérias como antitruste, federal, direitos trabalhistas, em suma, toda matéria reservada como exclusiva ou concorrente com as competências conferidas aos Estados da União). Já tornam o assunto complexo;num caso de discussão, por exemplo, de reconhecimento de divórcio decretado naquele país,examinado perante o Judiciário brasileiro, a prova do direito estrangeiro nunca poderá ser do direito dos EUA, que inexiste em matéria de família ou divórcio, mas dos Estados em que foram celebrados os casamentos ou decretados os divórcios (portanto, direito de Nova York, de Illinois, de Massachusetts etc.), já se sabendo que, se for do Estado da Louisiana, então, teremos uma prova mais facilitada, porque ali vigora um sistema da família do sistema romano-germânico, portanto, assemelhado ao brasileiro (e, portanto, basta citar os artigos, por exemplo do Código Civil da Louisiana, eventualmente com citação de jurisprudência, para efeitos de maiores precisões). Nesse particular, “direito dos EUA” seria tão-somente o direito federal norte-americano, naquelas matérias definidas pelos case laws julgados perante cortes federal ou constante dos federais statutes. (cf: SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: introdução ao direito dos EUA. 2ª Ed.. São Paulo: RT, 2000, p. 58.). 277 - RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 50. O júri tem duas funções: a primeira função é de vigiar e investigar. O júri é como um cão de guarda sobre o governo do condado e um de seus papéis é o de investigar as ações dos órgãos governamentais e oficiais para garantir a honestidade no governo local. De acordo com essas atribuições, o grande júri serve como órgão de investigação e consultoria e relata suas descobertas, juntamente com quaisquer recomendações, anualmente ao juiz do condado e ao conselho de supervisores para análise e eventual ação em torno de fatos delituosos. A segunda função de um grande júri é a de servir como uma espécie de painel, para ouvir e analisar as provas em matéria penal, a cargo e direção do promotor. Em alguns Estados, notadamente nos Estados do leste, a lei exige que o procurador utilize o processo do Júri em cada matéria crime criminal, in: PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 121. 136 adversarial permite apontar a presença de quatro traços comuns: (a) controle das partes sobre a marcha processual penal; (b) presença de um julgador imparcial e passivo; (c) permanente sustentação de uma disputa bilateral; (d) igualdade de oportunidades e limitações.278 A contraditoriedade na pesquisa probatória constitui o cerne da law of evidence, pois, como já foi lembrado, no sistema adversary consolidado pela tradição anglo-americana, toda a iniciativa e o controle da aquisição dos elementos de prova incumbe às partes, cabendo ao juiz apenas a tarefa de supervisionar a seleção do material a ser apresentado aos jurados e garantir imparcialidade do julgamento; entende-se, como regra geral, que o melhor caminho para atingir-se a verdade é a contraposição das versões antagônicas dos interessados. Os incidentes que porventura surgirem no desenrolar do julgamento, principalmente os referentes à admissibilidade das provas, devem ser solucionados pelo juiz-presidente. Assim, sob a presidência de um magistrado, os jurados, na fase do julgamento, assistem à produção das provas e aos debates entre as partes para, fora do recinto, deliberarem sobre a culpabilidade ou inocência do acusado. Ao Juiz-Presidente incumbe, pois, a direção dos trabalhos, o exame de admissibilidade das provas apresentadas pelas partes e a instrução dos jurados. As regras de exclusão de 278 - ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa probatória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 23. Se bem vemos as coisas, a literatura norte-americana tende a usar o termo “adversarial” para caracterizar o respectivo modelo processual penal como acusatório e como que negando essa natureza aos diversos modelos processuais penais continentais (porventura à excepção do italiano), tidos como inquisitórios (ou não adversarial). A esta tendência - que no que respeita à “etiqueta” assim colada aos processos continentais repercute uma visão manifestamente anacrónica deles - não seráconcerteza estranho o facto de a distinção estar, amiúde, carregada de “significado emotivo” e condicionada por “juízos de valor”, no sentido de que é usual ligar o modelo acusatório a um modelo garantista que concebe o processo penal como um “território de liberdade”, por um lado, e o modelo inquisitório a um modelo repressivo e autoritário em que as preocupações de defesa social assumem lugar preponderante, ou mesmo exclusivo, por outro o Depois, é próprio da análise comparatística de modelos uma certa tendência, natural por certo, de fugir à “tirania dos detalhes”,o, que, porém, extremada, faz por vezes perder de vista o que é, afinal, essencial. Por fim, a dificultar ainda mais o desenho das fronteiras entre os dois modelos, potenciando confusões terrninoló gicas e até mais fundas, está a multiplicidade de sentidos em que a dicotomia acusatória/inquisitória pode ser usada. Assim, autores como Langer, por exemplo, recensearam na literatura ao menos seis sentidos de uso daquela dicotomia acusatório/inquisitório: como “categorias históricas”, como “tipos ideais”, como “mecanismos ou subsistemas que cumprem uma certa função no sistema processual”, como “interesses ou finalidades contrapostas”, como “princípios normativos” e como “modelos normativos”, in: LANGER, Máximo. La dicotomía acusatorio – inquisitivo y la importación de mecanismos procesales de la tradición jurídica anglosajona. Algunas reflexiones a partir del procedimiento abreviado, 2000, p. 87. 137 provas ditadas pelo interesse de uma correta apuração da verdade são bastante comuns no sistema anglo-americano (exclusionary rules of intrinsic policy) e seu fundamento costuma ser atribuído ao fato de que ali o julgamento sobre os fatos incumbe a cidadãos comuns, que poderiam ser facilmente iludidos por certos tipos de provas, atribuindo-lhes um valor diverso do que elas realmente possuem; assim, tais regras objetivam tornar o trial, um veículo mais eficiente para a descoberta da verdade dos fatos 279. O papel das partes, em um julgamento justo, deve ser duelar de forma igual, sem que a balança penda para qualquer um dos lados. A tarefa do Juiz é de fiscalizar os trabalhos e ser imparcial e inerte. O sistema adversarial não se confunde com o contraditório, e é próprio do Tribunal do Júri, quer nos países da Commom law, quer nos países da civil Law. 2.1. Distinção entre o princípio do contraditório e a paridade de armas Se todos os dois princípios são resultantes do princípio mais geral do direito a um processo equitativo, o princípio do contraditório e o da paridade de armas devem ser diferenciados, conforme afirma claramente a Corte Europeia de Direitos Humanos no julgado Niderhost-Huber. A noção de processo equitativo implica também o direito às partes ao processo de tomar conhecimento de toda peça ou observação levada ao juiz e de poder discuti-la (NiderhostHuber, § 24). A regra do contraditório, princípio fundamental de um processo equitativo, deve permitir ao jurisdicionado a possibilidade de se exprimir sobre toda peça do dossiê e deve ser aplicado a todo e qualquer processo, penal ou civil, administrativo ou disciplinar, ou mesmo em um processo de exceção de inconstitucionalidade. O princípio do contraditório concerne todas as fases processuais, em particular, aquela da produção de provas (no caso, quanto à perícia, cfr: Mantovanelli c/ França, 18 de março de 1997) e as necessidades de celeridade processual não impedem o respeito ao princípio do contraditório. Implicando às partes o direito de acesso às informações, o princípio do contraditório é violado quando um elemento do dossiê não lhe é comunicado. A informação pode dizer respeito sobre o conteúdo dos fatos materiais como sobre sua qualificação jurídica (Pelisser e Sassi c/ França, 25 de março de 1999). A impossibilidade de acesso ao dossiê penal por parte do acusado que se defende sozinho viola o princípio do contraditório (Foucher c/ França, 18 279 - GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 96. 138 de março de 1997), o mesmo ocorre pelo fato de se conceder o exequatur a um julgamento de nulidade de casamento adotado pela jurisdição do Vaticano, enquanto a requerente não tinha sido informada da demanda de nulidade formulada por seu esposo (Pellegrini c/ Itália, 27 de julho de 2001). Se a falta de comunicação de uma peça processual diz respeito a apenas uma das partes, enquanto a outra parte teve acesso a tal peça, a Corte se fundamenta principalmente sobre a igualdade de armas para comprovar a violação ao artº 6, § 1 (Kuopila). Por exemplo, nos julgados Mc Michael e Buchberger c/Áustria a Corte aplica o princípio de paridade de armas no contexto de uma apelação, entre a jurisdição de primeiro grau que proferiu a decisão de uma parte e o apelante de outra parte, sancionando o fato de que os relatórios, cuja Comissão que proferiu a decisão de primeira instância tinha posse e disposição, não lhe foram comunicados. No julgado Niderhost-Huber, o princípio de paridade de armas é violado pelo fato de que “as observações do tribunal cantonal não foram comunicadas a nenhuma das partes litigantes perante o Tribunal Federal” (§ 23). A Corte Europeia afirma na decisão Kress, a propósito da falta de comunicação das conclusões do Comissário do Governo, que “a requerente não poderia extrair do direito à paridade de armas o direito de receber a comunicação, previamente à audiência, das conclusões que não foram comunicadas à outra parte”. O princípio de paridade de armas impõe somente que as partes sejam tratadas de mesmo modo, sem que uma possa reivindicar um direito que a outra também não se beneficie. Se na decisão Borgers a impossibilidade de responder ao Advogado Geral foi sancionada sobre o fundamento da paridade de armas, a partir dos julgados Vermeulen e Lobo Machado, de 20 de fevereiro de 1996, este mesmo fato é qualificado de violação ao princípio do contraditório. A Corte de Justiça das Comunidades Europeias considera que as conclusões do Advogado Geral se situam fora do debate entre as partes, e, devido a este fato, a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos parece ser distinta em relação às conclusões dos Advogados Gerais da Corte Comunitária (Emesa Sugar e Aruba, 4 de fevereiro de 2000). A distinção entre paridade de armas e princípio do contraditório não é sempre muito clara na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos. No julgado Belziuck (25 de março de 1998), se o fato da Corte ter qualificado a função de procurador “de órgão de acusação” explica o recurso à paridade de armas, nós podemos questionar porque a Corte visa também o princípio do contraditório. O mesmo ocorre no julgado Van Orshoven, onde a Corte 139 Europeia se refere ao princípio do contraditório, enquanto as conclusões as quais o requerente não pôde responder emanavam do Ministério Público, órgão acusatório, e que portanto o princípio de paridade de armas seria aplicável 280. 3. As diversas manifestações da defesa no âmbito do Tribunal do Júri 3.1. O direito à defesa técnica e à autodefesa O princípio da ampla defesa tem por objetivo conceder ao réu o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da acusação, visto que é parte hipossuficiente ou mais fraca da relação jurídica, ante a força do Estado. Divide-se em defesa pessoal ou autodefesa, que é aquela realizada pelo próprio réu em pessoa, sem necessitar da mediação de um advogado, e defesa técnica, a realizada por um defensor, seja constituído, dativo, defensor ad hoc, ou defensor público.281 Não se confundem, entretanto, defesa pessoal e autodefesa. Esta é o patrocínio próprio, vale dizer, tem vislumbre quando o acusado, possuindo habilitação técnico-jurídica, postula e debate em causa própria282. Como integrantes da primeira (autodefesa), podem ser citados: (a) o direito de audiência, ou seja, o direito de ser ouvido (sobretudo no ato do interrogatório); (b) o direito a intérprete ou tradutor; (c) o direito de presença (right to be present) nos atos processuais - que envolve o direito de confronto com as testemunhas e vítimas; (d) o direito de participação contraditória (dialética) real na audiência, isto é, na colheita da prova, por meio de reperguntas ou, onde o ordenamento jurídico permite da cross examination, esclarecimentos, indagações, questionamentos etc.; (e) o direito de comunicação livre e reservada com o seu 280 - LIMA, José Farah Lopes de Lima. Convenção europeia de direitos humanos. São Paulo: Mizuno, 1987, p. 135. 281 - Sobre a dimensão jurisprudencial dessa matéria cf. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. VV. AA. Coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: RT, 1999. v. 1, p. 1.419 e ss.. Sobre o conteúdo essencial desse direito PLANCHADELL, Andrea. El derecho fundamental a ser informado de la acusación. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 89 e ss.; GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 152 e ss.; CUNHA, J. S. Fagundes, e BALUTA, José Jairo. O processo penal à luz do Pacto de São José da Costa Rica. Curitiba: Juruá, 1997, p. 119 e ss. Sobre a dimensão dessa garantia na jurisprudência espanhola cf. MONTERO, Francisco Javier Puyol. Diccionario de derechos y garantías procesales constitucionales. Granada: Comares, 1996, p. 357 e ss. 282 - PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. São Paulo: RT, 2001, p. 35. 140 acusador; bem como (f) o direito de postulação pessoal. A garantia da defesa pessoal está prevista tanto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art.º. 14, 3, d) como na Convenção Americana (art.º. 8, 2, d). Não se confunde com a defesa técnica, embora possa o acusado também dela se encarregar, caso tenha habilitação técnica, isto é, caso seja advogado (CPP, art.º. 263). De qualquer maneira, saliente-se que a autodefesa ou a possibilidade do acusado defender-se pessoalmente da acusação proposta, diferentemente, do que ocorre com a defesa técnica, é um direito disponível283. Podemos enumerar os direitos do arguido em juízo e fora dele: a) o direito de audiência, que consiste de estar presente ao juiz para primeiro interrogatório ou aplicação de medida de coação (art.º 141º, CPP e 28º; 1 CRP); b) ao silêncio, que consiste basicamente em não responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os fatos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar (artº61º/1c); c) a um defensor, uma vez que a Constituição garante ao arguido “o direito a escolher um defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo” (art.º. 32º/2 da CRP)284. Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou mesmo, do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, dispõe o indivíduo da correspondente pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma: (1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch); (2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch); ou, ainda, em uma (3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch). Os direitos de defesa ou de liberdade legitimam ainda duas outras pretensões adicionais: (4) pretensão de consideração (Berücksitigungsanspruch), que impõe ao Estado o dever de levar em conta a situação do eventual afetado, fazendo as devidas ponderações; e (5) pretensão de defesa ou de proteção (Schutzanspruch), que impõe ao Estado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros285. Discorre, com absoluta precisão, a doutrina alemã que o surgimento do Direito Penal no quadro de uma filosofia liberal do Estado - do contrato social - está ligado, de um modo muito simples e muito lógico, o papel dos direitos fundamentais. Segundo a tradição clássica alemã, esse papel é o de direitos de defesa (não fundamentação de valores). Eles protegem a esfera da pessoa, da liberdade humana contra o Estado e determinam a relação entre o Estado e os 283 - GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos (pacto de São José da Costa Rica) 3. Ed. São Paulo: RT, 2009, p. 80. 284 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 78. 285 - VV.AA. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 200. 141 cidadãos. A partir dos direitos fundamentais, o cidadão pode reconhecer quais intervenções ele não tem de suportar, como pode manter o Estado afastado de sua liberdade e, por isso, a nossa tradição clássica é a tradição dos direitos de defesa286. 3.2. A defesa material e sua efetividade A defesa material engloba a defesa no sentido técnico e preciso. Neste sentido participam todas as autoridades públicas e funcionários públicos que intervêm no processo penal. O direito à defesa se insere no devido processo legal, ao lado de outras garantias como a do contraditório e do nemo tenetur ou presunção de inocência287. No exercício das suas funções, cabe ao defensor prestar ao arguido “o mais completo e esclarecedor conselho de que for capaz”, assisti-lo em todos os atos em que deva ou possa participar pessoalmente e, em geral, representá-lo no exercício dos seus direitos processuais, salvo relativamente aos atos que a lei lhe reservar pessoalmente, quer na defesa pessoal, quer enquanto sujeito de prova288. São direitos do arguido no processo (art.º. 77.°, n. I, CPP)289: - Direito de presença em todos os atos processuais que diretamente o afetem; - Direito de audiência pejo juiz quando este deva tomar qualquer decisão; - Direito ao silêncio, sem ser prejudicado por isso; - Direito a defensor, que pode ser um defensor oficioso; - Direito de intervenção nas fases preliminares do processo; - Direito de informação dos direitos que lhe assistem; - Direito de recurso das decisões que lhe forem desfavoráveis. Trata-se de direito paralelo e contraposto ao direito de ação. Neste ponto pode-se dizer que se erige como direito público, subjetivo, autônomo e abstrato. 286 - HASSEMER, Winfried. Processo penal e direitos fundamentais, in: Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais. PALMA, Maria Fernanda (coord.).Lisboa: Almedina, 2007, p. 18. 287 288 - CATENA,Victor Moreno. La defensa en el processo penal. Madrid: Civitas, 1982, p. 76. - FERREIRA, Manuel Caveleiro. Curso de processo penal III. Lisboa: Reimpressão da Universidade Católica, 1981, p. 181. 289 - MENDES, Paulo Sousa. Os sujeitos processuais no novo código de processo penal de Cabo Verde. Direito processual penal de Cabo Verde, in: DIAS, Augusto Silva; FONSECA, Jorge Carlos (Coord.). Coimbra: Almedina, 2007, p. 187. 142 A defesa técnica, como se vê, deve ser efetiva. Isso não ocorre quando os advogados do acusado estão sendo ameaçados (Informe Anual da Comissão interamericana de Direitos Humanos, 1983/1984, p. 121, Paraguai). A defesa não pode ser só nominal (formal), senão uma verdadeira defesa, que pressupõe independência, suficiência, competência, gratuidade, plenitude e oportunidade (Corte interamericana, Caso Tibi, Sentença de 07.09.2004, voto particular de Sérgio Garcia Ramirez). O advogado exerce uma função de checks and balances, ou freios e contrapesos, justamente, porque fiscaliza a atividade do Juiz e da acusação, daí a sua extraordinária importância no processo penal. Quando se diz que a defesa é irrenunciável significa que não pode ser objeto de renúncia pela parte processual. É dizer que não poderia, por sua própria vontade, decidir que não se conceda a oportunidade de defender-se em um processo em que se discutam questões pelo qual tenha interesse, o que não equivale a dizer que referido direito não está sujeito a limitações, de acordo com o princípio da proporcionalidade, que obriga ao operador do direito a alcançar o justo equilíbrio dos interesses em conflito290. Quem preconiza tal necessidade é o Código de Processo Penal brasileiro, em seu dispositivo 261 que leciona: “Art.º. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. Parágrafo único. A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada.” Nesse mesmo ínterim dispõe o art.º. 8º, 2, “e” da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “Artigo 8º - Garantias judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) e) Direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei.” 290 - PÉREZ, Alex Carocca. Garantía constitucional de la defensa procesal. Barcelona: José María Bosh Editor, 1998, p. 33. 143 A obrigação do Estado em relação a este defensor oficioso (cuja escolha não tem que caber ao acusado) não se limita à mera designação. Exige-se que este preste uma defesa efetiva, e algumas deficiências na assistência por si prestada podem inclusivamente ser assacadas à responsabilidade estadual. O TEDH já considerou o Estado responsável, quer por não ter substituído um defensor oficioso que se recusou a defender a causa, quer por proceder efetivamente a essa nomeação, mas depois não conceder ao novo defensor um prazo adequado para preparar a sua defesa291. 3.3. A defesa material na CEDH: Os casos Artico e Goddi e Brozieck Nos casos Artico (sentença de 13 de maio de 1980) e Goddi (sentença de 9 de abril de 1984), o Tribunal interessou-se pelos institutos do patrocínio gratuito e da defesa oficiosa e, em ambos os casos, considerou existir violação do art.º. 6.°, nº 3, alínea c) da Convenção com o argumento de que, no caso concreto, o acusado não gozara de uma defesa adequada. Sublinhe-se que, contrariamente ao estatuído no nosso direito interno, a Convenção não considera obrigatória a defesa técnica, mas a simples faculdade de o interessado dela poder usufruir. É, no entanto, evidente que, uma vez que o interessado decide prevalecer-se dessa faculdade, a defesa deve ser efetiva e concreta. No caso Brozieck (sentença de 19 de dezembro de 1989), o Tribunal debruçou-se sobre a situação de um acusado estrangeiro que declarou não conhecer a língua italiana e não se encontrar em posição de poder defender-se, de maneira adequada, da acusação contra si deduzida. E considerou existir violação, quer da regra particular prevista na alínea a) do n. 3 do art.º. 6.° da Convenção (segundo a qual qualquer acusado tem direito a ser informado, no mais curto prazo possível, numa língua que possa compreender e de modo pormenorizado, da natureza e dos motivos da acusação), quer do princípio fundamental do processo justo, contido no n. 1 do mesmo artigo. O Tribunal não considerou que o acusado tivesse direito como este afirmava - a ser notificado do procedimento previsto no art.º. 177.° do Código Rocco numa das línguas oficiais das Nações Unidas, mas censurou o comportamento formal da autoridade judiciária italiana que, sem averiguar se o acusado conhecia suficientemente a 291 - SILVA, Jorge Pereira. “Culturas da Cidadania”- Em torno de um acordão do TC e da nova lei da nacionalidade. Anotação ao acordão do Tribunal Constitucional, nº 599/05, in: Jurisprudência constitucional, nº 11 jul/set 2006, p. 81. 144 língua italiana, decidira instaurar o procedimento contra ele com o ritual previsto para os acusados não encontrados e o julgara em contumácia 292. Mostra-se adequada, quer à perspectiva do processo equitativo e justo, quer ao respeito das garantias de defesa, a regra do art.º. 62.º, nº 2, do CPP, ao consignar que, havendo mais de um defensor constituído, as notificações devem ser remetidas àquele que for indicado em primeiro lugar no ato de constituição 293. 3.4. Segue: Caso Airey cl Irlanda, 9 de outubro de 1979 No caso Airey cl Irlanda,a Senhora Airey, não pôde, na ausência de assistência jurídica para assuntos relativos ao direito de família, se engajar em um processo com o fim a uma separação de corpos. Seus recursos financeiros sendo insuficientes não lhe permitiram assumir o custo de tal processo. Concluindo ao mesmo tempo à violação do artigo 6,§1, pela falta de um direito de acesso efetivo a um tribunal, e à violação do artigo 8, devido à impossibilidade pela requerente de ter acesso à separação judiciária, o juiz europeu sanciona a falha do Estado irlandês em respeitar e cumprir sua "obrigação positiva" de fornecer à requerente uma assistência judiciária gratuita no contexto de um processo civil, a fim de que a requerente possa, em razão da complexidade do litígio, defender sua causa, com o objetivo de ser dispensada de seu dever de coabitação. A decisão Airey coloca os fundamentos da noção de “obrigação positiva” (I) e acarreta um movimento jurisprudencial fecundo. Apesar da Corte Europeia se recusar a elaborar uma teoria geral das obrigações positivas decorrentes da Convenção, ela estende de forma singular a amplitude das obrigações positivas (II) e define as modalidades do controle de seu respeito (III). 292 - ESPOSITO, Vitaliano. A aplicação prática dos princípios da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no processo penal italiano.Trad. Manuel António Lopes Rocha. In: Revista portuguesa de ciência criminal, Lisboa, a.4, nº 2, Abr.-Jun.1994, p.217-239. 293 - Acórdão nº 1425/09. 1PBMTS-B.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 13 de Abril de 2011.Magistrado Responsável: JOAQUIM GOMES. Articulado como: «http://tribunal-relacao.vlex.pt/vid/-274256019.» Acesso em 20 de Abril de 2011. 145 3.5. Os meios de defesa e sua efetividade no Tribunal do Júri brasileiro Como vimos pelo princípio da ampla defesa o acusado dispõe de todos os meios e recursos para defender-se da acusação formulada pelo Estado-administração. Surge com a ação penal e é decorrente de seu exercício, mas por vezes pode existir mesmo sem a correspondente ação penal, como é o caso do processo cautelar e mesmo de execução, em que o juiz necessita, por segurança jurídica, antes de conceder a medida requestada, a ouvida do requerido. O acusado deve ter acesso aos autos do processo, e defender-se de todas as maneiras e formas, quer lícitas, quer ilícitas, uma vez que pode se valer da prova ilícita em seu favor. O Supremo Tribunal Federal editou as sumulas 523,701, 705,704 e 707, todas referentes ao direito de defesa. No Brasil, a garantia da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (Constituição Federal/88, art5º, inciso LV), acarreta uma série de garantias implícitas delas decorrentes, tais como: a) a entrega da nota de culpa em vinte e quatro horas ao preso; b) cópia integral do auto de prisão em flagrante para a Defensória Pública (Redação da Lei n. 11.449/07); c) em vinte e quatro horas depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas (Redação da Lei n. 11.449/07); d) a proibição da prisão sem mandado expedido pela autoridade judiciária competente, a não ser em caso flagrante delito; e) a proibição da conservação na prisão sem culpa formada; f) a suspensão da prisão pela fiança, nos casos em que a mesma é admitida; g) as cautelas para assegurar a inviolabilidade do domicílio, que é complemento da liberdade individual; h) a competência da autoridade e a forma processual; i) a proibição de juízos ou tribunais de exceção; j) a proibição de prisão civil por dívidas, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. Desta forma, o magistrado pode desconstituir advogado nomeado pelo réu, e facultar a nomeação de outro (defesa deve ser efetiva). Segundo Mirabete o prejuízo pode ser aferido na defesa, como a reiterada omissão do defensor, ausência de inquirição de testemunhas, formulação de alegações puramente formais, falta de iniciativa de diligências, desempenho puramente formal em atitude contemplativa, pedido de condenação quando não há confissão, concordância do pedido de condenação pelo Ministério Público, inépcia da denuncia ou queixa, ausência ou irregularidade da citação não sanadas com o comparecimento do réu, colidência de defesas, falta ou inépcia de alegações finais, falta ou inépcia das razões de recurso. Outros exemplos podem ser dados como ausência de defesa, que geram nulidade 146 relativa, como por exemplo, a falta de intimação para a defesa preliminar, ausência do curador, falta de prova do álibi do acusado. 294 Decorre da ampla defesa a igualdade processual e liberdade processual, pois o acusado nomeia o defensor que quiser, para apresentar as provas que lhe convém. Outro importante corolário da ampla defesa é que esta se manifesta em último lugar. As testemunhas arroladas pela acusação serão ouvidas antes das indicadas pelo acusado, ficando assim assegurado a plena defesa do réu, tendo pleno conhecimento dos elementos de que dispõe o Ministério Público para demonstrar a imputação, e assim poderá apresentar melhor a prova295. O princípio da ampla defesa merece destaque no estudo da correlação entre acusação e sentença, visto que, na busca da delimitação do conteúdo que deve permanecer imutável ao longo de todo o processo, grande parte da doutrina utiliza o critério finalístico de preservação do direito de defesa. Em outras palavras, aceitam-se as mudanças de fato que não impliquem sacrifício ou violação do direito de defesa296. Há nulidade no caso de colidência de defesa com dois réus defendidos pelo mesmo advogado. O defensor deve recusar nomeação única, alertando o juízo a impossibilidade de defender acusados de interesse conflituante, nulidade absoluta. Diante de tais lições primorosas do direito de defesa, o juiz deverá zelar por esse evento sempre primando pela excelência da atitude defensiva. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, na inteligência de sua súmula nº. 523, dispõe o ensinamento de que sem defesa o processo deve ser nulo. Ademais, o Código de Processo Penal em seu art.º. 564, III, ‘c’, assevera que será declarada a nulidade por lesão a qualquer instituto ali elencado. Entre eles, a defesa do acusado: “Art.º. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (...) III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: (...) c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 (vinte e um) anos.” Neste sentido vislumbramos a importância da defesa no processo penal brasileiro, e em especial no Tribunal do Júri. 294 - MIRABETE.Julio Fabrinni. Processo Penal. Editora Atlas.São Paulo.2006, p.346. 295 - GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. Ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 193. 296 - BADARÓ, Gustavo Henrique Righue Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: RT, 2000, p. 38. 147 No cenário do Tribunal do Júri, onde impera, além da ampla defesa, princípio da plenitude de defesa, é preciso cautela nessa interpretação da lei. Teria realmente condições de se defender de modo pleno um réu acusado de homicídio qualificado, diante dos jurados, somente porque é advogado? A resposta prudente é negativa. Se perante o magistrado togado é possível separar a figura do defensor, com seus argumentos, da imagem do réu (mesmo que ambos sejam a mesma pessoa física), diante dos jurados leigos dificilmente o será. Para garantir o preceito constitucional, é recomendável que o juiz não aceite a defesa em causa própria no plenário do júri. Além disso, não basta ter um defensor para que o princípio constitucional esteja, automaticamente, respeitado. A qualidade da defesa, no tribunal popular, é fundamental. Mais uma vez, quando diante do juiz togado, uma defesa ineficiente pode ser compensada pelo conhecimento técnico do magistrado e o resultado, ainda assim, demonstrar ter sido aplicada, na prática, a ampla defesa. Para os jurados, no entanto, urna argumentação fraca ou contraditória é fatal e, sem conhecimento jurídico para supri-la. A defesa terá ficado irremediavelmente comprometida. Por isso, no art.º. 497, V, do Código de Processo Penal, está prevista a possibilidade de o juiz presidente nomear outro defensor ao réu que seja considerado indefeso. Nesse sentido, a previsão feita pela lei ordinária tem perfeita correspondência com a norma constitucional. 297 A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para anular o julgamento em que um réu teve apenas quatro minutos de defesa perante os jurados. O fato ocorreu em Ourinhos (SP), em situação que, segundo os ministros, foge da normalidade. O defensor dativo fez sustentação oral exígua, enquanto a acusação usou mais de uma hora para formular seu raciocínio diante do júri. Acusado de homicídio qualificado, o réu foi condenado à pena de 14 anos de reclusão, em regime inicial fechado. Outro defensor que atuou na causa pediu a nulidade do processo por ausência de defesa técnica. O réu sustenta que é inocente do crime tipificado no artigo 121, incisos I e IV, do Código Penal, e diz que o tiro disparado contra a vítima ocorreu numa brincadeira de roleta russa, que estaria provada nos autos.298 297 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais,cit. p. 154. 298 - BRASIL – Coordenadoria de Editoria e Imprensa do Supremo Tribunal Federal, em 05 de outubro de 2012 - Disponível em: «http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398& Texto=107217”»Acesso em: 05 de outubro de 2012. 148 tmp. A lei diz que se o juiz deve nomear defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso, podendo, neste caso, dissolver o Conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a constituição de novo defensor. (art.º 497,V do CPP). Quando o juiz deve considerar o réu indefeso? A lei não o diz, devendo se considerar como indefeso, o réu, somente quando a Defesa não apresentar tese alguma, durante qualquer tempo utilizado, ou não explicar, com clareza e precisão, qual a tese apresentada, não podendo ainda, ser esta nãoamoldada às permitidas em lei (“verbi gratid” tese fantasiosa e sem correspondência jurídica) e, se antagônicas, serão aceitas as teses, caso sejam apresentadas alternativamente (RT 618/295).299 3.6. A autodefesa do acusado no Tribunal do Júri brasileiro No Brasil, inovação interessante, que afasta discussão anteriormente existente, é que a autodefesa também passa a ser fonte de quesitos, mesmo se a tese apresentada for incompatível com a defesa técnica? Assim, as alegações apresentadas pelo acusado, em seu interrogatório, devem ser quesitadas pelo juiz presidente, mesmo que sejam incompatíveis com as teses apresentadas pelo defensor. Dá-se autonomia completa, portanto, para a autodefesa do acusado.300 Torna-se obrigatória, hoje a formulação de quesitos, referente a autodefesa do acusado. Suponhamos que o acusado alegue em seu interrogatório, legitima defesa própria, e seu defensor legítima defesa de terceiro. Ambas as teses, inobstante, serem incompatíveis (v.g. alegação de um álibi, por exemplo), devem ser submetidas ao escrutínio do Tribunal do Júri. A possibilidade de autodefesa no Tribunal do Júri, no direito brasileiro, se dá com o direito de presença e em seu interrogatório, tornando-se obrigatório, sob pena de nulidade a indagação dos jurados acerca de eventual alegação do acusado em seu interrogatório. 4. Facultatividade da comparência pessoal do acusado e garantias de defesa no Tribunal do Júri A comparência pessoal do acusado não está expressamente consagrada na Convenção Europeia, ao contrário do que acontece no Pacto: o (art.º 14°, n.º 3, alínea d), não obstante a 299 - RODRIGUES, Decio Luiz José. Júri: 45 questões controversas.São Paulo:Minelli,p.57. 300 - MENDONÇA, Andrey Borges. Nova reforma de processo penal.São Paulo:Gen Metódo, 2008, p.114. 149 própria ideia de um processo equitativo, e alíneas c, d e e do n.º 3 do art.º 6° requererem essa presença no processo penal, onde a personalidade do acusado tem um papel importante na formação da decisão301. No Caso Sannino c. Itália, acórdão de 27 de Abril de 2006, o Tribunal decidiu que o art.º 6.º, n.º 3, alínea c não especifica o modo como se deve exercer o direito à assistência por defensor, tendo os Estados contratantes liberdade de escolha dos meios que, no seio das respectivas ordens jurídicas, eficazmente o assegurem. Ao Tribunal só compete verificar se o método escolhido é compatível com o direito a um processo equitativo; a Convenção está concebida para garantir direitos que são “práticos e eficazes” e não “teóricos ou abstratos”, no entanto, a nomeação de um defensor não garante, só por si, que a assistência jurídica que ele venha a prestar seja, de fato, eficaz. Salientou-se ainda, que o Estado não pode ser responsabilizado por todas as falhas que o advogado nomeado oficiosamente, em sede de apoio judiciário, revele, nem mesmo pelas falhas do advogado escolhido pelo arguido. Assim o impõe a independência que deve existir entre as profissões forenses, sendo que a conduta da defesa é matéria que releva da relação entre o arguido e o seu defensor, seja este nomeado oficiosamente pelo tribunal ou contratado pelo arguido, às expensas suas; as autoridades judiciais nacionais só devem intervir se for manifesta, ou for trazido ao seu conhecimento, a existência de faltas graves por parte do advogado que se revela incapaz de assegurar uma representação efetiva dos interesses que foi chamado a defender302. No Brasil, houve alteração significativa em relação à ausência do acusado ao plenário de julgamento. Pela antiga regra, somente seria possível o julgamento em plenário sem a presença do acusado se se tratasse de infração afiançável. Nas infrações inafiançáveis não seria possível a realização do julgamento sem a presença do réu. O que justificava a antiga disciplina era que, pela redação original do CPP, o acusado estaria necessariamente preso no 301 - Acórdãos Colozza, de 12 de Fevereiro de 1985, A 89, pág. 14, § 27, Somogyi, de 18 de Maio de 2004, R04- IV, pág. 96, § 65, e Hermi, de 18 de Outubro de 2006, § 58. Mas esta comparência pessoal não é um direito absoluto, porquanto deve ser conjugado com os outros direitos da defesa.Acresce que um julgamento de um ausente não é incompatível com a Convenção, se ele pode obter posteriormente um novo julgamento onde seja ouvido sobre o bem-fundado, de fato e de direito, da acusação. É duvidoso, no entanto, que esta garantia subsista quando o interessado renuncia ao direito de comparecer e de defender-se e, sobretudo, quando esta renúncia é inequívoca e se apresenta com um mínimo de garantias correspondentes à sua gravidade. (cf: Acórdãos Pfeifer e Plankl, de 25 de Fevereiro de 1992, A 227, págs. 16-17, e Potrinol, A 277-A, págs. 13-14, § 31, e Decisão do Tribunal, de 8 de Setembro de 2005, Queixa n.º 18624/03, R05-XI, pág. 235) 302 - In:Tribunal dos Direitos do Homem.Sumário de jurisprudência de 2006, Disponivel em:« http://www. gddc.pt/ direitos- humanos/sist-europeu-dh/Sum%E1rios%202006.pdf.».Acesso em 20 de Novembro em 2012. 150 momento da sessão de julgamento, pois era decorrência natural da pronúncia a sua prisão. Entretanto, a nova disciplina da prisão decorrente da pronúncia alterou este panorama. Assim, pela nova Lei, não é necessária a presença do acusado solto no plenário de julgamento, seja a infração afiançável ou inafiançável. Neste sentido, consta da exposição de motivos: “O anteprojeto permite a realização do julgamento sem a presença do acusado que, em liberdade, poderá exercer a faculdade de não comparecimento como um corolário lógico do direito ao silêncio constitucionalmente assegurado. O acusado preso poderá requerer dispensa de comparecimento à sessão de julgamento, sem prejuízo de sua realização. A prisão provisória, que era regra, converteu-se em exceção, de modo que a exigência do acusado solto em plenário como condição para o julgamento já não se harmoniza como novo sistema”.303 O direito ao silêncio também é resguardado com a nova disciplina legal. Se o acusado possuía o referido direito, não poderia exercitá-lo, no mais das vezes, perante os jurados leigos, sob pena de ser isto considerado em seu desfavor. Neste sentido leciona Guilherme Nucci: “Diante do Tribunal Popular, como explicar devidamente aos jurados, leigos que são, tal direito constitucional [direito ao silêncio], fazendo-os entender o sentido amplo e profundo dessa proteção, quando poderão fazer uso do surrado dito popular 'quem cala, consente”. 304 É interessante anotar, ainda, que o art.º. 478 vedou que as partes façam referências ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório em seu prejuízo, sob pena de nulidade. O não comparecimento do acusado, diante da reforma do CPP, hoje é equivalente ao direito ao silêncio. Na velha disciplina legal, não se fazia o julgamento, até o réu ser preso e conduzido ao plenário, para julgamento. Hoje é facultativo a presença do acusado em plenário. 5. A sexta emenda americana e a evolução do direito ao silêncio: O caso Scottsboro Boys Podemos asseverar que, ante o princípio da proteção judiciária, dispondo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.º. 5.°, XXXV, da Constituição Federal), a Constituição eleva a nível constitucional os direitos de ação e de defesa, face e verso da mesma medalha. Mais: dá conteúdo a esses direitos, pois não se limita 303 - Exposição de Motivos, Mensagem 209, Diário da Câmara dos Deputados, 30 mar. 2001, p. 09462. 304 - NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 178. 151 a permitir o acesso aos tribunais, mas assegura também, ao longo de todo o iter procedimental, aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, tutelam as partes quanto ao exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se das garantias do “devido processo legal” (art.º. 5.°, LIV, da Constituição Federal)305. O Código de Processo Penal ao dispor acerca da ampla defesa dispõe em seu art.º 261, que “ Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. O parágrafo único do referido artigo dispõe ainda que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada. Preocupou-se o legislador em conferir uma defesa efetiva ao réu pobre, ou seja, aquele que não dispõe de recursos para contratar um defensor constituído. A mera presença do defensor público ou dativo, em atitude contemplativa, como se fosse um convidado de pedra, não condiz com o princípio da ampla defesa, traduzindo-se em nulidade absoluta ex vi lege do art.º. 564, III, d do CPP. Dispõe ainda a lei que o acusado só pode defender-se a si mesmo se tiver habilitação técnica. A manifestação de defensor público ou dativo, quando se limita a pedir a aplicação da pena mínima ao acusado, é causa de nulidade306. O silêncio do acusado traduz-se como exercício da individualidade e personalidade, inserindo-se também no direito à privacidade e fulcrado no vetor maior que é o princípio da dignidade da pessoa humana, e que rege as relações entre o Estado e o indivíduo. O direito ao silêncio tem simultaneamente um componente positivo (embora seja exercido através de uma conduta passiva) e um componente negativo. Na primeira, é conferida ao arguido a faculdade de se manter calado ao longo de todo o processo e, em especial, na audiência de julgamento (arts. 6lº, n. 1, al. d, e 343.°, n.º 1, in fine), sem que tal comportamento possa ser interpretado em seu desfavor, numa clara concretização do direito à não autoincriminação e presunção de inocência de que aquele beneficia. Na segunda vertente, o direito ao silêncio traduz-se na injunção, para os outros sujeitos processuais de que, mesmo que o arguido não tenha optado por exercer aquele direito no inquérito ou instrução, se o fizer 305 - GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. Ed. São Paulo: RT, 2004, p. 89. 306 - STF - SÚMULA Nº 705 - a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por esta interposta. STF - súmula nº 707 - constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo. 152 em julgamento, nada do que disse anteriormente poderá ser lido na audiência ou constituir objeto de depoimento indireto (art.º. 357.°, nº1 e 2)307. Revela-se como produção de prova ilícita dependente, a falta de instrução ao imputado, uma vez que ninguém deve ser obrigado a cooperar na comprovação de sua culpabilidade nemo tenetur se ipsum accusare - o seu direito a não declarar-se culpado encontra-se cimentado constitucionalmente (GG, art.1, I, 20, III), assim como na instrução normativa de direitos internacionais humanos (art.º. 6º CEDH). Seu silêncio não pode ser utilizado contra a sua pessoa. O inculpado há-de ser adequadamente informado sobre seu direito a nada declarar (§136 I 2), inclusive quando o inculpado conhece o seu direito a permanecer em silêncio e tenha comparecido no tribunal com um defensor308. Nos Estados Unidos, o réu tem seus direitos constitucionais e civis zelosamente observados, pois sua violação pela polícia ou pelo Promotor de Justiça pode viciar as etapas posteriores do processo. Por exemplo, desde Miranda vs. Arizona, em 1966, o júri é obrigado a desconsiderar as declarações feitas pelo acusado antes de explicitamente advertido de seu direito de recusar-se a falar à polícia309. Contudo, nem sempre foi assim, como sabemos, em toda parte do mundo. A frase de que o réu tem o direito à assistência e o conselho a sua defesa, é extraído da Sexta Emenda americana. É comum hoje em dia que se tome por certo que uma pessoa acusada sempre teve a assistência de advogados para a defesa. Afinal, a polícia adverte da necessidade do silêncio a todos eles, e depois prendem e interrogam. O certo é que toda pessoa acusada de um crime tem o direito a um advogado se ela puder pagar um. Mas só recentemente é que aqueles que não podiam pagar um advogado, realmente receberam a assistência de advogado. Levou mais de 30 anos, começando em 1932, e três casos de apelação na Suprema Corte americana, antes que as pessoas pobres, que não podiam pagar um advogado, pudessem ter um advogado nomeado pelo tribunal. Estas decisões da Suprema Corte americana foram no sentido que a sexta emenda tivesse efeito vinculativo sobre os Estados310. 307 - VV.AA. Prova criminal e direito de defesa. Coord.Teresa Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto. Coimbra: Almedina, 2010, p. 52. 308 - VV.AA. Las prohibiciones probatorias. Colombia: Editorial Temis, 2009, p. 112. 309 - ARAÚJO, Nádia; ALMEIDA, E. Ricardo. O Tribunal do Júri nos Estados Unidos - sua evolução histórica e algumas reflexões sobre seu estado atual, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 4, nº 15, - Julhosetembro, 1995, p. 211. 310 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 130. 153 Podemos citar o exemplo de um caso em que houve completo desprezo pelo princípio em alusão. Em 25 de março de 1931, nove jovens Afro-americanos, sete jovens homens brancos, e duas jovens mulheres brancas estavam viajando através Alabama, quando começou uma briga. Os homens brancos foram atirados para fora do trem. Eles imediatamente notificaram o xerife, e, além de seus ataques, afirmaram que as duas meninas brancas foram estupradas. O trem foi parado por ordem de um xerife na pequena cidade de Paint Rock, Alabama, e os jovens Afro-americanos foram presos. Quando a violência da multidão parecia iminente, eles foram transferidos para Scottsboro, Alabama. Ali, nove iletrados, analfabetos, pobres homens foram julgados pelo crime de estupro, sem qualquer assistência da defesa. No primeiro dia do julgamento, o juiz nomeou um advogado local para funcionar na defesa dos noves homens acusados de estupro. Os nove foram julgados em grupos de três, e o Tribunal levou três dias para julgar e condenar todos os nove, mesmo com o testemunho médico que contradizia a afirmação das meninas do crime de estupro, bem como o fato de uma das supostas vítimas admitir ter inventado a história de estupro e afirmar que nenhum dos Scottsboro Boys teria tocado em nenhuma das mulheres brancas. Todos os nove rapazes, conhecido como Scottsboro Boys, foram condenados à morte, por um Júri composto de brancos311. Nos Estados Unidos apesar de incorporado à sua Constituição na 5ª emenda, o direito ao silêncio veio a ter efetividade na decisão da Suprema Corte em 1964 com o caso Malloy v. Logan312 que deu garantia do devido processo legal, incorporado na 14ª emenda. Em 1965 no julgamento Griffin v. California313 a Suprema Corte Americana proibiu o acusador de realizar qualquer comentário ou alusão sobre o silêncio do acusado durante o julgamento, resultando inconstitucional qualquer tipo de penalidade imposta ao réu no exercício desse direito. A Suprema Corte Americana em um caso histórico denominado Miranda V Arizona314, por cinco votos a quatro decidiu que “antes de qualquer questionamento, uma pessoa deve ser informada que ela tem o direito de permanecer calada, e que qualquer depoimento que fizer poderá ser usado como prova contra si mesma.” Neste caso a Suprema Corte decidiu que a polícia ao fazer um interrogatório, deve notificar o acusado do direito ao silêncio, 311 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. cit., p. 131 312 - 378 U.S.1 (1964). 313 - 380.U.S.609 (1965). No Brasil com o advento da lei 11.689/06,dispõe em seu artigo Art. 478, que durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo. 314 - 384 U.S. 436. 154 determinando a soltura do acusado. Ernesto Miranda, acusado de rapto e estupro, fixou as chamadas Miranda Rules ou regras de instrução. O caso Miranda contudo, como assinala Dias Neto,315foi perdendo a sua força como orientação jurisprudencial, tendo em vista que posteriormente a Suprema Corte Americana no julgamento Beckwith v. United States316,declarou que o direito ao silêncio não se aplica aos interrogatórios em domicilio do acusado, feitos de forma informal, em New York v Quarles317,declarou a desnecessidade da detenção formal do inquirido, para efeito do direito ao silêncio e em Oregon v.Mathiason,318decidiu que não existe a custódia quando a pessoa comparece voluntariamente a uma delegacia. Estas decisões já tiveram como base o movimento lei e ordem que existe naquela país. Talvez surpreendentemente, o impacto das chamadas “regras Miranda” sobre a polícia, de suspeitos, em face das confissões e convicção tem sido insignificante. Isto pode ser devido a muitas estratégias que os interrogadores policiais usam para evitar, contornar, anular, e algumas vezes até mesmo violar as “regras Miranda” e sua invocação na sua busca de evidências de confissão. Por exemplo, às vezes, a polícia nos interrogatórios evitam ter de dar advertências com base nas regras de Miranda, reformulando o interrogatório como uma entrevista de custódia. A polícia faz isso redefinindo as circunstâncias de questionamento, em que o suspeito não está preso, por exemplo, declarando ao acusado, que ele não está preso ou que ele é livre para ir e vir, uma vez que as “Miranda Rules”, apenas é legalmente exigida quando um suspeito está preso sob custódia. Outras vezes, detetives da polícia podem ler três a quatro vezes as advertências do direito ao silêncio, mas não perguntam ao suspeito se ele entende este direito ou deseja renunciar a este mesmo direito, lançando diretamente em interrogatório, como se o consentimento do acusado fosse implícito. Os tribunais têm mantido essa prática, alegando que os suspeitos “implicitamente” renunciaram aos seus direitos (Vorth Carolina v. Butler 1979). Às vezes, os detetives podem obter a isenção explícita através da minimização. Minimizando a advertência, ou a ênfase do significado das advertências Miranda, ocultando assim o relacionamento contraditório entre os interrogadores 315 - DIAS NETO,Theodoro. O direito ao Silêncio:Tratamento no direito alemão e norte-americano. Revista brasileira de Ciências Criminais.São Paulo: Revista dos Tribunais,v. 19, p. 179-204.julho/set.1997 316 - 425 U.S.341(1976) 317 - 467 U.S. 649(1984) 318 - 492 U.S. 492(1977) 155 e os acusados.319 Uma vez que o suspeito tenha renunciado a seu direito ao silêncio, o tom, o conteúdo, e o caráter do processo de interrogatório pode mudar drasticamente. É típico neste ponto que o processo de interrogatório torna-se acusatório, ante o fato do detetive mudar a forma de fazer as perguntas, bem como o suspeito para dizer-lhe as respostas. O estilo de interrogatório dos detetives pode variar de amigável a agressivo. A polícia conta duas estratégias básicas de interrogatório: 1) criam a ilusão de que a polícia tem o objetivo de “ajudar” o suspeito; 2) a tentativa de transformar a percepção dos suspeitos aumenta de tal forma, que os acusados podem confessar como meio de escapar de uma situação desesperada. Embora existam centenas de técnicas de interrogatório específicas, o interrogatório policial pode ser reduzido para algumas táticas básicas e previsíveis, com sequências repetitivas.320 6. A presença do defensor no julgamento criminal como garantia do contraditório A presença e a assistência de advogado durante um julgamento criminal é tão essencial, porquanto deriva do devido processo legal, como o direito do julgamento em si, porque o direito de ser ouvido seria de pouca valia se não compreendêssemos o direito de ser ouvido pelo tribunal. “O direito do réu à assistência de advogado é absoluto e a ausência de um advogado de um réu que nunca tenha validamente renunciado ao direito de um defensor priva o tribunal de competência para prosseguir o julgamento”. Embora em casos envolvendo o direito à assistência efetiva do conselho, a nulidade não se justifica a menos que a inépcia do advogado de defesa tenha realmente afetado o julgamento do resultado, “o prejuízo é presumido, quando o advogado está realmente ausente durante uma fase de um julgamento”321. Embora um tribunal de julgamento não negue ao réu o direito de um defensor, pode ouvir uma testemunha que teme pela segurança de sua família em uma sala de audiência fechada, para a proteção das testemunhas. O fechamento da sala de audiências durante o depoimento de certas testemunhas não viola o direito do réu a assistência de um defensor, se há evidência suficiente para apoiar uma conclusão de que as testemunhas temem o julgamento 319 - KRAUSS, Daniel A.; LIEBERMAN, Joel D. Psychological expertise in Court, V. II. Ashgate, 2003, p. 36. 320 - KRAUSS, Daniel A.; LIEBERMAN, Joel D. Psychological expertise, cit, p.38. 321 - Powel V. State of Ala., 287 U.S. 45, 53 S.t, 1019,82 L Ed.158,84 A.L.R. 527(1932),in New York Jurisprudence 2d,32,Criminal law:Procedure. §§ 665 to 1230.Thompson, 2008, p.172 156 na presença do acusado. “Uma ordem de proteção à identidade de testemunhas, até ao momento de depoimento destas mesmas testemunhas, têm o efeito de atrasar eventual discussão entre o réu e seu advogado para discutir esses depoimentos, e não é um exercício razoável da autoridade do tribunal para regular a conduta do julgamento, e não equivale a uma privação do direito a um advogado, quando existe um receio fundado de que a testemunha estaria sujeito a intimidação”322. A acusação formal do Ministério Público é o ponto do devido processo legal, onde a Sexta Emenda atribui ao acusado o direito a um advogado. Ou seja, este é o ponto em que o réu pode ter um advogado para representá-lo. Existem basicamente quatro tipos de defensores: os advogados particulares, os defensores públicos, os advogados de conflito, e os advogados contratados. Um advogado particular é um advogado escolhido e pago pelo réu que pode pagar um. No entanto, a grande maioria dos réus não pode pagar um advogado. Após a acusação, quando o juiz pergunta ao réu se ele quer um advogado, a maioria dos réus diz “sim”. Quando o juiz pergunta se o réu pode pagar um, a resposta geralmente é “não”. Portanto, o juiz nomeará um defensor público para representar o réu323. Observe-se que quando os textos constitucionais, internacionais e legislativos reconhecem, hoje, um direito de acesso aos tribunais este direito concebe-se como uma dupla dimensão: (1) um direito de defesa ante os tribunais e contra atos dos poderes públicos; (2) um direito de proteção do particular através de tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros (dever de proteção do Estado e 322 - People v. Frost, 100 N.Y.2d 129,760 NYS 2d 753,790,NE2d 1182(2003),in New York Jurisprudence 2d,32,Criminal law:Procedure. §§ 665 to 1230.Thompson,2008, p.172. No mesmo sentido:Uma ordem de tribunal de julgamento está dirigindo um acusado não consultar com seu advogado durante um recesso durante a noite, chamado enquanto o acusado está no banco das testemunhas, viola o direito do arguido a assistência de advogados sob a Sexta Emenda, e uma demonstração de prejuízo real não é um componente essencial de tal violação. (Perry v. Leke 488 U.S. 272 109. Ct. 594, 102 L. Ed. 2d 624 (1989); Garders. U.S., 425 U.S. 80, 96 S. Ct. 1330, 47 L. d. 2d 592 (1976); People v. Samuels, 22 .n.3d 507, 802 N.Y.S.2d 458 (2d Dep't 1988); People v. Lowery, 253 A.D.2d 893, o N.Y.S.2d 253 (2d Dep't 1998). 323 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 110. A principal desvantagem de ter um defensor público é que ele tem muito pouco tempo para gastar com o cliente: aparentemente, poucos minutos antes da instrução da corte. No entanto, um defensor público experiente, tem tratado quase todo tipo de caso e já ouviu quase toda a explicação dada por um suspeito. Além disso, ele sabe qual a melhor defesa para o crime imputado e sabe melhor como trabalhar com o Juiz e o Promotor. Como regra geral, o sistema de defensoria pública é usado nos seguintes estados: Califórnia, Colorado, Florida, Illinois, Louisiana, Minnesota, Missouri, Nevada, New Jersey, New York, Pensilvânia, Utah, Wisconsin, e Wyoming, In: PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3 ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 115. 157 direito do particular a exigir esta proteção). A intervenção do Estado para defender os direitos dos particulares perante outros particulares torna claro que o particular só pode, em geral, ver dirimidos os seus litígios perante outros indivíduos através de órgãos jurisdicionais do Estado. Esta “dependência” do direito à proteção judicial de prestações do Estado (criação de tribunais, processos jurisdicionais) justifica a afirmação corrente de que o conteúdo essencial do direito de acesso aos tribunais é a garantia da via judiciária (“garantia da via judicial”, “garantia da proteção judicial”, “garantia de proteção jurídica através dos tribunais”)324. Registre-se que tem foros de garantias constitucionais os princípios da inviolabilidade e o direito da tutela da liberdade pessoal. Através do primeiro art.º. 8º nº10, se individualizam com precisão ou mesmo só de acordo com esquemas gerais as formas que em concreto deve assumir a defesa para que se dê satisfação ao preceito constitucional respectivo, mais afirmando este que é garantia dos cidadãos portugueses haver instrução contraditória, dandose aos arguidos, antes e depois da formação da culpa e para a aplicação de medidas de segurança, as mesmas garantias de defesa, conforma, assim, um direito e garantia individual dos cidadãos, válido para todo o decurso do processo cujas notas constitutivas do seu núcleo essencial não podem ser afetadas, sem inconstitucionalidade material, pela lei ordinária, e põe com isto a pedra fundamental que fará reconhecer o Estado português, nesta matéria do processo penal, como verdadeiro Estado de Direito325. Na Alemanha, a presença do defensor (der Verteidiger) é obrigatória quando o interrogatório for realizado pelo Juiz que acompanha as investigações; no entanto, a presença do defensor é sistematicamente descartada quando o ato é realizado pelo Juiz sob a justificativa da existência de “perigo para o êxito da investigação”; a presença é facultativa quando o ato for realizado pelo Ministério Público (§ 163a, II, e 168c, do StPO). Ela nem é desejada quando o suspeito é ouvido pela polícia (§ 163a, IV; do StPO)326. 324 - CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina,1998, p. 451/452. 325 - DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 79. 326 - VV.AA. Processos Penais da Europa. Rudolphe Juy-Birmann. O Sistema Alemão. (Org. MARTY, Mireille -Delmas), Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 17. 158 7. Os diversos tipos de defensores e sistemas de defesa no Tribunal do Júri: O caso Betts Frequentemente, o defensor público pode representar o réu de forma mais eficaz, porque trabalha dentro do sistema e conhece todos os envolvidos e aplicadores do direito, tanto formais como informais. Após a Guerra Civil americana, novas tendências da prática jurídica foram desenvolvidas. O advogado clínico geral começou a dar forma ao especialista. Advogados que aconselhavam os clientes fora do tribunal. O Direito Empresarial expandiu-se rapidamente, tornando-se ideal para os advogados, como uma prática lucrativa. A estratificação dos advogados dentro do sistema emergiu a um grau nunca antes visto. Antes da Revolução Americana, o sistema jurídico inglês já tinha sido estratificado em duas divisões: advogados, por um lado, e solicitadores e procuradores, por outro. Os advogados, sendo membros de elite, foram os filhos da pequena nobreza, que tiveram sua formação nos Tribunais. Eles mantiveram o monopólio sobre o trabalho dos casos nos tribunais e eles foram os advogados que poderia ascender através do generalato para os cargos mais altos magistratura e do Ministério Público 327. Em algumas seções do país, encontramos o uso do que é chamado o sistema de contrato. Este é um sistema usado principalmente em municípios da área rural em que o pagamento de um advogado em tempo integral pode ser muito caro. Neste sistema, todos os advogados de defesa, são advogados particulares que trabalham à uma determinada taxa em vigor por hora, quando nomeados, mormente quando não existe na área nenhum escritório do defensor público. Os indigentes ou pobres podem ainda receber advogados livres e os condados economizam dinheiro, pelo fato de não ter que pagar os benefícios dos empregados, aposentadoria e tempo de férias. Este sistema é usado principalmente no Arizona, Idaho, Kentucky, New México, Oregon e Washington328. Outro caso emblemático, também nos Estados Unidos, se deu em 1941, quando um lavrador do condado, chamado Betts, foi indiciado por roubo em Maryland, e, como era incapaz de pagar um advogado, pediu que lhe fosse nomeado um advogado público. O juiz negou o pedido, fundamentando que não era a prática no Estado nomear advogados aos réus, exceto em processos por assassinato e estupro. 327 - MCDONALD, William F. The defense counsel. London: Sage Publications, 1998, p. 20. 328 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3º Ed. New York: Prentice Hall, 2007, p. 113. 159 Sem abrir mão do seu direito a um advogado, Betts declarou-se culpado e pediu para ser julgado sem um júri. A seu pedido, testemunhas foram convocadas em seu nome. Betts interrogou testemunhas do Estado e apresentou a sua própria defesa, tendendo estabelecer um álibi. Embora tenha-se saído bem em sua autodefesa, o juiz considerou-o culpado e lhe impôs uma sentença de oito anos. Ele recorreu, alegando que tinha sido privado do direito à assistência jurídica garantida pela Sexta Emenda, bem como pela Décima Quarta Emenda. A apelação foi negada pelos Tribunais Regionais, até chegar à Suprema Corte americana. A Suprema Corte, porém, em junho de (Betts v. Brady, 1942) considerou que Sexta Emenda da Constituição só se aplicava a julgamentos em Tribunais Federais329. Assim, a sentença de Betts foi confirmada e ele permaneceu em prisão para cumprir sua sentença. Mas um precedente foi criado por este caso, e milhares de indigentes (pobres na forma da lei), acusados de crimes em tribunais estaduais não tinham o direito constitucional a um advogado nomeado, exceto em circunstâncias especiais sobre o caso, como o analfabetismo ou incompetência mental, que tornaria a auto representação ou autodefesa como injusta. Para os próximos 20 anos, milhares de litigantes pobres foram condenados sem a assistência de um advogado e foram enviados para a prisão. Cada vez que uma sentença de condenação foi submetida à apelação, a Suprema Corte utilizava o caso Betts como precedente e somente anulava a condenação se especiais circunstâncias pudessem fazer com que uma condenação pudesse ser revertida 330. O caso Betts, portanto, é um julgamento histórico nos EUA, que introduz a noção da defesa, em qualquer tipo de ação penal. 8. Segue: O caso de Gideon v. Wainwright Em 1963, contudo, a Suprema Corte americana, fez uma coisa incomum, invertendo o precedente Betts no caso de Gideon v. Wainwright. Em 1960, Clarence Earl Gideon, um trabalhador de 48 anos de idade, foi preso e acusado de invadir a sala de Bay Harbor em Panamá City, Flórida, e roubar cerca de 65 dólares das máquinas de vendas, bem como um pouco de cerveja, vinho e Coca-Cola. 329 - Betts v. Brady, 316 EUA 455 (1942) 330 - PEOPLES, Edward E. Basic criminal procedures. 3ª ed., cit., p. 115. 160 Acusado de roubo, o réu pediu a assistência de um advogado, mas o juiz de primeira instância, Robert L. McCrary Jr, recusou, com base em práticas existentes e precedentes. Gideon tentou se defender contra as habilidades do promotor, Bill Harris, mas foi condenado e sentenciado a uma pena de cinco anos na Instituição Correcional União em Raiford. Gideon recorreu ao Supremo Tribunal, com uma petição manuscritas, com a ajuda de Joe Peel, um juiz e advogado da cidade, que também estava preso. A Suprema Corte anunciou sua opinião unânime em 18 de março de 1963. Na ocasião ficou assentado que o direito de um acusado de crime a um advogado não pode ser considerado fundamental e essencial para julgamentos justos em alguns países, mas é um direito fundamental previsto na constituição americana. No parecer, o procurador Black enfatizou que “desde o início, nosso Estado, Federação, Constituições e Leis, deram grande ênfase, as garantias processuais e materiais de modo a garantir julgamentos justos perante Tribunais imparciais, em que o réu deve ser considerado igual perante a lei. Este nobre ideal não pode ser realizado, se o pobre homem acusado de crime tem de enfrentar seus acusadores sem um advogado para ajudá-lo”331. A decisão Gideon tornou obrigatória aos juízes em tribunais estaduais nomearem um defensor para os réus que não tinham condições de arcar com os honorários de um advogado. O Supremo Tribunal americano declarou que “era um direito fundamental, essencial para um julgamento justo”. No caso Gideon, foi marcado um novo julgamento, perante o tribunal original. O promotor, Bill Harris, ofereceu uma barganha, em que Gideon seria culpado da acusação em troca de uma prestação de serviço à comunidade. O advogado de defesa, um advogado local chamado Fred W. Turner sugeriu que ele aceitasse o acordo. Gideon recusou e exigiu um julgamento com júri. Com a ajuda do Sr. Turner, ele foi considerado inocente e as acusações foram retiradas. Na verdade, uma testemunha no segundo julgamento mostrou que Gideon poderia ter sido inocentado, por um homem que testemunhou no primeiro julgamento, Henry Cook, que afirmou ter visto Gideon no salão de sinuca, por ocasião do roubo de que estava sendo acusado332. A decisão Gideon teve efeito retroativo, o que significava que os funcionários em cada Estado, teriam que rever seus registros de prisão, para determinar os que haviam sido condenados sem a ajuda de um advogado, e, portanto, milhares de pessoas, tiveram que ser 331 - Gideon v. Wainwright, 372 EUA 335 (1963). 332 - Los Angeles Daily Journal, 18-de março, 1988, p. 22; Lewis, 1964. 161 liberadas. Novamente, tomamos emprestado uma decisão histórica do Direito norteamericano, para reafirmar a necessidade da defesa efetiva no âmbito do Tribunal do Júri. 9. O reverso da igualdade de armas e do contraditório: A plenitude de defesa no Tribunal do Júri brasileiro 9.1. Delimitação e definição do conceito de plenitude de defesa no Direito Brasileiro e português Notamos, por fim, que pelo menos no Brasil, existe um dispositivo, garantindo a ampla defesa (para alguns) ou a plenitude de defesa (para outros). Emerge deste dispositivo que o juiz pode destituir o advogado do acusado, declarando o réu indefeso, quando julgar que a defesa é ineficiente. A doutrina, contudo, atribui à plenitude da defesa, uma abrangência maior que a ampla defesa. Significa que pode o defensor contar com maiores prerrogativas que a acusação. Contudo, a expressão tem duas significações doutrinárias: a primeira delas iguala a plenitude da defesa à ampla defesa no sentido comum do termo e menos abrangente que a segunda posição, que entende que a plenitude (de amplo, vasto) é uma garantia maior e especial em relação à ampla defesa. A jurisprudência já decidiu que quanto mais grave o crime, devem-se observar, com rigor, as franquias constitucionais e legais, viabilizando-se o direito de defesa em plenitude. Uma vez constatada que a defesa do acusado não se mostrou efetiva, impõe-se a declaração de nulidade dos atos praticados no processo, proclamando-se insubsistente o veredicto dos jurados333. Para a doutrina portuguesa, a diferenciação entre o exercício do direito à defesa do direito à plenitude de defesa resulta em que a primeira pode ser renunciável, enquanto, a segunda não, posto ser a liberdade um bem indisponível no processo penal334. Referido artigo apresenta a problemática de saber quando o réu se encontra indefeso, fato difícil, quer na prática, quer na teoria. Ademais, pode se valer do mecanismo para humilhar o advogado, caso tenha com este alguma discórdia, mesmo quando a defesa se manifesta satisfatória. 333 - STF, 1ª T., HC 85969, rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/09/2007, DJe 31/01/2008 334 - RISTORI, Adriana Dias Paes. Sobre o silêncio do arguido no interrogatório no processo penal português. Coimbra: Almedina, 2007, p. 68. 162 O fato é que a defesa do acusado deve ter pelo menos uma tese defensiva quando dos debates (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, retirada das qualificadoras etc.).A ausência desta tese defensiva na argumentação jurídica vicia o debate e torna, a defesa ineficiente, legitimando o juiz à referida declaração, com a nomeação de outro defensor ao acusado, uma vez que se encontra indefeso. 9.2. Manifestações da plenitude da defesa no Tribunal do Júri brasileiro No Brasil, o direito à ampla defesa no Tribunal do Júri se revela ainda na resposta preliminar, dispondo o art.º. 406, com a redação dada pela Lei n. 11.719/08 que “o juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. Esta resposta consiste na arguição de preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário (art.º. 406§3º). O legislador considerou essencial a resposta preliminar, pois se não for apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias. Este mesmo dispositivo já era previsto em diversas leis, como a Lei 9.099/96 e a lei 8.038/90, mas agora ficou instituído como procedimento padrão, para todo e qualquer procedimento criminal. Houve a mudança topográfica do interrogatório do réu, que somente se dará após a oitiva da vítima, das testemunhas e da eventual produção de provas na chamada audiência una. A plenitude da defesa implica ainda no direito do réu de não poder ser processado e julgado sem defensor, ainda que ausente ou foragido, pouco importando a natureza do crime praticado; de não poder sofrer qualquer pena a não ser por intermédio do Juiz (nulla poena sine judice); ao contraditório; de interpor recursos, desde que a decisão lhe seja adversa; de produzir toda e qualquer prova desde que permitida pelo Direito; de não ser condenado antes de ser ouvido (nemo inauditus damnari potest); de manifestar-se nos autos após a acusação de fato, se a ampla defesa exige a bilateralidade, permitindo o contraditório nos procedimentos penais, e se esse direito ao contraditório, em resumo, significa direito de contrariar a acusação, evidente que, sempre que a acusação se manifestar a defesa deve ser ouvida; direito de ser intimado de todas as decisões, ainda que revel 335. Neste último caso, as 335 - FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. V. 1. São Paulo: Saraiva, p. 180. 163 intimações devem ser feitas apenas ao seu defensor, salvo em se tratando de sentença condenatória. Na plenitude da defesa insere-se, ainda, além de uma gama de outros direitos, o de poder o réu, quando da formação do Conselho, recusar até três jurados injustificadamente, sendo certo, em face da igualdade que as partes devem manter no processo, que à acusação se reserva idêntico direito336. Consubstancia-se nos dispositivos constitucionais: art.5°, inciso LIV: a exigência do devido processo legal; artº 5°, inciso LV: a garantia do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; artº 5°,inciso LXIII: o direito ao silêncio e à autodefesa;artº5°,inciso LXXIV (e art.º.133, Constituição Federal): a imprescindibilidade da defesa técnica (também prevista no CPP, arts. 185, caput, e §§ 1 ° e 2°, 261, caput, e § único, e 263, caput)337. Neste contexto, impõe-se absoluta cautela na formulação dos quesitos, de modo a evitar dúvida, confusão ou perplexidade na formação do juízo de certeza pelos integrantes do Conselho de Jurados. Quando a defesa sustenta em plenário a tese de legítima defesa, é de rigor que o Juiz Presidente continue a votação dos quesitos referentes à figura da inexigibilidade de outra conduta, indagando aos jurados sobre as circunstâncias pertinentes a referida excludente. A não votação dos demais quesitos é causa de nulidade absoluta, porque afronta diretamente a garantia da defesa ampla e plena338. No contexto de que a lei não deve conter palavras inúteis e de que o Tribunal do Júri se caracteriza pela oralidade e imediatidade, a ampla defesa é a possibilidade de o réu defenderse de modo irrestrito, sem sofrer limitações indevidas, quer pela parte contrária, quer pelo Estado-Juiz, enquanto a plenitude de defesa quer significar o exercício efetivo de uma defesa irretocável, sem qualquer arranhão, calcada na perfeição339. A ausência de quesito obrigatório, mormente quando beneficia a defesa, é causa de nulidade. Por quesito obrigatório se entende aquele que compromete a defesa do réu e o julgamento pelo Júri, impedindo que os Jurados lhe afiram o exato alcance e compreensão. A tese de acidentalidade do disparo de arma de fogo que ocasionou a morte da vítima, caso acolhida, acarreta o afastamento do animus necandi imputado ao autor e, por conseguinte, 336 - TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 26. 337 - ALMEIDA, João Batista. Manual do Tribunal do Júri. Judicium accusationis e judicium causae. Cuiabá: Entrelinhas, 2004, p. 25. 338 - STJ, 6ª T., REsp 241.676/GO, rel. Min. Vicente Leal . 07/03/2002, DJ 01/04/2002. 339 - NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: Princípios constitucionais,cit. p. 140. 164 pode resultar em desclassificação para a modalidade culposa ou, até mesmo, em absolvição, tudo a depender do veredicto do Juiz-Presidente (posto que, ausente o dolo, afasta-se a competência do Conselho de Sentença). Sustentada em plenário referida tese, sua supressão da quesitação, além de afrontar a garantia constitucional da plenitude de defesa, impede que os Jurados apreciem com exaustão todos os contornos da lide e, via de consequência, que afiram o exato alcance e compreensão sobre o caso sub judice. Reconhecida a nulidade do julgamento por ausência de quesito obrigatório, reputa-se prejudicada aquela referente à mácula no relatório lido em plenário340. Deflui ainda do princípio, a vedação de exibição de documentos em plenário, durante os debates, sem que se tenha concedido a oportuna audiência à parte contrária. Não se veda, porém, a exibição de peças que não se refiram ao fato objeto do processo. De igual forma no julgamento do Tribunal do Júri, onde sobreleva a rigorosa observância da garantia da plenitude de defesa (Constituição Federal, art.º. 5º,XXXVIII, a) impõe-se absoluta cautela na explicação de cada quesito, de modo a evitar dúvida, confusão ou perplexidade na formação do juízo de certeza pelos integrantes do Conselho de Jurados341. Dentro desta mesma linha de raciocínio, viola o princípio da plenitude de defesa a menção das partes à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado e ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo (art.478 do CPP). Pela plenitude da defesa, o réu não pode ser julgado sem a devida assistência, por defensor constituído ou nomeado; o novo interrogatório realizado em plenário não pode se limitar simplesmente à reprodução de interrogatórios anteriores, observadas as mudanças efetuadas pela Lei 10792/03; o contraditório consiste em manifestar-se a defesa depois da acusação, podendo recusar até três jurados sem motivação. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal, com base nesta importante característica do Júri Popular, pela não ocorrência da preclusão, em havendo malferimento do disposto na Constituição Federal, em referência à plenitude da defesa. No caso concreto entendeu o Supremo Tribunal Federal que em sobrevindo condenação por excesso doloso punível, deve o julgamento continuar, impondo-se 340 - STJ, 5ª T., HC 109.283/RJ, rel. Min. Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), j. 28/10/2008, DJe 10/11/2008 341 - STJ, 6ª T., REsp 241.676/GO, rel. Min. Vicente Leal, j. 07/03/2002, DJ 01/04/2002. 165 a indagação aos jurados de todos os outros quesitos, relativos a legitima defesa, quer de terceiros, quer da própria honra do acusado342. Também já decidiu o STF, que o procedimento do Júri, marcado por duas fases distintas e procedimentos específicos, exige a correlação obrigatória entre pronúncia-libelo-quesitação (atualmente com a supressão do libelo, a correlação do discurso da acusação em plenário, deve ser unicamente com a sentença de pronúncia). Correlação essa que decorre não só da garantia da ampla defesa e do contraditório do réu - que não pode ser surpreendido com nova imputação em plenário -, mas também da necessidade de observância à paridade de armas entre acusação e defesa. Daí a impossibilidade de alteração, na segunda fase do Júri (judicium causae), das teses balizadas pelas partes na primeira fase (judicium accusationis), não dispondo o Conselho de Sentença dos amplos poderes da mutatio libelli conferidos ao juiz togado343. A plenitude de defesa revela uma dupla faceta, afinal, a defesa está dividida em técnica e autodefesa. A primeira, de natureza obrigatória, é exercida por profissional habilitado, ao passo que a última é uma faculdade do imputado, que pode efetivamente trazer a sua versão dos fatos, ou valer-se do direito ao silêncio. Prevalece no júri a possibilidade não só da utilização de argumentos técnicos, mas também de natureza sentimental, social e até mesmo de política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados. E se o réu, no interrogatório em plenário, apresenta tese defensiva distinta do seu advogado? Entendemos que as duas devem ser levadas ao conhecimento dos jurados, apesar do STF já ter-se manifestado que devem ser quesitadas apenas as teses sustentadas pela defesa técnica, dando evidente prevalência a esta última344, conforme já mencionado adrede. A plenitude da defesa trata de específica garantia do júri, destinada, principalmente, à segunda fase do procedimento, ou seja, ao procedimento em plenário, ou fase do iudicium causae. Em se tratando desta segunda fase, onde imperam a oralidade e a concentração, há de se tomar mais cuidado com a efetividade da defesa, sendo que na primeira fase, que é escrita, aplica-se a ampla defesa prevista como princípio geral345. 342 - HC 73.124, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 19/04/96. 343 - STF, 1ª T., HC 82980, rel. Min. Carlos Britto, j. 17/03/2009, DJe 22/10/2009. 344 - TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Bahia: Juspodivm, 2010, p. 746. 345 - LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 798. No mesmo sentido: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional.São Paulo: RT, 2007, p. 170. 166 É importante registrar a seguinte indagação: se a Constituição Federal estabelece como garantia fundamental do cidadão, no julgamento pelo crime capital, a defesa plena, a quem competiria aferir a respeito de sua efetiva observância? A resposta lógica dessa indagação encontra, como indicação, o Juiz-Presidente. Esse, em um primeiro momento, deverá estudar o processo e dele subtrair as possíveis teses de defesa e, dentre essas, verificar se as apresentadas pelo defensor esgotaram, do ponto de vista técnico, o assunto. Os próprios jurados, como sugere a pesquisa realizada no Conselho de Sentença da 1ᵃ Vara do Júri de Porto Alegre, têm condições de identificar a mesma possibilidade. Para exemplificar, sugere-se a hipótese de que o defensor não consiga esclarecer aos jurados suficientemente sobre suas teses de defesa. Comunicado a respeito, seguramente o juiz dissolverá o Conselho de Sentença, marcando nova data e, quem sabe, se houver reiteração da dificuldade, aquele defensor não mais poderá atuar na defesa do imputado346. A lei diz que o juiz deve nomear defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso, podendo, neste caso, dissolver o Conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a constituição de novo defensor (art.º. 497, V do CPP). Quando o juiz deve considerar o réu indefeso? A lei não o diz, devendo se considerar como indefeso o réu somente quando a Defesa não apresentar tese alguma, durante qualquer tempo utilizado, ou não explicar, com clareza e precisão, qual a tese apresentada, não podendo ainda, ser esta não amoldada às permitidas em lei (“verbi gratid” tese fantasiosa e sem correspondência jurídica) e, se antagônicas, serão aceitas as teses, caso sejam apresentadas alternativamente (RT 618/295) 347. Uma vez que os jurados foram escolhidos, eles devem estar preparados para ouvir as declarações de abertura, seguido pelos autores, no caso, a promotoria. Eles devem compreender que a defesa tem o direito de interrogar cada autor ou testemunha de acusação e de se opor a qualquer prova, e que a defesa pode optar ou não optar por colocar em evidência própria. Em um caso criminal, a defesa tem um direito absoluto de não apresentar um caso. Deve ficar claro que os argumentos de fechamento subsequente não fazem parte das provas e as provas devem ser considerados apenas em função das instruções do tribunal. Eles também 346 - LOPES FILHO, Mario Rocha. O Tribunal do Júri e algumas variáveis potenciais de influência. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2008, p. 38. 347 - RODRIGUES, Décio Luiz José. Júri: 45 questões controversas. São Paulo: Minelli, 2004, p. 57. 167 devem ser orientados a esperar interrupções no julgamento quando os advogados ocupam os assuntos com o tribunal348. O processo-crime, que mais não é do que uma “sequência de atos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua justa aplicação”, não pode, nos nossos dias, deambular em um radicalismo porfiriano, quer na defesa do arguido, quer na defesa exacerbada da comunidade, mas antes deambular em um caminho doutrinário e jurisprudencial - que devem orientar e ajudar as opções de política criminal - que induza o intérprete e o aplicador à realização da justiça “justa”349. 9.3. A plenitude da defesa como violação da paridade de armas entre acusação e defesa no Direito brasileiro Existe um grande dissenso na doutrina e jurisprudência pátrias acerca da possibilidade da plenitude da defesa no Tribunal do Júri, uma vez que torna incertas as bases do processo equitativo, contraditório e paridade de armas. A posição do Supremo Tribunal Federal 350 e do Superior Tribunal de Justiça vai de encontro à existência do princípio no Tribunal do Júri brasileiro. Quanto mais grave o crime devem-se observar, com rigor, as franquias constitucionais e legais, viabilizando-se o direito de defesa em plenitude. Constatado que a defesa do acusado não se mostrou efetiva, impõe-se a declaração de nulidade dos atos praticados no processo, proclamando-se insubsistente o veredicto dos jurados. Vem o júri pautado pela plenitude de defesa (Constituição, art.5º, XXXVIII e LV). É-lhe, pois, lícito ouvir, na tréplica, tese diversa da que a defesa vem sustentando. Havendo, em casos tais, conflito entre o contraditório (pode o acusador replicar, a defesa, treplicar sem inovações) e a amplitude de defesa, o conflito, se existente, resolve-se a favor da defesa – privilegia-se a liberdade351. No Tribunal do Júri, o princípio da plenitude da defesa se constitui no mais sagrado procedimento a ser zelado pelo juiz, o qual se encontra arraigado no art.º. 5°, XXXVIII, a, da 348 - VV.AA. Grand Jury .Law and practice.Seconde Edition.Vol.2 Tomson West, 2010, p. 134. 349 - VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal. Tomo I. Lisboa: Almedina, 1997, p. 18. 350 - STF, 1ª t., HC 85969 / SP -rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/09/2007 Dje 31/01/2008. 351 - STJ, 6ª T., HC 61.615/MS, rel. Min. Hamilton Carvalhido, rel. p/ Acórdão Min. 10/02/2009, DJe 09/03/2009. 168 Nilson Naves, j. CF. A doutrina majoritária defende que tal princípio é muito mais completo e complexo do que a ampla defesa, aplicável aos procedimentos processuais ordinários. A defesa plena é a defesa exercida através de todos os meios e recursos inerentes àquela ação, enquanto a ampla defesa abrange esses meios e recursos, bem como outros possíveis. A plenitude da defesa é efetiva quando exercida em juízo por uma defesa técnica exclusivamente efetuada por defensor constituído (advogado contratado pelo acusado), dativo (nomeado pela autoridade judiciária) ou público (fornecido pelo Estado) 352. Logicamente, a plenitude de defesa encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, previsto no art.º. 52, LV, da Constituição Federal. Além disso, na plenitude de defesa, inclui-se o fato de serem os jurados tirados de todas as classes sociais e não apenas de uma ou de algumas 353. Desta forma, se a defesa aduz na tréplica assunto novo, que não pode ser contraditado pela acusação, temos que não foi observada certamente a igualdade de armas preconizada na Constituição e documentos internacionais, ratificados pelo estado brasileiro. A plenitude da defesa diz respeito aos debates em plenário, é pacífico que a defesa, pode na tréplica aduzir fato novo, sem que o Ministério Público possa replicar. Tal fato gera repercussões na igualdade de armas. 10. A prova utilizada no Tribunal do Júri sem a utilização do procedimento contraditório Outro aspecto que pode ser ligado ao processo equitativo e imparcial, no que tange à prova, é que o réu, mesmo no contexto do Tribunal do Júri, não pode ser julgado exclusivamente pelas provas colhidas no inquérito policial. É de todo imperioso, que haja o contraditório, a relação dialógica, constituída pela defesa e acusação e mediada pelo juiz. A Constituição consagra o contraditório, sendo inadmissível a condenação com base exclusivamente no inquérito policial. Partes da doutrina e da jurisprudência entendem que no caso do Tribunal do Júri as provas produzidas no inquérito policial podem se prestar à sentença de pronúncia e posterior condenação do Tribunal do Júri. Com efeito, em vários casos julgados pelo Tribunal do Júri, em que tão-somente há prova, contra o réu, produzida no 352 - RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. Conflito de teses - réu versus defensor, in:Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Nº 39-dez-jan. Porto Alegre: Magister, 2011, p. 59. 353 - MORAES, Alexandre. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, p. 109. 169 inquérito policial, e em que o réu veio a ser condenado, a defesa recorre ao Egrégio Tribunal “ad quem” e alega que a condenação é de ser desconsiderada, pois contraria, manifestamente, a prova dos autos, haja vista que prova inexiste, pois somente foi produzida na fase inquisitorial, do inquérito policial. Todavia, como valoração de prova é matéria atinente ao “meritum”, e como a análise deste é de competência do Conselho de Sentença, não se nos afigura, o veredito condenatório, manifestamente contrário à prova dos autos, pois se imbuiu na competência-atribuição dos senhores jurados. Portanto, é Constitucional e legal a consideração, pelo Conselho de Sentença, como válida, da prova produzida na fase do inquérito policial e, “ipso jure”, a condenação do réu, “in casu”, é legal e legítima, sem reparos só por isso. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou favorável a tal posicionamento, conforme Recurso Especial número 25.120-9.354 Pensamos, que mesmo em tais hipóteses, não é cabível a condenação pelo Tribunal do Júri, mormente em face das penas elevadas, que quase sempre é imposto aos acusados. Neste ponto somos amparados pela doutrina e jurisprudência predominante. Contudo, não é incomum vermos a acusação, fazendo uso e abuso de dados existentes tão-somente no inquérito policial, sem qualquer correspondência ou confirmação de tais dados em juízo. De acordo com a doutrina brasileira, o trabalho policial é a base do trabalho do promotor. Em outras palavras, com base no discurso policial, o promotor de justiça produz o seu discurso. A acusação formal do promotor é feita por um instrumento escrito chamado de denúncia. E para realizar a denúncia - essa acusação formal contra o réu - o promotor lê os autos do inquérito policial, para verificar se estão presentes os pressupostos legais necessários para o oferecimento da denúncia. 355 O trabalho do Promotor de Justiça, no plenário do Júri, não pode ser baseado unicamente, ou mesmo preponderantemente na investigação policial, uma vez que faz parte de um processo equitativo (utilizando o jargão do direito europeu), ou do devido processo legal. Assim, de modo irremediável, a ausência de prova jurisdicionalizada fere o princípio do contraditório, previsto no art.º. 5°, inciso LV, da Constituição Federal. Nesse caso, impõe-se a cassação do veredicto proferido pelo Conselho de Sentença, quando tenha por fundamento 354 - RODRIGUES. Décio Luiz José. Jùri: 45 questões controversas.São Paulo; Minelli, p.36. 355 - FIGUEIRA, Luis Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor.2008, p.34. 170 unicamente provas colhidas durante o inquérito policial, contrário à prova dos autos, devendo o Tribunal determinar que outro julgamento seja submetido o acusado, nos termos do art.º. 593. § 3° do Código de Processo Penal.356 Este fato é notório no Tribunal do Júri brasileiro: A condenação do acusado com base apenas no inquérito policial, sem a observância do contraditório, ou da prova jurisdicionalizada. 10.1. Análise da jurisprudência do TEDH: Acórdão Teixeira de Castro v. Portugal e Acórdão Jalloh Entre os casos mais complexos encontram-se aqueles nos quais as polícias recorreram a agentes infiltrados e, sobretudo, a agentes provocadores. A legitimidade destas figuras policiais foi discutida no caso Teixeira de Castro c. Portugal, Declarou o TEDH que, embora o tráfico de droga represente um flagelo mundial, a luta contra esta forma crescente de criminalidade não poderá passar pela utilização de métodos ilegítimos, sob pena de o Estado se degradar ao nível do criminoso (nas palavras do Tribunal, “the public interest cannot justify the use of elements obtained as a result of a police provocation”).357 No Acórdão Jalloh, o Tribunal sublinhou que o artigo 3º consagra um dos valores mais fundamentais das sociedades democráticas, pelo que haverá violação deste artigo 6°, quando se utilizarem elementos de prova obtidos através da tortura, mesmo que estes elementos não sejam decisivos para a condenação do arguido e tenha o arguido podido ou não contestá-los, sem que se possa invocar o peso do interesse público ou a gravidade da infração (§ 122); ver também o Acórdão Gafgen, de 1 de Junho de 2010, § 166. Tribunal entendeu que os arguidos tinham beneficiado de um processo contraditório, ainda que num caso, Khan, a prova assim recolhida tenha sido o elemento decisivo para a condenação. A esta regra geral, escapa a situação examinada no Acórdão Allan: neste caso, o arguido que se encontrava em prisão preventiva acusado de homicídio tinha exprimido o desejo de guardar silêncio. 356 - RIBEIRO, Neide Aparecida. O veredicto do Júri calcado unicamente em provas do inquérito policial, in: Revista de Direito da Upis, v.5, p.97-110, 2007. 357 - SILVA,Jorge Pereira. “Culturas da Cidadania”-Em torno de um acordão do TC e da nova lei da nacionalidade. Anotação ao acordão do Tribunal Constitucional nº599/05, In:Jurisprudência constitucional, nº11 jul/set 2006, (p.72-89) p.79. 171 Contudo, a polícia colocou na cela, seu informador e gravou as conversas entre eles que foram depois utilizadas para o condenar.358 358 - BARRETO,Irineu Cabral. A Convenção Europeia dos direitos do homem.4ª edição.Coimbra:Coimbra Editora,2010,p.175. 172 Capítulo 4. O Tribunal do Júri no contexto da produção da prova 1. As proibições de prova no Tribunal do Júri brasileiro: O direito do acusado de não ser julgado através da prova ilícita O presente capítulo tem como escopo a verificação da prova ilícita e da prova ilícita no âmbito do Tribunal do Júri, no direito brasileiro e português, bem como análise desta interessante questão na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Acórdãos Kostovski e Van Mechelen), e ainda proibições de prova no Tribunal do Júri anglo-americano. O Tribunal do Júri tem além das proibições de prova em geral (prova ilícitas, inadmissíveis, tais como a utilização de dados bancários sem autorização judicial), as provas ilícitas que existem no âmbito do Tribunal do Júri. No Brasil, além da realização do interrogatório, de audiência de testemunhas e diligências, permite à lei a produção de provas novas (em geral documentos) durante o julgamento. Prevê o art.º. 479 do CPP, que durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte. O artigo em interpretação autêntica contextual declara em seu parágrafo único, que se compreende na proibição deste artigo a leitura de jornais ou qualquer outro escrito, bem como, a exibição de vídeos, gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer outro meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados. O prazo para a comunicação à outra parte deve ser feito no prazo de três dias úteis. O documento abrange a leitura de jornais ou qualquer conteúdo que verse matéria de fato constante do processo. Inclui-se, por exemplo, a proibição de juntada de atestado de antecedentes, autos de anterior processo-crime do acusado, memoriais ou resumo dos debates orais. Não se inclui no conceito de documento, consoante o saudoso Mirabete, a leitura de panfleto anônimo (não constitui prova autêntica, nem distribuição de cópia xerox do processo.). Consoante o Supremo Tribunal Federal, nulo é o julgamento quando há exibição de documentos em plenário, durante os debates, sem que se tenha concedido à oportuna audiência à parte contrária. Não se veda, porém, a exibição de peças que não se refiram ao fato objeto do processo.359 359 - REsp 422.794/RS, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 01/04/2003, DJ 05/05/2003 p. 327. 173 Lembramos que documento é todo meio hábil de transmissão do pensamento monumentos, pinturas, marcas, armas. Já se anulou processo em que acusação mostrou cicatrizes no corpo da vítima, vestes da vítima, arma etc. É permitida a leitura de reportagens que não versem sobre matéria objeto do processo. Veda-se que o advogado dê depoimento sobre fatos não constantes no processo (depoimento sem contraditório). Contudo, não incide a proibição se o documento já estava nos autos, já que não há surpresa para a parte contrária. As permissões de leituras científicas ou filosóficas, obras técnicas, recursos visuais, gráficos, croquis, bonecos, reconstituição de crime pela parte, vídeo com programa televisivo sobre o assunto. De acordo com o STF, a violação da regra nulidade relativa com demonstração de prejuízo à parte, devendo haver o protesto constado em ata. Consoante o art.º. 478 do CPP, durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: a) à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; b) ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo. O princípio nemo tenter se degenere, impede que se faça qualquer juízo de valor acerca do silêncio do réu. Uma das projeções do principio nemo tenetur se detegere, é o direito de não autoinculpação, cuja máxima ou projeção mais primitiva é encontrada no direito ao silêncio, perante interrogatórios formais ou informais. O Supremo Tribunal Federal, decidindo acerca das proibições de prova em plenário, decidiu que consoante dispõe o inciso I do artigo 478 do Código de Processo Penal, presente a redação conferida pela Lei nº 11.689/08, a sentença de pronúncia e as decisões posteriores que julgarem admissível a acusação não podem, sob pena de nulidade, ser objeto sequer de referência, o que se dirá de leitura.360 Caso haja, um fato relevante para o Julgamento, como um fato impeditivo, o Juiz dissolverá o conselho, formulando com as partes os quesitos para sua realização (art.755). Por exemplo, a existência de doença mental superveniente do réu, ou outiva de uma testemunha ocular, não dispensada pelas partes e jurados. A regra permanece, embora tenha sido suprimida pela reforma, uma vez que se trata da busca da verdade real. 360 - HC 86414, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-02 PP-00315 RTJ VOL-00209-01 PP-00208 RT v. 98, n. 883, 2009, p. 525-528). No mesmo sentido: (HC 94274, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 01/12/2009, DJe-022 DIVULG 04-02-2010 PUBLIC 05-02-2010 EMENT VOL02388-01 PP-00072. 174 2. A proibição das testemunhas de referência ou Hearsay Rule no direito angloamericano e português Na Inglaterra, uma das proibições de prova no plenário do Júri, é a chamada prova de referência, que nada mais é que uma prova indireta, um conhecimento obtido através de terceiros. No direito inglês, existe uma série de regras relativas à prova chamadas de extrinsic policy, baseadas em motivos extrínsecos e objetivos e outro grupo de provas denominadas intrinsic policy, que se refere ao testemunho de referência escrito ou oral, conhecido no direito anglo-saxão como hearsay rule.361 Esta regra, estabelece a proibição dos fatos, através do testemunho de referência, que se traduz na declaração oral que se presta perante o Tribunal do Júri, por uma testemunha, apoiada tão-somente nos fatos declarados por outra testemunha. 362 Esta proibição de prova no direito anglo-saxão existe essencialmente por três motivos: a primeira e mais importante é que não se pode submeter à testemunha à cross-examination, uma vez que a cross-examination, é um teste de credibilidade, onde o imputado submete através das perguntas, a estas endereçadas as eventuais contradições no seu depoimento; b) a ausência de aparência de prova, tendo em vista que se a testemunha não comparece pessoalmente, a parte que não arrolou referida testemunha, não pode demonstrar seus defeitos de percepção, memória ou confiabilidade; c)a ausência de juramento, uma vez que a testemunha direta, tem que prestar o juramento definido em lei para falar a verdade sob pena de certas imposições legais, inclusive crime de perjúrio ou de falso testemunho.363 361 362 - Federal rules of evidence, Rule 801 e 802. - MAUET Thomas A.; WOLFSON Warren D.Trial evidence: New York, United States, 1997, p.127. Conforme explica Paulo Dá Mesquita, ao longo do século XX, o estudo jurídico do hearsay acabou por se desenvolver em torno das excepções da proibição da hearsay evidence, o capítulo mais exigente do estudo do direito probatório.A codificação das Federal Rules of Evidence representa esse desenvolvimento, consagrando vinte e três categorias de excepções à proibição, em que ressalta como excepção residual “a declaração não prevista especificamente” nas outras excepções, “mas que tem iguais garantias de veracidade”, a qual será admitida “se o tribunal determinar que: (A) a declaração é oferecida como prova de um facto material; (B) a declaração tem mais força probatória sobre o ponto relativamente ao qual é oferecida do que qualquer outra prova que o requerente possa procurar através de esforços razoáveis; e (C) o fim geral destas normas e os interesses da justiça serão melhor servidos pela admissão da declaração como prova”, in: MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime. Estudo sobre a prova no sistema penal português, à luz do sistema norteamericano.Coimbra: Coimbra editora ,2011, p.395. 363 - JIMÈNEZ, Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia.Tirant Lo Blanch,2002, p.307. 175 É, portanto evidente que a abolição da regra do “ouvir dizer”: teria como consequência tornar admissível em matéria de prova, uma grande variedade de escritos: relatórios policiais, registros médicos e hospitalares, livros comerciais, transcrições estenográficas de audiências, atas, declarações escritas das partes ou de terceiros (inclusive técnicos) etc. Tendo em vista, a preservação do direito ao contrainterrogatório, o legislador não foi tão longe. Mas, por força de leis de 1968 e 1972, a prova “por ouvir dizer” tornou-se geralmente admissível em matéria civil, sob certas condições, entre as quais, em primeiro lugar, o fato de que a parte que tenha a intenção de valer-se de tal prova, devendo advertir a parte contrária e fornecer-lhe cópia do escrito de que se trata. Em segundo lugar, é preciso que o adversário não requeira, em réplica, que a testemunha seja convocada à audiência para o contrainterrogatório. Enfim, quando os litigantes não conseguem pôr-se de acordo, o juiz encarregado de resolver as questões interlocutórias tem a discrição de autorizar, ouvidas as partes, a prova “por ouvir dizer”. São complexas as leis de 1968 e 1972 e as normas procedimentais com elas relacionadas. Elas não eliminam a regra do “ouvir dizer”. Ao contrário, vê-se reafirmada a primazia da prova testemunhal direta. Ê certo, porém, que desde a entrada em vigor dessas leis; se tornou muito mais fácil a prova escrita, e, por conseguinte a comunicação de escritos admissíveis como provas.364 Algumas exceções se admitem para este tipo de prova na Inglaterra: a) admissão ou confissão dos fatos pelo imputado, desde que não lhe sejam prejudicais (art.º. 10, Criminal Justice act, 1967); b) documentos ou certificados emitidos por funcionário publico no exercício de seu cargo, e que constam determinados direitos como nascimento, estado civil, profissão etc.; c) a confissão do imputado sobre o fato delituoso prestado na fase de instrução do processo, desde que plenamente voluntária (art.º 76 Police and Crminal Evidence act 1984); d) nos delitos contra a vida, a manifestação da vítima, antes de morrer; e) as declarações escritas efetuada no cumprimento de um dever por pessoas já falecidas; f) a manifestação espontânea de pessoas que se viram envolvidas no fato delituoso, mas que estão impossibilitadas de prestar depoimento (doença, invalidez etc.).365 Pelo menos numa primeira abordagem, as coisas são mais simples e óbvias no direito americano, onde vigora a proibição geral de recurso aos testemunhos de ouvir dizer. No direito americano vale, noutros termos, o princípio hearsay is no evidence. Para fundamentar 364 - JOLOWICZ, J.A. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? in: Revista Forense, volume 328, outubro, novembro, dezembro de 1994, p64. 365 - CROOS Rupert; WILKINS, Nancy. An Outlines on The Law of evidence, London, 1980, p.144-156. 176 o princípio, invocam os autores e tribunais americanos, um conjunto de argumentos de índole formal e material. De todos os lados se reconhece, porém, como nuclear e decisiva a razão que radica no imperativo de assegurar às partes a possibilidade de contraditar os depoimentos das testemunhas apresentadas pela outra parte e, sobretudo, de tentar infirmar a sua credibilidade, submetendo-as à cross-examination. Um imperativo, de resto, de expressa valência constitucional, por força da VI Amendment (1791): “in ali criminal prosecutions the accused shall enjoy the right (...) to be confronted with the witnesses against him”, Este último imperativo normativo constitucional que implica, nomeadamente, o dever de dar a conhecer ao acusado a verdadeira identidade e morada dos informadores, apesar de tudo trazidos ao tribunal. Tal é, pelo menos, o entendimento que vem sendo sufragado pela Supreme Court, numa tentativa de melhor clarificação da compreensão e alcance da proibição da hearsay evidence (cfr., v. g., Smith v. Illinois, 1968). As exceções, apesar de tudo, reconhecidas à proibição da hearsay evidence acabam, todavia, por minar de dificuldades a tarefa do intérprete e aplicador do direito às expressões concretas da vida. Dificuldades agravadas por duas ordens complementares de razões. 366 Em primeiro lugar, as exceções admitidas estão longe de se reportar invariavelmente a constelações típicas claramente recortadas e, por isso, de emergir como enunciados de teor normativo determinado. Como de algum modo sucede com a exceção relativa às chamadas dying declarations: por força dela podem ser trazidas ao tribunal, através de testemunhas-deouvir-dizer, as declarações da vítima de uma agressão letal, produzidas antes da morte e na iminência desta, expectativa ou receio da sua ocorrência. A esta luz, é possível valorar o depoimento de uma testemunha que declara perante o tribunal, que um dia antes do facto, a vítima lhe confessou que andava com medo que o acusado a viesse a agredir. Na maioria dos casos as exceções assumem a natureza de cláusulas gerais que remetem para a court's sound discretion e induzem margens invencíveis de insegurança. Como sucede com o dispositivo consagrado na codificação elaborada pelo Congresso em 1975 e que abre a porta à hearsay evidence, sempre que subsista um equivalente circunstancial de garantia de confiabilidade. Ou ainda quando a generalidade dos tribunais dispense a indicação da identidade e morada de um 366 - Transformado em avaliador de provas produzidas, o júri absorveu a desconfiança epistêmica generalizada no mundo ocidental sobre o depoimento em segunda mão.Presentes ainda no seio da law of evidence, integra uma raiz cultural comum à Europa Continental e Portugal.Tradição tópico-retórica presentes nos clássicos e no direito romano que determina a desvalorização do testemunho de ouvir dizer. (cf: MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime. Estudo sobre a prova no sistema penal português,a luz do sistema norteamericano.Coimbra:Coimbra Editora,2011,p.374). 177 informador da polícia, em nome de um razoável receio de atentado contra a vida ou integridade física do informador ou dos seus familiares.367 Continuando a proibição da prova no âmbito do júri, temos a chamada prova de referência ou indireta, que não deixa de ser um assunto complexo, por ser apenas meio de prova proibido de forma relativa, havendo exceções a este tipo de proibição na Inglaterra e Estados Unidos como se vê acima. 3. O problema das testemunhas anônimas e sua compatibilidade com a utilização de um processo equitativo e imparcial: Acórdãos Kostovski e Van Mechelen Na decisão Kostovski, a Corte Europeia se pronuncia pela primeira vez sobre a questão da compatibilidade das testemunhas anônimas para com as exigências do artigo 6, § 3 d). A Corte opera uma distinção entre a utilização na fase policial de informantes ocultos e o emprego posterior de declarações anônimas como prova de uma condenação (§ 44). A importância da luta contra a criminalidade organizada (§ 43) justifica o recurso às testemunhas anônimas, para se evitar a intimidação destas testemunhas por parte das organizações criminosas. “Certamente, o artigo 6º não requer explicitamente que os interesses das testemunhas, inclusive das vítimas, sejam levados em consideração. Todavia, tais interesses podem dizer respeito à própria vida e segurança destas testemunhas” (Doorson c/ Holanda, 26 de março de 1996). A Corte considera, entretanto no julgado Van Mechelen que os agentes de polícia devem, em geral, aceitar estarem expostos a riscos mais graves do que a maioria das pessoas, reconhecendo contudo, que pode ser legítimo para as autoridades de polícia a preservação do anonimato de um agente empregado em atividades secretas, a fim de assegurar sua proteção e de sua família, mas também para não comprometer a possibilidade de utilizá-lo em operações futuras (§ 57). A demonstração do perigo que corre a testemunha para justificar seu anonimato é necessária para a admissibilidade da testemunha anônima. A Corte afirma no julgado Van Mechelen (§64) que esta demonstração não tinha sido feita, contrariamente ao que ocorreu no julgado Doorson, onde foi decidido, com base nas informações extraídas do próprio dossiê, que as testemunhas apresentavam razões suficientes, para crer que o acusado poderia recorrer à violência contra elas. 367 - ANDRÈ, Adélio Pereira. Processo Penal, justiça criminal e garantias fundamentais, in: Revista do Ministério Público. Jornadas de processo penal, 2003, p161-162. 178 Na realidade, a Corte Europeia examina, sobretudo, caso a caso, a influência que pode ter o testemunho anônimo sobre o processo no seu todo. Se, na maior parte das decisões proferidas na matéria, a Corte Europeia estima que as necessidades vinculadas à proteção das testemunhas são insuficientes, para justificar a lesão aos direitos da defesa, advinda da utilização destes testemunhos anônimos, a condenação é menos dirigida contra a testemunha anônima em si do que contra as lesões aos direitos de defesa. No julgado Doorson (§ 69), a Corte afirma que "assim que já resultava de uma maneira implícita dos §§ 42 e 43 do julgado Kostovski, tal utilização (das testemunhas anônimas) não será em todas as circunstâncias incompatíveis com a Convenção". Se, no julgado Ludi, os juízes europeus concluem pela violação do artigo 6, § 3, d), eles não condenam em si a técnica de infiltração, considerada indispensável na luta contra o tráfico de drogas, mas sanciona as autoridades suíças, por que no caso em espécie teria sido possível, a organização de uma confrontação de maneira tal a preservar o anonimato dos policiais. Quanto ao respeito dos direitos de defesa, face à testemunha anônima, a admissibilidade desta testemunha se submete, segundo a Corte Europeia, a duas condições cumulativas: é preciso que a defesa se beneficie de uma compensação no exercício de seus direitos processuais e que o testemunho não seja a única prova de culpabilidade do acusado. Se se preserva o anonimato das testemunhas de acusação, a defesa se depara com dificuldades que, normalmente, “não deveriam existir dentro de um processo penal". Assim, a Corte reconhece que, em tal hipótese, o artigo 6, § 1, combinado com o artigo 6, § 3, d) da Convenção Europeia, exige que os obstáculos aos quais a defesa se depara, devem ser suficientemente compensados no próprio processo conduzido diante das autoridades judiciárias (Doorson, § 72; Van Mechelen, § 54). A primeira exigência reside na intervenção de um juiz quando do interrogatório da testemunha anônima, o que ocorreu no caso Doorson. Mas esta intervenção não basta (Van Mechelen, § 62). É preciso que a testemunha anônima possa ser "interrogada" pela defesa, para o respeito de seus direitos. No julgado Kostovski, a defesa pôde apresentar questões escritas por intermédio do juiz de instrução, mas as autoridades holandesas foram acusadas de censurar certas questões, sob o motivo que estas tinham o objetivo de identificar as testemunhas. No julgado Doorson, a Corte destaca o fato do advogado de defesa ter podido assistir ao “interrogatório” e que ele pôde apresentar questões à testemunha anônima, exceto aquelas onde se descobriria a identidade das testemunhas (§ 73). No julgado Van Mechelen, os acusados e seus advogados foram ao contrário excluídos do “interrogatório” das testemunhas (§ 59). 179 O problema das testemunhas anônimas vem sendo tratado pela convenção como meio de prova relativamente proibido, uma vez que vários julgados (Doorson; Van Mechelen) atenuaram este tipo de proibição, desde que existam certas circunstâncias, como a demonstração de perigo para a testemunha, por exemplo, bem como o enfrentamento da criminalidade organizada, através das testemunhas infiltradas. 4. A necessidade da imediação entre a produção da prova e a convicção do julgador A mesma regra é seguida em Portugal, onde a segunda e mais importante proibição específica deste meio de prova respeita à obrigatoriedade de conhecimento direto dos fatos inquiridos e justifica-se plenamente em razão de exigências da contraditoriedade, e do princípio da imediação que caracteriza um processo de sistema acusatório. A possibilidade efetiva de contrainterrogatório implica que os depoimentos incidam sobre os factos concretos, e não sobre o que se diz, e exige, Simultaneamente, a presença física de quem o diz para que o tribunal possa aferir da sua credibilidade. O princípio da imediação “determina que o juiz deverá tomar contacto imediato com os elementos de prova, ou seja, através duma percepção direta ou pessoal e só possível quando o depoimento da testemunha se reporta ao contacto direto que teve com os factos objeto de prova e não quando se lhes refira vaga e abstratamente tipo “fama est”. Ao proibir-se o depoimento indireto abrange-se o testemunho do que se ouvir narrar a outrem ou de outiva (art.º. 129.° n.º I) e, por maioria de razão atenta à sua fragilidade, o testemunho que se limite a reproduzir vozes ou rumores públicos que os antigos chamavam de “piscatio anguillarum” (artº 130º, n.º I).368Este princípio é a pedra angular do Tribunal do Júri, uma vez que regido pela oralidade processual. O princípio da imediação é a pedra angular do júri, que forma sua convicção através dos debates. 5. A prova ilícita e a certeza moral do jurado ou íntima convicção No Tribunal do Júri, vigora a certeza moral do jurado ou da íntima convicção As decisões proferidas pelo Tribunal do Júri decorrem do juízo de íntima convicção dos jurados e representam exceção à obrigatoriedade de fundamentação dos provimentos judiciais (art.º. 93, IX, da Constituição Federal) contemplada pela própria Carta Política, que assegura o sigilo 368 - ANDRÈ, Adélio Pereira. Processo Penal, justiça criminal e garantias fundamentais, cit.p163. 180 das votações aos integrantes do Conselho de Sentença (art.º. 5º, XXXVIII, b, da Constituição Federal). 369 A lei nada diz sobre o valor das provas e a decisão funda-se tão-somente na certeza moral do juiz, que não fornece as razões de seu convencimento. Assim, por não caber à Justiça togada, nos estreitos limites da apelação contra veredicto do Tribunal do Júri, desqualificar prova idônea produzida sob o crivo do contraditório, a decisão é ilegal. 370 A parte final do art.º. 186 do CPP não foi recepcionada pela Carta de 1988. O silêncio do réu não pode ser usado, de per si, para fundamentar um juízo condenatório. O princípio do livre convencimento, que exige fundamentação concreta, vinculada e legalmente válida, não se confunde com o princípio da convicção íntima. A condenação requer certeza, sub specie universalis, alcançada com prova válida, não bastando a alta probabilidade ou a certeza subjetiva do julgador.371 Desta forma, entendemos, que diante de uma eventual prova ilícita, produzida perante os jurados, estes devem ser alertados, sobretudo pelo Juiz-presidente, acerca da prova. 6. A verdade real no âmbito do Tribunal do Júri 6.1. A verdade real no processo penal como valor relativo O objetivo do princípio da verdade real é colher todos os elementos que assegurem a punição do verdadeiro culpado, a verdadeira forma como se deu o crime, a punição de todos os infratores do crime e a absolvição dos inocentes, não se contentando com as ficções, transações ou a verdade formal do Direito Processual Civil, como os atos ou omissões das partes, como por exemplo, a ausência de contestação, em que se presumem verdadeiros os fatos, desde que disponível o interesse jurídico, conforme dispõe o artigo 302 do Código de Processo Civil. O processo penal deve tender à averiguação e ao descobrimento da verdade real. A regra é o restabelecimento da verdade real ou material. Só por exceção e quando o juiz não puder dispor de meios para assegurar a verdade real, esta poderá se curvar à verdade formal. 369 - HC 81.352/ RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 07/10/2008, DJe 03/11/2008. 370 - HC 85904, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 13/02/2007, DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00143 EMENT VOL-02282-05 PP-01022 LEXSTF v. 29, n. 344, 2007, p. 423-432. 371 - Resp 363.548/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/05/2002, DJ 10/06/2002 p. 250. 181 Do estudo desse princípio, podemos dizer que a prova é indisponível e o juiz deve pesquisá-la acima da aquiescência das partes372. No âmbito do princípio, todas as provas tem valor relativo incluindo a própria confissão do réu, conforme exposição de motivos do Código de Processo Penal. Mas como poderíamos definir a verdade processual? A maioria da doutrina reporta-se ao jurista Malatesta que ensina que verdade é a conformidade da noção ideológica com a realidade, e a certeza é a crença nessa conformidade373. Esta verdade deve estar ancorada nos autos (o que não está nos autos não está no mundo), o que permite ao Juiz investigar para descobrir a verdade, superando a desídia das partes, procurando a verdade material ou real, que é aquela que mais se aproxima da realidade. O certo é que o princípio da verdade real provoca no juiz um sentimento de busca, de inconformidade com que lhe é apresentado pelas partes. A verdade processual não assenta numa ideia de certeza cientificamente comprovada, mas sim numa ideia de probabilidade. Ela não é senão o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de fato é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, obtida por meios processualmente válidos374. Ocorre que no processo dificilmente ou nunca se atingirá a certeza absoluta, pois como a instrução probatória equivale à busca do fato histórico, deverá haver uma reconstrução dos fatos com dados do passado, através da prova, para se buscar a verdade e, consequentemente, a certeza, e esta forma de reconstrução não permite, em regra, uma certeza absoluta, mas meramente relativa, tendo em vista as próprias deficiências humanas. O que terá o juiz é uma aproximação, ou seja, uma probabilidade, significando que deve buscar algo mais que a simples possibilidade, algo mais próximo da certeza, e isto é que é, em maior ou menor grau, a probabilidade. É o que se chama de certeza possível375. Não há, contudo, como retratar a verdade absoluta. Pois não há como valorar as provas com total segurança, já que o acusado pode dar mais de uma versão para os fatos; as testemunhas não retratam o que viram ou ouviram devido a vários fatores, como a pouca idade ou a senilidade, por doença, pelo tempo passado desde o ocorrido, da possibilidade de suborno, ameaça medo de represálias a si mesmo ou familiares etc. Estas também são 372 - BARROS, Francisco Dirceu. Direito Processual Penal. Vol. II. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007,p. 6. 373 - NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2005, p. 56. 374 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 96. 375 - AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58. 182 situações que envolvem o ofendido. A ausência de preservação do local do crime e a insuficiência, tanto material como humana, para a realização de perícias, são também fatores que impedem que se obtenha a verdade absoluta. 6.2. A verdade real como reconstituição da verdade histórica Tanto a vinculação comparativa juiz/historiador quanto a inserção da expressão verdade no processo penal são dotadas de um relativismo incompatível com o caráter absoluto que se lhes queira emprestar. As limitações impostas ao acertamento da verdade exigem cautelas redobradas na inserção desta expressão no processo penal, sobretudo quando qualificada de real, material ou objetiva. A obtenção da “verdade plena” configura, pois, um mito que não se sustenta diante da realidade imposta pela obediência aos métodos de acertamento regrados por um Estado de Direito. A reconstrução processual-histórica, quando muito, permitirá o descortinamento de aspectos da verdade, situados, assim, em um ponto possível de ser atingido neste caminhar376. O que está verdadeiramente em causa no processo penal não é a verdade formal, mas bem diferentemente a verdade material, implicando tal desiderato que esta última se equacione num duplo sentido. Por um lado, que seja uma verdade imune às influências que a acusação e defesa queiram exercer sobre ela, ex vi dos respectivos comportamentos. Por outro, que seja uma verdade processualmente legitimada e consequentemente válida e não obtida a todo ou a qualquer preço. Uma verdade obtida, em suma, no escrupuloso e integral respeito, dos direitos fundamentais dos cidadãos, arguidos num determinado processo penal. A realização da justiça pressupõe, pois, a descoberta da verdade material, pressuposto legitimador da necessidade e sujeição da sanção penal, que visa a proteção de bens jurídicos fundamentais, mas também a reintegração do agente do crime na sociedade, sendo certo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, e ainda o restabelecimento da paz jurídica comunitária, posta em causa através do cometimento do crime377. A descoberta da verdade processual do fato praticado, através da instrução probatória, passa a ser, assim, uma espécie de reconstituição simulada do fato, permitindo ao juiz, no momento da sentença, aplicar a lei penal ao caso concreto, extraindo a regra jurídica que lhe é 376 - ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa probatória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 113. 377 - GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João. A prisão preventiva e as restantes medidas de coacção. A providência do habeas corpus em virtude de prisão ilegal. Coimbra: Almedina, 2003, p. 12. 183 própria. É como se o fato fosse praticado naquele momento perante o juiz aplicador da norma. Portanto, não obstante chamarmos de verdade real, nem sempre ela condiz com a realidade fática ocorrida. Portanto, entende o ilustre autor que se trata de uma verdade no processo. O sistema do livre convencimento impõe-nos uma conduta: vale o que está nos autos do processo378. A realidade coincide em identificar o nosso pensamento com a realidade concreta. É uma relação de conformidade ou adequação ou concordância entre o que se pensa e a coisa que existe, o fato concreto. Temos assim a verdade empírica. Num seu rigor científico, E. Baudin define-a: assim: “a verdade encontra-se na correspondência entre as ideias e os seus objetos, e entrega relação pensada e a relação real destes objetos”379. Numa noção mais acessível ao senso comum, a verdade traduz-se na coincidência mental entre o fato, a coisa ou a realidade concreta (o acontecimento em si) e o relato ou o desenho que deles dá o nosso pensamento; em sentido impróprio, dir-se-ia a imagem ou fotografia mental do fato ou do acontecimento, a assimilação daquele que conhece e do objeto conhecido. Em resumo, é a fidelidade do nosso pensamento à realidade captada pelos sentidos. “Dizer que o que é, é, e que o que não é, não é, eis a verdade”, já dizia Aristóteles. “O “lugar” próprio da verdade é o juízo; a essência da verdade encontra-se no “acordo” do juízo com o seu objeto”380. Podemos chamar “decidibilidade da verdade processual” e “decisão sobre a verdade processual”, respectivamente, a verificabilidade (e falseabilidade) e a verificação (ou refutação) das motivações judiciais, e configurar a alternativa epistemológica entre garantismo e autoritarismo no direito penal como alternativa entre a presença e a ausência de condições ou garantias, que asseguram um ou outro. Ali onde a verdade seja indeterminável, ou indeterminada, a decisão judicial na realidade é tomada segundo outros critérios, relativos a valores distintos do “verdadeiro” e do “falso” e diferentemente destes, inteiramente confiado à discricionariedade do juiz381. As faculdades e deveres que se impõem ao Juiz nos ordenamentos continentais históricos variam; pois, em qualquer caso, são tão amplas, que permitem configurar o objeto 378 - RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 6. 379 - BAUDIN, Emily. Cours de psychologie et de philosophie. Vol.I. Psychologie. 7. ed. Paris: De Gigord, 2012, p. 375. 380 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 55. 381 - FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paulo Zomer et. al. São Paulo: RT, 2002, p. 54. 184 do processo penal como um fato: a esse fato, se junta o dever de punir do Estado e que, portanto, importa em determinar se o fato ocorreu ou não, e para tal efeito, não pode haver mais verdade que a verdade histórica382. Quando colocado em face do problema da verdade, o homem pode vir a encontrar-se:a) num estado de ignorância (a verdade é para ele totalmente desconhecida); b) num estado de dúvida (a verdade ainda se apresenta como simplesmente possível, porque a inteligência hesita entre o sim e o não, porque são em número igual as razões a favor e as razões de sinal contrário); c) num estado de opinião (a verdade é neste caso apenas provável, pelo que a adesão da inteligência é mais ou menos firme, de tal sorte que não se exclui totalmente o risco de errar); d) num estado de certeza (a verdade surge então em plena evidência)383. A soma da hermenêutica com a analítica da filosofia da linguagem não acredita em conhecimento verdadeiro senão em conhecimento válido. Em vez de se perguntar pelo conhecimento puro, deve-se perguntar apenas pela validade do conhecimento. Isso é erigir o conhecimento a um método, ou seja, uma ação mediante princípios procedimentais. A procedimentalização atua como garantia da “verdade discursiva”, onde a tensão entre eficácia social e vigência é praticamente vencida, pois a práxis da auto compreensão social e da autodeterminação dos “consorciados” se dá na história384. Nos procedimentos é impossível a certeza, razão porque se deve a aceitação das decisões, independentemente de sua verdade material. Os procedimentos servem precisamente para a generalização social de expectativas, onde existem deficits de aceitação. Assim entendido, os sistemas de interações especiais, em que se integram as expectativas do indivíduo, ao constituir-se em fatores que condicionam a correção de suas decisões385. Portanto, preceitua o art.º. 156 do Código de Processo Penal brasileiro, que o juiz poderá no curso do processo ordenar diligencia, para dirimir dúvida sobre ponto relevante; pode fazer novo interrogatório (art.196 do Código de Processo Penal); proceder de ofício à verificação da falsidade (art.147 do Código de Processo Penal); pode mandar ouvir testemunhas que não foram inquiridas pelas partes, mas mencionadas por outras testemunhas 382 - ANTON, Tomás Vives. El Processo penal de la presunción de inocência. Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais. in: PALMA, Maria Fernanda (Coord.). Lisboa: Almedina, 2004, p. 20. 383 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 56. 384 - ENCARNAÇÃO, João Bosco. Filosofia do direito em Habermas: A hermenêutica. Taubaté: Cabral, 1997,p. 89. 385 - NAVARRO, Susana Soto. La protección penal de los bienes colectivos en la sociedad moderna. Madrid: Comares, 2003, p. 13. 185 (art.º. 209 do Código de Processo Penal); pode mandar juntar documentos, independente de requerimento das partes (234 do Código de Processo Penal); pode ordenar diligências para esclarecimento da verdade (art.407 e 497, XI do Código de Processo Penal); o Tribunal pode mandar reinquirir testemunhas, e proceder a diligências (art.616 do Código de Processo Penal). 6.3. A verdade real e revisão criminal no Tribunal do Júri brasileiro Outra expressão normativa do princípio é acolhida no art.º. 621 e seguintes do Código de Processo Penal: a revisão criminal. A revisão criminal retrata o compromisso do nosso Direito Processual Penal com a verdade material das decisões judiciais e permite ao Poder Judiciário reparar erros ou insuficiência cognitiva de seus julgados. Em matéria penal, a densificação do valor constitucional do justo real é o direito à presunção de não culpabilidade (inciso LVII do art.º. 5º da CF). É dizer: dispensa qualquer demonstração ou elemento de prova é a não culpabilidade (que se presume). O seu oposto (a culpabilidade) é que demanda prova, e prova inequívoca de protagonização do fato criminoso. O polêmico fraseado “contra a evidência dos autos” (inciso I do artigo 621 do CPP) é de ser interpretado à luz do conteúdo e alcance do Direito Subjetivo à presunção de não culpabilidade, serviente que é (tal direito) dos protovalores constitucionais da liberdade e da justiça real. De sorte que é contra a evidência dos autos tanto o julgamento condenatório que ignora a prova cabal de inocência quanto o que se louva em provas insuficientes ou imprecisas ou contraditórias para atestar a culpabilidade do sujeito que se ache no polo passivo da relação processual penal. Tal interpretação homenageia a Constituição, com o que se exalta o valor da liberdade e se faz justiça material, ou, pelo menos, não se perpetra a injustiça de condenar alguém em cima de provas que tenham na esqualidez o seu real traço distintivo386 É possível a revisão criminal no Júri brasileiro? Sim, é admissível a revisão criminal em sentença condenatória do Júri. Guilherme de Souza Nucci enuncia os argumentos favoráveis ao juízo rescindendo dos veredictos advindos do Tribunal do Júri. Os argumentos favoráveis à revisão criminal contra a decisão final do Júri são os seguintes: a) a revisão é uma garantia individual mais importante, podendo superar outra, que é a soberania dos veredictos do Tribunal popular, porque preserva o direito à liberdade; b) a soberania não pode afrontar os direitos de defesa do réu, devendo prevalecer sempre à ampla defesa; c) a 386 - STF, 1ª T., HC 92435 / SP, rel. Min. Carlos Britto, j.25/03/2008 DJe 16/10/2008. 186 soberania do Júri não pode sustentar-se na condenação de um inocente, pois o direito à liberdade, como se disse, é superior; d) a soberania dos veredictos cinge-se apenas ao processo, até que a relação jurídico-processual seja decidida em definitivo; e) a soberania dos veredictos e o Júri constituem garantias do direito de liberdade do réu, razão pela qual a absolvição pela revisão criminal estaria de acordo com tais finalidades; f) existem possibilidades legais de revisão da decisão do Júri, como a revisão criminal e a apelação. 387 Portanto, não ofende a soberania popular, pois o Júri é garantia individual do réu. Em havendo anulação, o acusado é submetido a novo julgamento. Este ponto é pacífico no Superior Tribunal de Justiça, que declara que, tendo sobrevindo o trânsito em julgado da condenação, proferida pelo Tribunal do Júri e referendada pelo Tribunal de origem, a rediscussão de temas, com marcante colorido fático-probatório, no estreito âmbito de cognição do writ é inviável - exame cabível apenas em sede de revisão criminal.388 A soberania dos veredictos é assegurada com a devolução dos autos ao Júri para que profira novo julgamento, sendo lícito no caso da apelação fundada no artigo 593, inciso III, letra d, a opção por parte dos jurados de uma das versões contidas no processo. Não se admite, porém, a decisão arbitrária, completamente divorciada da prova dos autos, visto que esta fere o princípio da soberania dos veredictos,389 e nem ainda quando os autos tenham uma única versão.390 Consagrando este entendimento, o Supremo Tribunal Federal, deferiu habeas corpus para cassar decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que determinara ao fundamento de que a decisão do conselho de sentença fora manifestamente contrária à prova dos autos (Código de Processo Penal, art.º. 593, III, d), a realização de novo Júri a condenado pela prática do delito tipificado no art.º. 121, § 1º, do Código Penal. Considerou-se que, na espécie, “se o Tribunal do Júri, com base no depoimento de testemunhas ouvidas em juízo, concluíra que o réu cometera homicídio privilegiado, não poderia o tribunal local substituir esse entendimento, por reputar existentes outras provas mais robustas no sentido contrário ao da tese acolhida.”391 387 - NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo. RT. 2009, p.945. 388 - STJ, 6ª T., HC 75.190/SP, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 18/03/2010, DJe 12/04/2010 389 - STF, HC 69.552, rel. Min. Paulo Brossard, DJ 11/12/92 390 - STF, RE 166.896, rel. Min. Néri da Silveira, j. 26/03/2002, DJ de 17/05/2002.No mesmo sentido: STF, HC 73.686, rel. Min. Sydney Sanches, j. 07/05/1996, DJ 14/06/1996 391 - STF, HC 85.904, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 13/02/2007, Informativo 456 187 6.4. O princípio da verdade real e a instrução probatória no Tribunal do Júri Observa a doutrina brasileira que em se mantendo a sistemática atual, reservando-se aos processos pela competência do Tribunal do Júri duas fases distintas, uma destinada à instrução que se desenvolve unicamente perante o juiz preparador e a outra perante o Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença continuará à margem das provas coligidas durante a instrução processual, sendo chamado, apenas, para o julgamento, o que é sobremaneira prejudicial, pois não se lhe permite conhecimento mais acurado acerca dos fatos sobre os quais haverá de decidir. Acreditamos que seria a hora de inovar, eliminando as duas fases dos processos da competência do Tribunal392. Desta forma, o princípio da verdade material (ou real) fica um pouco enfraquecido, uma vez que o jurado não tem o acompanhamento do processo, desde o seu início. Ademais nos debates, é possível que nenhuma das partes (acusação e defesa), mencione as provas dos autos, preferindo enveredar por argumentos, tirados de outras fontes, como o argumento à autoridade, à inocência do acusado, nulidades do processo, argumentos de misericórdia etc. Estando a acusação limitada pela sentença de pronúncia e pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal, somente há três caminhos: a) acusa em conformidade com a pronúncia; b) pede a desclassificação do crime com a retirada das qualificadoras; c) faz um requerimento, ou uma recomendação, ao júri que o réu deve ser absolvido. Pensamos que o Tribunal do Júri tem na segunda fase de julgamento, que em regra é perante os jurados, este princípio mitigado ou reduzido. E talvez seja este, o grande problema do Tribunal do Júri, e não como querem alguns a falta de conhecimento jurídico de seus interlocutores. No Tribunal do Júri, os jurados não acompanham a instrução do processo (caso brasileiro), e, portanto têm uma visão estreita da prova dos autos. Todo o conhecimento dos autos advém dos debates das partes. Se as partes não quiserem revelar o teor do processo, ou em linguagem mais dogmática, esconder, falsear, mentir, encobrir a prova, os jurados, o que é mais comum do que se pensa, poderão “criar” artificialmente a sua própria verdade, induzidos por uma das partes. Na França, os jurados não têm o direito de inspecionar o processo. O júri poderá solicitar perguntas diretamente ao réu, testemunhas e peritos, mas eles devem primeiro obter o 392 - SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Tribunal do Júri e as modificações propostas.In: Revista Forense, Vol. 335, jul-ago.-set. 1996, p. 458. 188 consentimento do presidente do tribunal. A deliberação e a decisão por parte do Tribunal do Júri ocorrem em cooperação com o juiz profissional e os membros do júri. A maioria de oito dos 12 votos é necessária para um veredicto de culpado. Em sede de recurso, 10 votos são necessários para estabelecer a culpa do réu393. Observe-se ainda que as estruturas de tempo, espaço e perspectiva nos Tribunais, são construídas dentro da narrativa das cortes, uma vez que a história do crime ocorre a uma distância espacial e temporal considerável a partir dos acontecimentos que precipitaram o julgamento, a coerência temporal e espacial da história devem ser submetidas a uma série de mudanças no centro da história, envolvendo uma tradução das referências de tempo, lugar e participante do crime, ligando a cena do crime no passado às do presente no tribunal. Uma série de características na fase de exame dos testemunhos nos julgamentos criminais conspiram para tornar problemática, a tentativa de acompanhar a narrativa do crime. Genette identifica três tipos principais de manipulação temporal que ocorrem em narrativas literárias: a) ordem, em que se busca lidar com a relação entre a sequência original dos acontecimentos na história e a ordem de apresentação no texto; b) duração, que deve cobrir a relação entre o período de tempo dos acontecimentos da história original e o correspondente de texto dedicado a eles; c) frequência, que refere-se a quantidade de vezes em que os eventos são narrados e com que frequência ocorre na história394. Na Espanha, o objeto da valoração deve ser adequadamente explicado aos juízes leigos para o qual se impõe ao Magistrado-Presidente, a obrigação de submeter ao jurado por escrito o objeto do veredicto no qual se encontrará o objeto da valoração. O método fixado no art.º. 52 da LOTJ para submeter os juízes leigos ao objeto do veredicto consiste em fazer uma série de perguntas acerca dos fatos objeto do processo, exceto o previsto no art.º. 52.2. da LOTJ que versa sobre o indulto condicional, dentre os quais devem ser referidos: quais os fatos da acusação e da defesa que estão provados, e quais os que não estão; se existe alguma causa de exclusão da responsabilidade criminal; o grau de execução, participação ou modificação da responsabilidade do delito que se imputa395. Também na Espanha o procedimento do júri impede a produção de novas provas, a teor do art.º. 793.2 do CPP, que situa a audiência preliminar no começo das sessões do 393 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p. 59. 394 - SCHUETZ Janice; LILLEY, S. Lin. The O.J.Simpson trials. Rethoric, media, and law. Southern Illinois: University Press, 2006, p. 126. 395 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 285. 189 procedimento abreviado. Desta forma, a prova inédita, tem um momento preclusivo e que ocorre no começo das sessões do juízo oral. Desta forma, os reclames da doutrina são para que as partes possam apresentar as provas no começo da sessão do juízo oral, com uma justificação de sua solicitação e da finalidade a ser perseguida com a prova396. Em arremate, verifica-se que o princípio da verdade real é comprometido, pelos sistemas em que os jurados não acompanham a prova, salvo, nos debates orais, onde é mencionada pelas partes, como é o caso brasileiro. No escabinado contudo, este importante princípio processual é resguardado. Já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça português, que os princípios da verdade real e da lealdade processual, aplicam-se ao Tribunal do Júri, não restrigindo aos jurados, tão-somente o conhecimento da matéria de fato. Vejamos o acórdão : I-O júri, na sua essência, delibera sobre a ocorrência dos factos relevantes para saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude do facto e se se verifica qualquer outro pressuposto de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação de uma medida de segurança. Depois de apreciar os factos, o júri delibera sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos julgados. Esta actividade decisória insere-se na apreciação da questão da culpabilidade, e a ela se refere o artigo 368.° do Código de Processo Penal IIComum a todos os membros do tribunal de júri é a obrigação de procura da verdade material a qual, porém, não invalida o diferente apetrechamento em termos de domínio das regras procedimentais que conduzem tal procura III- A lei processual ao consubstanciar a função do júri no respectivo Tribunal, e precisar o foco da sua intervenção, não deixou por alguma forma de acentuar a intervenção concreta que é exigida aos seus elementos singularmente considerados pois que á necessária formação jurídica dos Magistrados se contrapõe, em relação aos membros do júri não Magistrados, a exigência de uma intervenção de cidadania, mas que não está necessariamente ligada uma qualificação que habilite a intervenção em termos de direito. É nessa sequência que a Lei nº 59/98, de 25.8, veio consagrar o voto de vencido em termos de direito, mas restringindo-o aos juízes togados, não obstante a competência dos jurados para decidir sobre a questão de direito IV Princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas 396 - MARTÍN PALLÍN, José Antonio. El jurado, otra forma de justicia? Poder judicial, Madrid, 3. Época n. 45, 1997, p. 203-222. 190 fundamentais do Estado de Direito e do Estado Social V-A ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma inegável relevância valores como a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais) VI- Face a tal principio não são admissíveis condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores VII-Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito VIII-A não oposição á junção de um documento e a posterior invocação da inexistência da decisão de junção, em relação á qual se afirmou a mesma não oposição, é uma conduta que tocas regras da lealdade processual e, como tal, afecta a existência de um processo justo. IX-Qualquer elemento do tribunal de júri no caminho para a determinação da culpabilidade, e determinação da sanção, tem o direito, e dever, de se esclarecer, incluindo o de promover todos os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário á descoberta da verdade. Porém, situação distinta é a aferição da regularidade jurídica de um procedimento processual quando este recaia no âmbito dos poderes de direcção da audiência o qual deve ser efectivado pelo Presidente do Tribunal X-Admitindose a inexistência nunca a mesma pode ter como consequência o expurgar de actos que se mantêm incólumes na sua integridade processual, ou seja, o facto de um acto processual ser inexistente não implica a viciação insuperável de todo o julgamento. Tal extrapolação constitui uma inaceitável expansão de efeitos que devem ser limitados única, e simplesmente, ao que se encontra em relação de causa e efeito com o vício cometido XI-Tal deriva do próprio princípio da proporcionalidade que não é uma auto-estrada de uma só via cuja protecção se restrinja às limitações de prova resultantes da limitação imposta pela protecção de direitos fundamentais. Pelo contrário, o mesmo também implica que tais restrições se limitem única e exclusivamente ao admissível e proporcional na reposição da legalidade violada. XI-O uso do princípio da proporcionalidade em sentido estrito implica que se verifique se a restrição dos direitos individuais sujeitos á sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objectivo que se pretende atingir. XIIDefinidos tais pressupostos de aplicação do principio da proporcionalidade é manifesto que decorre do mesmo a necessidade uma justa equação entre a violação cometida e as suas 191 consequências, ou seja, mesmo admitindo-se, por mera hipótese, a inexistência processual nunca a mesma poderá ter, em abstracto, um efeito metastizante relativamente ao julgamento considerado globalmente, mas única e simplesmente em relação aos actos contaminados pelo acto processual inexistente. XIII-O efeito irradiante das nulidades e proibições de prova, fazendo estender os seus efeitos a actos processuais, quando não até ao próprio julgamento, que não têm qualquer relação de causalidade com o vício cometido é o assumir de um processo formal, longe da procura da verdade material, no qual a declaração da existência do vicio surge muitas vezes como forma de evitar o encarar as questões substanciais da responsabilidade criminal XIV-A inexistência corresponde a um tipo processual em que a anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica XV-A fundamentação da decisão judicial constitui um elemento indispensável para assegurar o efectivo exercício do direito ao recurso, que de forma explícita foi constitucionalmente garantido com o aditamento da parte final do n.º 1 do artigo 32.º da CRP XVI- Na denominada fase pré-processual, e nos termos do artigo 249 do Código de Processo Penal, a entidade policial procederá aos exames dos vestígios do crime, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; colhendo informação das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; procedendo a apreensões no decurso de revisas e buscas. Estamos em face de uma competência cautelar pré-ordenada para os fins do processo, mas que não tem uma natureza processual, sendo certo que a sua posterior aquisição no âmbito do processo está dependente de uma convalidação, efectuada pelo “dominus” do inquérito -o Ministério Público- a qual tem como pressuposto o circunstancialismo em que actuou o mesmo órgão de policia criminal XVII-Importa precisar a distinção entre competência para a prevenção criminal e a competência para a prática de actos em regime de pré-inquérito pois que estes, sendo reactivos á notícia de um crime, são exercidos com vista á sua futura convalidação. Por contraposição, a prevenção criminal, existe fora do âmbito do espaço processual e, não estando sujeita aos princípios de processo criminal, está subordinada aos normativos constitucionais limitativos de intromissões em direitos, liberdades e garantias XVIII-A inspecção pode incidir em pessoas - quer agentes, quer vítimas da infracção, quer intervenientes acidentais -, em locais - onde se praticou e/ou se congeminou o crime ou em objectos que podem ter sido os instrumentos do crime ou quaisquer outros que apresentem relevância para a descoberta da verdade Á prova por inspecção ocular estão sujeitas todas as coisas, mas também as pessoas com vida e os cadáveres, na medida em que podem influenciar o convencimento do juiz através da sua 192 existência, situação ou natureza. A realização duma inspecção ocular pode ter lugar instrumentalizando todo e cada um dos sentidos; através da vista (observação do lugar do facto, da situação do cadáver, das feridas e manchas de sangue, impressões digitais, rastos de pegadas), por meio da audição (perfil de uma aparelhagem musical), através do olfacto (alimentos em mal estado, estrume acumulado ao ar livre), pelo tacto (o gume da faca). XIXOs exames consubstanciam uma providência cautelar que tem por finalidade que se fixe em auto os vestígios e os indícios ou se permita a observação directa dos factos que relevem em matéria de prova. XX-Os autos, tal como os documentos, as imagens e as perícias são, quase sempre, provas que, em princípio, não carecem de leitura - basta o contraditório e o exame -, mas a sua leitura e visualização pode ser requerida na audiência. Esta norma tem a utilidade de tornar bem claro que a tal não podem colocar-se obstáculos que não sejam aqueles que ela mesma enuncia. XXI- O Código de Processo Penal refere-se aos pareceres de técnicos (como também aos pareceres de advogados e jurisconsultos) nas normas disciplinadoras da prova documental - art. 165.° do CPP - para determinar que os mesmos podem ser juntos aos autos até ao encerramento da audiência. Os pareceres técnicos podem versar sobre uma pluralidade de temas, mas têm em comum não assentarem o seu juízo no conhecimento pessoal e directo dos factos objecto de prova sobre os quais se pronunciam XXII-Caso as suas convicções se fundamentem em factos directamente percepcionados, então o meio processual próprio de as manifestar consistirá na prestação de depoimento testemunhal, não podendo ser valorado o alegado conhecimento directo de factos constante de parecer XXIII-O valor probatório do parecer é apreciado livremente pelo tribunal. Situação diferente é o valor cominado para a prova pericial em relação á qual o art. 166 do Código de Processo Penal estabelece uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico apresentado pelo perito o qual obriga o julgador. Significa o exposto que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do art. 165). 397(grifo nosso) 397 - 550/09.3GBPMS.C1.S1 Nº Convencional: 3ª SECÇÃO Relator: SANTOS CABRAL Descritores: TRIBUNAL DE JURI PRINCÍPIO DA LEALDADE PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE INEXISTÊNCIA PROCESSUAL EXAMES E PERÍCIAS PARECER TÉCNICO Data do Acordão: 23-11-2011 Votação: UNANIMIDADE. 193 6.5. Verdade real e tempo/espaço para verificação da prova pelos jurados Outro dado que pode ser colocado para que esse princípio sofra a mitigação durante o julgamento em plenário, é o pequeno número de horas que o jurado tem para julgar o processo. O tempo dos debates no Brasil é de 1 hora e meia, totalizando três horas. Muitas vezes, não é incomum o Ministério Público ir à réplica, e a defesa por conseguinte ter o direito á tréplica. Desta forma, o réu será julgado ante as provas produzidas no intervalo de cinco horas (uma hora para a réplica e uma hora para a tréplica). Quantos réus não foram absolvidos, sendo culpados! Quantos réus não foram condenados sendo inocentes! Ainda existe a estratégia de alguns Promotores de Justiça, que atuam no Tribunal do Júri brasileiro, de não ir á réplica, quando dos debates, impossibilitando a réplica da defesa. Nesse sentido, torna-se imprescindível que se enfoque a questão envolvendo dois mitos que circulam no imaginário dos juristas: o mito da verdade real e o mito da neutralidade do juiz. Como se sabe, no Processo Penal, existe prescrições definitórias, tais como “ninguém pode ser privado da liberdade sem o devido processo legal”, “ninguém pode ser preso sem ordem judicial, a não ser em flagrante delito” e tantos outros, cuja função (retórica) é de fundamentar as decisões judiciais. Ao lado de tais princípios concorrem regras relativas à atuação do acusado, do promotor, do advogado e do juiz, à marcha ritual do procedimento, à constituição da prova válida e às formas sacramentais de explicitação dos interesses perseguidos. Mais especificamente, cabe aqui discutir uma regra referente ao tipo de prova que o juiz deve acolher no processo penal, bem como os jurados (estes com dificuldade, na medida em que as provas lhes são relatadas pelos atores em luta no plenário): o chamado princípio da verdade material398. A mudança dos eventos originais do mundo da história do crime e que resulta da investigação que é trazida para o mundo das Cortes envolve um número de transformações, cognitivas e linguísticas. Uma vez que os jurados não foram presentes a cena do crime que foi cometido, o crime deve ser reconstruído de modo a permitir que os jurados tenham uma compreensão clara de quem é o acusado, e o que pode ter ocorrido. Os jurados são confrontados com uma série de tarefas, não só eles devem decidir, e qual versão do crime, narrada pela acusação ou defesa - eles preferem acreditar. Eles também devem avaliar os 398 - STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Símbolos & rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 76. 194 depoimentos narrativos individuais de cada testemunha, em termos de sua contribuição para a posição e na formulação da discussão final399. O mito da verdade real transposto para o universo dos jurados, através das narrativas traduzidas em espaço/tempo, torna este princípio ainda mais exíguo, tendo em vista que os jurados no Direito Brasileiro dispõe de apenas três horas, para examinar o processo. Todas as suas impressões e verdades derivam do que é dito pelas partes no processo. 6.6. A verdade real e os vários discursos justificativos Outro fator que pode impedir a verdade real são impedimentos de natureza processual, como a lei M’Naghten nos Estados Unidos, que limita o depoimento de uma testemunha, apenas as definições habituais, que na prática priva a testemunha ou o perito de fornecer detalhes acerca da pergunta formulada pela acusação ou defesa, limitando-se de acordo com as instruções dos juízes a responder sim ou não400. Com o avanço da ciência, contudo, os meios de prova ficam mais acessíveis ao homem comum, ou mesmo ao juiz profissional, que não detém conhecimento enciclopédico. Em primeiro lugar, a ciência (e conhecimento) pode ser útil na redução da incerteza e, portanto, pode ser útil para os tribunais. Por exemplo, um dos primeiros casos de direito comum, envolvendo peritos científicos confrontou a questão de saber se uma jovem mulher encontrada morta havia-se afogado ou foi jogada em um rio depois de ser assassinada. Os médicos realizaram uma série de experimentos com cães para tentar aprender a distinguir os pulmões de uma pessoa que se afogou, dos de uma pessoa que morreu antes de ir para a água401. Finalmente, os juízes que chamam peritos e trabalham com eles (que raramente acontece no sistema contraditório, mas é típico no sistema civil) tendem a colocar confiança excessiva nos “seus” especialistas. Estas observações são baseadas nas conclusões de um estudo da Associação Americana dos Juízes Federais, que têm utilizado seus próprios peritos, para formar a sua convicção. Estes juízes passaram a ter uma avaliação surpreendentemente elevada de suas próprias testemunhas, e uma avaliação muito mais baixa dos peritos 399 - SCHUETZ Janice; LILLEY, S. Lin. The O.J.Simpson trials. Rethoric, media, and law. Southern Illinois: University Press, 2006, p. 24. 400 401 - CAPOTE, Truman. A sangue frio. Trad. Maria Isabel Braga. Lisboa: Biblioteca Visão, 2000, p. 275. - KROPPEN, Peter J. Van; PENROD, Steven D. Adversarial versus inquisitorial justice. Psychological perspectives on criminal justice systems. New York: Plenum Publisher, 2002, p. 234. 195 chamados pelas partes. Suspeitamos que isso tenha mais a ver com as relações virtuais e menos a ver com a real competência dos peritos402. O uso de testemunhos de ciências sociais especialista em casos envolvendo um interrogatório ou confissão tornou-se cada vez mais comum. Há agora uma substancial investigação científica bem aceita sobre este tema, e jurisprudência que admite a admissibilidade do testemunho de especialistas. Embora tenha havido alguns casos em que os tribunais não têm permitido o testemunho de especialistas, tais casos são excepcionais: os psicólogos sociais têm testemunhado em centenas julgamentos penais e civis.403 Uma confissão factualmente disputada pode ser introduzida no julgamento, e o júri vai querer saber como uma pessoa inocente poderia ter feito esta confissão falsamente, especialmente em relação a um crime hediondo. O propósito do depoimento de um especialista em um Tribunal do Júri é fornecer uma visão geral da investigação sobre interrogatórios e confissões para ajudar o júri a tomar uma decisão totalmente informada acerca da confissão dos réus. Mais especificamente, peritos em ciências sociais podem ajudar o júri: 1) a discutir pesquisas documentando o fenômeno em que a polícia induz confissões falsas; 2) explicando como e por que os métodos de interrogatório especial e estratégias podem fazer um inocente confessar um crime; 3) identificando as condições que aumentam o risco de falsa confissão e explicando os princípios geralmente aceito após uma análise global. Ao educar o júri sobre a existência de psicologia, causas, e de indícios de falsas confissões, induzida, a testemunha perita em ciências sociais deve reduzir o número de confissão baseado em condenações injustas404. Outro ponto importante é o papel dominante das partes e a insistência da jurisprudência sobre o que essa dominação implica que são bem ilustrados no caso Air Canada, julgado em 1982. Tratava-se de pedido feito pela parte autora, no sentido de que o adversário lhe exibisse certos documentos. Ora, à luz do processo civil contemporâneo, cada parte deve proceder à descoberta, isto é, comunicar à outra parte os documentos em seu poder que sejam pertinentes às questões controvertidas. Em caso de omissão, o juiz pode, a requerimento, ordenar a exibição dos documentos, mas só na medida em que ela seja necessária para a justa solução do litígio ou para evitar despesas inúteis. Na espécie, o juiz de primeiro grau verificara que os documentos em foco poderiam ser-lhe úteis para descobrir a verdade. Por isso, ordenou que 402 - KROPPEN, Peter J. Van; PENROD, Steven D. Adversarial versus inquisitorial justice. Cit.p.240. 403 - SCHUETZ Janice; LILLEY, S. Lin. The O.J.Simpson trials. Rethoric, media, and law, p. 28. 404 - LIEBERMAN, Joel D.; KRAUSS, Daniel A. Jury Psychology: Social aspects of trial processes. Vol.1. New York: Ashgate, 2004, p. 49. 196 eles lhe fossem exibidos, para sua própria edificação, embora a parte autora não tivesse podido mostrar que a exibição dos documentos lhe seria útil para sustentar suas pretensões. Segundo o juiz, não estaria em causa a questão de saber que pretensões - as do autor ou as do réu - seriam confortadas pela produção dos documentos. Com efeito, é dever do juiz fazer aparecer a verdade, pouco importando qual das partes se beneficiará dela405. Em suma, pensamos ser cabível no Tribunal do Júri a concepção que dita que dentre as narrações diversas, há-de optar valorando imparcialmente os diversos discursos justificativos. Deste modo, o verdadeiro passa a ser não só o que melhor ocorreu (que não nos é acessível), senão o discurso que foi mais bem justificado. Mas não basta a melhor justificação em qualquer contexto: o momento de incondicionalidade que acompanha o predicado “verdade” exige que, para ter uma verdadeira e boa justificação, tenha lugar às condições idealizadas, sendo que estas condições se aproximam do que Habermas denominou “situação ideal de discurso”. Desse modo, o problema da verdade no processo penal há-de abordar-se a partir de uma definição da posição dos distintos participantes que se aproximem, na medida do possível, desta situação ideal, para que a decisão que se há de adotar em um determinado discurso seja um discurso livre de qualquer dominação ou coação406. Especificamente ao júri tem-se apontado o defeito de, não conhecendo o processo escrito, decidir apenas com base nos debates orais, estar demasiado dependente da opinião pública, notando-se o peso do elemento emocional nas suas decisões. Impressionado com estas objeções, parte da doutrina manifesta a sua inclinação pelo sistema dos assessores, já que só com participação popular se pode “garantir às decisões criminais, para além de um caráter de justiça exterior e formal, uma autenticidade interior e moral profunda”407. Podemos apontar quatro vias por onde a participação popular, através das organizações populares de base territorial, poderia ter um papel relevante: alargamento do conceito de ofendido, do círculo de pessoas que poderiam constituir-se assistentes, procedimento criminal dependente do inquérito social junto da comunidade em que o arguido se insere, introdução 405 - JOLOWICZ, Jonh Antony. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? Revista Forense, vol. 328, out.-nov.-dez. 1994, p. 63. 406 - ANTON, Tomás Vives. El Processo penal de la presunción de inocência.Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais. in: PALMA, Maria Fernanda (Coord.). Lisboa: Almedina, 2004, p. 20. 407 - SANTOS, José Beleza. A sentença condenatória e a pronúncia em processo criminal. in:Rev. Leg. Jurisp. Ano 63, pp. 385 e 401; Ano 64, p. 17, 1929, p. 134. 197 do acusador-defensor social. Estamos em crer que se trata de ideias válidas e com provas positivas dadas noutros países408. No Brasil, em casos de competência do Tribunal do Júri, a busca da verdade real obriga o Juiz a formular todos os quesitos referentes à defesa, tais como legítima defesa, e seus desdobramentos tais como os excessos doloso ou culposo, descabendo inclusive englobar em quesito único os quesitos referentes aos meios necessários e moderação.409 No mesmo julgamento, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não há que confundir o excesso exculpante com o excesso doloso ou culposo, por ter como causas a alteração no ânimo, o medo, a surpresa. Ocorre quando é oposta à agressão injusta, atual ou iminente, reação intensiva, que ultrapassa os limites adequados a fazer cessar a agressão. 7. Segue: A presunção de inocência como regra probatória Compete ao direito constitucional, máxime na interpretação da norma-princípio, fundante da dignidade da pessoa humana, que lhe constitui signo fundamental do Estado Democrático de Direito, em perspectiva tópica, a cada instante de produção normativa, abstrata (legislação) ou concreta (aplicação), o processo de construção da pessoa, respeitando e deprecando valores da liberdade, isonomia e solidariedade.410 A regra que emana do princípio da presunção de inocência está vinculada com o campo probatório. Para se compreender a presunção de inocência como regra probatória impõe-se desde logo recordar a natureza relativa dessa “suposição” de inocência, ou seja, não se duvida que é uma presunção (suposição) iuris tantum, que admite prova em sentido contrário. Essa prova em sentido contrário, tal como singular e pedagogicamente proclamou o Tribunal Constitucional espanhol (Sentença 31/81),411 exige o preenchimento de (pelo 408 - REMÉDIO, Alberto Esteves. Sobre o inquérito e o projecto de Código de Processo Penal, in: Revista do Ministério Público, Cadernos, nº 2, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Lisboa: Editorial Minerva, 1988, p. 105/113. 409 - STF, 2ª T., HC 71453 / RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 06/09/1999. 410 - ZENNI, Alessandro Severino; FILHO, Daniel Ricardo Andreatta. O Direito na Perspectiva da Dignidade Humana. Transdiciplinariedade e Comtemporaneidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2011,p.80. 411 - VALLEJO, Manuel Jaén. La presunción de inocencia en la jurisprudencia constitucional. Madrid: Akal, 1987, p. 23 e ss. 198 menos) cinco requisitos: (a) uma mínima atividade probatória;412 (b) que deve ser produzida com as garantias processuais; uma dessas garantias processuais requer (c) que a prova seja produzida em juízo (imediatidade e oralidade); (d) que a prova seja incriminadora (prova de “cargo”) e (e) que da prova se deduza a culpabilidade do acusado. Três desses requisitos dizem respeito à quantidade de prova (mínima atividade probatória, que a prova seja incriminadora o suficiente e que dela se deduza, para além de toda dúvida razoável, a culpabilidade do agente). Os outros dois versam sobre a qualidade da prova (prova produzida com todas as garantias, destacando-se a da judicialidade). Para derrubar a presunção de inocência a prova deve ser quantitativamente suficiente (para além de toda dúvida razoável - “beyond a reasonable doubt”) e qualitativamente legítima (ou seja: produzida com a estrita observância de todas as garantias processuais: legais, constitucionais, internacionais, éticas etc.). Se a “função” das provas é a de “fixar os fatos no processo e, por conseqüência, no próprio universo social”, de tal modo a “legitimar” a decisão judicial, resulta indeclinável, como observa Antonio Magalhães Gomes Filho,413 “a exigência de submissão dos procedimentos probatórios a certas regras-lógicas, psicológicas, éticas, jurídicas etc.- cuja inobsevância acarretaria uma inevitável fratura entre o julgamento e a sociedade no seio da qual o mesmo é realizado”. 7.1. A presunção de inocência como regra de tratamento A doutrina nunca deixou de enfatizar que a presunção de inocência também significa, além de regra probatória (que veremos em seu momento), regra de tratamento. Magalhães Gomes Filho,414 emérito processualista e profundo conhecedor do tema, elencou, como emanações da primeira: (a) a incumbência do acusador de demonstrar a culpabilidade do acusado (pertence-lhe com exclusividade o ônus dessa prova); (b) a necessidade de comprovar a existência dos fatos imputados, não de demonstrar a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal comprovação deve ser feita legalmente (conforme o devido 412 - Cf. ESTRAMPES, M. Miranda. La mínima actividad probatoria en el proceso penal. Barcelona: Bosch, 1997. 413 - V. Sobre o direito à prova no processo penal, Tese para concurso de livre-docência do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, SP, 1995, p. 90. 414 V. “GOMES FILHO, Antonio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance. O princípio da presunção de inocência na constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica) ”. Revista do Advogado, São Paulo, n. 42, p. 30-34, abr. 1994. 199 processo legal); e (d) a impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos (daí seu direito de silêncio);415 como regra de tratamento a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de culpabilidade, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário (Súmula Vinculante n. 11 e art. 474, § 3º), a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar etc. O princípio da presunção de inocência também envolve a regra de tratamento: o acusado não pode ser tratado como condenado antes o trânsito em julgado final da sentença condenatória. O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida consideração bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como “regra de tratamento, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por si, ações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário (Súmula Vinculante 11 e art.º. 474, § 3°), a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da desistência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana Caso Cantora Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119)416. Verifica-se que a concepção, e posterior regulamentação das medidas de coação enquanto medidas que limitam a liberdade do acusado, mormente da prisão preventiva, hão de ter como critério de orientação e como limite a presunção de inocência. Neste sentido, a presunção de inocência possui um conteúdo mínimo suscetível de se revelar no fato de proibir que o acusado, uma vez sujeito ao sacrifício da sua liberdade pessoal, seja equiparado a um condenado. O mesmo é dizer que a presunção de inocência, nesta particular acepção, pretende evitar uma antecipação da pena que só tem cabimento após a sentença de condenação 415 - Ainda sobre esse aspecto de regra probatória, v. Claude LAMBOIS, “La presomption d’innocence”, em Rev. Pouvoirs, n. 55, PUF, Paris, 1990, p. 81 e ss. 416 - GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica) 3. Ed. São Paulo: RT, 2009, p. 105. 200 transitada em julgado, e logo a sua liberdade pessoal não pode ser restringida com base num rótulo de culpado que lhe é aposto ao longo do processo, antes da existência daquela417. Em Portugal, a presunção de inocência institui uma importante regra de tratamento do arguido (como inocente) ao longo do processo, que tem expressão, por exemplo: a) na consagração do direito ao silêncio do arguido (art.º. 77º n. J al.c) do CPP). Dois aspectos a acentuar: primeiro, diferentemente do CPP português o arguido não é obrigado a falar sobre os seus antecedentes criminais (v. arts.77º n° 3 b e 79 nº, sobre as questões a que o arguido tem de responder com verdade); segundo, ao disposto no art.º 80 nº 1, não pode ser atribuído um significado que altere aquele entendimento; b) no nemo tenetur se ipsum accusare: o arguido é sujeito e não objeto do processo, pelo que em caso algum deve ser obrigado a fornecer prova contra si próprio. O alcance da garantia: a diferença entre, por exemplo, a obrigação de o arguido apresentar os objetos do crime ou de se sujeitar a exames que atingem a sua integridade pessoal e a obrigação administrativa de o condutor soprar o balão para efeitos de controle de alcoolemia ou a obrigação fiscal de o contribuinte apresentar contabilidade ou documento fiscalmente relevante para efeitos de controle administrativo da situação fiscal. A garantia só opera quando o destinatário da diligência é tratado efetivamente como suspeito da prática de um crime; c) na relevância do in dubio pro reo em matéria de fato (art.º. I nº 3 do CPP) d) no direito do arguido a ser informado em tempo útil das provas reunidas contra si a fim de poder preparar a sua defesa; e) na subsidiariedade das medidas cautelares e na excepcionalidade da prisão preventiva418. No Tribunal do Júri, porém, como vigora o senso comum, é difícil constatar a presunção de inocência em sua totalidade, em especial nos crimes violentos, que causam grave clamor social, pelo modo de execução, pelo grau de torpeza, perversidade ou ambição do agente, bem como, quando dirigido a determinadas vítimas, por si só, hipossuficientes, como os velhos, as mulheres grávidas, as crianças etc. Desta forma, embora o júri tenha jurado encontrar “um veredicto verdadeiro”, pode ser influenciado, no caso de uma pessoa que é acusada de derrubar um velho para roubar o seu relógio. Um olhar para a vítima e outro no acusado, e é possível ouvir o júri a murmurar: “Ele é culpado”419. 417 - VILELA, Alexandra. Considerações acerca da presunção de inocência em direito processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p.92. 418 - DIAS, Augusto Silva. Medidas cautelares no novo código de processo penal de Cabo Verde, in:Direito processual penal de Cabo Verde (cord.Augusto Silva Dias & Jorge Carlos Fonseca).Coimbra: Almedina, 2007, p.201-202. 419 - TRAIN, Arthur. Courts and Criminals.New York: Arno Press, 1974, p.23. 201 Até pouco tempo no direito brasileiro, vigorava a famigerada “cadeira dos réus”, ou seja, o acusado sentava-se em uma cadeira destinada tão-somente aos acusados. Esta cadeira era reservada tão-somente aos procedimentos do Tribunal do Júri, e sem dúvida imputava uma pecha de culpado ao acusado. De acordo com a doutrina brasileira, “É fato a inexistência de disposição legal quanto ao lugar onde deva o réu permanecer durante o julgamento (naturalmente, sentado). A nosso ver, o seu lugar deve ser ao lado de seu Patrono, e não, como ainda é costume, isolado e em frente ao Conselho de Sentença, numa exposição medieval e até humilhante a ele e a todos os presentes.” 420 A cadeira dos réus foi abolida, pela lei 11.689 de 09 de junho de 2008, dignificando o tratamento a ser dado ao acusado na seara penal, mais precisamente no âmbito do Tribunal do Júri. Contudo, ainda permanece como pecha aos acusados no Tribunal do Júri, a utilização de algemas, que causa má impressão nos jurados, e a utilização da folha de antecedentes do acusado, como forma de conseguir a sua condenação. Portanto, a regra de tratamento deve ser observada no Tribunal do Júri, tendo em vista, que os jurados são facilmente impressionáveis. 7.2. O princípio da presunção de inocência no âmbito do Tribunal do Júri e a condenação do acusado com base em seus antecedentes criminais Também viola a presunção de inocência (ou de não culpabilidade) o reconhecimento de maus antecedentes criminais na simples existência de inquérito ou de processo em andamento.421 “Importa em afronta ao princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 5.º, LVII, da 420 - TUBENCHLAK,James. Tribunal do Júri: contradições e soluções. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 126. Na mesma crítica Streck (STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Símbolos & rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993. p. 63-64) e Bissoli (BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998. p. 217). 421 - V. Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Declaração no REsp 123.995, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 14.12.1998, p. 312 (“Apenas a título de esclarecimento, essa Corte já firmou entendimento no sentido de que não há como considerar, para fins de antecedentes, inquéritos policiais e/ou ações penais em curso, sob pena de malferir o princípio da presunção de inocência, inscrito no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal”). 202 Constituição Federal, a consideração, para recrudescimento da sanção penal, da existência de ação, onde declarada a extinção da punibilidade pela prescrição, sem título condenatório definitivo. Dissídio pretoriano demonstrado” (STJ, REsp 168.320/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 10.12.1998, DJ 01.02.1999, p. 242). No mesmo sentido: STJ, HC 81.207. Veja ainda STF, HC 68.465-DF, Primeira Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 21.2.92: “Penal. Pena-base. Antecedentes. Inquéritos arquivados e sentenças absolutórias. Inquéritos e ações penais em andamento. Presunção de inocência. 1. Na configuração dos maus antecedentes judiciais para a fixação da pena-base na primeira fase do calculo da pena, como indicador de natureza objetiva, o Juiz penal não pode dar relevância a procedimento penal persecutório sem que tenha havido transito em julgado, não importando a classificação do injusto penal. Exige-se o titulo penal condenatório definitivamente constituído (STF. HC n.68465/DF, 1a. Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 27.4.92, 5507); 2. O fato de ter o réu sido submetido a meras investigações criminais, tendo os inquéritos sido arquivados, significa a inexistência de elemento de prova para justificar o oferecimento da denuncia, não tendo idoneidade para configurar antecedente criminal negativo; 3. A sentença absolutória se constitui na declaração da inexistência do ilícito penal ou que, diante do devido processo legal, não foram trazidos elementos de prova cabais e inquestionáveis para um juízo de reprovação (STJ, HC 2065/RJ, 6ª. Turma, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU 13.6.94, 28356); 4. A presunção de inocência (art. 5º., LVIII) obstaculiza considerar-se antecedente criminal para efeitos de fixação da pena-base os inquéritos policiais e as ações penais em curso (STJ, RESP 84779/RS, 6ª. Turma, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 12.8.97, 36286), pois não podem repercutir as situações jurídico-processuais não definitivas, especialmente nos casos de inexistência de titulo penal condenatório definitivamente constituído (STF, HC 68465-DF, 1a. Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 21.2.92, 5507)”. Se todo acusado é presumido inocente, até que a sentença definitiva o reconheça culpado (CF, art. 5.º, inc. LVII), resulta evidente que o inquérito policial ou a ação penal em andamento não pode ser considerado (considerada) como antecedente criminal. Pensar de forma diferente significa conceber clara violação ao princípio da presunção de inocência. No plano internacional também a Declaração Universal dos Direitos Humanos (da ONU, 1948) prevê a presunção de inocência no seu art. XI, nestes termos: "1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa." 203 É bastante surpreendente que nossa Corte Suprema, que tem avançado tanto na área dos direitos e garantias fundamentais do acusado, continue discutindo se o inquérito ou a ação penal em andamento constitui (ou não) antecedente criminal. Desde 1789 (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 9º) já ficou certo que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado final. Essa é uma das notáveis conquistas da civilização moderna, daí nossa irresignação com os retrocessos (momentâneos) do STF. Incompreensivelmente, no dia 14.10.2008, a Primeira Turma do STF deliberou afetar ao Pleno essa questão (HC 94.620-MS, rel. Min. Ricardo Lewandowski). Isso decorre da falta de consenso, dentro da Suprema Corte, sobre um assunto (que há muito tempo já devia ter sido ultrapassado). Essa falta de consenso se espelha em decisões decepcionantes como a do dia 29.11.05, tomada pela Segunda Turma do STF, que decidiu (foi voto vencido o Ministro Gilmar Mendes e ausente estava o Min. Celso de Mello): "Princípio da Não-Culpabilidade e Maus Antecedentes: Concluído julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que indeferira igual medida ao fundamento de que o paciente, condenado por porte ilegal de arma (Lei 9.437/97, art. 10, §§ 2.º e 4.º) à pena de 3 anos de reclusão e 15 dias-multa, em regime semiaberto, não preenche os requisitos subjetivos exigidos pelo art. 44, III, do CP, na redação dada pela Lei 9.714/98, para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, haja vista a sua folha de antecedentes penais - v. Informativo 390. Alegava-se, na espécie, constrangimento ilegal consistente na fixação de regime inicial mais gravoso, bem como na negativa de substituição da pena aplicada. A Turma, por maioria, indeferiu o writ por reconhecer que, no caso, inquéritos e ações penais em curso podem ser considerados maus antecedentes, para todos os efeitos legais. Vencido o Min. Gilmar Mendes, relator, que, tendo em conta que a fixação da pena e do regime do ora paciente se lastreara única e exclusivamente na existência de dois inquéritos policiais e uma ação penal, concedia o habeas corpus. HC 84.088/MS, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 29/11/2005". Em virtude de decisões totalmente questionáveis como essa (equivocadas, poder-seia dizer, com a devida vênia) é que a Primeira Turma do STF deliberou afetar ao Pleno o debate, que se tornou imperioso também por força do RE 591.043-SC, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que reconheceu a repercussão geral do conflito entre o princípio constitucional da presunção de inocência (ou princípio da não culpabilidade) e a consideração de processos em curso como maus antecedentes: “possui repercussão geral controvérsia sobre 204 a possibilidade de processos em curso serem considerados maus antecedentes para efeito de dosimetria da pena, ante o princípio da presunção de não-culpabilidade.” Registre-se que muitas vezes esta é a principal prova apontada por promotores de Justiça, que atuam na área do júri, e que não dispoe de provas para a condenação do acusado:os antecedentes do acusado. Desta forma,“Equiparar o julgamento realizado pelos juízes leigos, muito influenciados pela aparência, pelos mínimos gestos, pelas palavras mais singelas e pelo comportamento apresentado em plenário por qualquer das partes, especialmente pelo réu, ao realizado pela magistratura togada é, no mínimo irresponsável. O juiz tem condições de separar em sua mente – ainda que seja difícil, pois também é ser humano e, por isso, falível – o mau comportamento de um réu em audiência da prova de sua culpa (...) Não porque o magistrado seja superior aos jurados, mas porque seu conhecimento técnico fornece-lhe os instrumentos para fazê-lo (...)”422 O certo é que o conhecimento dos antecedentes criminais do réu pelos jurados influencia sim, a formação de seus juízos de culpabilidade, sendo certo que muitas vezes não condenam pelo crime doloso contra a vida que lhes é apresentado, mas condenam a pessoa do acusado em face de seus antecedentes. Tais premissas, que repelem o julgamento do “ser” da pessoa, entretanto, permeiam tão somente o universo teórico, haja vista que, na prática, é o contrário que ainda prevalece, pois diuturnamente os antecedentes criminais do acusado são trazidos à baila e enaltecidos pelo órgão acusador durante os julgamentos no Tribunal do Júri. Inúmeros são os casos em que, ainda que não haja qualquer prova concreta, no processo, relativa aos fatos nele apurados, o julgamento encaminha-se para um veredicto condenatório, pois o promotor de justiça, muitas das vezes, utiliza-se, quase que exclusivamente, dos antecedentes criminais do acusado em sua sustentação oral e, no mais puro e claro exemplo de “Direito Penal do autor”, o Conselho de Sentença decide pela condenação, ou seja, o réu não é condenado pelo que fez, mas sim pelo que supostamente é, uma vez que a acusação, enaltecendo os antecedentes criminais do acusado, o demoniza, investindo-o numa figura de “criminoso contumaz”, o que, obviamente, é repudiado pelo corpo social representado no Conselho de Sentença, que, diante disso, o condena. 422 - Nucci, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. 1ª Ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 158. 205 A culpabilidade, no Estado de Direito, deve ser analisada a partir do fato praticado (culpabilidade do fato) e das circunstâncias presentes naquele caso concreto, e não sobre a vida passada do acusado. Considerações sobre a vida ante acta do acusado, sobre o modo como conduz sua vida etc., são resquícios do Direito penal de autor.423 Assim, o juízo de valoração deve recair (primordialmente) sobre o fato praticado. As circunstâncias do artigo 59 do CP (que devem ser consideradas pelo juiz na fixação da pena base) são aquelas exteriorizadas no fato concreto. Todas as circunstâncias relacionadas com o modo de vida do acusado devem ser eliminadas ou minimizadas. Nesse sentido, afirma Zaffaroni 424 : “a culpabilidade do fato não pode explicar a agravação pela reincidência nem nenhuma outra que se pretenda fundar-se em uma condenação anterior”. Na Dinamarca, onde coexistem simultaneamente o sistema do júri e o Tribunal misto, com assessores, os antecedentes criminais do acusado só são admitidos nos termos da lei, mas nos casos de júri, o registro só é normalmente divulgado após o veredicto do júri. As declarações em relatórios policiais são mais problemáticas. Quando os acusados ou testemunhas mudam a sua versão dos fatos, o questionador pode, com autorização do tribunal - quase sempre concedida - colocar a declaração anterior a eles e, se vital e indispensável, chamar o policial como testemunha. A citação indireta como substituto para o exame da testemunha em tribunal somente será admitida pelo tribunal em circunstâncias excepcionais425. Portanto, os antecedentes criminais, em conjugação com elementos de investigação, são utilizados por Promotores, para a condenação do acusado. 423 - Nilo Batista aponta as principais funções do princípio da lesividade, quais sejam, a proibição da incriminação de atitudes internas, como idéias e convicções; a proibição da incriminação dos atos preparatórios; vedação da punibilidade da autolesão; a proibição da incriminação de simples estados ou condições existenciais, pois o direito penal só pode punir condutas; proibição da incriminação de condutas, mesmo desviadas, que não afetem qualquer bem jurídico, in: DESTEFENNI, Marcos. O Injusto Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,2004,p.47. 424 - ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Culpabilidad en el Siglo XXI. in: Direito Penal, v.3/ Alberto Silva Franco, Guilherme de Souza Nucci organizadores.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 38. 425 - GARDE, Peter.The Danish jury, in: Le jury dans le procès penal au XXI siècle,conference Internationale. Ères: Syracuse, Italie, 26-29 mai, 1999, p. 92. 206 7.3. Exigências probatórias quantitativas decorrentes da presunção de inocência A presunção de inocência subsiste, tal como declaram os preceitos constitucionais e internacionais anteriormente citados, até o momento da condenação definitiva. A primeira e natural exigência, para se derrubar essa presunção de inocência do acusado, diz respeito à “mínima atividade probatória”, que deve acontecer dentro do processo desenvolvido com todas as garantias. A única forma de se destruir a presunção consiste na realização de uma atividade probatória válida (legítima), e mais: que essa prova seja incriminatória (“de cargo”) o “suficiente”, da qual se possa deduzir, para além de toda dúvida razoável, a culpabilidade (responsabilidade) do agente. Como se vê, não é qualquer tipo de prova que abala a presunção de inocência. A prova produzida tem que ser incriminatória (“ou seja: de cargo”). De outro lado, suficiente para se deduzir a culpabilidade do agente, para além de toda dúvida razoável (“beyond a reasonable doubt”). Havendo dúvida insuperável tem incidência o princípio do in dubio pro reo. Estas exigências probatórias são abaladas, quando no Tribunal do Júri, utiliza-se da prova minima, ou mesmo insuficiente, para obter a condenação do acusado. 7.4. A presunção de inocência e a dúvida razoável no Tribunal do Júri: a inversão do ônus da prova Nos Estados Unidos é necessário que o prosecutor ou o Promotor de Justiça consiga convencer os jurados da culpabilidade do acusado além de uma dúvida razoável. No direito anglo-saxão, o ônus da prova pertence à coroa inglesa, quando em um julgamento criminal, apesar de ostentar a Coroa o encargo legal de provar a ofensa contra o réu (se não o fizer o réu é absolvido), o réu, muitas vezes, tem de suportar um encargo probatório em relação às defesas que ele deseja executar. Em um julgamento criminal, o Ministério Público terá de satisfazer o tribunal da culpa do réu “à norma penal”: está além de qualquer dúvida razoável426. Não comungamos com este entendimento. Para nós, o juiz deveria advertir os jurados que somente no caso de uma certeza absoluta é que é possível a condenação. Em caso contrário, deve ser aplicado o princípio in dubio pro reo, pois desta forma, se estará 426 - SMITH & HOGAN. Criminal Law.cases and materials. Oxford, 2009, p. 173. 207 penalizando duplamente o acusado: na fase de instrução, quando o juiz pronuncia o acusado, fazendo-o em nome dos indícios razoáveis, e na fase de julgamento, quando novamente surgem os tais indícios razoáveis. Esta “dúvida razoável”, com que trabalha o Tribunal do Júri, tem estreita conexão com o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo. O Tribunal Constitucional espanhol tem afirmado que em uma perspectiva constitucional é necessário diferenciar a presunção de inocência prevista no art.º. 24.2. da Constituição com a garantia processual do imputado ao direito fundamental do cidadão protegido pro esta via de proteção, que ocorre com o princípio in dubio pro reo, que é uma condição de exigência subjetiva do convencimento do órgão judicial na valoração da prova acerca da culpa existente no processo427. O princípio in dubio pro reo, por quedar-se no âmbito judicial, carece de relevância constitucional e não pode ser confundido com a presunção de inocência, que com ela guarda certa relação como critério auxiliar428. A cláusula enquanto não se comprove "legalmente" a culpabilidade (Convenção Americana, art.º. 8º, 2), ademais, não se refere unicamente ao aspecto procedimental (provas colhidas com observância de todas as garantias, como veremos logo mais),':" senão, sobretudo, aos meios probatórios, que devem ser rigorosamente previstos em lei. Se no Direito penal vige o nulum crimen nulla poena sine lege, no âmbito processual a regra reinante é a nulla coactio sine lege, é dizer, "a lei processual deve tipificar tanto as condições de aplicação, como o conteúdo das intromissões dos poderes públicos no âmbito dos direitos fundamentais dos cidadãos”. É muito questionável do ponto de vista da garantia da "legalidade" da comprovação da culpabilidade a utilização processual de gravações clandestinas (feitas sem autorização judicial ou sem base legal, em flagrante violação ao direito de privacidade). De outro lado, exclusivamente a prova produzida com as garantias processuais (DUDH, art.º. XI) é que é válida para afastar a presunção de inocência. A prova capaz de destruir tal presunção é a que não se coloca em posição de antinomia com a legalidade, incluindo-se nessa legalidade, curialmente, o devido processo legal. Várias garantias inerentes a esse devido processo contam com efetiva expressão no âmbito probatório. Destacam-se a do contraditório, da igualdade e da publicidade.429 427 - STC 44/1988. 428 - STC/138/1992. 429 - cf: GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefónica (escrito em conjunto com Raúl Cervini). São Paulo: RT, 1997. P. 112 e 55. e especialmente p. 123 e 55.; Avolio, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações 208 O direito à presunção de inocência desenvolve sua eficácia quando existe uma absoluta falta de provas ou quando existentes (as provas) não reúnem as garantias processuais. Ao contrário, o princípio da jurisprudência in dubio pro reo pertence ao momento de valoração da apreciação probatória e tem eficácia quando, concorrente aquela atividade probatória indispensável, exista uma dúvida racional sobre os elementos objetivos e subjetivos que integram o tipo penal, de forma que se os juízes leigos tenham dúvida acerca dos fatos, deverão resolver sempre em favor do acusado por aplicação deste princípio430. Contudo, declarar aos jurados que a Promotoria não tem provas para condenar o réu é um tiro que pode sair pela culatra. A afirmação é do advogado e professor de Direito Jim McElhaney. Ele começou a escrever sobre estratégias de defesa em Tribunal do Júri para o Jornal da ABA (American Bar Association, a Ordem dos Advogados dos EUA) há 25 anos, depois de já haver-se tornado uma celebridade entre os advogados de defesa. Para ele, dependendo da maneira que esse argumento for apresentado ao júri, ele pode prejudicar o réu, em vez de ajudá-lo. A alegação de que o acusador não pode “provar a culpa do réu além da dúvida razoável” (uma terminologia americana para se discutir o ônus da prova) pode levar os jurados a concluir, mesmo que inconscientemente, que o advogado sabe que o réu é culpado e, por isso, só lhe resta desafiar a Promotoria a apresentar provas sólidas, que talvez não tenha, para respaldar a acusação. É um recurso que implica o famoso “você não pode provar”, utilizado por tantos criminosos cinematográficos431. Neste sentido, o magistrado-presidente deve, de forma clara e inteligível, explicar aos jurados que para declarar o acusado culpado devem descartar qualquer hipótese em favor da inocência do mesmo, devendo estar plenamente convencidos de sua culpabilidade. Desta forma uma das melhore maneiras de valorar a prova seria eliminar as que não são telefônicas e gravações clandestinas. São Paulo: RT, 1995. p. 90 e 55. e especialmente p. 100 e ss.; GRlNOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, e GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 153 e ss. Sobre a dimensão jurisprudencial dessa matéria cf. VV.AA. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial Coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: RT, 1999.v.l,p.273ess. 430 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 298. 431 - MELO, João Ozorio. Especialista recomenda cuidado com alegações no Júri. Disponivel em: “http://www. conjur. com. br /2011-out-09/ especialista- aponta- estrategia- discutir- provas- tribunal juri.”Acesso em 21. 02.2012. 209 verossímeis. Os jurados devem estar convencidos, diante das provas praticadas em juízo, que o acusado cometeu o delito, e que não existe hipótese razoável em favor de sua inocência432. Desta forma, não só o acusado, mas qualquer pessoa, a quem se impute uma acusação, embora não acusado formalmente pelo Estado pode invocar o nemo tenetur, na modalidade do direito ao silêncio, no campo extraprocessual, como por exemplo, uma testemunha que vai depor em Comissão Parlamentar de inquérito, ou mesmo perante o juiz, desde que as perguntas a ela feitas possam recair no campo da incriminação. Para além da proibição da inversão do ônus da prova, a presunção da inocência implica outras consequências: a preferência das sentenças absolutórias face às decisões que se limitam a arquivar o processo; a rejeição da determinação da uma pena nos referidos despachos de arquivamento; bem como a recusa da atribuição de custas a arguidos não condenados. É de registrar que a proibição de provas está vinculada com o princípio da exclusão das provas ilícitas obtidas ou derivadas. Conforme já destacou o Tribunal Constitucional espanhol, a valoração processual das provas obtidas com vulneração dos direitos fundamentais implica uma ignorância própria do processo (art.º. 242.2 da Constituição) (SSTC 114; 1984, fundamento jurídico 5º, y 107/1985, fundamento jurídico 2 º) em virtude de sua contradição com esse direito fundamental e em definitiva com o processo justo, e portanto deve considerar-se proibida pela Constituição433. O princípio da presunção de inocência se projeta sobre todo o processo penal, tanto em cada uma de suas fases consideradas individualmente, como em sua configuração global. Desta forma, o acesso das partes acusadoras no processo penal está condicionado pela exigência da denominada “ponderação provisional de verossimilitude da imputação”, que háde realizar-se na ocorrência de um fato delitivo concreto, e há-de basear-se em uma fundada suspeita, que é o motivo ou a concorrência de motivos, a respeito da efetiva comissão do delito, e que se projeta depois sobre cada um dos momentos do processo (investigação, adoção de medidas cautelares, imputação e formalização da pretensão acusatória, valoração do juízo etc.)434. O princípio da presunção da inocência exige os fatos que estejam comprovados. Em outras palavras, o direito à presunção de inocência exige que antes de começar a instrução é 432 - VERGER, Grau. Las pruebas ante el Tribunal del jurado, in: El Tribunal del jurado. Madrid: C.G.P.G, 1995, p. 470 433 - STC 81/FJ2. 434 - ANTON, Tomás Vives. El Processo penal de la presunción de inocência. Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais, in: PALMA, Maria Fernanda (Coord.). Lisboa: Almedina, 2004, p. 38. 210 necessário que se pratique uma verificação séria a respeito da tipicidade dos mesmos. Mas a verificação dos fatos típicos deve ser diferenciar da verificação das circunstâncias, uma vez que a verificação dos fatos será o assunto de instrução. Sem ele, essa verificação inicial de consistência do direito penal, os fatos subjacentes à denúncia ou queixa também é relevante para vislumbrar a antijuridicidade dos casos ou ausência de ilegalidade que emerge na descrição dos fatos em que essas se baseiam. Como se observou, os capítulos antecedentes relacionam a presunção de inocência, com a produção da prova, pois até mesmo o fato do promotor dizer que não tem provas contra o reu, pode prejudicá-lo. Os jurados guiados pelo senso comum, imaginam, que quem está sentado para ser julgado, já é culpado. Deve o Juiz, fazer uma preleção, para tirar esta ideia dos jurados. 7.5. Segue: A presunção de inocência no âmbito do Tribunal do Júri: problemas de compreensão acerca do ônus da prova e da presunção de inocência Trazendo estes ensinamentos para o campo do Tribunal do Júri, é de se registrar que os jurados muitas vezes não têm o conhecimento deste princípio básico, o que leva a enxergar os criminosos ou acusados, já como uma pessoa culpada, em especial quando ocorreu a cobertura da imprensa. Os jurados muitas vezes não têm conhecimento da linguagem jurídica mais primária, tal como ônus da prova e presunção de inocência. As instruções da prova é um conceito jurídico fundamental, para que os jurados entendam adequadamente o direito do réu a um julgamento justo. Em qualquer lugar do mundo, em um julgamento criminal a acusação tem o ônus da prova, e o réu é presumido inocente até que se prove a culpa (além da dúvida razoável) por evidências da promotoria. Embora esta seja uma instrução relativamente simples, e que pessoas físicas podem estar familiarizadas, até por relatos da mídia há evidências de que os jurados não têm a verdadeira compreensão do conceito. Conforme relato dos pesquisadores Strawn e Buchanan, apenas 50 por cento dos participantes apresentaram com as Instruções a certeza que o réu não tinha de apresentar provas e que o Estado detinha o ônus da prova. Além disso, Reifman et al., relata que os jurados que anteriormente haviam servido em 211 julgamentos criminais, menos de um terço tinham corretamente entendido que o ônus da prova sobre o julgamento é da acusação.435 Problemas de compreensão semelhantes surgiram em exames acerca da presunção da inocência. Steele e Thomburg elaboraram um relatório em que 79 por cento dos participantes não foram capazes de parafrasear o conceito de presunção de inocência e apenas 17 por cento foram capazes de distingui-lo corretamente. Buchanan et.al. relataram uma taxa mais elevada, de 51 por cento dos participantes que compreenderam o conceito. No entanto, Strawn e Buchanan constataram que 90 por cento dos participantes compreenderam o significado da presunção de inocência436. Como meio de contornar esta situação, no Brasil as partes também não podem fazer menção à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficie ou prejudique o acusado. Aqui a razão para a restrição é impedir que as partes se utilizem deste argumento para prejudicarem ou beneficiarem o acusado. Mas a restrição, em primeiro lugar, não impedirá os jurados de ouvir as razões pelas quais o magistrado entende que o réu deve ser algemado e, ainda, de o verem algemado durante toda a sessão. Isto, por si só, já poderá influenciar os jurados. De outro lado, poderia a defesa ser impedida de explicar aos jurados que as algemas não possuem significado de culpa antecipada? Certamente que não, pois há o princípio constitucional da plenitude de defesa, razão pela qual o defensor poderá explicar, diretamente ou pedir para o juiz presidente fazê-lo, aos jurados que não considerem as algemas como sinal de culpa antecipada, esclarecendo os pressupostos e fundamentos da prisão cautelar437. Em um relatório publicado na Escócia, acerca da eficácia do Tribunal do Júri, ficou constatado: a) Um júri não tem a experiência ou o treinamento e normalmente não tem o conhecimento para filtrar e avaliar uma série de evidências contraditórias, muitas vezes em assuntos técnicos, ou com um fundo industrial, ou para avaliar sua relevância. Isto não é criticar a inteligência dos jurados. É apenas um reconhecimento da dificuldade de pessoas tentando visualizar um conjunto de circunstâncias, geralmente completamente estranho para eles, uma vez que suas lembranças de evidência verbal são raramente anotadas e ao longo de 435 - STEELE, Walter W.;THORNBURG, Elizabeth G, Jury Instructions: A Persistent Failure to Communicate. North Carolina Law Review, Vol. 67, p. 120, 1998-1999. Available at SSRN: “http:// ssrn. com/ abstract= 1006299.” 436 - STEELE, Walter W.; THORNBURG, Elizabeth G. Jury Instructions: A Persistent Failure to Communicate, cit, p.121. 437 - MENDONÇA, Andrey Borges. Nova reforma de processo penal. São Paulo: Gen Metódo, 2008, p.104. 212 dois ou três dias, no final da prova, fica difícil fazer uma avaliação da prova, ou o que teria sido razoável fazer em tal circunstâncias; b) A difícil tarefa do júri se torna ainda mais complicada, onde a questão da repartição de culpa e de danos surge. Houve ilustrações conhecidas por advogados no Tribunal, e nem sempre relatados, onde os jurados têm se manifestados confusos no esforço para cumprir essa responsabilidade. Tal confusão nem sempre resulta em uma indenização mais equitativa e transparente, e os erros nos casos notáveis desse tipo, podem causar uma menor confiança daqueles que testemunham a confusão, incluindo os litigantes, seus conselheiros, e os membros do público que podem estar presente, na eficiência do sistema; c) O fato de que os júris não fundamentam as suas decisões impede o crescimento de um corpo de leis que podem orientar as partes na condução dos seus negócios, uma vez que deve ser uma das funções dos tribunais construir um corpo de mediadores que servirá de guia para os litigantes e os seus conselheiros e que facilitará a resolução do conflito sem recorrer a ação judicial. É alegado que, desde que o sistema de júri sobrevive, essa função não é cumprida e próprio público sofre, com este conjunto de coisas438. Aqui, como se percebe, não estamos a falar de profundo e notório conhecimento jurídico, mas apenas de um básico, a saber, que o ônus da prova pertence à acusação, e que o réu somente pode ser condenado diante de uma certeza inequívoca. Os avanços da ciência processual penal em delimitar o princípio em alusão cada vez com mais e maior complexidade, associando-o, como já referido, a um processo de constitucionalização, e a sua especial ubiquação, tais como os direitos fundamentais, pertencentes aos direitos, liberdades e garantias, mas envolvendo o direito à não autoincriminação, ao ônus da prova, ao silêncio do acusado, às finalidades do processo penal, ao favor libertatis, o favor defensionis, o in dubio pro reo, a presunção de inocência enquanto verdadeira presunção, a presunção de inocência enquanto verdade interina ou provisória, a presunção de inocência enquanto ficção jurídica, a presunção de inocência enquanto regra de tratamento a dispensar o arguido ao longo do processo, bem como as hipóteses relacionadas à prisão cautelar439. A doutrina americana, entende, que o acusado, pelo simples fato de ter sido indiciado pelo Grande Júri (Grand Jury), e denunciado pelo Ministério Público, já é um indício de sua culpabilidade. Há cinquenta por cento de chance, de julgarem culpado. Em outras palavras, 438 439 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 57. - VILELA, Alexandra. Considerações acerca da presunção de inocência em direito processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 75-97. 213 quando o réu é indiciado pelo Grande Júri (Grand Jury),ele já ingressa no julgamento com a culpabilidade aumentada em cinquenta por cento, ante a sua presunção de culpabilidade, ditada pela experiência e o senso comum dos homens de uma forma geral. Ele então é presumido inocente, A sério? Claro que não, é presumido culpado. É de rigor, portanto, que inexiste, muitas vezes, por parte dos jurados compreensão sólida do significado de palavras, como “ônus da prova” e “presunção de inocência”.440 7.6. A sentença de pronúncia no Direito brasileiro e o princípio in dubio pro societate No direito brasileiro, o júri é um procedimento escalonado ou bifurcado cuja primeira fase inicia-se com a denúncia e vai até a pronúncia. A sentença de pronúncia é uma decisão interlocutória, mediante o qual o magistrado declara a viabilidade da acusação por se convencer da existência do crime e indícios que o réu seja o seu autor. A pronúncia, sentença processual que é, deve conter apenas sucinto juízo de probabilidade, pois, se for além, incidirá em excesso de fundamentação, o que pode prejudicar a defesa do paciente. É, pois sentença processual de conteúdo declaratório, em que o juiz proclama a admissibilidade da acusação para que seja decidida no plenário do Júri.441 Quanto á natureza jurídica da sentença de pronúncia, é certo que se trata, portanto, de uma decisão interlocutória, mediante a qual o magistrado declara a viabilidade da acusação por se convencer da existência do crime e indícios que o réu seja o seu autor. É sentença processual de conteúdo declaratório, em que o juiz proclama a admissibilidade da acusação para que seja decidida no plenário do Júri, contendo efeitos preclusivos, visto que não produz a res judicata (coisa julgada), mas tão-somente a preclusão pro judicato, porque o Júri pode decidir diferentemente do que foi julgado pelo juiz presidente. A reforma do procedimento do júri veio de encontro aos contornos da pronúncia, uma vez que o juiz presidente, “limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena” (art.º 413, § 1.º, do Código de Processo Penal). À primeira vista parece que com a concisão da sentença de pronúncia deve ainda vigorar o princípio in dubio pro societate, mas este sofreu uma atenuação como se verá. 440 - TRAIN, Arthur.Courts and criminals. Charles Scribens Sons: New York, 1923, p.23. 441 - STF, 2ª T., HC 76678, rel.rel. Min. Maurício Corrêa, j. 29/06/1998, DJ 08/09/2000. 214 O Superior Tribunal de Justiça recentemente reafirmou a validade do brocardo, declarando ser incabível o trancamento de ação penal, na via estreita do habeas corpus, quando, presente a materialidade de crime doloso contra a vida, há indícios de autoria, sendo certo que, em caso de dúvida, em razão do princípio in dubio pro societate, norteador dessa fase preliminar de mera suspeita, cabe ao juiz acolher a acusação e pronunciar o réu.442 Também recentemente, o Supremo Tribunal Federal, por seu relator o ilustre Min. Menezes Direito proferiu acórdão na mesma direção, declarando que “para a prolação da sentença de pronúncia não se exige um acervo probatório capaz de subsidiar um juízo de certeza a respeito da autoria do crime. Exige-se prova da materialidade do delito, mas basta, nos termos do art.º 408 do Código de Processo Penal [atual art.º 413 do Código de Processo Penal], que haja indícios de sua autoria. A aplicação do brocardo in dubio pro societate, pautada nesse juízo de probabilidade da autoria, destina-se, em última análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao Tribunal do Júri. Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia submete a causa ao seu juiz natural e pressupõe, necessariamente, a valoração dos elementos de prova dos autos, não há como sustentar que o aforismo in dubio pro societate consubstancie violação do princípio da presunção de inocência”.443 Em sentido oposto, e em direção ao que sustentamos, o Supremo Tribunal Federal proferiu o seguinte acórdão, em relação ao princípio in dubio pro societate, sendo relator o ilustre Min. Sepúlveda Pertence: “I. Habeas-corpus: cabimento: direito probatório. 1. Não é questão de prova, mas de direito probatório – que comporta deslinde em habeas corpus –, a de saber se é admissível a pronúncia fundada em dúvida declarada com relação à existência material do crime. II. Pronúncia: inadmissibilidade: invocação descabida do in dubio pro societate na dúvida quanto à existência do crime. 2. O aforismo in dubio pro societate que – malgrado as críticas procedentes à sua consistência lógica tem sido reputada adequada a exprimir a inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia – jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime, em relação a qual se reclama esteja o juiz convencido. 3. O convencimento do juiz, exigido na lei, não é obviamente a convicção íntima do jurado, que os princípios repeliriam, mas convencimento fundado na prova: donde, a exigência – que aí cobre tanto a da existência do crime, quanto da ocorrência de indícios de autoria, de que o juiz decline, na decisão, os motivos do seu convencimento. 4. Caso em que, à frustração da prova 442 443 - STJ, 5ª T., HC 58823/MT, j. 03/04/2008, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 09/06/2008. - STF, RE 540999/SP, 1.ª T., j. 22/04/2008, rel. Min. Menezes Direito, DJE19/06/2008. 215 pericial – que concluiu pela impossibilidade de determinar a causa da morte investigada – somou-se a contradição invencível entre a versão do acusado e a da irmã da vítima: consequente e confessada dúvida do juiz acerca da existência de homicídio, que, não obstante, pronunciou o réu sob o pálio da invocação do in dubio pro societate, descabido no ponto. 5. Habeas corpus deferido por falta de justa causa para a pronúncia. (HC 81646/PE, 1.ª T., j. 04.06.2002, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 09.08.2002). Assiste toda razão ao eminente relator. Não se pode, sob o pálio de remeter ao juiz natural, pronunciar o réu, mesmo com indícios vagos e remotos. É necessário mais que meros e vagos indícios para levar o réu ao seu juiz natural.444 Na sentença de pronúncia prolatada por juízes brasileiros, portanto, perdura o adagio in dubio pro societate, ou seja, na dúvida, os juízes pronunciam e mandam o acusado para o tribunal do Júri. Na prática, poucos são os que se aventuram a absolver o acusado, sempre remetendo o réu, para o Tribunal do Júri, seu juiz natural. 444 - Cf: O in dubio pro societate simplesmente traduz que, em havendo possibilidade de condenação, duas ou mais vertentes probatórias ou jurídicas, a decisão deve ser do Júri, frise-se, por ordem constitucional. Tal princípio não pode ser lido como uma chancela ao constrangimento de réus, julgamentos inúteis e, assim, injustos e ilegais. Ora, não se pode perder de vista a soberania do Júri e o princípio do juiz natural, a força da instituição, a justiça feita, nos casos dos crimes dolosos contra a vida, pela própria comunidade, exemplo de democracia, in: GOMES, Márcio Schlee. Limites Constitucionais da Pronúncia. Porto Alegre:Sergio Fabris Editor, 2010,p.73. 216 Capítulo 5. A necessidade de motivação das decisões do Tribunal do Júri: necessidade da motivação em relação à matéria de fato e de direito 1. A motivação das decisões como forma de controle e transparência da justiça: necessidade jurídica e elemento indispensável do processo justo e equitativo Vemos no capítulo cinco, a necessidade jurídica e até mesmo psicológica, do acusado saber as razões e os motivos, pelo qual está sendo condenado. Fazemos neste ponto, análise em fase das vicissitudes do sigilo e ausência de fundamentação das decisões do Tribunal do Júri, em face do Direito brasileiro e anglo-saxão, analisando ainda um julgamento do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o caso Taxet vs Bélgica. Um processo equitativo pressupõe a motivação das decisões: a enunciação dos pontos de fato e de direito sobre os quais se funda a decisão deve permitir às partes avaliar as possibilidades de sucesso nos recursos. Por isso, uma motivação inexata deve ser equiparada a uma falta de motivação. A motivação é um elemento de transparência da justiça, inerente a todo o ato jurisdicional, dispensando-se, no entanto, uma resposta minuciosa a todos os argumentos445. Atualmente, com a progressiva tendência de constitucionalização das garantias processuais, a obrigatoriedade de fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais cumpre tantas funções processuais – v.g., a referente às impugnações – como extraprocessuais ou políticas, relacionadas ao controle popular sobre atuação dos órgãos estatais446. O direito à motivação está consagrado em documentos internacionais, como, por exemplo, no art.º. 2.º do Protocolo 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor desde 1.º de novembro de 1984: “1. Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um Tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, incluindo os motivos pelos quais pode ser exercido, é regulado pela lei.” 445 - Acórdãos Van Hurk, de 19, de Abril de 1994, A 288, pág. 20, § 61, Ruiz Torija, de 9 de Dezembro de 1994, A 303-A, pag. 12, § 29, Hlro Balani, de 9 de Dezembro de 1994,A 303-B, § 27, Higgins e outros, de 19 de Fevereiro de 1998, R98-I, pág. 60, § 42, Garcia Ruiz: de 21 de Janeiro de 1999, R99-I, pág. 118, § 26, Salov, de 6 de Setembro de 2005 R05-VIII pág. 220, § 89, Gheorghie, de 15 de Junho de 2007, § 50 (falta de resposta a um dos fundamentos do pedido), Wagner e J.M.L., de 28 de Junho de 2007, § 90 (obrigação de responder aos principais argumentos das partes). 446 - GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 163. 217 Este direito pode ser objeto de exceções relativamente a infrações menores, definidas na lei, ou quando o interessado foi julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição. A motivação das decisões judiciais tem como pressuposto: a) o exercício de lógica e atividade intelectual do juiz; b) individuação das normas aplicáveis; c) análise dos fatos; d) sua qualificação jurídica; e) consequências jurídicas (princípio do livre convencimento motivado). A motivação tem basicamente duas funções: a) a função endoprocessual das decisões judiciais é voltada às partes. Figura como a exigência destinada a assegurar a referidas a exatidão da decisão, possibilitando um controle interno no processo sobre o fundamento da sentença, com relação à possibilidade de impugnação; b) a função extraprocessual, a seu turno, é voltada à sociedade. Desenvolve uma atividade eminentemente democrática, uma vez que possibilita um controle externo sobre o fundamento da decisão, em razão de que com a motivação o juiz expõe e justifica as razões de sua opção, ao fazer o exercício do poder decisório, administrando a justiça em nome do povo 447. Modernamente, podem ser constatados, pelo menos quatro sistemas de motivação de decisões judiciais, a saber: a) ordenamentos em que a motivação tem fonte em norma constitucional (modelo italiano, brasileiro e de outros países da América Latina); b) ordenamentos em que a motivação tem fonte em legislação ordinária (França, Alemanha e Áustria); c) ordenamentos em que a motivação se consolida no costume jurisprudencial, sem que haja previsão legal ou constitucional (Inglaterra, Canadá, Escócia e demais colônias inglesas à exceção dos Estados Unidos); d) ordenamento em que sequer existe o costume, havendo omissão legal e constitucional a respeito do tema (Estados Unidos)448. Conforme a segunda concepção, de ordem técnica, voltada a finalidades internas do sistema, endoprocessual, portanto, a motivação destina-se às partes, assegurando-lhes o conhecimento das razões de decidir do julgador, a fim de que possam adequadamente 447 - BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, p. 56. 448 - PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Civil. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 38. O fundamento das decisões ou motivação judicial tem como premissa ou mesmo natureza, o pressuposto de validez do processo, traduzindo-se em nulidade absoluta a ausência da fundamentação das decisões. Neste caso haveria a própria inexistência do ato processual ou absolutamente nulos, por se tratar de atipicidade constitucional.Neste caso não há espaço para atos irregulares ou nulidade relativa, sendo a sanção para o ato praticado em desconformidade com o texto constitucional,buscada na própria Constituição Federal, que neste caso fulmina de nulidade a não observância do preceito. (cf: GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. Ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 29.) 218 impugnar a decisão; direcionam-se aos órgãos judiciais superiores, munindo-os de condições de exercer o controle sobre o acerto e a legalidade das decisões, no exercício do duplo grau de jurisdição, provocado seja por meio de recurso, seja por intermédio de ação impugnativa autônoma. Mantém-se, por conseguinte, no âmbito interno do Poder Judiciário, certo controle sobre a uniformidade da interpretação e da aplicação do direito. Pressuposto de validez do processo no Brasil, o princípio da motivação das decisões judiciais tem assento na Constituição Federal em seu art.º. 93, IX, que assim dispõe: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicas, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação da EC n. 45/04)”449. No direito brasileiro duas correntes se formaram para justificar o dogma da necessidade da fundamentação das decisões judiciais. Para a primeira corrente, formada especialmente por constitucionalista, a motivação seria a demonstração do raciocínio do juiz para chegar à sua conclusão, servindo, portanto, a que se conheçam tais razões. Trata-se do caminho percorrido pelo magistrado, um verdadeiro iter, razão pelo qual este frequentemente é comparado a um historiador450. Para a segunda corrente, a motivação não seria um caminho percorrido pelo juiz, mas, ao contrário, seria um discurso para justificar a decisão, visando convencer os jurisdicionados a respeito de seu acerto. O discurso seria elemento legitimador para a decisão judicial. Filiamo-nos à primeira orientação por entendermos a mais completa e correta. O discurso, por seu turno, pode ser falacioso e inverídico. Pode ainda haver fundamentação quando o acórdão recorrido der sentença confirmada, embora contrária aos interesses do recorrente451, ou quando não responde a todas as alegações 449 - Como corolário, aceitam-se limitações da publicidade e da extensão da motivação, sendo admissível a imposição do dever de motivar tão-só quando a decisão for passível de impugnação, por recurso ou por ação autônoma; basta, ainda, alternativamente, a justificação formal= facultativa do julgado, fornecida às partes e ao órgão jurisdicional de segundo grau, apenas quando houver requerimento nesse sentido;" possível, ainda, a adoção de regra que, a exemplo da Allgemeine Gerichtsordnung (Prússia, 1781), veda ao juiz justificar a sua decisão, ou que o impeça de dar-lhe a devida publicidade. Da mesma forma, não se declara a nulidade da sentença por falta de fundamentação, se esta não é expressamente exigida em lei. (cf: TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT, 1999, p. 34) 450 - TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 252. 451 - AI 410.898-AgR, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 16/04/04 219 dos réus, mas tão-somente àquelas que julgar necessárias para fundamentar sua decisão452. Por outro lado, a decisão, ainda que sucinta, principalmente nas decisões interlocutórias simples, ou meramente homologatórias, preenchem o comando Constitucional453. Já se tem entendido, inclusive o Supremo Tribunal Federal, que a fundamentação deficiente, mais ou menos completa, não traduz em afronta ao princípio da motivação dos atos judiciais 454. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não é muito abundante em tema da motivação de sentença, e tem-se movido em torno da noção de processo equitativo constante do citado art.º. 6.°, § 1, da Convenção Europeia. Esta noção respeita tanto ao processo civil como ao processo penal. Mas é quanto a este que reportamos preferentemente as presentes considerações, face ao tema geral do presente Colóquio. Começaremos por recordar, ab initio, que o § 3ᵒ daquele artigo consagra o direito de qualquer acusado, nomeadamente, a ser informado da natureza e da causa da acusação contra ele deduzido 455. A extensão da motivação, por outro lado, pode variar consoante a natureza da decisão. É necessário atender, nomeadamente, à diversidade dos meios de que um litigante pode usar em justiça e às diferenças, nas disposições legais, costumes, concepções doutrinais, apresentação e redação das sentenças. Assim sendo, a questão de saber se um Tribunal faltou à obrigação de motivar, que decorre do art.º. 6,° da Convenção, só pode analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto. Por seu turno, a doutrina da especialidade tem desenvolvido o tema da motivação no quadro do direito a um processo equitativo. Começa por recordar que o direito a um processo equitativo exige, em regra, que as decisões sejam motivadas, o que se compreende facilmente: o interessado deve ser persuadido de que se fez justiça e que os meios articulados foram examinados pelo juiz; e a enumeração dos pontos de fato e de direito sobre os quais se funda a decisão deve permitir-lhe avaliar as probabilidades de sucesso dos recursos. A motivação é, por conseguinte, um elemento de transparência da justiça, inerente a qualquer ato jurisdicional456. Desta forma, podemos elaborar os seguintes enunciados: a) O 452 - HC 82.476, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29/08/03 453 - RE 285.052-AgR, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 28/06/02 454 - AI 351.384-AgR, rel. Min. Néri da Silveira, DJ 22/03/02. 455 - ROCHA, Manuel António Lopes. A motivação da sentença, in: Documentação e direito comparado. Lisboa, n. 75-76, 1998, p.97. 456 - ROCHA, Manuel António Lopes. A motivação da sentença, in: Documentação e direito comparado. Lisboa, n. 75-76, 1998, p. 93-114. 220 processo equitativo garantido no art.º. 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pressupõe a motivação das decisões judiciárias, que consiste na correta enunciação dos pontos de fato e de direito fundantes das mesmas, em ordem a garantir a transparência da justiça, a persuadir os interessados e a permitir-lhes avaliar as probabilidades de sucesso nos recursos; b) Uma motivação deficiente ou inexata deve ser equiparada à falta de motivação; c) A motivação conforme as exigências do processo equitativo não obriga a uma resposta minuciosa a todos os argumentos das partes, contentando-se com uma descrição clara dos motivos fundantes da decisão) A extensão da motivação é função das circunstâncias específicas, nomeadamente da natureza e da complexidade do caso; e) O princípio do processo equitativo é compatível com motivação sumária, mas impõe-se uma motivação precisa quando o meio submetido à apreciação do juiz, caso se revele fundado, é de natureza a influenciar a decisão; f) A obrigação de motivar reveste uma importância peculiar quando se trate de apreciar uma pretensão na base de uma disposição de sentido ambíguo, caso em que é exigível uma motivação adequada e proporcional à complexidade da hipótese. A omissão da motivação, nos aspectos indicados, implica a sanção da nulidade da sentença (art.º. 379.°, alínea a), do Código Processual Penal Português). Não se compreenderia esta sanção particularmente severa se o legislador não tivesse considerado a motivação como elemento essencial de um processo justo e equitativo457. Intuitivo que todas as questões devem ser enfrentadas, ou pelo menos as mais importantes. O acórdão que não se manifesta sobre o pedido do impetrante em sede de habeas corpus é nulo, por não satisfazer as exigências constitucionais458. Também neste contexto cultural não é de estranhar que uma das mais significativas propostas da Comissão tenha merecido forte repúdio por parte de organismos representativos das magistraturas. Referimo-nos ao dever de fundamentar as decisões judiciais que apliquem medidas de coação, mormente as privativas da liberdade, e de essas decisões serem instruídas com certidão das peças processuais pertinentes para efeito de fundamentação dos recursos. O que sucede agora, é que a decisão de aplicação das medidas de coação é fundamentada com a simples invocação dos pressupostos dessas medidas - perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação, perigo de continuação da atividade criminosa - e delas cabe recurso para o tribunal imediatamente superior na hierarquia, mas não há meio de o recorrente poder 457 - ROCHA, Manuel António Lopes. A motivação da sentença,cit.,p.98. 458 - HC 80.678, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 18/06/01 221 demonstrar que o perigo não existe em qualquer daquelas manifestações ou que nem sequer esse perigo resulta indiciado no processo459. 2. O sigilo das votações e a íntima convicção e a ausência de motivação das decisões dos Jurados em face do processo equitativo e imparcial: situação e compreensão do problema Segundo Hermínio Marques Porto, sigilo e incomunicabilidade são previstos como proteção à formação e manifestação, livres e seguras, do convencimento pessoal dos jurados pela incomunicabilidade, protegidos de eventuais envolvimentos pela arregimentação de opiniões favoráveis ou desfavoráveis, ao réu, e pelo sigilo de votações, tendo garantia do resguardo da opinião pessoal e individual, que pode não ser a majoritária, que é a expressão das decisões do júri (art.º. 488); tem, portanto, o cidadão sorteado para o início das relevantes funções de jurado, na posição de integrante de um dos órgãos que exercem a jurisdição no País, garantias para a livre formação de seu convencimento e para a livre expressão de sua decisão460. Ruy Barbosa foi o grande defensor, e considerava o sigilo, a essência das deliberações do júri. Ele considerava tão absoluto o império desse preceito, de tal modo se ligando às funções vitais da instituição, que, para encerrar o sigilo das responsabilidades do jurado, no mistério mais impenetrável, a jurisprudência francesa anulava os veredictos quando precisassem o número de sufrágios da maioria, ao invés de atestarem apenas aqueles que ela transcenderia o mínimo de sete, ou quando condenassem com a declaração de unanimidade, porque a resposta, nesses termos dá, virtualmente, a possibilidade de conhecer a opinião de todos os jurados461. A abstenção das razoes para as decisões judiciais, é uma das características principais de Justiça do ancien regime Francês, é inferida a partir de um modo geral a proibição feita pelo Decreto real do século XIV, que proíbe divulgar segredos de deliberações. O decreto real ou prescrição normativa explicitamente proibiu os juízes do Parlamento de fornecer suas razões para julgamento. O estilo de Parlement de Paris preveniu os juízes acerca da prática de 459 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 46. 460 - PORTO, Herminio Marques. Júri. Procedimentos e aspectos do julgamento. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 37. 461 - BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. XXIII, tomo III, Rio de Janeiro: Publicação do Ministério da Cultura, 1976, p. 33. 222 divulgar as rationes decidendi porventura adotadas, de fato, desde os primeiros anos do século XIII. Portanto, não revelar as rationes decidendi parece ser um uso comum, ao invés de um firme princípio da antiga lei francesa. Esse uso logo se tornou comumente adotado pelo Parlamento, porque foi uma garantia da independência dos seus membros e também porque assegurava o soberano e aos tribunais, uma grande liberdade. No entanto houve algumas exceções para esse uso comum, por exemplo, quando apareceu a Corte de Cassação, e os procuradores passaram a perguntar as razões dos acórdãos proferidos contra o qual foi interposta a cassação462. Na Itália, a lei de 05 março de 1932 estabeleceu que com independência os juízes de fato (assessores) e os magistrados deviam votar conjuntamente a determinação da pena, independentemente julgamento do feito. O conselho e o juiz tiveram que votar em conjunto para determinar a pena. Nesta ordem de coisas a ordenação do rei, contida no decreto real de 23 de março de 1931 prescrevia que o juiz popular não estará desvinculado substancial nem formalmente desta lei, e, portanto, não poderá eximir-se de dar as razões de seus juízos, e nem poderá se decidir que seus veredictos são stat pro ratione voluntas463. Na sua raiz etimológica, a convicção transporta consigo a ideia dum triunfo ou duma vitória (convictio de convincere), arrancada à demonstração ou à evidência. E. Baudin discorre que toda a convicção aparece como uma crença cuja força e estabilidade dependem em muito do amor que lhe votamos. É uma crença apaixonada464. Vulgarmente, a convicção, tal como a crença, confunde-se com a certeza e com a persuasão. Estar convencido é estar certo dum fato ou duma verdade. A própria certeza gera intelectualmente a convicção, embora não se confunda com esta. Em boa verdade, toda a convicção pressupõe “um conhecimento isento de dúvida, um conhecimento certo” (Jules Verest). Daí confundir-se com a certeza. Porém, estar persuadido é negócio de livre adesão a uma verdade, no qual interferem, sobretudo razões de sentimento ou de caráter emocional. São razões desta natureza que estão na origem da persuasão, pois esta decorre da vontade e não propriamente da inteligência465. 462 - VV.AA. Ratio decidendi. Guiding principles of judicial decisions. Vol.1: Case law. Edited Dauchy, Serge W. Hamilton Bryson .Duncher & Humblot.Berlim; p. 101. Matthew Mirow (Eds.) 463 - MENADAS, Salvador Vilata. Sobre el jurado: Uma análise desde uma perspectiva distinta. El derecho a juzgar y el derecho a se juzgado. Barcelona: Editorial Prática de Derecho, SL, 2001, p. 178. 464 - BAUDIN, E. Cours de Psychologie. Paris: De Gigord. 1937, p.438. 465 - ALMEIDA, Dário Martins.O Livro do Jurado, cit.p.97. 223 Mas há quem entenda que a vontade ou desempenha nela um papel decisivo, pois é a vontade que, nas situações de evidência, opta pela adesão àquilo que é a verdade, ou nela intervém, direta ou indiretamente. Integram-se nas teorias voluntaristas situando-se a problemática da convicção no terreno da atitude volitiva. Nestes termos, na convicção, a pessoa reflete e justifica perante si própria e perante outrem a sua atitude volitiva, uma vez que a convicção é a reflexão e a representação na consciência de uma qualidade disposicional da vontade; contudo, ela nem sempre reflete esta de forma adequada466. Não há um método certo para atingir a convicção. São vários os caminhos que a ela conduzem, segundo a cultura das pessoas, o seu nível mental ou capacidade de lucidez, o seu poder de ponderação, a sua maior ou menor experiência da vida. Admite-se, todavia, que há grande dose de subjetivismo na convicção que tende a formar-se em face das provas, sobretudo, quando a verdade é arrancada a graus de probabilidade. Mas este subjetivismo respeita apenas ao trabalho que se opera dentro das faculdades que em torno dela se mobilizam, pois toda a objetividade das provas ou das ideias virá a projetar-se, mais ou menos intensamente, nesse trabalho, em dose irrecusável. Nada tem a ver com o arbítrio: representa, quando muito, a carga de experiência acumulada na esfera da consciência. Realmente, a convicção sobre um dado fato concreto da vida passa por uma vivência das realidades, carregada de experiência pessoal, de conhecimento psicológico das reações humanas, de capacidade de juízo e atenção, de sensibilidade para a recriação de motivos e para uma avaliação criteriosa dos meandros da própria ação. 3. O caso brasileiro: o sigilo das votações e a incomunicabilidade dos jurados No Brasil, um fato extremo envolvendo um magistrado, o Juiz Alcides de Mendonça Lima, o sigilo das votações e um dos mais ardorosos defensores do Tribunal do Júri, Ruy Barbosa, há mais de cem anos, ainda impressiona por fazer constatar o vigor de sua atualidade e a lição de que os verdadeiros exemplos de resistência ao arbítrio, de independência e de coragem na luta pela justiça projetam-se no tempo. Nele encontra-se o caso de um juiz que, ao abrir uma sessão do Tribunal do Júri, interpretando a Constituição Republicana, declarou inconstitucionais dispositivos de uma lei de organização judiciária do Rio Grande do Sul, no 466 - STERN,Willam. Psicologia General. V.1.Editora paidós,1971,pp.555 e 556. 224 tocante à abolição das recusas dos jurados e à exigência do voto a descoberto, determinando que fosse aplicada uma lei do Império467. No Brasil, o juiz anteriormente não entrava na sala secreta; mas o sistema foi mudado, e hoje ele policia todo o julgamento e deve providenciar para que os jurados não se comuniquem, nem com os estranhos, nem entre si. A redação do § 10 do art.º. 455 do Código de Processo Penal poderia dar a impressão de que só está vedada a comunicação com terceiros. Mas a palavra outrem, ali usado, deve ser entendido como referente a cada jurado e não ao júri, como corpo colegiado. A lei aspira a que o voto de cada um não sofra a influência de quem quer que seja mesmo de outro jurado. Com essa interpretação, que nos parece de acordo com a mens legis, evita-se que o réu se encontre no Conselho um segundo acusador ou um segundo defensor 468. É correto afirmar não serem raras as oportunidades em que determinado julgamento atrai multidões ao plenário do júri, não somente de cidadãos comuns pretendendo acompanhar 467 - Confira uma síntese dos fatos: O Jornal Reforma, aqui se publica, inseriu último número seguinte telegrama: 'Rio Grande, 28 de março. Foi hoje instalada a lª sessão do júri no corrente ano. O juiz da comarca, Dr. Alcides Lima, ao abrir a sessão declarou ser contrária às Constituições federal e estadual a lei que dá nova organização judiciária ao Estado na parte do júri referente à recusações de jurados e ao voto a descoberto. Justificando esta inconstitucionalidade, o Dr. Alcides Lima mandou observar a antiga lei nesses pontos. Informai com urgência sobre a veracidade tal comunicado.Este o telegrama do então Governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilho, ao Juiz de Direito Dr. Alcides Mendonça Lima, que respondeu simplesmente: "Informo ser exata comunicação telegráfica Jornal Reforma a que se refere vosso telegrama de ontem". De fato, antes da sessão do Júri na cidade do Rio Grande, no dia 28.03.1896, o Dr. Alcides Lima declarou que nos dois processos que iriam ser julgados não poderia ser observada a lei de organização judiciária do Estado, no tocante às recusações de jurados e ao voto a descoberto, em virtude da sua inconstitucionalidade. Argumentou o Dr. Mendonça Lima que a CF de 1891, pelo seu art. 72, § 31, mantinha a instituição do Júri tal qual existia à época da sua promulgação, segundo as leis do Império, onde as recusações eram consentidas e a votação secreta. Por conseguinte, revelavam-se manifestamente inconstitucionais os dispositivos que proscreviam as recusações e o sigilo do voto, razão pela qual deixava de aplicá-los. Ao receber a breve resposta do Juiz Alcides Lima, o Presidente Castilho encaminhou ao Desembargador Procurador-Geral do Estado um ofício no qual, depois de narrar o ocorrido, determinava-lhe que promovesse "com a possível brevidade, a responsabilidade do juiz delinqiiente e faccioso", ficando ciente o Tribunal, por aviso categórico, de que não poderia absolver o acusado, sem se constituir faccioso como ele. Já no dia 1º de abril, o Procurador-Geral do Estado oferecia denúncia contra o Dr. Alcides Lima, imputando-lhe a prática do crime de prevaricação (art. 207,§1º do CP de 1890),com as circusntâncias agravantes do art. 39§§2º e 14 do mesmo Código de 1890), in: FARIA JÚNIOR, Cesar. Ruy Barbosa, o júri e a responsabilidade dos juízes (o crime de hermenêutica). in: Revista brasileira de ciências criminais. Nº 34, São Paulo: RT, abr./ jun. 2001, p. 267 468 - TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 222. 225 o regular desenvolvimento dos atos processuais, mas, sobretudo, de parentes e amigos do réu ou da vítima, cercados de curiosos de toda espécie. Eventualmente, poderá formar-se uma natural e inafastável torcida na plateia, com manifestações envolvendo aplausos, risos, vaias, sussurros contínuos, expressões faciais e gestos, todos captados pelos jurados atentos e alertas, competindo ao juiz-presidente coibir os abusos eventualmente praticados, de maneira a evitar que qualquer manifestação possa comprometer a idoneidade do julgamento469. A incomunicabilidade deveria, para ser eficiente, referir-se aos jurados entre si, ainda na sala secreta. Porque aquela média dominante que se busca nos conselhos de jurados, pela “maioria de votos” (CPP, art.º. 387), é, muitas vezes, prejudicada pela influência de um deles, mais prestigioso ou mais eloquente, impondo aos outros a sua convicção ou prevenção, a sua exaltação ou interesse. É importante a lembrança de tais doutrinadores por não haver dúvida a respeito da necessária preservação do Conselho de Sentença, no momento de decidir, quando deverá fazê-lo de modo tranquilo e sem qualquer pressão. Nos dias de hoje, com a anuência de advogados e promotores de justiça, o julgamento da sala secreta, na maioria das vezes, é assistido por estudantes das Faculdades de Direito, de psicologia, especialmente para verificarem como se desenvolve o procedimento, como os jurados são esclarecidos pelo juiz para melhor poderem expressar a sua convicção, sem que sejam submetidos a constrangimentos desnecessários, por exemplo, terem de ficar encarando o acusado, seus familiares ou mesmo os familiares da vítima, ou esta. O mais sensato, portanto, sem ferir o princípio da publicidade, pois, a votação segue o rito já anunciado e o resultado é anunciado em plenário, na presença de todos, é a realização do julgamento do modo como foi concebido.470 Deste fato, resultou o fortalecimento do sigilo das votações e das recusas peremptórias na escolha dos jurados, que vão de encontro às prerrogativas dos jurados. Com as naturais repercussões dos crimes dolosos contra a vida, julgados pelo Tribunal Popular, sem o escrutínio secreto não teriam os jurados a mesma liberdade e segurança ao votar. A partir do momento em que são sorteados, os jurados já ficam incomunicáveis, para que não manifestem sua opinião sobre o processo (art.º. 458, § 1º, do CPP). O sigilo das votações é assegurado pelas cédulas distribuídas aos jurados no momento da decisão, feitas de 469 - FIGUEIRA, Luiz Eduardo.O ritual Judiciário do Tribunal do Júri, Cit, p.34. 470 - FIGUEIRA, Luis Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 46. 226 papel opaco e facilmente dobráveis, contendo umas a palavra sim e outras a palavra não, a fim de, secretamente, serem recolhidos os votos (artes. 485 e 486 do CPP)471. No Brasil, o Juiz advertirá os jurados, de que uma vez sorteados não podem comunicarse com outrem, nem entre si, nem manifestar a opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do conselho e pagamento de multa, como uma forma de assegurar a independência dos jurados. Por evidente, os jurados não podem fazer nenhum juízo de valor acerca da atuação da defesa ou da acusação, do crime, do acusado, ou da vítima. Composto o conselho de sentença, os jurados devem prestar o compromisso, previsto no art.464: “Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa Consciência e os ditames da Justiça.” Após o juramento, os jurados chamados nominalmente, formulam – “assim o prometo”. Trata-se de ato solene, devendo todos levantar-se, quando o juiz fizer o compromisso. Segundo o Supremo Tribunal Federal, as declarações emanadas dos Serventuários e dos Oficiais de Justiça, consubstanciadas nas certidões e termos que exaram no regular exercício de suas atribuições funcionais, revestem-se de presunção juris tantum de veracidade. Essa presunção legal, ainda que relativa e infirmável por prova em contrário, milita em favor dos atos praticados pelos Escrivães do Juízo e pelos Oficiais de Justiça, seja porque gozam de fé pública, inerente ao relevante ofício que desempenham, seja porque tais atos traduzem formal manifestação do próprio Estado. As certidões emanadas desses agentes auxiliares do Juízo têm fé pública e prevalecem até que se produza prova idônea e inequívoca em sentido contrário. Meras alegações não descaracterizam o conteúdo de veracidade que se presume existente nesses atos processuais. Incorre transgressão à norma inscrita no art.º. 458, § 1º, do CPP, não se viabilizando, em consequência, a declaração de nulidade processual (CPP, art.º. 564, III, "j"), se - consoante resulta do termo assinado pelo magistrado e pelo escrivão - os jurados, após sorteados, não se comunicaram entre si, ou com terceiros, nem manifestaram sua opinião sobre o processo, sendo incontroverso, ainda, que, findos os debates, recolheramse à sala secreta, sob a presidência do juiz e fiscalização das partes, para a votação dos quesitos472. Não se constitui em quebra da incomunicabilidade dos jurados o fato de que, logo após terem sido escolhidos para o Conselho de Sentença, eles puderam usar telefone celular, 471 - FARIA JÚNIOR, Cesar. Ruy Barbosa, o júri e a responsabilidade dos juízes (o crime de hermenêutica). in: Revista brasileira de ciências criminais. nº 34, São Paulo: RT, abr./ jun. 2001, p. 267 472 - HC 69179, rel. Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, j. 17/11/1992, DJ 17-06-2005 PP-00064 EMENT VOL-02196-01 PP-00113 RTJ VOL-00195-02 PP-00482) 227 na presença de todos, para o fim de comunicar a terceiros que haviam sido sorteados, sem qualquer alusão aos dados do processo473. O jurado, em seguida, receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo (art.º. 472§único do Código de Processo Penal). O sigilo das votações reside no fato de decidir o jurado de forma sigilosa, não podendo após o sorteio comunicar-se com outrem, nem emitir opinião sobre o processo (§1º do art.º. 458 do Código de Processo Penal). Podem, no entanto formular perguntas à testemunha (art.º. 467 e 468 Código de Processo Penal); indagar sobre ponto dos autos referidos pelas partes e terminados os debates pedir esclarecimentos acerca das questões de fato (art.º. 478, parágrafo único Código de Processo Penal). Também se encontra presente no formato das cédulas, feitas de papel opaco e facilmente dobráveis que são recolhidas de forma a assegurar o sigilo das respostas. Dispõe a súmula 156 que é absoluta a nulidade do julgamento, pelo júri, por falta de quesito obrigatório. Já a súmula 162 diz que: “É absoluta a nulidade do julgamento pelo júri, quando os quesitos da defesa não precedem aos das circunstâncias agravantes.” Em realidade, o jurado julga por consciência. Não está obrigado a justificar o seu voto. Numa simples cédula, com a palavra sim ou a palavra não, o jurado decide do destino de um semelhante. Não precisa, como o Juiz togado, dar os motivos de fato e de direito em que baseou a sua decisão. A lei certamente concede ao jurado um poder que não confere ao próprio Juiz togado, para que ele possa dar a certos casos a solução humana, que a própria lei às vezes impede seja dada. “O jurado não julga contra a lei, mas acima da lei”, como muito bem disse Bandeira Stampa474. Em suma, o julgamento dos jurados pela íntima convicção e pelo sigilo obedece a um simples sim ou não. Como disse a doutrina acima referida, eles estão acima da lei. 473 - AC 1047, rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. 28/11/2007, DJe-065 DIVULG 10-04-2008 PUBLIC 11-04-2008 EMENT VOL-02314-01 PP-00186 RTJ VOL-00205-02 PP-00576) 474 - PELLEGRINO, Laercio. Vitimologia: o júri e a humanização da justiça e outros escritos. Lisboa: Editorial de Narciso Correia, 1974, p.67. 228 4. A necessidade de motivação das decisões judiciais e o sigilo das votações: O direito do acusado às razões das decisões emanadas do Tribunal do Júri como exigência do processo equitativo e imparcial Não é tarefa fácil, contudo, defender a necessidade motivação dos veredictos do Tribunal do Júri, em especial, em face do Tribunal do Júri de modelo “puro”, como é o caso brasileiro e americano, em face do princípio do sigilo das votações, previsto no art.º. 5º, XXXVIII da atual Constituição Federal, que inclusive, por tratar-se de direito fundamental, é cláusula pétrea. Nossa proposta é bem mais modesta. Trata-se de conciliar o princípio da motivação das decisões judiciais com o sigilo das votações e a imperiosa necessidade atual do conhecimento do acusado de saber qual o motivo da sua condenação. Também é o nosso objetivo adentrar acerca do princípio da motivação das decisões judiciais, mas discutir acerca da possibilidade do réu tomar conhecimento dos motivos da sua condenação no âmbito do Tribunal do Júri475. A motivação decorre não só do Estado de Direito, mas também do exercício jurisdicional. Não vale o argumento, reiteradamente invocado, de que a Júri é instituição especial, peculiar, o que justifica a redação do art.º. 493, do CPP. Peculiar ou não, o inegável é que ele é parte integrante do nosso ordenamento jurídico, o qual encontra na Constituição seu fundamento de validade; não há especialidade que baste para infirmar esse princípio 475 - Acerca do dever da fundamentação das decisões judiciais:L' obbligo costituzionale di motivaria: ne nasce infatti dalla crisi dello Stato persona, autocratico ed estraneo rispetto alla società civile, e dal conseguente affermarsi del princípio per cui la sovranità spetta al popolo. Sul piano della giurisdirione, ciõ significa che la giustizia non e piü una manifestazione della volontà dei sovrano, o del Fiihrerprinzip, ma risulta dali' esercizio di un potere che ii popolo ha delegato al giudice. (. .. ) Il passaggio dallo Stato assoluto, - in: epoca moderna dallo Stato autoritario o totalitario, allo Stato democratico di diritto, implica la fine del potere assoluto e occulto dello Stato. Nello Stato democratico di diritto il potere non e assoluto, e soprattutto non e occulto: al contrario, vige il principio di trasparenza, o di "maximale Diskitierbarkeit" dell'esercizio potere, dato che la sua legittimità non e piú fondata sul principio di autorità, ma sulla legittimazione democratica. (... ). Sul piano della giurisdizione, ciõ significa che ii provvedimento del giudice non si legittima in quanto esecirio di autorita assoluta, ma in quanto ii giudice renda conto del modo in cui esercita ii potere che gli e stato delega to dai popolo, che e ii primo e vero titolare della sovranità. Donde I' obbligo di giustificare la decisione, che risponde sia alta necessita di dimostrarne lafondatezza in fatto e in diritto, sia alla necessità di permettere che tale fondatezza sia diskutierbar, cioê sia controllabile dall' esterno in modo diffuso. (.),in:TARUFFO,Michelle.Il significato constituzionale dell’obbligatio de motivazione, BFDUC, Ano LV, 1979, p.43. 229 elementar, a não ser outro, de igual ou superior relevância, certamente inexistente neste caso. Também não vale dizer que a fundamentação elaborada pelo juiz presidente do Júri supre a ausência de motivação dos jurados, por ser a sentença nele prolatada um ato subjetivamente complexo! Isto porque o Tribunal do Júri caracteriza-se, como salientado anteriormente, pela separação orgânica das funções de decidir sobre o crime e sobre a respectiva autoria, e de aplicar ao caso concreto as sanções legais cabíveis; a primeira atribuída aos jurados; a segunda, ao juiz togado. Como deveria ser natural, a cada um deles caberia justificar as próprias decisões476. Na França, pela leitura do art.º. 353 do Código de Processo Penal 477, a consagração, no modelo em questão, do princípio da íntima convicção. Conforme esse dispositivo, antes que a cour d'assises saia do plenário para deliberação, o juiz-presidente deve fazer a seguinte advertência a seus integrantes: A lei não exige que os juízes demonstrem que estão convencidos, e não prescreve as regras que devem ser particularmente dependentes da plenitude e suficiência de provas, e isso exige que os juízes devem considerá-la em silêncio e meditação, e olharem com sinceridade a sua consciência, que impressão foi feita em sua razão, as provas contra o acusado, e os meios de defesa. A lei faz-lhes esta pergunta, que contém a medida de uma lição: Vocês têm uma íntima convicção?478 Há igualmente menção à íntima convicção nos arts. 427 (em matéria correcional perante o tribunal correcional) e 536 (em matéria contravencional - perante a polícia judiciária do mesmo diploma legal). Na França, existem não apenas os jurados, para decidirem casos criminais, mas também os juges de proximités. Estes são juízes leigos que julgam nos lugares, em que residem, infrações de menor potencial ofensivo. A maioria das pessoas consideram a instituição Cour d’Assises como democrática, e como garantia de um processo equitativo, existindo no entanto 476 - ALBERNAZ,Flávio Boechat. O Principio da motivação das decisões do conselho de sentença, In:revista brasileira de ciências criminais. Vol. 05 Nº 19 MAR - SET 1977, p.142. 477 - Code de Procédure Pénale. 478 - La loi ne demande pas compte aux juges des moyens par lesquels ils se sont convaincus, elle ne leur prescrit pas de regles desquelles ils doivent faire particulierement dépendre la plénitude et la suffisance d'une preuve; elle leur prescrit de s'interroger eux-mêmes, dans le silence et le recueillement, et de - chercher, dans Ia sincérité de leur conscience, quelle impression ont faite, sur leur raison, les preuves rapportées contre l'accusé, et les moyens de sa défense. La loi ne leur fait que cette seule question, que renferme toute la mesure de leurs devoirs: Avez-vous une intime conviccion? 230 críticas, ante o fato de julgarem por íntima convicção, se abstendo da obrigação de justificar as suas decisões.479 Diz o art.º. 427 do Código de Processo Penal: “Salvo disposição em contrário na lei, os crimes podem ser estabelecidos por qualquer meio de prova e o juiz decide de acordo com a sua íntima convicção. O juiz não pode fundamentar a sua decisão antes que as provas sejam produzidas ao longo dos debates e contraditoriamente discutidas antes dele”. Nota-se, pela disciplina legal e pelo modo como a doutrina aborda o tema, que os franceses não fazem distinção entre “íntima convicção” e “livre convencimento”. Acerca do tema, discorre Antônio Magalhães Gomes Filho que a diferença fundamental entre esses dois últimos critérios - de grande importância para o nosso tema - consiste na delimitação do caminho mental a ser percorrido pelo julgador: enquanto na íntima convicção a solução das questões de fato decorre de uma tomada de posição pessoal, em face das provas apresentadas; o livre convencimento pressupõe uma liberdade racionalizada, exercida dentro de certos parâmetros ditados pela lógica, pela psicologia, pelas regras da experiência comum, e outras, inclusive jurídicas480. Adverte a doutrina francesa que a regra da íntima convicção não autoriza que o julgador dispense a análise do material probatório que lhe é submetido para apreciação, pois, o princípio em questão não é sinônimo de arbítrio. Todavia, como ocorre em nosso sistema com o júri, as decisões da cour d'assises não são motivadas, o que, em tese, permite decisões contrárias à razão e ao bom senso. Mas tal verificação não autoriza que o órgão julgador seja privado da consideração, apreciação e valoração das provas, sendo estas contraditoriamente discutidas perante ele. Aliás, essa é a fórmula empregada no art.º. 427 do Code de procédure Pénale, regra de julgamento nos procedimentos que tramitam perante o tribunal correcional, que determina ao juiz fundamentar sua decisão somente com base nas provas produzidas no curso dos debates e discutidas em sua presença. Assim é que o contraditório é tratado como limite ou atenuação ao princípio da íntima convicção pela doutrina francesa481. No mesmo prisma, a doutrina portuguesa, quando declara que o dever de motivar as decisões judiciais constitui um inarredável fator de controle da atividade jurisdicional num Estado de direito democrático. No entanto, a motivação das decisões implica um domínio do direito, para além de outros campos relevantes, que não se encontra ao alcance dos leigos. 479 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p.45 480 - FILHO, Antonio Magalhães Gomes.Direito à prova no Processo Penal, p.34. 481 - PRADEL, Jean Procédure pénale. 11. ed. Paris: Editions Cujas, 2002, p. 699. 231 Note-se, nesse sentido, que os votos de vencido quanto às questões de direito só podem ser subscritos pelos juízes que integram o Tribunal do Júri (não pelos jurados), nos termos do n. 2 Do art.º. 372.° do Código de Processo Penal, sendo certo que os jurados votam, como já se salientou, as questões de direito. E no que respeita à motivação das decisões pelos jurados, lembre-se o que escreve Juan Igartua Salaverría, quando refere “uma tarefa de cumprimento quase impossível” ou “uma exigência indevida”, precisamente por causa da falta de preparação científica e técnica dos jurados482. O Supremo Tribunal de Justiça português, em acórdão lapidar, declarou que a motivação das decisões judiciais é um autêntico momento de verdade do perfil do juiz, que deve situar-se à margem de qualquer blindagem, no dizer de Perfecto Andrés Ibañez, in: Jueces y Ponderacion Argumentativa, pág. 73. A fundamentação decisória, nos termos do art.º. 374.º, n. 2, do CPP, está desenhada na lei para enunciar os pontos de fato provados e não provados, como de uma súmula dos motivos de fato e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o julgador explicitar o processo lógico e psicológico da sua decisão, excluindo da motivação o que não é passível de justificação racional, movendo-se unicamente no âmbito do racionalmente justificável. Por seu turno, se em caso de homicídio, pela leitura dos fatos fixados na decisão, imediatamente sequenciais, ou seja, sem hiatos de permeio, se fica sem saber o condicionalismo prévio, justificativo em que os disparos – e quantos – ocorreram, quem lê o acórdão nesse segmento vê-se colocado perante uma evidente obscuridade, que não obedece à lógica que deve atravessar transversalmente todo o processo decisório – não é sem razão que a dogmática penal alemã explicita, a esse respeito, a necessidade de o tribunal responder a três questões, ou seja: quando, como e porquê. É de anular o acórdão da relação que, por falta de pronúncia, deixa de conhecer do que devia, impondo-se que se determine a fornecer um quadro factual lógico, que permita a compreensão do circunstancialismo que torna compreensível o cometimento de um crime.483 Como veremos existem vários precedentes para a motivação do veredito ou das decisões dos jurados, como o caso Taxquet v. Bélgica, Goktepe v Bélgica, Saric v. Dinamarca entre outros. 482 - VILALONGA, José Manuel.O Tribunal do Júri.Breves considerações criticas, in:O Direito,ano 138º (2006),I. Edições Almedinas, p.171. 483 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça; 3ª SECÇÃO; Julgador: ARMINDO MONTEIRO; HOMICÍDIO; MOTIVAÇÃO FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO; OBSCURIDADE; ACORDÃO DA RELAÇÃO;OMISSÃO DE PRONÚNCIA;NULIDADE.Data:13-01-2011; UNANIMIDADE; RECURSO PENAL PROVIDO. 232 5. A motivação do veredicto do Tribunal do Júri no direito espanhol Um dos problemas mais controvertidos que existe perante a Lei orgânica 5/1995, de 22 de maio do Tribunal do Júri espanhol é a motivação do veredicto. A lei espanhola do Jurado de 1995 impõe aos jurados, o dever de motivar o seu veredicto [art.º.6 Ll.d)], sem necessidade de prévia consulta com o juiz técnico, presidente do Tribunal. Neste país, o legislador está consciente de que os componentes do Júri, salvo em seus aspectos mais elementares, ignoram o direito, para em absoluto querer sustentar o império da lei. A própria exposição de motivos da LOTJ (V, I) deixa claro: “Em nosso sistema, o júri deve se sujeitar-se inexoravelmente ao mandato do legislador. Pondo em seguida que tal sujeição se manifesta coerente com a motivação de seu veredicto. E a adequação à lei só e possível de controle na medida em que o veredicto se exterioriza na argumentação dos motivos. Para o legislador a suficiência da motivação do veredicto é um mínimo de indício de sua sintonia com o ordenamento jurídico, ou que apenas o controle da racionalidade argumentativa desse esforço pode servir como um mecanismo para avaliar a sua legalidade. Agora, não se esqueça de que a exigência de fundamentação no art.º. 61,1 d) LOTJ exige tãosomente do júri, uma sucinta explicação das razões porque estão declarando o arguido culpado. Nada mais. Do jurado não se espera uma decisão de estrita juridicidade, de seus membros não se exige que apliquem ou expliquem o direito, ou que realizem especulação jurídica alguma para avaliar a coerência de sua decisão. Esta exigência é absolutamente estranha à origem da instituição, e só pode justificar-se como um mandamento constitucional que exige a motivação dirigida aos juízes (art.º. 120. 3 da Constituição Espanhola) ”484. A necessidade de motivar o veredicto representa a mais recente conquista intelectual dos partidários do Tribunal do Júri, baseando-se no art.º. 120.3 da Constituição Espanhola, que exige que as sentenças sejam motivadas. Da obrigação da motivação, parte da doutrina deduz que o veredicto não pode existir desde uma perspectiva constitucional estrita, posto que não é motivado. A resolução que emite os juízes leigos é chamada de “veredicto”, consistem em declarar sucintamente as perguntas do Tribunal técnico com um lacônico “sim” o “não”. O Supremo Tribunal Espanhol (TS), em sentença proferida em 30 de maio de 1998, manifestou a necessidade das decisões dos jurados serem motivadas, uma vez que tal 484 - Adaptado CARDELL, Jean Pavia. Responsabilidade penal en el ejercicio de la función pública de jurado.Granada, Editorial Comares, 2004, p. 279. 233 necessidade se encontra já normatizada no art.61.1, d da lei orgânica do tribunal do jurado (RCL 1995; 1515), quando declara que o jurado ao julgar de acordo com seu convencimento deve declarar, em apartado uma sucinta explicação das razões ao qual declarou determinados fatos como provado. Declarou mais o egrégio Tribunal que na exposição de motivos, o texto legal justifica a necessidade de motivação, quando indica que era necessário optar entre o sistema de resposta única ao veredicto ao de articulação sequencial, reconhecendo a necessidade deste último que o jurado, entre outras razões, porque ao jurado há que exigir-se sempre capacidade decisória entre uma solução de culpabilidade ou não culpabilidade, decisão que necessita uma explicação razoável para evitar previsíveis falhas, bem como colocar-se em insuportáveis incomodidades para expressar suas opiniões485. A ausência de motivação é um dos fatores que pode levar a total nulidade do veredicto e a total irresponsabilidade de seus integrantes, surgindo toda uma gama de decisões mal aplicadas e mal explicadas486. Ressalte-se que o legislador espanhol, consciente da composição do Tribunal do Júri, salvo em seus aspectos mais elementares, ignoram o direito, porquanto a exposição de motivos da LOTJ (V,I), deixa claro: “Em nosso ordenamento jurídico o Tribunal do Júri deve sujeitar-se inexoravelmente ao mandato do legislador”. Sustenta-se que tal sujeição se manifesta na motivação de seu veredicto, uma vez que tal sujeição só é possível se manifesta na coerente manifestação de seu veredicto: “uma vez que tal adequação à lei só é suscetível de controle à medida que o veredicto se exterioriza na argumentação dos motivos”. Para o legislador, a suficiência da motivação do veredicto deve estar com uma mínima exteriorização de sua sintonia com o ordenamento jurídico, de maneira que só este controle de racionalidade e esforço argumentativo seja suficiente para averiguação de sua legalidade. Esta motivação, como bem se reporta o art.º 61,1 d) LOTJ exige tão-somente uma sucinta explicação das razões, na qual fique consignado o porque da aceitação ou rejeição da acusação487. Segundo Juan Pavia Cardell, a previsão constitucional do dever de motivação das decisões judiciais foi a razão da demora da concretização, na Espanha, da instituição do júri, também prevista na Constituição de 1978 e só implementada em 1995. Para conciliar tais preceitos, a solução encontrada foi a obrigação imposta ao júri de motivar seu veredicto. 485 - RJA 1998,5011. 486 - MENADAS, Salvador Vilata. Sobre el jurado: Uma análise desde uma perspectiva distinta. El derecho a juzgar y el derecho a se juzgado. Barcelona: Editorial Prática de Derecho, SL, 2001, p. 183. 487 - CARDELL, Jean Pavia. Responsabilidade penal en el ejercicio de la función pública de jurado.Granada, Editorial Comares, 2004, p. 279. 234 Adotou-se, assim, um júri clássico, mas com uma característica típica do escabinado: a motivação da decisão488. O artigo 52 da Lei orgânica 5/1995, a Lei do Tribunal do Júri na Espanha, determina expressamente a motivação pelos jurados que compõe o Tribunal do Júri na Espanha. Como se observa, existe precedente no direito internacional, no Tribunal dos Jurados espanhol, onde os jurados tem o dever de motivar os vereditos. 6. A necessidade de motivação quanto à matéria de fato Finalmente, tem-se argumentado que a Cour d'Assises deve entregar as decisões fundamentadas, (Blanc 1996, 309-310; Gozzi 1996, S; 1999). Pessoas condenadas por um crime grave, com vários anos de prisão, têm o direito de saber as razões do veredicto. Esta certamente é uma maneira de emprestar maior transparência aos processos legais e tornaria mais fácil para avaliar se há motivos para um recurso. Decisões fundamentadas também reduziriam a injustiça de uma decisão, quer pela imposição de uma pena branda, quer pela absolvição por motivos de responsabilidade diminuída489. Também no recurso em matéria de fato, tem a jurisprudência do STJ decidido que, se as conclusões da motivação não obedecem ao estatuído no art.º. 412.°, nºs 3 e 4, do CPP embora da motivação constem essas indicações - o recorrente deve ser convidado para, querendo, aperfeiçoar as conclusões, sob pena de rejeição do recurso (Ac. STJ de 20-09-2006, proc. 06P2267). Interessante é, também, o Ac. STJ de 09-01-2008, proc. 07P2075, em cujo sumário, a propósito das alterações legais introduzidas pela Lei n. 48/2007, se pode ler: “Se, como ocorre nos presentes autos, o arguido, no seu recurso para a Relação, vai sublinhando, de uma maneira algo prolixa, é certo, mas ainda assim compreensível, a sua discordância com a matéria de fato provada, os pontos de fato incorretamente provados, alinhando meios probatórios, impondo, em seu ver, decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes magnéticos, mostra-se satisfeito o preceituado no art.º. 412.°, Nº. 3 e 488 - CARDELL, Jean Pavia. El deber de motivación del veredicto del jurado: comentario a las Sentencias del Tribunal Constitucional, núm. 169/2004, de 6 de octubre, y num. 246/2004, de 20 de diciembre. La ley penal. Revista de derecho penal, procesal y penitenciario. Madrid, v.2, n.14, mar. 2005, p. 95. Segundo Cardell, esse dever de motivação torna o júri espanhol único no mundo. 489 - PASCALE, Feuillée-Kendall; TROUILLE, Helen (EDS). Justice on trial: The French juge in question.Oxford: Peter Lang, 2004, p. 200. 235 4, do CPP, atual redação.” E quando à Relação se pede o reexame da matéria de fato reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de fato - espera-se a realização de um julgamento parcelar que não dispensa nem o exame, ou seja, a análise dos fatos, nem a crítica, ou seja, o mérito ou demérito dos vários meios de prova que alicerçam a convicção probatória posta em crise ex post à elaboração da sentença recorrida, a razão por que uns são credíveis e outros não - art.º. 374.º, n. 2, do CPP. No recurso da matéria de fato, pede-se ao tribunal superior uma intromissão no julgamento daquela matéria, situando-se a alienidade a ela numa postura de muito clara denegação do direito ao recurso nessa sede. Por isso, urna adesão meramente formal corrente, mas absolutamente errônea e ilegal - aos fundamentos usados para alicerce da decisão recorrida corresponde ao inverso do percurso a seguir (na exigência da lei): o enunciado factual provado ou não provado precede os fundamentos decisórios que servem para modelar a convicção do julgador. Na ordem lógica das coisas, os fatos são a meta primeira a atingir, seguindo-se, no art.º. 374º, n. 2, do CPP, na especial estruturação da sentença, a fundamentação pelas provas, o seu sustentáculo, e não o inverso. Assim, in casu, o acórdão da Relação ao socorrer-se dos elementos probatórios que foram relevantes para a decisão recorrida, acolhendo tabelar e acriticamente o valor que para a primeira instância significaram os diversos meios de prova, não cumpriu o reexame da prova produzida que lhe foi pedido. Ao arguido assiste o direito de conhecer das razões por que foi condenado; tem, por isso, direito a uma “boa decisão”, alicerçada em “boas razões”, funcionando a fundamentação como o modo de permitir um controle difuso pela comunidade mais vasta de cidadãos, a quem o julgador presta contas do processo racional servido para se decidir. Confira, neste sentido: Michele Taruffo, BFDUC, Ano LV, 1979, pp. 29 e sgs. Mais, o acórdão da Relação, ao não se referir à impugnação da matéria de fato fixada em primeira instância - nem mesmo para apreciar se esta foi deduzida obedecendo aos cânones legais ou se situou à margem deles -, omitiu pronúncia que compromete a existência de uma base com a amplitude factual bastante para se decidir, com a indispensável segurança, na simbiose decisão de fato/decisão de direito. A renovação da prova só pode ter lugar, regra geral, perante as Relações. A esta questão se atenderá, por certo, mais detalhadamente, quando da anotação do art.º. 430º. Foi aditado um n. 6, que vem dizer que, se as provas tiverem sido gravadas (n. 4 do mesmo artigo), o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para descoberta da verdade e a boa decisão da causa, o que 236 deve ser entendido sem prejuízo da renovação da prova, se pedida, e respeitados os comandos do art.º. 430.º, o que acabou por não ser alterado490. As questões de fato, com que trabalha o Tribunal do Júri, devem ser objeto de motivação. 7. O caso Taxquet v. Bélgica: pronunciamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acerca da necessidade de motivações das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri Trazemos à colação outra decisão acerca da necessidade de motivação das decisões judiciais. No caso Taxquet v. Belgica491,o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, teve oportunidade de examinar um caso, que reflete a necessidade de motivação das decisões do Tribunal do Júri. O Tribunal detectou uma violação do § 1, Artigo 6º da Convenção devido à falta de fundamentação na decisão do Tribunal d'Assisses; o Tribunal Pleno apoiou esta conclusão à luz, inter alia, de um estudo de direito comparado e dos argumentos de terceiros, dos Governos do Reino Unido, da Irlanda e França. O caso teve origem em um pedido (n º 926/05) contra o Reino da Bélgica depositado junto do Tribunal nos termos do art.º 34 º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (“a Convenção”) por um nacional belga, o Sr. Richard Taxquet (“requerente”), em 14 de dezembro de 2004. Em 17 de outubro de 2003, o candidato compareceu perante o Tribunal Assize Liège, juntamente com sete corréus, sob a acusação de assassinar um ministro honorário (ministre d'État), AC, e tentativa de homicídio contra o parceiro deste, M.-H.J. Segundo o texto do indiciamento, os réus, foram indiciados com os seguintes delitos, cometidos em Liège, em 18 de julho de 1991: “as pessoas ou conjunto de pessoas, são acusadas de terem cometido infrações ou colaborado diretamente na sua perpetração, ou por qualquer ato, ter participado ou fornecido assistência para sua perpetração, que sem elas as infrações não poderiam ter sido cometidas (item 10 da decisão). 490 - Acordão citado por VV.AA. Código de Processo Penal Comentários e Notas Práticas. Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto. Coimbra Editora, 2009, p.1044-1045. 491 - TRAEST, Philip. The Jury in Belgium, in: Le jury dans le procès penal au XXI siècle, conference Internationale. 26-29 mai, Syracuse Italie: Ères, 1999, p. 32 237 O júri foi solicitado a responder trinta e duas questões colocadas pelo Presidente do Tribunal de Recurso, tendo em 07 de janeiro de 2004, o Tribunal Criminal condenado o recorrente a 20 anos de prisão. O recorrente interpôs recurso em questões de direito contra a sua condenação de 07 de janeiro de 2004, pelo Tribunal Criminal e todas as decisões interlocutórias proferida por aquele tribunal. Num acórdão de 16 de junho de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso (item 18 do acórdão). Na Bélgica, a legitimidade dos tribunais foi assegurada pela instituição do júri. Os jurados representam o povo, de quem veio, e eles próprios gozam de uma legitimidade institucional. A composição do júri foi a principal salvaguarda contra a justiça arbitrária. A ausência de justificação explícita não significa que o veredicto sobre a culpabilidade não foi atingido como resultado de um processo de raciocínio, que as pessoas em causa eram capazes de seguir e reconstruir. Além disso, o Tribunal nunca tinha constatado que a falta de fundamentação nas decisões do tribunal assize levantou uma questão, em torno do art.º. 6 º da Convenção. Embora o Tribunal tivesse decidido no caso Goktepe v Bélgica (n. 50372/99, 02 de junho de 2005) que era necessário para colocar questões distintas em relação a cada arguido na existência de circunstâncias agravantes, e que não tinha objeções ao funcionamento do Tribunal de Recurso ou para a falta de fundamentação nas decisões do Tribunal do Júri nos termos do direito belga (itens 68 e 69 do acórdão). O Tribunal teceu ainda considerações acerca do direito comparado, como por exemplo, no caso Bellerín Lagares contra Espanha Sentencia nº 1123/2000 do TC, Sala 2ª, de, 26 de Junho de 2000. O Tribunal observou, do acórdão impugnado, que um registro de deliberações, do júri tinha sido anexado, e continha uma lista de fatos que o júri levou em conta para a condenação do réu, uma análise jurídica desses fatos e, para fins de condenação, uma referência às circunstâncias encontradas, pode ter tido uma influência sobre o do requerente, em referência com o grau de responsabilidade no caso em apreço. Portanto, que o acórdão em questão continha razões suficientes, para os fins do art.º. 6 º § 1º da Convenção. Também em Goktepe v. Bélgica, o Tribunal considerou uma violação do art.º. 6 º da Convenção, por conta da recusa do Tribunal Assize, para colocar questões distintas em relação a cada réu, quanto à existência de circunstâncias agravantes e circunstâncias atenuantes, negando assim o júri a possibilidade de determinar ao recorrente a responsabilidade individual. Na opinião do Tribunal, o fato de que o colegiado, não levou em consideração os argumentos em uma questão vital, com consequências tão graves tiveram de ser considerado incompatíveis com o princípio do contraditório, que estabelecem a noção de um julgamento 238 justo. Esta conclusão é particularmente premente no caso em apreço, pois os jurados não tinham sido autorizados a dar razões para o seu veredicto (ibid., § 29). Também no caso Saric v. Dinamarca, o Tribunal considerou que a ausência de razões de julgamento, devido ao fato de que a culpa do recorrente tinha sido determinada por um júri leigo, não era em si contrária à Convenção. Na alínea 90, o Tribunal ultimou suas conclusões, declarando que decorre da jurisprudência referida, que a Convenção não exige que os jurados fundamentem a sua decisão, e que o artº 6 º não se opõe ao fato do réu ser julgado por um júri de leigos, mesmo quando razões não são indicados para o veredicto. Contudo salientou uma importante questão, que para os requisitos de um julgamento justo a ser satisfeito: o acusado, e certamente o público, deve ser capaz de entender a sentença que foi dada, sendo esta, uma vital salvaguarda contra a arbitrariedade. Como o Tribunal referiu várias vezes, o Estado de Direito existe, para evitar a arbitrariedade de poder, que são princípios básicos da Convenção (ver, entre muitas outras decisões, mutatis mutandis, Roche contra o Reino Unido [GC],Número 32555/96, § 116, CEDH 2005-X. Na esfera judicial, os princípios servem para fomentar a confiança do público em um sistema de justiça objetiva e transparente, um dos fundamentos de uma sociedade democrática (ver Suominen v Finlândia Número 37801/97, § 37, 01 julho de 2003, e Tatishvili contra a Rússia, Número 1509-1502, § 58, CEDH 2007-III). Em processos conduzidos perante juízes profissionais, os acusados tem compreensão que sua condenação decorre principalmente da fundamentação das decisões judiciais. Nesses casos, os tribunais nacionais devem indicar com suficiente clareza as razões que baseiam as suas decisões (ver Hadjianastassiou contra Grécia, 12945/87, 16 de dezembro de 1992, § 33, da Série A n. 252). As decisões fundamentadas também servem ao propósito de demonstrar às partes que foram ouvidas, contribuindo assim para uma maior aceitação voluntária da decisão contrária aos interesses da parte. Além disso, obrigam os juízes a fundamentação em argumentos objetivos, para também preservar os direitos da defesa. No entanto, a extensão do dever de fundamentação varia de acordo com a natureza da decisão e deve ser determinada em função das circunstâncias do caso (ver Ruiz Torija, já referido, § 29). Enquanto os tribunais não são obrigados a dar uma resposta detalhada a cada argumento levantado (ver Van de Hurk contra os Países Baixos, 19 de Abril de 1994, § 61, da Série A n. 288), deve ficar claro a partir da decisão que as questões essenciais do processo foram abordadas (ver Boldea v. Roménia, n. 19997/02, §30, CEDH 2007-II). 239 No caso de os tribunais assise, que contam com um júri leigo, todas as características especiais do processo devem estar em consonância com a Lei, uma vez que os jurados não necessitam fundamentar as suas convicções pessoais (parágrafos 85-89 da decisão). Nestas circunstâncias, da mesma forma, o art.º. 6º exige que sejam avaliadas as garantias processuais, para evitar qualquer risco de arbitrariedade e permitir o acusado, a compreensão das razões da sua condenação (parágrafo 90 da decisão). Tais garantias processuais podem incluir, por exemplo, instruções ou orientações dadas pelo juiz aos jurados sobre questões jurídicas resultantes das provas apresentadas (ver parágrafos 43 e seguintes supra), e envolve, as questões inequívocas, que devem ser colocadas pelo juiz ao Júri, formando um quadro em que a sentença se baseia de forma suficiente, para compensar o fato da ausência de razões, que não são fornecidas perante as respostas do júri. Por último, importa ter em consideração quaisquer possibilidades de recurso, que são abertas para o acusado. No Brasil, a doutrina já pugna pela motivação das decisões do Tribunal do Júri. Assim, não há como negar que, tal como estruturado, o Tribunal do Júri ofende a Constituição, quer na parte em que esta impõe ao Judiciário o dever de motivar todos os provimentos jurisdicionais de conteúdo decisório (art.º 93, IX, da Constituição Federal), quer na parte em que ela declara ser o regime político brasileiro estruturado consoante os princípios de um Estado Democrático de Direito (art.º. 1º, da Constituição Federal). Mantido pela Constituição, que fixou os parâmetros mínimos a ser observados pelo legislador infraconstitucional (os quais, como se viu, são perfeitamente compatíveis com a exigência do veredicto motivado; item 4) (art.º. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal), o Júri subsiste, com existência garantida ao menos até a próxima Carta, posto que integrante do rol das cláusulas pétreas (art.º. 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal). Isto torna, ao menos por ora, estéril a discussão sobre a conveniência em conservá-lo ou não. Deve, todavia, ostentar organização compatível com o corpo de regras e princípios que constitui a base, o fundamento de validade da ordem jurídica nacional: a Constituição. Deve, portanto, ser substancialmente reestruturado, para a ela adequar-se492. Como se observa, este caso específica do TEDH, declarou expressamente que o Tribunal do Júri belga violou o processo justo, ao não fornecer ao acusado as razões de sua condenação. 492 - ALBERNAZ, Flávio Boechat. O Principio da motivação das decisões do conselho de sentença. São Paulo: Revista brasileira de ciências criminais, n. 19. Vol. 05 Mar. – Set. 1977, p. 142. 240 Capitulo 6. O direito a um julgamento imparcial pelo Tribunal do Júri 1. Direito a um tribunal independente e imparcial no contexto das Convenções Europeia e Americana dos Direitos Humanos Este capítulo seis é analisado sob o prisma do Direito comparado, notadamente, a imparcialidade sob o prisma das Convenções Europeia e Americana dos direitos humanos, e o debate acerca da imparcialidade do Tribunal do Júri “puro”. Toda a pessoa tem direito a um tribunal, independente e imparcial, estabelecido pela lei. Este direito de acesso não é absoluto; ele presta-se a limitações implicitamente admitidas, porquanto, pela sua própria natureza, apela a uma regulamentação pelo Estado, regulamentação que pode variar no tempo e no espaço em função das necessidades e finanças da comunidade e dos indivíduos. Interligado com o princípio da independência dos juízes e dos tribunais está o princípio da imparcialidade. Não pode haver independência sem imparcialidade nem esta sem aquela. Nenhum preceito constitucional refere, expressamente - diferentemente do que acontece com o art.º. 6° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos -, o princípio da imparcialidade dos juízes. Porém, esse princípio tem consagração constitucional, por um lado. Essas consagrações constitucionais visam garantir que os juízes se encontrem ao abrigo de quaisquer pressões quanto ao seu poder de decisão: representam a independência interna e externa dos juízes constituindo, no seu conjunto, uma “reserva de juízes”. A Constituição portuguesa acolheu no art.º. 216º esses princípios estatuindo: “1. Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos pela lei.2. Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as exceções consignadas na lei”493. No sentido de preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos, deve ser recusado todo o juiz impossibilitado de garantir uma 493 - FRAGA, Carlos Alberto Conde da Silva. Subsídio para indepedência dos juizes. O caso português. Lisboa: Edição Cosmos, p. 57-58. O direito ao juiz imparcial está previsto também no plano internacional: dele cuidam tanto a Convenção Americana (da OEA) como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (da ONU). “Toda pessoa tem direito a ser ouvida (...) por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial...” (Convenção Americana, art. 8.º, 1); “toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial...” (DUDH, da ONU, art. X); “toda pessoa terá direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial...” (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 14, 1). 241 total imparcialidade. O mesmo se passa em relação aos membros do júri ou aos peritos chamados a intervir no processo494. Mas não é necessário que o Tribunal seja composto apenas de magistrados; podem compreender outras pessoas, mesmo funcionários públicos, desde que elas gozem de um estatuto que as proteja como aos magistrados profissionais, de pressões exteriores495. No caso Piersack, o Tribunal constatou uma falta de imparcialidade de uma Cour d'Assises presidida por quem tinha desempenhado antes funções de Ministério Público, como chefe do departamento que se encarregara da instrução do processo, embora sem qualquer intervenção direta496. No caso De Cubber, o Tribunal entendeu incompatíveis as funções de juiz de instrução com as de juiz do julgamento, fundamentalmente porque o juiz de instrução adquire um conhecimento do processo anterior ao dos seus colegas e, por isso, pode ter já formado uma opinião prévia a pesar eventualmente na balança no momento da decisão 497. No caso Oberschlick, o Tribunal entendeu violar este número o fato de um mesmo magistrado de um tribunal de recurso ter tido intervenção, por duas vezes, no mesmo processo498. 494 - Acórdãos Pullar, de 1º de Junho de 1996, R96-1II, pág. 792, § 30, Sander, de 9 de Maio de 2000, ROO-V, pág. 269, § 22, e Sara Lind Eggertsdóttir, de 5 de Julho de 2007, § 47. 495 - Acórdãos Piersack, de 1º de Outubro de 1982, A 53, págs. 18 e segs., §§ 39-40, Ettl e outros, de 23 de Abril de 1987, A 117, pág. 18, § 39, e Stallinger e Kuso, de 23 de Abril de 1997, R97-11, pág. 677, § 37. (356) Acórdãos Findlay, de 25 de Fevereiro de 1997, R97-1, pág. 281, § 73, Coyne, de 24 de Setembro de 1997, R97- V, pág. 1854, § 56, McGonnell, de 8 de Fevereiro de 2000, ROO-II, pág. 142, § 48, Brudnicka e outros, de 3 de Março de 2005, R05-Il, pág. 148, § 38, Salov, de 6 de Setembro de 2005, R05-VIlI, pág. 217, § 80, e Ergin (nº 6), R06-VI, pág. 31, § 38. 496 - Acórdãos Piersack, A 53, pág. 14, § 30, De Cubber, A 86, pág. 13, § 24, Le Compte, A 43, pág. 43, § 30, e Lindon, Otchakovsky-Laurens e July, 22 de Outubro de 2007, § 76. 497 - Acordão De Cubber, A 86, pág. 13, § 24, Le Compte, A 43, pág. 43, § 30, 498 - Acórdão de 23 de Maio de 1991, A 204, pág. 23, §§ 50-51; ver também Acórdão De Haan, de 26 de Agosto de 1997, R97-IV, pág. 1392, § 51. Para que o juiz possa cumprir suas funções necessita ser totalmente independente, é dizer, um árbitro imparcial com auctoritas que, por seus conhecimentos e dotes morais, encontre com prudência e equilíbrio a justa solução para os conflitos de interesses que lhe são submetidos, sobretudo os que nascem. No natural antagonismo entre o Estado e o cidadão, aplicando o Direito, isto é, o ordenamento jurídico global, não só a lei, sem esquecer da prioridade evidente das normas, princípios e valores constitucionais e internacionais. Juiz independente é o juiz que atua sem condicionamento nenhum, apenas sujeito à lei, ao direito e às bases probatórias da causa sem ingerências ou influências dos outros poderes do Estado ou mesmo dos superiores (Corte Interamericana, Caso Tribunal Constitucional, Sentença de 31.01.2001, parágrafo 84). Impõe-se distinguir a independência pessoal do juiz da autonomia (coletiva) da Magistratura: esta é a independência da corporação; aquela é a do juiz singular, in: GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura 242 O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que o direito a um processo equitativo, garantido pelo art.º 6-1 da Convenção, abrange o processo na sua globalidade, incluindo a jurisdição de recurso. Entre os imperativos de equidade aí abrangidos, encontra-se a jurisdição de recurso e a obrigação, para as autoridades encarregadas da ação penal, de comunicarem à defesa todos os elementos de prova importantes, favoráveis ou desfavoráveis a esta e, por exemplo, o fato de uma testemunha não ter conseguido reconhecer o arguido entre as fotografias que lhe foram mostradas499. O Tribunal, no seu Acórdão de 21 de fevereiro de 1975, no caso Golder 500 , Utilizou a expressão “direito a um processo equitativo” para sintetizar os diferentes elementos contidos expressa ou implicitamente no art.º 6°. O direito a um processo equitativo perante um tribunal deve ser interpretado à luz do preâmbulo da Convenção, que enuncia a preeminência do direito como elemento do patrimônio comum dos Estados Contratantes. Um dos elementos fundamentais da preeminência do direito é o princípio da segurança das relações jurídicas, que pretende, entre outros, que uma solução dada de maneira definitiva a todo o litígio pelos tribunais não seja jamais posta em causa. Se o Poder Legislativo não está impedido de regulamentar no campo civil, por novas disposições de caráter retroativo, os direitos decorrentes das leis em vigor, o princípio da preeminência do direito e a noção de processo equitativo consagrado no art.º. 6° opõem-se, salvo por imperiosos motivos de interesse geral, à ingerência do poder legislativo na administração da justiça sentido de influenciar a solução judicial do litígio. O próprio Poder Legislativo, contudo, vem minando as garantias básicas, com leis nada equitativas ou garantistas. Em um Estado moderno, emanado da revolução francesa, o direito satisfaz a exigência de uma ordem na sociedade. A ordem do Estado no século XIX pode ser definida como a ordem dos direitos adquiridos, ao se decidir por este status quo, das situações cristalizadas. O Estado tem só predominantemente a função de manter a ordem: um Estado de polícia ou, como se tem dito, um Estado “guardião noturno”, que não se preocupa em intervir nas situações pré-constituídas com o objetivo de criar uma ordem econômica e social, e às vezes também ético, diferente. O Estado de polícia, de uma maneira muito aproximativa, se no Estado constitucional e democrático de direito. São Paulo: RT, 1997. p. 36 e 55.; SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 173 e 55. Sobre a dimensâo dessa garantia na jurisprudência espanhola d. MONTERO, Francisco Javier PuyoI. Diccionario de derechos y garantias procesales constitucionales. Granada: Contares, 1996. p. 206 e 55. 499 - Sentença de 1992.12.16:Caso Edwards v. Reino Unido. 500 - A 18,Pag.28 §36. 243 identifica com o código de 1865. É significativo a que a desconfiança (ainda que exista a instituição) tenha-se apropriado da propriedade privada, como se verifica da evolução da linguagem legislativa: se começou por afirmar que o proprietário devia ceder o bem ao Estado nas hipóteses de necessidade urgente e inevitável, como enfatizado caso o último ato de vontade do proprietário, para falar-se logo em necessidade, de utilidade e, finalmente, de interesses geral501. O Tribunal, na sua decisão de 21/02/1975, no Caso Golder502, utilizou a expressão “direito a um processo equitativo” para sintetizar os diferentes elementos contidos expressa ou implicitamente no art.º 6º da Convenção. A figura de processo equitativo não pode ser definida in abstrato, antes deve ser verificada segundo as circunstâncias particulares de cada caso, tomando em consideração o processo no seu conjunto503; e, portanto, não pode ser considerado um elemento isolado, salvo se ele revestir uma importância tal que deva ser considerado decisivo para apreciação geral do processo. Um processo equitativo exige, como elemento conatural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição não inferior à da parte contrária; ou, de outro modo, a parte deve deter a garantia de apresentar o seu caso perante o tribunal em condições que não a coloquem em substancial desvantagem face ao seu oponente504. 501 - PERLINGIERI, Pietro. Complejidad y unidad del ordenamiento jurídico vigente. El derecho civil en la legalidad constitucional según el sistema italo-comunitario de las fuentes. Unidad del ordenamiento y pluralidad de las fuentes (2008) Páginas: 175-222. Articulado como:”http://international.vlex.com/vid/ complejidad-unidadordenamiento-vigente-52348921.” 502 - A 18, pag 18§36. 503 - Acórdãos Miailhe (n. 2), de 26 de Setembro de 1996, R96-IV, pág. 1338, § 43, Pélissier e Sassi, de 25 de Março de 1999, R99-1I, pág. 327, § 46, e Dalos, de 1 de Março de 2001, ROI. -11, pág. 219, § 47, e Decisão de 25 de Fevereiro de 1991, Queixa n.º IS 831/89, Déc. Rap. 69, pág. 317: o acusado reconhecido inocente não pode pretender-se vítima de violações da Convenção que, segundo ele, teriam lugar no decurso do processo. Ver, também, o Acórdão Stanford, de 23 de Fevereiro de 1994, A 282-A, pág. 10, § 24, e Decisões de 14 de Dezembro de 1991, Queixa n.º 13 445/87, Déc. Rap. 71, pág. 84, de IS de Maio de 1995, Queixa n.º 23 997/94, Déc. Rap. 81-A, pág. 102, de 28 de Julho de 1995, Queixas n.º 24 571/94 e 24 572/94, Déc. Rap. 82-A, pág. 85, de 6 de Setembro de 1995, Queixa nº 22 909/93, Déc. Rap. 82-A, pág. 25, e de 25 de Novembro de 1996, Queixa n.º 25 803/94, Déc. Rap. 88-A, pág. 55. 504 - Acórdãos Barberá, Messegué e Jabardo, de 6 de Dezembro de 1988, A 146, pág. 33, § 78, e Kostovski, de 20 de Novembro de 1989, A 166, pág. 20, § 38. 244 A garantia de um processo equitativo tornou-se um princípio fundamental da preeminência do Direito; por isso, numa sociedade democrática, no sentido da Convenção, o direito a um processo equitativo ocupa um lugar tão essencial que uma interpretação restritiva do art.º 6° não corresponderia ao fim e ao objeto desta disposição. O art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que tem três incisos dispõe acerca do processo equitativo, assim dispõe: 1- Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso a sala de audiências pode ser proibido a imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo. Quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça; 2- Qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada;3- O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) ser informado, no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulado; b) dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; c) defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; d) interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação; e) fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo. 505 505 - Na Convenção Americana:Art. 8° Garantias judiciais. 1. Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou Tribunal competente independente e imparcial estabelecido anteriormente por lei na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela ou para que se determinem seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) 245 É também possível que, noutros casos excepcionais, a natureza da própria violação constatada não ofereça qualquer possibilidade de escolha e que o Tribunal seja levado a indicar exclusivamente as medidas capazes de repararem a situação. É o que também vem acontecendo no âmbito de condenações em processos penais onde elementares regras do processo equitativo não foram observadas; nestas situações, o Tribunal indica que só a reabertura de um novo julgamento onde tais regras sejam observadas poderá sanar a violação506. Não tem sido fácil traçar os contornos de uma figura que tem no direito anglo-saxônico uma feição ampla, abrangendo mesmo tudo o que em terminologia românica se poderá chamar de liberdades públicas. O Tribunal esclareceu no seu Acórdão König, de 28 de Junho de 1978, relativo a um processo administrativo onde se impugnava uma decisão da Administração que estabelecia o encerramento de uma clínica privada e se impedia um médico de exercer a sua profissão, que, se os direitos e obrigações devem ter o seu fundamento no direito interno, já a sua definição é feita de uma maneira autônoma, teleológica e funcional. Afirmando mais uma vez a necessidade de uma interpretação autônoma, o Tribunal precisou que interpretar a referida noção apenas com referência ao direito interno conduziria a um resultado incompatível com o objeto e fim da CEDH; e, se o Tribunal não recusa interesse à legislação interna do Estado requerido, valoriza mais o conteúdo material e os efeitos que lhe são conferidos no direito interno do que a sua classificação ou não como civil, considerando essencial que a decisão seja determinante para os direitos e obrigações de caráter civil. O Tribunal não aceitou, por conseguinte, uma interpretação do nº 1 do art.º 6º da Convenção que visaria apenas as determinações de direito privado no sentido clássico, isto é, concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pes-soalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 506 - É a chamada cláusula Öcalan, porque inserida no Acórdão Öcalan, de 12 de Maio de 2005, Recueil 2005- IV, § 210. 246 entre particulares, ou entre particulares e o Estado, na medida em que este age como pessoa privada, submetida ao direito privado e não como detentor do poder público. Para que o nº 1 do art.º 6º se aplique, não é necessário que o litígio seja entre duas pessoas privadas e pouco importa a natureza da lei, segundo a qual a determinação deve ser julgada (lei civil, comercial, administrativa, etc.) e a autoridade competente na matéria (jurisdição de direito comum, órgão administrativo, etc.)507. No âmbito da Convenção Americana, considerando-se a importância e a enorme quantidade das regras internacionais (primordialmente as que estão contidas no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos), impõe-se sublinhar seu valor jurídico no direito interno, recordando desde logo o art.º 5.°, § 2.°, da Constituição Federal, que dispõe: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." Esse Direito Internacional dos Direitos Humanos, como se sabe, incorpora-se no direito interno (a) ora como norma constitucional (pelo art.º 5.°, § 2.°, nos termos da tese de Valerio Mazzuoli e Flávia Piovesan) (no mesmo sentido voto do Min. Celso de Mello no RE 466.343-SP); (b) ora como Direito supralegal (nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes, no RE 466.343-SP.508 Por seu turno, o artigo 8º da Convenção Americana delimita a noção de processo justo e imparcial509, no âmbito do processo judicial ou extra judicial. Todas as garantias 507 - BARRETO, Ireneu Cabral. Os Sistemas Interamericano e Europeu de Proteção dos Direitos Humanos. in: Anuário Brasileiro de Direito Internacional. Núm. III-1, Julho 2008 Páginas: 110-132. Articulado como: Id. vLex: VLEX-214141421http://vlex.com/vid/214141421. 508 - Sobre o assunto cf. PIOVISAN, Flávia. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. Capítulo V, p.70. 509 - Art. 8° Garantias judiciais. 1. Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou Tribunal competente independente e imparcial estabelecido anteriormente por lei na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela ou para que se determinem seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pes-soalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a 247 contempladas no art.º. 8º da Convenção fazem parte (evidentemente) do devido processo legal. 510 Dentre elas está a ampla defesa (constitucionalmente assegurada - CF, art.º. 5.°, LV) que compreende - tal como reconhece a communis opinio doctorum -, a autodefesa e a defesa técnica, o direito de audiência, acesso à jurisdição, duplo grau de jurisdição, entre outras importantes garantias, que a doutrina brasileira, prefere chamar de devido processo legal.511 A significação primitiva do princípio do due process of law; em suma, seja no Direito inglês (1215), seja no Direito norte-americano (que a incorporou por meio das Emendas V, VI e XIV), nada mais revela senão o modelo do Estado de Direito (Rechtsstaatprinzip ou Government under law), que hoje se converteu (ou está se convertendo) em Estado constitucional de Direito. Desse último modelo de Estado emana a consequência de que o Poder Público não pode privar a vida ou a liberdade ou os bens de ninguém sem lei ou fora da lei (CF, art.º. 5.°, LIV). Atualizando-se essa construção doutrinária hoje diríamos: nem fora da lei, nem fora da Constituição, nem fora do Direito Internacional dos Direitos Humanos (do qual, no nosso entorno, constitui paradigma a Convenção Americana). Em outras palavras: o Estado só pode agir consoante o ordenamento jurídico imperante, isto é, per legem terrae, especialmente quando se trata de dizer o direito (atividade jurisdicional) em razão do cometimento de uma infração penal.512 legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 510 - A propósito do devido processo: LEIBAR, Inaki Esparza. EI principio dei proceso debido. Barcelona:]. M. Bosch Editor, 1995. p. 25 passim; v. ainda: SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 13 passim; Hoyos, Arturo. EI debido proceso. Bogotá: Temis, 1996. p. 1 passim; TUCCl, Rogério L. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 63 e ss.; GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 2 e ss.; STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p. 148 e ss. 511 - O art. 39 da Magna Carta, a propósito, declara: "Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei ou exilado, ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos ou mandaremos proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus pares e de harmonia com a lei do país". 512 - GOMES, Luiz Flávio; CUNHA,Rogério Sanches.Direito Penal, V.4 Comentários à convenção americana sobre direitos humanos (pacto de São José da Costa Rica) 3ᵃ ed. São Paulo: RT, 2009,p.68. 248 Dentre os exemplos mais famosos de medidas adotadas pelos Estados por meio de uma sentença do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, estão: a) Áustria modificou seu Código Penal referente ao tratamento dos prisioneiros hospitalizados e todo o mecanismo de assistência judicial; b) Bélgica modificou sua legislação relativa aos indigentes, e seu Código Civil para conceder os mesmos direitos aos filhos ilegítimos; c) Dinamarca modificou sua legislação sobre a guarda dos filhos ilegítimos; d) França adotou nova legislação sobre escutas telefônicas; e) Grécia modificou a lei relativa à prisão provisória; f) Itália incorporou ao seu Código Penal disposições que estipulam a presença obrigatória de advogados de defesa nos procedimentos judiciais, incluindo os que têm lugar no Tribunal Supremo; g) Holanda modificou seu Código Penal Militar e a lei sobre a reclusão dos doentes mentais; h) Suécia modificou a lei de definição religiosa obrigatória; i) Suíça modificou totalmente sua organização judicial e o procedimento penal aplicável ao Exército Federal, também modificando o Código Civil no que se refere à privação de liberdade nos internatos; j) Inglaterra proibiu o recurso de castigos corporais (tortura e maus-tratos) nas investigações públicas. 513 2. O debate acerca da instituição do Tribunal do Júri: A resistência doutrinária ao Tribunal do Júri Regra geral, o Tribunal do Júri encontra mais adeptos e crentes fervorosos na sua justiça que propriamente cientistas sociais desapaixonados, que fazem (ou podem fazer) um estudo acerca de um dos institutos mais emblemáticos da história do direito.514 Há um debate clássico, e que parece eterno, que é saber acerca das vantagens ou desvantagens dos tribunais dos juízes leigos. É eterno, pois suas motivações se eternizam: os modelos de tais tribunais que se poem em prática provocando desconfiança, insatisfações. Contudo, historicamente se inverteu a balança em favor dos tribunais técnicos, pelos abusos do Tribunal do Júri, e pelo esgotamento dos modelos inquisitivos, por volta do seculo XVIII, 513 - ANNONI,Danielle.O Direito Humano de Acesso À Justiça no Brasil.Porto Alegre:Sergio Fabris Editor,2008,p.116. 514 - Nossa tarefa, contudo, é trazer de forma desapaixonada, elementos objetivos, que traduzam o julgamento justo pelo Tribunal do Júri. 249 por ocasião da Revolução francesa. Parece que mais se apreciam as qualidades negativas dos tribunais leigos, e a tendência é dar um maior intervencionismo aos juízes técnicos, juristas515. A revolução francesa advogava em favor dos jurados como uma conquista da liberdade frente ao antigo regime. Montesquieu assinalava que, igual em Atenas, a potestade de julgar não devia outorgar-se a um senado permanente, ao tempo em que Rousseau considerava comum a todos os cidadãos de um Estado bem organizado as qualidades de “em bom sentido, a justiça em sua integralidade”, alegando este convencimento ao extremo de sustentar que sem jurados populares não havia liberdade; e que do saber popular e da mais íntima convicção dos que julgam, hão-de prevenir veredictos e sentenças, sobre a base da filosofia do princípio revolucionário da divisão de poderes, não podiam ser a atuação dos juízes leigos senão exatas manifestação das leis, como reflexo da decisão do povo soberano, na confiança do sentido comum516. O júri é talvez o órgão judicial que desperta as maiores polêmicas. São igualmente numerosos os seus defensores e adversários, ambos os lados com argumentos respeitáveis, porém, nenhum deles com a perspectiva de triunfo sobre o outro. A controvérsia segue animada, e é curioso que até o momento não se vislumbra a menor possibilidade de extinção nem da instituição do júri nem da polêmica que o acompanha desde tempos imemoriais. Parece mesmo que a discussão e a polêmica compõem a própria essência do júri, já que a finalidade dessa instituição, e talvez a sua maior virtude, é exatamente a realização do direito por meio do debate, do confronto dialético das ideias517. Certamente a instituição do Tribunal do Júri tem criado interesses ao largo de sua história, que tem a faculdade de criar as linhas de opinião que separam os denominados juradistas dos antijuradistas, dependendo, logicamente, do apoio a este sistema de processo por meio de jurados518. Instituto polêmico, o Tribunal do Júri granjeou tanto adeptos fervorosos como também antipatizantes, no Brasil e algures. Dentre os primeiros, podemos citar Guilherme de Souza Nucci, Frederico Marques e Roberto Delmanto, enquanto Nelson Hungria, apenas para citar 515 - GUILLÈN, Víctor Faíren. El Jurado: Cuestiones practicas, doctrinales y politicas de las leyess españolas. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 71. 516 - REBOLLO, Beatriz Sanjurjo. Los jurados en USA y en España: dos contenidos distinos de la misma exprésión. Madrid: Dykinson, 2004, p. 39. 517 - MACHADO. Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2009, p. 173. 518 - REBOLLO, Beatriz Sanjurjo. Los jurados en USA y en España: dos contenidos distinos de la misma expresión, cit. p. 38. 250 um exemplo, escreveu um violento libelo contra a instituição. Observa-se que o júri é das instituições que mais dividem opiniões: tem defensores apaixonados e opositores intransigentes. Alguns juristas de escol criticam-no acerbamente. A exposição de motivos do Código de Processo, sob o influxo do regime político de então, não hesitou em dizer: “Privado de sua antiga soberania, que redundava, na prática, numa sistemática indulgência para com os criminosos, o júri está agora integrado na consciência de suas graves responsabilidades e reabilitado na confiança geral”519. O Tribunal de Júri, no entanto, converteu-se na instância de julgamento mais discutida no século XIX, acusada de inoperância e ineficácia no combate ao crime. As autoridades não se cansavam de denunciar essa situação. O Presidente Costa Pereira, no relatório apresentado à Assembleia Provincial, em 1862, delineou a contradição entre a Polícia e o Júri. Destacava-se que a “impunidade, filha da indulgência do Júri, concorre poderosamente para contrariar a ação enérgica e salutar da Polícia – a esperança de absolvição, a crença de que esse tribunal, a quem a lei atribui um poder quase discricionário, é, na maioria dos casos, antes o soberano que perdoa, embora com as formalidades do julgamento, do que o juiz que decide com a severidade do ministério que lhe cabe; crença gerada e robustecida pelos fatos torna-se animação para o delinquente, que não pecaria se, por ventura na falta de nobreza de sentimentos, tivesse ao menos receio de castigo certo e irremediável”520. No bojo dos embates entre imperialistas e republicanos, no período de 1830 a 1840, surge a reação conservadora, já que foi editada a Lei n° 261, de 3 de dezembro de 1841, que transformou significativamente a instituição, restringindo bastante o alcance da participação popular. O principal golpe no caráter político da instituição foi a restrição imposta à participação popular, pois a lei passou a exigir uma série de condições para que alguém pudesse ser jurado, tais como ser eleitor, saber ler e escrever, possuir bens, determinado rendimento, entre outras, sendo que a lista era formulada pelo delegado e passava por autoridades como o juiz, o promotor e o presidente da Câmara Municipal521. A doutrina espanhola reúne um autêntico “decálogo”, em direção oposta à atividade e participação dos jurados na administração da Justiça, e desta forma, o julgamento dos jurados não corresponde a um ideário de democracia, uma vez que os jurados não têm qualquer 519 - ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora do Autor,1984, p. 46. 520 - Mensagem enviada à Assembléia Provincial do Espírito Santo, 1862, p. 7. 521 - MARQUES, José Frederico. Tribunal do Júri. Considerações críticas à Lei 11.690/08 e 11719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 23. 251 espécie de conhecimento para julgar um processo, destacando ainda o caráter sugestionável dos jurados522. 522 - “Juicio por jurados”. El juicio por jurados se funda en el criterio, discutible, de que cada ciudadano y, en general, cada persona, debe ser juzgado por sus iguales; esto parece ilógico; juzgar parece que exige superioridad en quien juzga respecto de de los que se someten a su juicio”. “Ni son iguales, generalmente, los jurados a quien es sometido el juicio de ellos; los separan diferencias de educación, profesión, costumbres, etcétera”, “El juicio de cada uno. por sus iguales, más conduciría a un enjui-ciamiento por castas o clases que a una institución judicial democrática ; los nobles habrían de tener sus jurados, la plebe el suyo , y lo mismo los militares , los marinos , los patronos, los obreros”. “Pera, una vez logrados esos jueces entre los iguales a los litigantes, surgirá la pugna entre las clases, y la necesidad de un superior dirimente para esa pugna, y ese superior dirimente ya no podría ser un tribunal de jurados porque faltarían para dirimir la contienda los iguales a las partes en juicio “. “El jurado tiene precedentes ingleses y germánicos traídos al Derecho municipal castellano en la Alta Edad Media; no es, pues, una creación del Derecho nuevo nacido con la revolución más una reviviscencia de modos primitivos de enjuiciar adoptados por sociedades incultas”. “El jurado es un sistema de juzgadores expresamente opuesto al de los jueces letrados y de carrera; parece absurdo que quepa desechar un sistema de juzgadores expresamente porque son letrados y, además, expertos, mediante actuación repetida, en la función de juzgar; en todas las demás profesiones la mayor experiencia es tenida como mayor garantía de acierto”. “Hay razón, sin embargo, para prevenirse contra el juicio, en materia criminal, dei juzgador que tiene esa profesión, pues la repetición de casos le hace perder la sensibilidad que conviene para diferenciarlos, y se forma en él una rutina de endurecimiento que lo hace propender a aplicar las reglas generales sin afirmar en cada proceso lo que corresponde a las circunstancias especiales que en él concurren; acaso sea el argumento más fuerte en favor deljuicio por jurados; y este argumento es negativo, no demuestra que el juicio por jurados sea bueno sino que el juicio por profesionales es maio, o propende a serlo”, “Pero el juicio por jurados no garantiza depuración; para eso precisaría que juzgasen selectos, y el sistema democrático exige lo contrario: ni ecuanimidad: un mismo sentimiento mueve a los jurados y a los delincuentes, el delito más frecuente y más tentador es el que atenta contra la propiedad ajena para convertirla en ventaja propia, y el delito que más duramente castigan los jurados es el que ve contra la propiedad, porque en él ven un peligro contra su estado posesorío. EI delito más pasional es el de sangre, y en éllos jurados sienten pasión de compasión, hasta de simpatía, por el delincuente pasional, y lo tratan benévolamente las más veces. El delito de adulterio y el que proviene de la vindicación violenta del adulterio por el ofendido contienen en sí bárbaras preocupaciones sociales, y el jurado, porción de la sociedad, falla esos delitos según esas preocupaciones “. “No es fácil corregir los defectos dei juicio por jurados, su detector principal es la incultura -incultura en todos muchas veces, en Derecho casi siempre- y ese defecto sería corregible mediante el sistema flamenco del scabinato o jurado de letrados; pero eso sustituiría el tribunal democrático por un tribunal de clase social”. “El pueblo no ama el jurado, aunque le ha sido dado como conquista democrática: rehúye formar parte de las listas y figurar en el tribunal; así los jurados que tienen alguna relación con los abogados de cada causa, procuran obtener de ellos que los recusen, para verse libres de la molestia de aquel juicio” “Por otra parte los delincuentes más temibles, que no lo son sólo los terroristas ni aquellos que se apoyam en una fracción política revolucionaria, han intimidado a los jurados de las grandes poblaciones, y de ahí han provenido veredictos de inculpabilidad producidos en algún caso por el sob orno y en 252 O antagonismo entre os partidários e opositores do júri é bem retratado por Antônio Manuel Morais, quando reflete o artigo escrito por Nicolás González-Cuéllar “Finalmente, o Tribunal do Júri!” que foi publicado três dias depois de ter também sido publicado no BOE a Lei Orgânica 5/1995, de 22 de Maio, sobre o Tribunal do Júri. Isto reflete a ansiedade que existia na Espanha devido ao atraso legislativo nesta matéria523. Um dos mais proeminentes opositores do Tribunal do Júri em ações civis foi Alexander Hamilton em seu Federalist Papers, Número 83, devido, em grande parte, à sua oposição, o fato que a Constituição Federal como documento original elaborado não continha nenhuma disposição, garantindo o direito a julgamento por júri em ações civil. Estas disposições foram adotadas mais tarde com a sétima alteração da Constituição. Desta forma, comentou Hamilton em seu trabalho: “Na história do Júri, o melhor juiz da matéria será o menos ansioso por um estabelecimento constitucional do julgamento por júri em casos civis, e o mais pronto a admitir que as mudanças que estão acontecendo continuamente nos assuntos da sociedade podem tornar um modo diferente de definir as questões de propriedade preferível, em muitos casos em que essa modalidade de julgamento agora prevalece524”. Ao mesmo tempo em que ocorre uma manifesta apreciação positiva pelo Tribunal do Júri na Espanha, a deputada Vindel López (Grupo Popular) profere durante o debate parlamentar uma ácida critica à instituição: “numa altura em que a Administração da Justiça neste país se identifica permanentemente com expressões de caos e de atraso; numa altura em que os procedimentos dilatam-se extraordinariamente no tempo e numa altura em que as duas chaves para modernizar a nossa antiga Administração da Justiça, por um lado as reformas processuais e por outro a necessária injeção de medidas materiais e pessoais, nem sequer as vislumbramos no horizonte, interrogo-me como é possível que o governo pretenda introduzir muchos por el miedo”, “Aun así, es difícil sustituir el jurado por otro tribunal juzgador que lo mejore; quienes piden el retorno al tribunal de Derecho, ni siquiera niegan que la actuación de éste padece el efecto de la rutina judiciaria; quienes piden contra los terroristas el tribunal militar, no piden justicia, sino un terrorismo de la pena que venza al terrorismo del delito; además, el tribunal militar es un jurado, pues es imperito en Derecho” . (cf: PUYOL, Juan Moneva. Introducción al derecho hispánico. Madrid: Labor, 1942, p. 368.) 523 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 171. 524 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 38. 253 a instituição do Júri e queira dar assim as chaves a um inquilino de um imóvel, que está cheio de gretas e de humidade”525. Esta crítica é o reflexo da dicotomia que sempre houve e continuará a haver entre os apoiantes do Júri e os seus contestatários, os quais se dividem em liberais e conservadores, respectivamente526. Na América Latina, se faz um comparativo com a cultura, o progresso social, ao declarar que em face da cultura subdesenvolvimentista, que não é das melhores, decisões absurdas fazem com que a execração pública recaia impiedosamente sobre o Tribunal do Júri, uma corte sabidamente concebida para dar ao homem do povo, nos casos em que a lei admite uma participação igualitária e democrática no julgamento do seu semelhante. E que tem jurados, às vezes, distraídos, bocejantes e sonolentos em pleno julgamento e, o que é pior, flagrados assim desacreditam o júri popular, que não existe só no Brasil e cuja origem é imemorial527. Existe ainda, uma argumentação exposta de maneira escolástica não isenta de possíveis censuras, que compreende, em favor dos juízes leigos em direito natural, do arguido ser julgado pelo povo e participar da justiça popular e do fundamento consensual e da democratização dos poderes públicos, da conveniência do jurado para o processamento de certos delitos, etc.528. O número crescente de homicídios no Brasil tem provocado enorme desgaste da instituição, em razão da quantia excessiva de julgamentos realizados, principalmente nas grandes metrópoles. A tal circunstância, contrapõe-se a necessidade de se alcançar maior eficiência no sistema, buscando-se evitar excessiva demora na tramitação dos processos de competência do Tribunal do Júri529. A pergunta secular acerca do Tribunal do Júri, reporta-se ao fato, se alguns homens, tirados pela sorte, seriam legítimos representantes da consciência popular? Os jurados têm 525 - TOMÉ GARCIA, José Antônio. El Tribunal del jurado: competência, composoción y procedimento. Madrid: Ed. Derecho Reunidas, 1996, p. 16. 526 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 172. 527 - HOLANDA, Marcos. Manual do Jurado. 2. Ed.. Fortaleza: ABC, 2001, p. 33. 528 - GUILLÈN, Víctor Faíren. El Jurado: Cuestiones practicas, doctrinales y politicas de las leyess españolas. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 24. 529 - Segundos dados da Procuradoria-Geral de Justiça do Ceará, somente no ano de 2011, 1000 (mil) inquéritos tramitam nas comarcas de Fortaleza, a 7ª capital mais violenta do Brasil, Caucaia e Maracanaú,de procedimentos criminais relativos a crimes de homicídio, cujo número aproxima-se a 1.000 (mil). 254 capacidade individual para julgar os casos que lhes são submetidos para apreciação? O fato de os jurados, em regra, serem recrutados em uma só classe social implica o reconhecimento de que tais indivíduos possuem o espírito de classe muito acentuado a lhes ditar as decisões? Os jurados sofrem influências externas na tomada de suas decisões? O medo acaba por influenciá-los? O decurso do tempo torna o jurado mais benevolente? Há realmente um modo local de apreciar o fato criminoso? Afinal, indivíduos tirados pela sorte estariam realmente preparados para julgar o caso que lhes é apresentado em uma sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri? Seria justo confiar o destino de um réu a alguém que não reúne as melhores condições para exercer função tão relevante? A indagação proposta - sugestiva de crítica quanto à formação do júri- longe está de qualificar o jurado como homem desprovido de inteligência, pois até a pessoa reconhecidamente inteligente pode adotar decisões tidas como absurdas530. Os apontamentos críticos dizem respeito, em sua maior parte, ao pouco ou nenhum preparo dos jurados, que, uma vez convocados a participar dos julgamentos, compelidos estão a decidir causas não raro complexas. Ao se discutir a Constituição de 1891, brasileira, observa-se que na atualidade o júri não tem explicação; mantê-lo, isto é, arrolar indistintamente indivíduos que todos os anos façam as vezes de juízes é o mesmo que todos os anos indicar indivíduos para servirem de alfaiates, sapateiros, etc., sem que tenham exercido esse ofício. Se na vida quotidiana cada um de nós pede a cada operário apenas o trabalho do qual ele é capaz, e ninguém pensaria, por exemplo, em fazer concertar seu relógio pelo sapateiro. A administração da justiça penal, muito ao contrário, nós a pedimos ao primeiro que aparece, negociante ou capitalista, pintor ou funcionário aposentado, que talvez, nunca tenha visto um processo penal (Ferri)531. Existem ainda outros pontos críticos da instituição, com base nos fenômenos da interpsicologia estudados por Sighele e Le Bom. Deve-se entender que a reunião de homens individualmente inteligentes e honestos quase sempre sai um juízo coletivo medíocre, pois tal agrupamento de indivíduos não corresponde necessariamente à soma de suas qualidades. Nordau e mais recentemente Sighele - afirma Ferriani - demonstraram que de uma reunião de homens individualmente inteligentes, honestos (como precisamente pode ser cada um dos componentes de um determinado júri), quase sempre sai um juízo coletivo medíocre, muito 530 - GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do Júri. Aspectos críticos relacionados à prova. São Paulo: Atlas, 2008, p. 2. 531 - CAMARGO, Odecio Bueno. Patologia do Júri. São Paulo: RT,1989, p. 8. 255 inferior àquele que cada um dos componentes daria individualmente. Em júris de homens de bom senso é fácil obter um veredictum que desça, não só abaixo do bom senso, mas ainda abaixo do senso comum. Ninguém ignora os erros que frequentemente cometem os jurados. Muitas vezes provêm de sua incapacidade individual ou da dificuldade particular das questões que lhes são submetidas; mas as vezes a decisão absurda e fora de propósito é dada por pessoas inteligentes e em questões que apenas requerem um pouco de bom senso para ser resolvidas. Que provam todos esses fatos e tantos outros semelhantes que cada qual pode observar por si próprio? Provam simplesmente que homens de bom senso e inteligentes podem dar uma sentença estúpida e absurda. Uma reunião de indivíduos pode, portanto, dar uma resultante oposta à que teria dado cada um deles (Sighele)532. Em tal análise, leva-se ainda em conta o fato de que os erros dos jurados, em regra, estão assentados na incapacidade individual ou na dificuldade particular em se apreender questões - não raro - complexas que lhes são submetidas para apreciação, o que, às vezes, acaba por gerar uma decisão absurda dada por pessoas inteligentes. Não há como negar a dificuldade em se explicar ao jurado leigo questões como erro sobre os elementos do tipo, erro de proibição, descriminante putativa, excesso na legítima defesa, etc.533. Um dos fatores que argumenta parte da doutrina na Espanha para o fracasso do Júri naquele país é ter o legislador espanhol optado pelo modelo de júri puro, que surgiu de forma espontânea na Inglaterra, e que se exportou para os Estados Unidos, lugares em que existe um sistema jurídico eminente prático, em que não existe a distinção entre fatos e direito, e que só existe em países europeus da civil law, em que impera um modelo de jurado denominado misto, integrado por leigos e magistrados534. Em Portugal, a doutrina mais especializada é no sentido que a participação dos cidadãos no exercício do poder judicial, é algo “esquisito” e encarado com um espírito velado de desconfiança ou mesmo de má vontade por muitos setores dos profissionais do direito e mesmo da opinião em geral. Lembra ainda, que a participação de cidadãos nos Tribunais é também um assunto incômodo, de que não se gosta muito de falar. Lembremo-nos de que, nos catorze anos que decorreram após a sua reintrodução no nosso país, o assunto não foi abordado, que saibamos, senão pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que 532 - CAMARGO,Odecio Bueno. Curso de Doutorado, 3ª Secção, Faculdade de Direito - USP, Dissertação e teses de Odecio Bueno de Camargo, São Paulo: RT, 1934, p. 35. 533 - GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do Júri. Aspectos críticos relacionados à prova. São Paulo: Atlas, 2008,p. 19. 534 - VV.AA. Problemas actuales de la justiça penal. Coordenador Joan Picó i Juno y Barcelona. JB, 2001, p. 96. 256 dedicou ao tema o III Encontro Internacional de Magistrados. Para além desta realização, não temos conhecimento de debates públicos, artigos doutrinários ou tomadas de posição significativas sobre o assunto. Também nunca foi feito qualquer estudo empírico sobre o funcionamento do Tribunal de Júri535. Em 2006 e 2007 foi discutido na Holanda, acerca da possibilidade do sistema admitir a participação de leigos, como forma de atribuição dos cidadãos na administração da justiça. Um declínio na confiança percebida no sistema legal, contribuiu para este novo convite para a participação dos leigos. Os meios de comunicação, políticos e estudiosos têm atraído a atenção do público para o fato de que a Holanda é quase o único país da Europa Ocidental, sem a participação dos leigos no sentido estrito da palavra. Alguns políticos opinaram, que os holandeses, tinham uma justiça criminal muito profissionalizada. A introdução da participação de leigos, ajudaria a colmatar a lacuna que supostamente existe entre o sistema legal e os cidadãos. A observação, de que os juízes holandeses eram demasiado brandos, foi outro fator. Essa discussão levou a um pedido do ministro da Justiça holandês, a um professor de direito, Theo de Roos, para escrever um memorando de sua assessoria sobre a conveniência da introdução de leigos no sistema jurídico holandês. Este conselho concluiu que a introdução de leigos no julgamento de casos não poderia ser considerada como um método adequado para fazer a ponte entre os cidadãos e o Poder Judiciário. Concluiu-se que a legitimidade do Judiciário não seria aumentada, as discrepâncias entre juízes e os cidadãos sobre a opinião acerca da punição de eventuais réus, não seria resolvida e confiança não seria reforçada pela introdução de leigos no sistema, tendo em vista que a introdução de um júri, na Holanda implicaria uma ruptura muito abrupta com as tradições históricas. 536 Apesar da crença de que os Júris foram criados para proteger contra a tirania e uso injusto do poder, o fato é que esta proteção não estava sempre com os Tribunais do Júri, mesmo naquele tempo. O exemplo que podemos trazer, na história mais recente, foi visto nos ensaios de apoio ao capitão Alfred Dreyfus, nas cortes francesas. Um conhecido escritor francês, Émile Zola, que lutou pelo capitão acusado, tinha o Júri em boa conta, para tutelar os direitos de seu protegido. Logo ficou claro que a única função deste Júri foi registrar o edital do governo, do exército, e da imprensa e de pontos de vista do povo. Todos exigiam a condenação de Dreyfus, e a atmosfera do julgamento logo se transformou em um show de 535 - GERSÃO, Eliana. Jurados nos Tribunais - alguns dados da experiência portuguesa. Cadernos de Revista do Ministério Público, Lisboa: Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 1991, n. 41, p. 9. 536 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p.45 257 justiça tornando impossível qualquer defesa. As invectivas do tribunal, do promotor, e das testemunhas tomaram o lugar das provas e dos argumentos. No final de duas semanas, o Dreyfus inocente foi condenado e sentenciado em 35 minutos. Demorou algum tempo antes de um tribunal composto por juízes limpar a bagunça do caso Dreyfus537. Argumentam ainda que o sistema do júri envolve doze indivíduos, muitas vezes sem nenhum contato prévio com os tribunais, que são escolhidos ao acaso, para ouvir evidências (por vezes de alta natureza técnica) e para decidir sobre assuntos que afetem a reputação e a liberdade dos acusados de infrações penais. Para estas pessoas, não é dado nenhum treinamento para esta tarefa, eles deliberam em segredo, e retornam com um veredicto sem dar razões, e elas são responsáveis por sua própria consciência, e para mais ninguém538. 3. Argumentos favoráveis à existência do Tribunal do Júri: A independência dos jurados O primeiro argumento favorável que surge acerca da possibilidade da existência do Tribunal do Júri entre os órgãos da administração da Justiça é o referente à independência dos jurados, que não devem escusas ou explicações a nenhum dos poderes da república, e nem mesmo aos juízes estão os jurados subordinados, embora se reconheça que, em certos ordenamentos jurídicos, como o norte-americano, o magistrado tem o poder de, em certos casos, rejeitar os veredictos do Tribunal do Júri. Este é um dos aspectos ressaltados pela doutrina espanhola, que após examinar as virtudes dos jurados, pondera a independência do jurado em contraste com as pressões a que a Judicatura se vê exposta, principalmente por parte do Executivo. Pois é uma realidade que onde existam autênticas garantias de independência (não confundir com declarações legislativas e constitucionais, mais ou menos solenes, mas sim com a virtude de alguma prática) para o exercício da jurisdição, o funcionário leigo está em melhores condições de resistir a coações e subornos que o juiz profissional e quando o país vive em regime de arbitrariedade jurídica, então supõe-se que não desapareça com ela, o jurado (pode-se citar, como exemplos, a Itália de Mussolini e da Espanha com Primo de Rivera e com Franco), será ingênuo esperar destes atitudes heroicas539. 537 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 43. 538 - CONTERILL, Janet. Language and power in court. A linguist analisys of the O.J.Simpson Trial. New York: Palgrave Macmillan, 2004, p. 223. 539 - ALCALÁ,Zamora Castilho. El jurado popular, en Derecho Procesal Mexicano, t. I, México: Porrúa, 1976, pp. 314 ss. 258 A independência do júri popular contra o poder político foi, provavelmente, de importância decisiva para o seu sucesso, razão porque os Estados Unidos adotaram com tanto entusiasmo uma instituição tão característica do seu país. Esta independência do júri também explica por que muitas jurisdições confiam ao júri para julgar crimes políticos, mesmo que sejam de menor importância. Mesmo os tribunais de apelação que dispõem dos processos, nem sempre podem estudálos, tendo em vista o volume do serviço e, muito menos, penetrar as razões de decidir do Júri, tais os vincos funcionais da toga. Não há que estranhar divergência entre um tribunal togado, adstrito à lei e à prova, obrigado à fundamentação e autolimitado pelas “normas aconselháveis” de jurisprudência, e um tribunal de consciência que existe, precisamente, para romper os quadros rotineiros e lançar-se, em braçadas livres, ao apelo das compreensões540. É tradicionalmente proclamada como pressuposto da boa justiça e da liberdade a independência e imparcialidade dos juízes. Por isso o direito à jurisdição seria a melhor garantia dos cidadãos contra os eventuais abusos do poder. É importante anotar, desde já, que quando se refere a independência dos juízes não se alude a uma qualidade pessoal, mas essencialmente às condições objetivas criadas pelo sistema jurídico para assegurar que possam exercer a sua função apenas em obediência à lei541. O art.º. 206.° da CRP dispõe que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”. A independência, na tradição do constitucionalismo, significa que os demais poderes do Estado não podem intervir na atividade dos tribunais: é a chamada independência externa. Cada um dos poderes do Estado, e como defendia a tese clássica da separação dos poderes, tem de se limitar ao cumprimento das funções que a Constituição lhe comete, sem invadir as dos demais. Os tribunais apenas estão sujeitos à lei. Esta é a essência da função jurisdicional e da independência judicial. A independência dos tribunais, frente aos demais poderes do Estado, assegura-se mediante a sua exclusiva submissão à lei. Nela radica, em última instância, a independência dos tribunais e dos magistrados. Neste domínio, o termo lei designa todas as fontes de direito constitucionalmente admitidas, que deverão ser observadas em conformidade com o princípio da hierarquia normativa542. A independência pode ser retratada, ante o fato, de que o júri, ao contrário de um juiz, é desprovido de qualquer preocupação carreirista. Com efeito, algumas decisões emanadas do 540 - LYRA, Roberto. O Júri sob todos os aspectos, prefácio da obra de Ruy Barbosa. In: Revista Brasileira de Criminologia, ano III, jul.-set.,1949, n. 8, p. 23. 541 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 163. 542 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal, cit., p. 164. 259 juiz profissional, por vezes podem ser elaboradas com vistas ao melhoramento, excelência ou aprimoramento das decisões judiciais. Sabendo o juiz que a sua sentença será examinada e/ou reformada, sente-se compelido a julgar melhor543. 4. Segue: intima convicção do jurado, participação popular e garantias para o acusado Conforme leciona parte da doutrina, o júri não é uma instituição em declínio. Ao contrário, os grandes juízes de ofício procuram julgar como jurados, quando apreciam os dramas das doenças, das privações, dos preconceitos. Garofalo repetiu a mais vulgar das increpações: o júri é instrumento de impunidade. O fenômeno é geral: a benignidade da justiça, que levou o autoritarismo a recorrer a juízes e tribunais especiais. Isto é, para condenar. A justiça duvida. E tem razão, porque constrangida a colher restos à beira-mar, porque lhe falta a convicção da equidade. Consultem as estatísticas. Os números de absolvições pelos juízes togados são relativamente maiores que os do Tribunal do Júri. Os “escândalos” do júri são, em regra, homologados pelos tribunais de apelação, quando não se conforma com eles o Ministério Público. E continua o grande mestre brasileiro: “e o provimento de apelações da defesa? E as revisões deferidas? E os indultos, as graças, as comutações? Verifiquem as cifras e apurarão, isto sim, os rigores do Júri. Ninguém estará habilitado a criticar os veredictos, se apenas conhece os fatos e as personagens pelo noticiário sensacionalista da imprensa e do rádio ou pelas versões policiais da primeira hora”544. Entende-se também que a sua função passageira e totalmente fortuita, sua escolha através da sorte, seu nome e anonimato, a diversidade de sua origem e estado, sua liberdade a respeito de qualquer prova a qualquer jurisprudência, a ausência de toda justificação de sua convicção e de toda motivação de suas sentenças, bem como sua resistência à pressão ou 543 - GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Recursos no Processo Penal. São Paulo: RT, 2004, p. 23. Adotam os norte-americanos alguns procedimentos para evitar, ou diminuir, a impregnação dos jurados pela atmosfera pública que envolve certos julgamentos. São eles: a) a possibilidade de desaforamento ("change af venue"); b) a possibilidade de postergar o julgamento para outra data; c) a possibilidade de inquirição dos potenciais jurados, antes do início do julgamento, tanto pelo juiz, quanto pelas par tes para aferição de eventual pré-julgamento de sua parte (“voir dire”) e d) depois de apresentado o caso, deve o juiz presidente advertir e instruir os jurados para que considerem, em seu julgamento, apenas as circunstâncias trazidas ao seu conhecimento em plenário. TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law, Volume I.Foundation 3d ed. 2000, p.54. 544 - BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Introdução de Roberto Lyra, in: Revista brasileira de criminologia. Rio de Janeiro, a. 3 N. 8 (jul.-set. 1949), p. 27. 260 sedução de onde venha, bem como a sua imparcialidade que é, por definição, total, revela um triunfo da boa-fé545. O júri decide por sua livre e natural convicção. Não é o jurado obrigado, como o juiz, a decidir pelas provas do processo, contra os impulsos da consciência. A multiplicidade infinita dos fatos e a necessidade social de uma decisão verdadeira e justa impeliram o legislador a conceder ao jurado esfera de ação mais ampla546. Há muitas críticas ao júri. Os jurados são pessoas leigas e que desconhecem o Direito. Rui Barbosa observava, com acerto (e há mais de 80 anos!), que "as arguições fundadas contra o júri não são maiores, entre nós, do que as queixas oferecidas contra a magistratura togada... " (Obras completas, Imprensa Nacional, v. 25, t. 3, p. 86). Ademais, à alegação de que os jurados, além de leigos, não leem o processo para uma melhor decisão, respondeu Roberto Lyra que "mesmo os tribunais de apelação que dispõem do processo, nem sempre podem estudá-los bem, tal o volume de serviço... " (O júri sob todos os aspectos, cit., p. 15).547 Alguns argumentos podem ser enumerados em ambos os sentidos, a favor e contra a participação dos leigos, que é o caso, por exemplo, do “jogo de emoções” que envolve os julgamentos populares, que se presume poder jogar um papel mais substancial com os juízes leigos. As emoções podem ficar no caminho de um julgamento objetivo sobre um caso, elas também podem ser bem-vindas para evitar excessivamente uma decisão burocrática tomada por profissionais. A participação na vida democrática do Estado também pode ser enumerada como um ponto favorável ao Júri, além da redução de despesas, uma vez que a remuneração dos jurados é bem inferior à dos juízes profissionais548. Traduzindo o Tribunal do Júri, no sentido em Habemas, empresta à decisão e às leis, temos a situação dialógica, de consenso racional e debate público. Para Habermas, a constituição é um sistema de direitos fundamentais definidos pela soberania popular, ao qual cabe resguardar ao mesmo tempo os direitos humanos e a soberania popular, as liberdades dos 545 - NASSIF, Aramis. Júri: Instrumento da soberania popular. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1996, p. 28. 546 - LYRA, Roberto. O Suicídio Frusto e a Responsabilidade dos Delinqüentes Passionais, Rio de Janeiro: SPC, 1935, p. 6. 547 - TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado.V.2 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.406. 548 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p. 2. 261 modernos e as liberdades dos antigos, a autonomia privada e a autonomia pública. A soberania popular serve para assegurar aos cidadãos a prerrogativa de serem simultaneamente autores e destinatários dos direitos fundamentais. Na visão de Habermas de sociedade democrática, a garantia dos direitos humanos pressupõe o reconhecimento concomitante dos valores inerentes à identidade cultural da comunidade histórica à qual pertence o beneficiário dos direitos.549 Também entre os pontos positivos, podemos citar o interesse dos jurados pela justiça comunitária, ou justiça popular. É inegável, ante pesquisas já realizadas, que os integrantes do Tribunal do Júri têm um real interesse em estar no Tribunal do Júri, ouvindo os debates, e tentando na medida do possível, entregar o seu veredicto com base na prova dos autos. Historicamente, parte da doutrina assumiu posição contra a escola positiva em defesa do Júri. A questão do Júri, sobretudo nas fases de exacerbação reacionária, não é jurídica, mas política, tendo salientado que não é o Júri unicamente uma instituição jurídica: é uma criação política de suprema importância no governo constitucional. Posição esta semelhante a de Tocqueville550. Pode-se dizer, também, que o processo perante um júri normalmente traz melhores garantias no que diz respeito dos princípios da imediatidade - todas as provas formais são administradas diretamente ao juiz - e as audiências orais – que estão sujeitas às provas na medida do possível, com uma apresentação e discussão de competências. Naturalmente, os jurados são envolvidos nas fases preliminares do processo e não têm normalmente acesso aos autos antes da audiência. Assim, a obtenção de provas deve ser realizada inteiramente na frente deles, permitindo-lhes formar uma crença como a forma mais concreta possível, respeitando melhor a natureza do processo contraditório e, portanto, de igualdade de armas551. Do ponto de vista do processo, a instituição também apresenta grandes vantagens. Assegura a instrução do assunto, porque o jurado se mostra severo em relação à prova e dificilmente admite a culpabilidade, salvo o caso de uma prova evidente. Garante a investigação do caso porque o júri é rigoroso na apreciação das provas. Incita, de maneira geral, pela presença e o controle dos cidadãos, uma atuação mais completa de suas funções 549 - LEITE,Roberto Basilone. A Chave da Teoria do direito de Habemas.Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p.111. 550 - BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Introdução de Roberto Lyra, in:Revista brasileira de criminologia. Rio de Janeiro, a. 3 n. 8 (jul.-set. 1949), p. 25. 551 - TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse. Zürich: Schulthess Verlag, 2005, p. 134. 262 por parte dos juízes e funcionários. Impõe os grandes princípios da oralidade e publicidade nos debates, e administração direta e patente de prova. De resto, trouxe “oxigênio” ao processo penal, varrendo para fora os resquícios do cruel processo inquisitivo, derrotando o perigoso e complicado sistemas de provas “plenas e semiplenas” que fornecia a convicção do juiz. É o fermento do progresso da justiça criminal552. 5. O argumento da Colegialidade ou teorema de Condorcet É ainda identificado na literatura americana, como argumento a favor do júri, o denominado teorema de Condorcet sobre o júri (Condorcet jury theorem), segundo o qual um grupo de pessoas proferirá uma melhor decisão do que apenas uma pessoa. Esta teoria assume que as várias pessoas que integram o júri fazem uso das suas perspectivas pessoais, dos seus conhecimentos, das suas competências próprias para apreciar a prova, o que origina, crê-se, uma melhor apreciação, ou seja, uma melhor decisão. Este tipo de perspectiva faz apelo a uma, pode chamar-se, racionalidade do aleatório. Trata-se de acreditar, ainda que com fundamento estatístico (sempre contingente), que o conjunto de pessoas selecionado para um determinado processo vai, em função das suas idiossincrasias existenciais, em conjunto (conjugadas essas idiossincrasias), proferir uma decisão cuja principal preocupação será a de não condenar um inocente553. A colegialidade existe, naturalmente, tanto no tribunal coletivo como no Tribunal do Júri - sendo mesmo, neste, levada mais longe. O fundamento da colegialidade do tribunal penal - que o grosso dos países consagra nas respectivas legislações de organização judiciária - assenta, de resto, na seguinte ideia: quanto mais numerosos forem os juízes, tanto melhor será a justiça administrada. A deliberação em conjunto presta-se a melhor pesar os argumentos da acusação e da defesa, a enquadrar mais facilmente os fatos e determinar, em consequência, o direito aplicável, a melhor motivar as decisões. A presença de uma pluralidade de magistrados permite um controle recíproco e garante a mais elevada imparcialidade: protege cada um dos membros do colégio contra as pressões exteriores, e assegura a todos uma mais forte independência interior. Constitui, enfim, um fator de formação dos magistrados jovens que, assim, entram profissionalmente em contato com os 552 - LARRAZ, Gustavo Lopez-Muñoz. Comentarios a la Ley orgânica 5/1995, del Tribunal del jurado. Madrid: Dykison, 1995, p. 123. 553 - VILALONGA, José Manuel. O Tribunal do Júri. Breves considerações críticas. in: O Direito, ano 138º, I. Edições Almedinas, 2006, p. 179. 263 mais experimentados. De todas estas vantagens, a magistratura judicial há-de retirar um prestígio que garanta à justiça um respeito unânime554. Por sua composição, o Júri, de todas as classes sociais, pode jactar-se de uma soma de experiência, como o bom senso, o dom mais comum e bem distribuído nas coisas do mundo como o conhecemos, um conhecimento da vida e do homem que dificilmente se pode aprender em um colegiado. Por outro lado, os numerosos juízes profissionais têm mais ou menos a mesma formação e o mesmo viés profissional (como o farmacêutico de Dickens, na sua obra Sr. Pickwick), a mesma mentalidade e os mesmos preconceitos, vivendo no “clima” mesmo e, por outro lado, muitas vezes, fora da realidade. O juiz tem a sua perspectiva advinda de seu gabinete (como o farmacêutico de Dickens, que já se falou). O Júri tem como perspectiva, o mundo e a vida. O juiz se vincula ao detalhe, é um escravo das formas, é um prisioneiro da lei, como um funcionário da justiça é sensato e cauteloso em seus precedentes, preocupado em criar uma jurisprudência em alguma matéria em que não existe, alguma matéria em direito penal. O jurado julga de forma livre como um homem vê o espírito que dá a vida, dando a sua parte ao sentimento. O júri está preocupado com o homem, e o juiz com o caso555. O princípio da colegialidade nos tribunais obedecem a este mesmo princípio, vez que determina que os recursos sejam apreciados por um órgão coletivo. Os magistrados que irão rever a decisão recorrida têm mais experiência, bem como também especialização no duplo grau de jurisdição, ou seja, são magistrados mais afeitos a julgar tão-somente o direito, sem percorrer o íngreme caminho da instrução e da prova. Não há transgressão do princípio da colegialidade, na intervenção do relator, monocraticamente no manejo do recurso. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal de Justiça Português, apenas julgam extraordinariamente, sem fazer o reexame da prova. 6. Critica ao argumento da Colegialidade: “as armadilhas coletivas” O argumento a favor da colegialidade, como fator de segurança nas decisões do Tribunal do Júri, contudo, pode recair no que doutrinariamente se chama de “as armadilhas coletivas”. Na catástrofe do Challenger os projetistas das juntas defeituosas (que não 554 - PIMENTA, José da Costa. Código de Processo Penal Anotado. 2. Ed. Lisboa: Rei dos Livros, 1991, p. 67. 555 - ÁSUA, Gimenez. Discurso ante las cortes constituintes. DSCDRE, n. 362, sessão de 29 de Junho de 1933, p. 137. 264 funcionaram devido à vaga de frio na Florida) recorreram a uma subsunção cognitiva: a ausência de avaliação do risco favoreceu a confiança das instâncias de decisão e, contrariamente, o otimismo destes reforçou a dificuldade para reunir as provas do perigo. Vários fatores explicam esta armadilha em que se envolveram as instâncias de decisão. A deformação do real caracteriza os decisores de tal modo convencidos que não desempenham o papel que lhes é confiado na instituição. Há erros por acumulação. Assim, na “cadeia” penal que conduz ao julgamento, a tendência dominante é depositar toda a confiança nos autores das decisões que vão sendo proferidas. É difícil pôr em causa a qualidade do trabalho da polícia ou a cientificidade dos peritos. É delicado pôr em causa a palavra das vítimas. O risco de erro que resulta deste funcionamento não pode ser medido, tanto mais que a prova em virtude de erro judicial é particularmente difícil de fazer. Os atores mantêm, por conseguinte, a sua confiança no sistema e preocupam-se pouco com o risco de erro. O efeito de espectador aumenta ainda mais a desresponsabilização. Gera o erro por intoxicação mútua. No caso “Outreau”, sessenta magistrados intervieram no processo. Mesmo que o procurador e o juiz de instrução tivessem tido um papel essencial, estavam confortados pelas decisões do Ministério Público junto do Tribunal Superior e da Câmara de Instrução que decidiram no mesmo sentido. Para além desta situação extrema, é necessário interrogar os efeitos de um longo processo balizado em numerosas decisões que foram sendo proferidas. O sistema francês é frequentemente acusado de as decisões tomadas durante a instrução determinarem a decisão do julgamento. Por último, o silêncio organizacional é um fator de persistência do erro. O vírus do erro propaga-se por portadores sãos e silenciosos. Ainda sustentados na análise da catástrofe de Challenger, um estudo descreve de maneira meticulosa a reunião celebrada a véspera do lançamento. Sublinha o surpreendente silêncio dos participantes que teriam podido intervir pondo à consideração certas informações preocupantes556. Havia também um certo idealismo e por assim dizer uma ingenuidade e uma crença sincera, que ainda permeava a aura mística do Tribunal do Júri: a crença em que vários homens e mulheres reunidos deveriam necessariamente julgar seu semelhante de forma imparcial. 556 - ALT,Eric. A qualidade da decisão judicial, in: Julgar. Nº 05 maio/agosto,2008, p.15. 265 7. A responsabilidade moral dos jurados A responsabilidade dos jurados surge como um corolário dos princípios expostos. Não é, propriamente, uma responsabilidade civil que aqui interessa; nem é uma responsabilidade de natureza criminal. É, sobretudo uma responsabilidade moral, arrancada à própria concepção da vida e do mundo e solidária com a responsabilidade intelectual; é uma responsabilidade que leva o jurado a solidarizar-se, por dentro, com o destino e com o problema concreto, quer dos acusados, quer dos ofendidos557. Demonstração deste tipo de raciocínio nos traz António Manuel de Morais em nada menos que 17 páginas do seu formidável “O Júri no tribunal, da sua origem até nossos dias”558. Destaca o ilustre autor, que desde que a Revolução Francesa exportou a figura do Júri para os diversos países que o vieram a adotar, tem sido uma constante a polêmica sobre o interesse da sua existência. Normalmente as opiniões dos juristas têm a ver com a sua formação política, já que não nos podemos esquecer que foram principalmente as doutrinas liberais que divulgaram o Tribunal do Júri, doutrinas essas que se opunham no seu tempo aos regimes absolutistas que não admitiam a interferência das populações nos sistemas judiciais vigentes. Não se pode estranhar por isso que nos dias de hoje as duas correntes, embora com denominações diferentes, mais à esquerda ou mais à direita, continuem a sustentar posições antagônicas nesta matéria. Nenhuma instituição judiciária terá sido tão aclamada e enaltecida, 557 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 11. 558 - Fazendo uma apertada síntese do sim ao júri,não ao júri citados pelo autor, temos a opinião contrária de Von Hering, Impallomeni,Fairen Guilén, André Toulemon, Carrara, que declarava que a justiça criminal havia se tornado uma loteria, quando o balanço dos braços da justiça,tinha sido substituído por uma urna, Ferri, para quem a condenação do júri está no princípio da escola antropológica,que é fundamental em qualquer reforma judiciária, António Rodriguez Martins,pra quem o júri era o enterro da própria justiça, Garofalo, para quem a existência do júri era uma fonte de injustiça. São ainda desfavoráveis à insituição do Tribunal do júri por diversas razões, São ainda desfavoráveis à instituição do Tribunal do júri por diversas razões, Graven,Gauthier, Cavin e Binding, pra quem o júri foi introduzido, por se perder a confiança nos juízes. Júlio de Matos compartilha compartilha a opinião de Binding, ao declarar que não são quatro merceeiros, dois professores de dança, cinco industriais,que a sorte pode agregar como julgadores. A favor da instituição são citados os juristas, Alcalá-Zamora Castilho, Garraud que previu o sistema do escabinado, Jean Graves aceita o Tribunal do Júri,nos moldes do escabinado.Orlando e Antonio Macieira,antigo deputado que a considerava uma instituição de virtudes. 266 tão rapidamente consagrada pelas legislações como a do júri. Nenhuma também terá sido mais censurada, mais repetida e mais combatida559. É de se observar que o estudo da instituição não deve ser unidirecional, a saber, no embate entre a justiça dos leigos e dos juízes profissionais, ao contrario, deve-se partir do uso de proposições essenciais da instituição de matriz extrajurídico, que supõe o papel do princípio da soberania e cidadania, em um dos poderes do Estado, havendo autores que discorreram que o tema do jurado estaria falido e condenado, se não houvesse convertido em debate politico560. A doutrina espanhola reúne um autêntico “decálogo”, em direção oposta à atividade e participação dos jurados na administração da Justiça, e, desta forma, o julgamento dos jurados não correspondem a uma ideário de democracia, uma vez que os jurados não têm qualquer espécie de conhecimento para julgar um processo, destacando ainda o caráter sugestionável dos jurados561. 559 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000., p. 281. 560 - DAVO ESCRIVA, Francisco. El Tribunal del jurado. Madrid: Colex,1988, p. 195 561 - “Juicio por jurados”. El juicio por jurados se funda en el criterio, discutible, de que cada ciudadano y, en general, cada persona, debe ser juzgado por sus iguales; esto parece ilógico; juzgar parece que exige superioridad en quien juzga respecto de de los que se someten a su juicio”. “Ni son iguales, generalmente, los jurados a quien es sometido el juicio de ellos; los separan diferencias de educación, profesión, costumbres, etcétera”, “El juicio de cada uno. por sus iguales, más conduciría a un enjui-ciamiento por castas o clases que a una institución judicial democrática ; los nobles habrían de tener sus jurados, la plebe el suyo , y lo mismo los militares , los marinos , los patronos, los obreros”. “Pera, una vez logrados esos jueces entre los iguales a los litigantes, surgirá la pugna entre las clases, y la necesidad de un superior dirimente para esa pugna, y ese superior dirimente ya no podría ser un tribunal de jurados porque faltarían para dirimir la contienda los iguales a las partes en juicio “. “El jurado tiene precedentes ingleses y germánicos traídos al Derecho municipal castellano en la Alta Edad Media; no es, pues, una creación del Derecho nuevo nacido con la revolución más una reviviscencia de modos primitivos de enjuiciar adoptados por sociedades incultas”. “El jurado es un sistema de juzgadores expresamente opuesto al de los jueces letrados y de carrera; parece absurdo que quepa desechar un sistema de juzgadores expresamente porque son letrados y, además, expertos, mediante actuación repetida, en la función de juzgar; en todas las demás profesiones la mayor experiencia es tenida como mayor garantía de acierto”. “Hay razón, sin embargo, para prevenirse contra el juicio, en materia criminal, dei juzgador que tiene esa profesión, pues la repetición de casos le hace perder la sensibilidad que conviene para diferenciarlos, y se forma en él una rutina de endurecimiento que lo hace propender a aplicar las reglas generales sin afirmar en cada proceso lo que corresponde a las circunstancias especiales que en él concurren; acaso sea el argumento más fuerte en favor deljuicio por jurados; y este argumento es negativo, no demuestra que el juicio por jurados sea bueno sino que el juicio por profesionales es maio, o propende a serlo”, “Pero el juicio por jurados no garantiza depuración; para 267 Há, sem dúvida, outras consequências da utilização do júri que se poderiam qualificar, a justo título, de vantajosas para a justiça. Entretanto, é preciso insistir no fato de que o processo civil inglês, durante sua longa evolução, conservou como principal ponto de partida o papel dominante das partes. Segundo a opinião tradicional, considera-se até bom, e não apenas inevitável, que o júri - ou, se for o caso, o juiz singular - entre na sala de audiência sem prévio conhecimento do litígio que lhe será submetido. O fato é que o Tribunal do Júri tem graves distorções no que tange à sua imparcialidade. Ressaltem-se ainda os fatores externos que podem minar, a imparcialidade dos jurados, como a influência midiática, o excessivo protagonismo da acusação (por meio da plea bargaining) ou da defesa (a plenitude da defesa), por outros meios diversos, como personalidade, raça, meio cultural e ideologia dos jurados etc. Os mecanismos postos à disposição das partes são insuscetíveis de dirimir a ampla gama de vícios oriundos dos julgamentos leigos do Tribunal do Júri. Observa-se que os Júris, de um modo geral, se inclinam mais para a absolvição que para a condenação, razão porque sofrem um desgaste natural por parte da doutrina e da eso precisaría que juzgasen selectos, y el sistema democrático exige lo contrario: ni ecuanimidad: un mismo sentimiento mueve a los jurados y a los delincuentes, el delito más frecuente y más tentador es el que atenta contra la propiedad ajena para convertirla en ventaja propia, y el delito que más duramente castigan los jurados es el que ve contra la propiedad, porque en él ven un peligro contra su estado posesorío. El delito más pasional es el de sangre, y en éllos jurados sienten pasión de compasión, hasta de simpatía, por el delincuente pasional, y lo tratan benévolamente las más veces. El delito de adulterio y el que proviene de la vindicación violenta del adulterio por el ofendido contienen en sí bárbaras preocupaciones sociales, y el jurado, porción de la sociedad, falla esos delitos según esas preocupaciones “. “No es fácil corregir los defectos dei juicio por jurados, su detector principal es la incultura -incultura en todos muchas veces, en Derecho casi siempre- y ese defecto sería corregible mediante el sistema flamenco del scabinato o jurado de letrados; pero eso sustituiría el tribunal democrático por un tribunal de clase social”. “El pueblo no ama el jurado, aunque le ha sido dado como conquista democrática: rehúye formar parte de las listas y figurar en el tribunal; así los jurados que tienen alguna relación con los abogados de cada causa, procuran obtener de ellos que los recusen, para verse libres de la molestia de aquel juicio” “Por otra parte los delincuentes más temibles, que no lo son sólo los terroristas ni aquellos que se apoyam en una fracción política revolucionaria, han intimidado a los jurados de las grandes poblaciones, y de ahí han provenido veredictos de inculpabilidad producidos en algún caso por el sob orno y en muchos por el miedo”, “Aun así, es difícil sustituir el jurado por otro tribunal juzgador que lo mejore; quienes piden el retorno al tribunal de Derecho, ni siquiera niegan que la actuación de éste padece el efecto de la rutina judiciaria; quienes piden contra los terroristas el tribunal militar, no piden justicia, sino un terrorismo de la pena que venza al terrorismo del delito; además, el tribunal militar es un jurado, pues es imperito en Derecho” . cf: PUYOL, Juan Moneva. Introducción al derecho hispánico. Madrid: Labor, 1942 p. 368. 268 jurisprudência. No entanto, é forçoso reconhecer que tal ambiente é favorável à defesa do acusado. Assim, alguns júris têm sido capazes de entregar o que pode ser descrito como decisões perversas ou injustificáveis. Em R v., Pontins (1985), o juiz deixou claro, além de qualquer dúvida, que o réu era culpado, sob a Lei de Segredos Oficiais, act 1911, do delito com o qual ele foi acusado. O júri, contudo, retornou com um veredicto de inocência. Similarmente, no caso de Pat Pottle e Randall Michael, que admitiu abertamente a sua parte na fuga do espião George Blake, o Júri chegou a um veredicto de absolvição, em desafio aberto à lei. Em R v. Kronlid (1996), três manifestantes foram acusados de cometer danos criminais, e outro foi acusado de conspiração para causar danos criminais, em relação a um ataque em aviões Hawk Jet, que estavam prestes a ser enviado para Indonésia. O dano aos aviões supostamente atingiram 1,5 milhões de libras, e os réus não negaram a sua responsabilidade por isso. Eles fizeram a sua defesa no fato de que os aviões estavam a ser entregues ao Estado Indonésio para serem usados em sua campanha supostamente genocida contra o povo de Timor Leste. Pelos fundamentos expostos, eles alegaram que estavam de fato agindo para evitar que o crime de genocídio. Como os manifestantes não negaram o que tinha feito, aparentemente562 era uma mera questão de fato, em direção à culpa de acordo com a prova dos autos. O júri, entretanto, decidiu que os acusados eram inocentes das acusações contra eles. 8. A resistência jurisdicional ao Tribunal do Júri 8.1. A correcionalização na Europa Mas a resistência ao Tribunal do Júri não foi só doutrinária, senão também jurisprudencial. Na Europa, surgiu um mecanismo capaz, de subtrair a competência do Tribunal do Júri, mesmo quando este tinha competência para o julgamento, fenômeno conhecido como correcionalização. Na França, a doutrina tem assinalado o surgimento de uma nova correcionalização, fenômeno que apareceu no século XIX, momento em que se operou a transição do jurado puro para o escabinado, caracterizado pelo rígido controle dos juízes profissionais sobre os juízes leigos. Este fenômeno, denominado pela doutrina como “correcionalização da justiça”, 562 - SLAPPER, Gary; KELLY, David. The english legal system. London: Cavendish Publishing Limited, 2008, p. 464. 269 permite que sejam subtraídos da competência do escabinado certas infrações penais. A reaparição do correcionalismo na França não deixa de ser uma clara manifestação da constante necessidade de adaptação do sistema de processo penal mediante a participação popular563. Na Franca, a correcionalização estava generalizada entre as cours d' assises, que condenavam por delitos os réus acusados de crimes, tendo para o efeito contribuído a faculdade da ponderação pelo júri das circunstâncias atenuantes em 1832 (Bonneville de Marsangy, 1855: 375 a 380, Ferdinand Gineste, 1896: 118 e 119, e Henri Verdun, 1922: 13 a 25). Em face desta prática generalizada, a doutrina defendeu mesmo a sua extensão à câmara de acusação de modo a simplificar o processo, aliviar a sobrecarga dos Tribunais de Júri e reduzir o tempo de detenção preventiva (Bonneville de Marsangy, 1855: 381 a 384). Com o decurso dos anos, também entre os magistrados de instrução de primeira e de segunda instância se adotou aquela prática, remetendo para julgamento em tribunal correcional, fatos constitutivos de crimes em função da previsível reação dos jurados, umas vezes demasiado favorável aos acusados, como nos crimes passionais, e outras demasiado severas, como nos crimes contra a propriedade564. Em Portugal, em face do insucesso das tentativas de alteração do direito vigente, por volta de 1852, os tribunais recorriam crescentemente à prática da correcionalização, isto é, ao processamento em polícia correcional de crimes em que a pena máxima aplicável era superior à admissível nesta forma de processo, mas a pena concreta previsivelmente aplicada pelo juiz era inferior565. O recurso a esta prática não resultava apenas da maior probabilidade de 563 - GARGALLO, Andrea Planchadell. El escabinato frances, en Comentarios a la Ley del jurado. In: AROCA, Juan Monteiro; COLOMER, Juan Luis Gómez. Pamplona: Arazandi, 999, p.110-101. 564 - ALBUQUERQUE, Paulo Pinto. A reforma da justiça criminal em Portugal e na Europa. Lisboa: Almedina, 2003, p. 295. 565 - Esta prática era corrente em Lisboa e no Porto e em muitas comarcas do país, sobretudo a respeito dos crimes de furto de pouco valor e de ferimentos leves (Dias da Silva, 1903: 768, e Marnoco e Souza, 1907: lnnocencio Duarte (1871: 210 e 211) citava jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça condenando a correcionalização desde os anos cinquenta. Este movimento estava diretamente relacionado com o crescente descrédito do júri: "O descrédito do nosso Jury está na convicção de todos. São diariamente apregoadas as suas repetidas decisões injustas, iníquas muitas vezes, irrisorias até, sobretudo nas províncias" (M. A., 1877: 29). Como reconheceu mais tarde o próprio Navarro de Paiva, “confiando aos juízes de direito o julgamento dos crimes a que correspondem penas correccionaes, converte-se em lei o arbítrio há longo tempo estabelecido em quase todos os tribunais do paz” (Navarro de Paiva, 1882 a: 47). (Cf: ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. A reforma da justiça criminal em Portugal e na Europa. Lisboa: Almedina, 2003, p. 293.) 270 impunidade que o processo com intervenção do júri proporcionava aos delinquentes, que era um fato constatado pela doutrina, mas, sobretudo de outro fato, o da absoluta impossibilidade, por escassez de meios e de tempo, de julgar todos os crimes a que competia a forma de processo ordinário. A tal ponto esta prática se generalizou, que o governo se viu na obrigação de intervir, publicando a portaria de 10.9.1883, que declarou ilegal a prática de correcionalização, ainda quando os réus nela consentissem566. Na Bélgica, que tem um sistema similar ao da França, a competência do júri pode ser e é largamente influenciada pela política de imputação do promotor e de uma lei especial de 04 de outubro de 1867 em face de circunstâncias atenuantes. Os crimes, puníveis com pena de prisão de mais de 5 anos, são trazidos perante um júri. Como consequência da técnica de correcionalização, a maioria dos crimes que teoricamente pode ser punido com mais de cinco anos são de fato "correccionalizada" e artificialmente transformada em um delito menos grave (wanbedrij) para que eles possam ser levados perante o “Tribunal correcional” (correctionele rechtbank ou tribunal correctionnel, para ser comparado com o tribunal de magistrados ou magistrates court), sem um júri. De acordo com essa lei de 1867, apenas crimes que são puníveis com pena de prisão por mais de 20 anos não pode ser “correccionalizada” e têm de ser julgado por um Tribunal do Júri, o tribunal Assize. Isto é, por exemplo, em caso de julgamentos de assassinato. Mesmos os crimes, teoricamente puníveis com uma pena de prisão de mais de 5 e até 20 anos, são “correccionalizados”. No entanto, deve ser observado que alguns crimes puníveis com 20 ou mais anos de prisão podem, em virtude de estipulações explícitas da lei de 4 de outubro de 1867, ainda ser “correccionalizados” e submetidos a um Corte de juízes profissionais, por exemplo, o estupro de uma criança com menos de 10 anos de idade e algumas formas de assalto ou roubo567. A principal razão para a existência da técnica de “correccionalização” é o fato de que o Código Penal belga, de 1867, contém muitas ofensas puníveis com pena de prisão por pelo menos cinco anos. Simplesmente não era possível trazer esses crimes ali diante de um júri, e, como resultado da técnica de correcionalização, tornou possível limitar o Tribunal do Júri para os crimes mais graves. É c1aro que a solução ideal seria rever o Código Penal todo e reajustar a escala das penas diferentes. No entanto, o parlamento até agora não tomou 566 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto. A reforma da justiça criminal em Portugal e na Europa. Lisboa: Almedina, 2003, p. 295. 567 - TRAEST, Philip. The Jury in Belgium, in: Le jury dans le procès penal au XXI siècle, conference Internationale. 26-29 mai, Syracuse Italie: Ères, 1999, p. 28. 271 nenhuma iniciativa nesse sentido. É também óbvio que a técnica de correcionalização é favorável para que o Ministério Público evite um julgamento perante o Tribunal Assize. Discorrendo acerca da correcionalização, a doutrina acha incompatível tal procedimento no contexto de excelência acadêmica e das garantias processuais, que não tem nada a ver com a atual perspectiva de melhoria e renovação de instituições, não sendo mais compatíveis com as políticas judiciárias necessárias e a política criminal de um mundo que se desenvolve rapidamente568. 9. The Bushel's Case (1670) ou o Caso do Alqueire The Bushel's Case (1670) ou o caso do Alqueire (1670) 124 ER 1006 (também escrito "Caso Bushell") é uma famosa decisão inglesa, sobre o papel dos jurados. Ele também confirmou que o Tribunal de Apelações Comuns poderia emitir um mandado de habeas corpus em casos criminais comuns. The Bushel's Case surgiu a partir de um caso anterior envolvendo dois Quakers acusados de reunião ilegal, William Penn e William Mead. Eles haviam sido presos em agosto 1670 por violar a Conventicle Act, que proibia reuniões religiosas de mais de cinco pessoas de fora dos auspícios da Igreja da Inglaterra. O júri considerou os dois "culpados de falar em público", mas recusou-se a adicionar a acusação, "para uma reunião ilegal". O juiz enfurecido declarou ao júri que "não deve ser descartada, nenhuma acusação até que tenhamos um veredicto de que o tribunal vai aceitar". 569 O júri modificou o veredicto de "culpado de falar a uma assembleia em “Gracechurch Street", após o juiz tê-los trancados durante a noite, sem comida, água ou calor. Penn protestou e o juiz ordenou que ele fosse amarrado e amordaçado (não se sabe se essa ordem foi cumprida). Finalmente, depois de um jejum de dois dias, o júri retornou com um veredicto de inocência. O juiz multou o júri, por causa deste veredicto, que foi contrário às suas próprias conclusões de fato. Penn protestou que isso violava as leis da Magna Carta e foi retirado à força do tribunal. O juiz considerou que o júri desacatou o tribunal e os removeu para a prisão. Edward Bushel, membro do júri, no entanto, recusou-se a pagar a multa. 568 - GRAVES, Jean Raports. Le júry face au droit pénal moderne.Bruxelles: Ètablissements Èmile Bruylant, 1967, p. 115. 569 - Disponível em:” http://www.constitution.org/trials/bushell/bushell.htm”.Acesso em 22 de dezembro de 2013. 272 Bushel pediu ao Tribunal de Apelações Comuns, um mandado de habeas corpus. Sir John Vaughan, Chief Justice of the Court of Common Pleas, inicialmente considerou que o writ não deveria ser concedido, argumentando que o papel do Tribunal deveria ser apenas emitir mandados de habeas corpus em casos criminais comuns (por exemplo, se o peticionário fosse um advogado de casos criminais comuns). Os outros juízes, que faziam parte da Corte emitiram o mandado de habeas corpus, em favor do peticionário. No entanto, Vaughan decidiu que um júri não pode ser punido simplesmente por causa do veredicto fornecido, mas que os jurados individuais podem ser punidos se agissem de forma inadequada. 570 Existe uma placa comemorativa em Old Bailey sobre este caso. 570 MARTINEZ, Gema Varona. El Jurado y la arquitectura de la verdade jurídico-penal. Madri:Ceregui. 2000,p.25 273 Capitulo 7. Os problemas internos acerca da imparcialidade do Tribunal do Júri 1. A necessidade da imparcialidade dos jurados enquanto juízes de fato O presente capítulo será analisado sob o prisma essencialmente do Direito português, norte-americano,e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, tratando dos problemas que envolvem o jurado, o homem médio, chamado a julgar um processo, trazendo com ele, suas crenças, preconceitos, raça e a imprevisibilidade de suas decisões. Até a modernidade, o princípio vigente era um princípio de responsabilidade dos magistrados, fundado na ideia de que os juízes deveriam estar sujeitos às mesmas regras de responsabilidade de todos os cidadãos. Essa responsabilidade "desapareceu na Idade Moderna em conexão com dois fenômenos: o nascimento da monarquia absoluta e o desenvolvimento do jus naturalismo racionalista. Ela foi substituída pelo princípio da irresponsabilidade judicial. Com efeito, esse princípio é produto do jusnaturalismo moderno, que provocou uma transformação na percepção da organização do poder e do papel do juiz. O fundamento dessa mudança está em uma noção de separação de poderes em que o soberano é o único legislador e a função do juiz corresponde ao mero ato de aplicar a lei". O juiz passa, então, a dever máxima obediência à lei e, em última instância, ao soberano. Nessa perspectiva, o juiz não é mais responsável perante as partes, mas, tão-somente, perante o soberano. Ao mesmo tempo, as hipóteses de responsabilidade civil do juiz, em que ele deveria reparar a parte pelos danos causados, são substituídas por uma responsabilidade disciplinar, derivada do dever de obediência ao soberano. 571 O jusnaturalismo moderno consagra também um princípio de independência dos juízes, que tem por corolário a irresponsabilidade. Assim, a irresponsabilidade é instrumento da realização da independência, que, contudo, é contraposta por hipóteses de responsabilidade disciplinar que refletem uma progressiva burocratização da justiça, bem como a colocação do juiz como funcionário dessa ordem judiciária burocratizada. 571 - SILVA, Júlia Alexim Nunes. Responsabilidade e irresponsabilidade dos juízes no Brasil e em Portugal, in: O direito constitucional e a independência dos Tribunais brasileiros e portugueses.Aspectos relevantes (org.Jorge Miranda).Curitiba: Juruá Editora,2011,p.329. 274 A questão da imparcialidade do Tribunal do Júri, em confronto com o art.º. 6º da Convenção, perpassa pelos modelos porventura adotados: o Tribunal do Júri do tipo puro, o escabinado, ou o Tribunal misto. Cada um destes modelos terá, em contraposição com o modelo do juiz profissional, um modelo de trabalho em relação à imparcialidade. Cada um dos modelos (à exceção, talvez, do último) tem deficiências em relação ao juiz profissional, uma vez que os dois primeiros (Tribunal do Júri puro e o escabinado) têm problemas em relação à imparcialidade e independência, na entrega da prestação jurisdicional, mas bem menos, em comparação com o Tribunal do Júri clássico ou “puro”. Na verdade, a jurisprudência do TEDH, tem-se firmado no fato que os juízes são imparciais tanto pessoal quanto organizacionalmente. Somente se isso puder ser dito de um ponto de vista exterior não haverá dúvidas quanto à independência e imparcialidade da Corte, como indicam as sentenças Campbell e Fell de 1984 de 28/VI/1984,série A, num. 8 e sentença Sramek de 22/XI/1984,série A num 84, p.18, par 38572. 2. Principais problemas em relação à imparcialidade dos jurados 2.1. O julgamento do Tribunal do Júri e as percepções de arbitrariedade motivadas por raças e crenças Doutrinariamente podemos, situar o reconhecimento do princípio da irresponsabilidade dos jurados no ano de 1670, no qual, em virtude de uma decisão de juiz Vaughan, adotada em um procedimento de habeas corpus, são postos em liberdade os jurados, encarcerados por ordem direta do Rei James II, uma vez que haviam declarado inocente ao acusado William Penn, do delito de reunião ilegal.573 Como lucidamente observa a doutrina espanhola, o Tribunal do Júri, aparece configurado como um sistema de processo coletivo e popular que ao projetar-se exclusiva e soberanamente sobre os fatos, pode negar livremente que o acusado seja ou não responsável pelos mesmos, constituindo um baluarte contra leis manifestamente 572 - RIVAS, Juan José González. Consideraciones sobre el artículo 6º,párrafo primeiro, apartado primeiro,del Convenio para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales: referencia a reciente jurisprudência sobre el indicado precepto, Dez años de Desarrollo Constitucional: Homenagem ao prof. Dom Luiz Sánchez Agesta, in: Revista de la Facultad de Derecho de la Universidade Complutense. Benzal: Madrid, 1989, p. 509. 573 - MENADAS,Salvador Vilata.Sobre el jurado:Uma analise desde uma perspectiva distinta.El derecho a juzgar y el derecho a se juzgado.Ediorial Prática de Derecho, SL,2001,p.184. 275 injustas, um freio contra acusações desmesuradas e um impedimento a aplicabilidade de normas jurídicas, que não obstante a sua promulgação pelo poder Legislativo, carecem do necessário respaldo social, fazendo frente ao servilismo do juiz e da corrupção do Ministério Público, o jurado, insondável em suas motivações protegerá o perseguido arbitrariamente.574 (A propósito conferir o tópico anterior, referente ao “The Bushel's Case”) Em um caso emblemático nos Estados Unidos, Warren McCleskey foi condenado por duas acusações de assalto à mão armada e uma acusação de assassinato no Superior Tribunal de Fulton County, Georgia. McCleskey era afro-americano, a vítima era branca, um policial de Atlanta chamado Frank Schlatt. Na audiência de julgamento, o júri considerou que duas circunstâncias agravantes existiam além de uma dúvida razoável: o assassinato foi cometido durante o curso de um assalto à mão armada, e o assassinato foi cometido, tendo como vitima um policial envolvido no desempenho das suas funções. Uma pequena evidência de uma circunstância agravante foi suficiente para impor a pena de morte. O acusado não forneceu quaisquer circunstâncias atenuantes, e o júri recomendou a pena de morte. O tribunal seguiu a recomendação do júri e o acusado foi condenado à morte. Em sede de recurso aos Tribunais Federais, através de uma petição de habeas corpus, o acusado alegou que o processo de condenação capital foi administrado de uma forma de discriminação racial, em violação da Décima Quarta Emenda. O impetrante baseou suas afirmações em um estudo, conduzido pelos professores David C. Baldus, Charles Pulaski, e Woodworth George, que indicavam um risco que a consideração racial pudesse determinar a sentença capital575. A decisão McCleskey disse que, mesmo que os dados estatísticos fossem aceitos pelo seu valor nominal, a defesa não conseguiu demonstrar evidência de viés, consciente e deliberada por funcionários associados com o caso, e rejeitou evidências de disparidades nas sentenças em geral, como o estudo realizado por Baldus, como “uma parte inevitável do nosso sistema de justiça criminal”. O fato de o júri deliberar na Inglaterra em segredo e não motivar suas decisões oferece a possibilidade deste mesmo júri levar em conta considerações de equidade, deliberadamente ou mesmo involuntariamente. É impossível dizer se os julgamentos do Tribunal do Júri são 574 - BRINGAS,E, Fungairiño.Algumas notas sobre el jurado, in: actualidad penal, número 3,16 a 22 de Janeiro de 1995. 575 - BALDUS, David C.; PULASKI, Charles A.; WOODWORTH, George. Equal Justice and the Death Penalty: A Legal and Empirical Analysis. Boston: Northeastern University Press, 1990, p. 256. 276 propositais ou não, porque os jurados não dão qualquer motivação, mas na nossa opinião, é muitas vezes não intencional. Os jurados não são advogados e, portanto, não pensam como advogados. Eles não raciocinam o tempo todo. Por exemplo, exceto no assassinato, a provocação é um fator atenuante, mas não uma desculpa. Na verdade, se alguém está exposto a insultos racistas, não pode, de maneira nenhuma, ser justificada a violência potencial de sua reação. No entanto, o júri pode considerar em impor uma sentença mitigada, com aplicação de atenuantes576. Mas isso levanta a questão de saber se a aplicação da equidade pelo júri ainda está dentro dos limites aceitáveis. Devemos responder “não”. Ocasionalmente, um júri absolve acusados mesmo com a própria admissão de culpado, simplesmente porque os jurados são simpáticos a compreender os seus motivos. Nestes casos, uma absolvição, mais que a aplicação da equidade, torna-se uma espécie de abuso ou arbitrariedade. Os júris equitativos são certamente salutares, mas apenas dentro de certos limites. A percepção de arbitrariedade pode ser sentida na imprevisibilidade do comportamento do órgão ou tribunal encarregado de sentenciar o caso. A sentença deve, portanto, ser previsível, mesmo quando se tenha que lidar com mais de um juiz, como é o caso do Tribunal do Júri e do escabinado. Uma sentença surpreendente quer do ponto de vista da condenação, quer do ponto de vista da absolvição, não deixa de ter repercussões sociais, deixando a comunidade insegura acerca da ideia de justiça. Não há que atentar que os jurados trazem toda sorte de preconceitos do homem mediano. A discriminação é encontrada amiúde em júris americanos e de todo o mundo (discriminação não só racial, mas também pela origem, classe social, de estrangeiros imigrantes etc.), onde, por um dispositivo ou outro, os Afro-americanos, raramente encontram um lugar para compor um júri que realmente ouve um caso com aspectos raciais. Este fato é confirmado, quando um Afro-americano acusado de estupro, regra geral, é condenado à morte, enquanto isso raramente é o destino de um homem branco condenado por este mesmo fato. Os assassinos de Charles Mack Parker, embora conhecidos, nunca foram indiciados. Ninguém jamais foi processado pelo Estado do Mississípi com o assassinato de três militantes dos direitos civis em 1964. Os julgamentos de pessoas acusadas de assassinato de Lemuel A. Penn e de Jonathan Daniels resultaram em absolvições577. 576 - HILAIRE, Jean. Justice et èquité, in: Justices Revue Generále de droite processuel. nº 3, Janvier; mars 1998, p. 37. 577 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 43. 277 Nos Estados Unidos, também há uma percepção crescente de que alguns jurados afroamericanos, votam para absolver outros afro-americanos, defendendo-os por motivos puramente raciais, por vezes, explicado como o desejo do jurado não enviar outro homem Afro-americano para a cadeia. Há, no entanto, uma discordância considerável sobre se é apropriado para um jurado Afro-americano, fazer um juízo de valor que, por razões pragmáticas e políticas, a comunidade Afro-americano, está em melhor situação, para efetuálo quando decide que alguns infratores não violentos devem permanecer na comunidade, em vez de ir para a prisão. A decisão em relação á punição de afro-americanos serem punido ou não por condutas não violentas, é bem mais realizado por afro-americanos, baseados no seu conhecimento dos custos e benefícios para sua comunidade, do que pelo processo de justiça criminal tradicional578. A ambivalência que as pessoas se sentem a respeito de servir em júris, corresponde há um fluxo de opiniões contraditórias sobre como efetivamente demonstra o sistema que decide mais de 300.000 casos a cada ano. Eles chegam a atingir decisões difíceis e impopulares, na visão clara dos olhos do público, como foi o caso John Hinckley por exemplo. No momento em que sua decisão foi anunciada, a corte cheia de espectadores, jornalistas e participantes do estudo, ficaram em silêncio antes de explodirem com ruído. Eles ficaram atordoados. Da mesma forma, o público reagiu imediatamente, com decisão insatisfatória em relação ao caso Hinckley. Assim, quando repórteres perguntaram a um jurado por que eles não tinham pronunciado Hinckley "culpado, mas insano”, um jurado declarou que eles não eram legisladores, e que não foram orientados para julgar com essa opção, e que, o veredito de "não culpado em razão da insanidade "era a única alternativa disponível, para o veredicto em questão, tendo em vista o depoimento dos especialista, a batalha judicial de psiquiatras, que revelou uma falta de consenso sobre como Hinckley deveria se diagnosticado”.579 3. A influenciabilidade e sugestionabilidade dos jurados Um dos argumentos mais citados por aqueles que combatem a instituição, é que o Tribunal do Júri não é permanente. A sua natureza e sua especial composição indicam que os 578 - GOLDMAN, Sheldon; SARAT, Austin. American Court Systems, Readings in Judicial Process and Behavior. San Francisco: W.H. Freeman and Company, 2003, p. 400. 579 - KASSIN, Saul M; Wrightsman.The american jury on trial.Psychological perspectives.New York: Hemisphere Publishing Corporation, 1998, p.37. 278 juízes que o formam podem ser removidos. Julgam um determinado número de processos, e concluída a sua missão, perdem temporariamente a sua autoridade temporal, e voltam ao seio da sociedade de onde saíram, para não ocupar-se mais com a administração da justiça, salvo o caso de nova convocação. Aparecem chamados pela sorte e desaparecem para sempre. Cada jurado exerce a sua função, como um bebê recém-nascido. Vão cumprir uma tarefa da qual nada sabem. Sua mente é como uma esponja, pronta para receber todas as impressões, e certamente fazer má utilização dela580. A respeito dos jurados, pode-se dizer que eles são fracos, impressionáveis, sugestionáveis, desamparados em sua íntima convicção, não têm qualquer certeza, sendo que na maioria das vezes agem com a mais profunda indecisão. Ou são puramente sentimentais, decidindo muitas vezes fora da razão, portanto, muitas vezes irracional. Muitas vezes estão perdidos ante o aparelho formal da justiça, que exige a sua atenção para provas, argumentos e pontos de vista contraditórios; lançados pelos esforços opostos do Ministério Fiscal (MF) e da defesa, sendo o primeiro, naturalmente suspeito, uma vez que considerado “demandante profissional” e um caçador de convicções, razão pelo qual a sua pretensão deve ser mantida longe, sempre inclinada ao contrário, a dar ouvidos à eloquência patética, ou os apelos à humanidade do segundo, que também se esforça para aumentar a sua sensibilização para adormecer o seu domínio ao razão. O domínio do famoso advogado de júri, bom orador, que revela uma influência formidável de muitos autores, mas ignorando a prova dos autos, que não tem necessariamente o saber jurídico, mas informado e influenciado, através da imprensa, cuja indiscrição e força são bem conhecidos hoje. Os jurados estão atentos aos comentários e fofocas de parentes, amigos de rua, ou do café, que de alguma forma, influencia a sua "opinião" unânime e sagrada; impressionado com os movimentos e expressões do público, em juízo ou fora dele, perturbado com a atitude do acusado, a sua humildade ou arrogância, dispositivos de imperícia, lágrimas falsas ou a forma do nariz do acusado e das testemunhas, sujeito a influência do notório espírito gregário e da psicologia coletiva do erro, às vezes até mesmo intimidado ou ameaçado diretamente, em sua convicção ocasional” é muitas vezes, vítima de um "falso testemunho piedoso”581. 580 - LARRAZ, Gustavo Lopez-Muñoz. Comentarios a la Ley orgânica 5/1995, del Tribunal del jurado. Madrid: Dykison, 1995, p. 125. 581 - GUILLÈN, Víctor Faíren. El Jurado: Cuestiones practicas, doctrinales y politicas de las leyess españolas. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 85. 279 4. A falta de conhecimento jurídico e imparcialidade do Tribunal do Júri Mesmos nos países que adotaram o Tribunal do Júri, há críticas veementes à instituição. Na Inglaterra, por exemplo, a lei inglesa comum repousa sobre uma negociação entre a lei e o povo. Um júri no julgamento atende não só sobre o acusado, mas também sobre a justiça e humanidade da lei. Poucas pessoas têm tido essa visão tradicional, Em um artigo instigante na Revista de Direito Penal (Penny Darbyshire Crim L.R. 740,1991) [1991] Crim LR 740), Penny Darbyshire fez exatamente isso. Na sua opinião, o sistema de júri tem atraído a maioria dos elogios e das análises, pelo menos teóricas, de qualquer componente do sistema de justiça criminal. Como ela apontou corretamente, os júris estão longe de ser um tanto aleatório ou uma seção de representantes da população em geral. Na verdade, Darbyshire vai tão longe nesta análise, que caracteriza o júri como “antidemocrático”, legislador irracional e fortuito, cujas erráticas decisões são contrárias ao Estado de direito. Ela admite que enquanto os juízes do século 20 não são representativos da comunidade como um todo, também não é o júri. Aponta que o júri ignora a lei em busca da justiça, é uma faca dois gumes que absolve os culpados e condena os inocentes, como o caso Clive Ponting, que contou com uma série de erros judiciários relacionados com suspeitos de terrorismo em que júris também estavam envolvidos582. Os jurados são responsáveis criminalmente e estão protegidos contra as injunções pelo segredo do voto, pela imotivação dos veredictos, pela compenetração da investidura magna, cuja transitoriedade impede as frouxidões e os vincos do hábito, no interesse do meio doméstico e profissional, de quantos têm direito de pedir-lhes satisfações, pelo parentesco, pela amizade, pela vizinhança, pela companhia, pelo conhecimento. 582 - SLAPPER, Gary; KELLY, David. The english legal system. London: Cavendish Publishing Limited, 2008 , p. 459. Não se quer, com isso, ignorar a dificuldade e a complexidade do direito, inegável até para os "iniciados", maior ainda para os "leigos". Bem disse Brian O'Doherty que a galeria de arte é um espaço exclusivo (elitista) de obras incompreensíveis para os não iniciados (a arte é "difícil"). Bem assim o ambiente forense, espaço exclusivo de uma elite técnica, que se debruça sobre filigranas muitas vezes ininteligíveis para leigos: a ars bani et aequi também é difícil. Por isso mesmo, também não se quer dizer que a interpretação do leigo é melhor que a do especialista, mas que o filtro da capacidade postulatória serve para censurar o acesso ao universo mágico e hermeticamente fechado do mundo jurídico, que só pode ser alcançado pelos "sacerdotes" (sacer = saber): os operadores jurídicos, auto-isolados no claustro forense. Assim como ocorreu com a dança, o culto de participação passou a ser um culto de relação (jurídica processual), ou seja, uma liturgia. (BECHAR, L.A. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris,2012, p.185). 280 Dois argumentos são muito comuns em relação à justiça do júri: a falta de conhecimento e especialização, o que redundaria em uma certa justiça intuitiva; e o atraso da instituição em relação aos tempos modernos (ou pós-modernos). Poderíamos acrescentar o romantismo e a piedade, que os assoma quando aceitam o argumento à piedade, vinda do advogado do acusado, ou o argumento proveniente do direito penal do inimigo, quando condenam o réu tão-somente pelos seus antecedentes. Quanto ao aprendizado cívico, é certo que alguns tem-se mostrado céticos, uma vez que se pode realmente ter dúvidas de que uma estada de algumas horas ou vários dias em uma Cour d’assisses, pode realmente dar uma educação jurídica ou moral ao cidadão comum. O máximo que pode acontecer é que o jurado pode permanecer, em qualquer caso, muito parcial, e confinado a certas partes do direito penal ou dos princípios gerais do processo penal583. O sistema de júri tem sido objeto de muitas críticas nos Estados Unidos. As seguintes razões são frequentemente citadas pelos críticos como preocupação sobre a eficácia do sistema: a falta dos jurados de entendimento em casos complexos; a falta de responsabilidade do júri sobre suas decisões; o racismo na seleção do júri por ocasião das recusas peremptórias; as grandes indenizações nos processos civis; os custos administrativos e a implementação do sistema do júri, quer em relação ao dinheiro, quer em relação ao tempo584. O júri veio a ser objeto de profundas críticas desferidas pelo otimismo cientista, especialmente no último quarto do século XIX com as teses da Escola Positiva do Crime, de Lombroso, Ferri e Garofalo, que apresentavam então o júri como paradigma dos equívocos do individualismo liberal e fruto de uma fase sentimental do direito probatório585. Dizia Ferry, acerca das medidas profiláticas na seara penal: a independência da justiça penal do critério do livre arbítrio, a defesa social como órgão da justiça penal, as três ordens de fatores do crime, as cinco categorias de delinquentes, os substitutivos penais como realização da defesa preventiva indireta, o critério dos motivos determinantes mesmo na interpretação das leis vigentes, as colônias agrícolas substituindo o isolamento celular diurno, o sequestro por tempo indeterminado em vez da dosimetria penal com termo fixo, a 583 - TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse. Zürich: Schulthess Verlag, 2005, p. 132. 584 - GOLDMAN, Sheldon; SARAT, Austin. American Court Systems, Readings in Judicial Process and Behavior. San Francisco: W.H. Freeman and Company, 2003, p. 402. 585 - MESQUITA, Paulo Dá. Processo Penal. Prova e sistema judiciário. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 189. 281 necessidade dos manicómios judiciários, a oposição ao Júri, a indenização do dano como sanção de direito público e, sobretudo, a necessidade metódica (tanto para o homem de ciência, como para o legislador, como para o juiz) de ver o crime no criminoso586. A doutrina brasileira alista diversos argumentos contrários à instituição, acusando-a, por exemplo: (a) de ter perdido o sentido político depois que o Judiciário adquiriu independência em face do executivo; (b) de ser muito acessível a injunções e cabalas; (c) de possibilitar a subserviência dos jurados; (d) de assemelhar-se a um tribunal de exceção como se fosse o outro polo da "justiça sem lei"; (e) de julgar delitos cruéis e revoltantes com muita complacência; (f) de não ter nenhum conhecimento especializado para bem exercer a função de julgar587. De acordo com a doutrina alemã, o envolvimento dos cidadãos no sistema de justiça criminal alemã, tem três funções: (l) promove a democratização da justiça; (2) alcançar uma melhoria na qualidade da administração da justiça, e (3) ocorre a mediação entre o sistema judicial, e o público a fim de elevar pessoas no sistema de justiça, melhorar os seus conhecimentos do sistema de justiça e contribuir para a internalização das normas do direito penal, através da prevenção geral 588. No entanto, o sistema de participação dos cidadãos na administração da justiça, é passível de ser criticado. A maioria dos 124 juízes profissionais em vários tribunais distritais que foram pesquisados pela doutrina alemã, expressaram mais desvantagens do que benefícios na participação dos juízes leigos. Os pontos que foram mencionados foram: (1) falta de conhecimentos jurídicos; (2) perda de tempo, (3) contribuição negativa; (4) falta de objetividade emocional: (5) despesas elevadas; (6) método de seleção inadequados para os juízes leigos589. Se o crime teve, direta ou indiretamente, uma conotação política, se foi cometido em desafronta subitânea e aparentemente excessiva a brios morais ofendidos e, sobremodo, se 586 - FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal. Trad. Luiz Lemos D' Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931, p. 46. 587 - MARQUES, José Frederico. A instituição do Júri. São Paulo: Bookseller, 1977, p. 6. 588 - BRUSTEN, M.; Westmeier, H.Wie wird man Shoffe? Gesellschaftliche Bedingugen,Auswahlverfahren und probleme bei der “Shoffenwahl?(How to get a lay judge ? Social conditions, selection procedure and problems in jury selection), in: Deutsche Vereinigung der shoffentag: Mher demokratic am richtertish (pp53-79).Bonn: Stiftung Mitarbeit,1992. 589 - KAPLAN, M.F.; MARTÍN, A.Effects of different status of group memebers on process outcome of deliberation.Group process and intergroup relations, Sage:October 1999 2: 347-364, p.47-64. 282 teve origem ou motivo essencial em uma paixão amorosa, logo se formam correntes de opinião, influenciadas e conduzidas pelo noticiário. Para exemplificar, escreve o ilustre e memorável jurista brasileiro, que nos dias atuais, ainda se discute a justiça ou injustiça da condenação de Sócrates590. 5. O tecnicismo do Direito Penal e do Processo Penal e o julgamento pelo Tribunal do Júri Afirma-se, ainda, que o júri é uma instituição arcaica, e superada. O fato é que muitos países já o abandonaram, como em toda a Europa, substituindo este sistema pelo escabinado. A Alemanha aboliu o júri com a reforma de 1924, enquanto a Itália, em 1935, e a França substituíram o júri pelo escabinado. A supressão do júri deu-se em Portugal em 1927; na Espanha, em 1936; na Áustria, com a ocupação alemã, em 1934; na França, em 1941591. Na França, houve uma tentativa de supressão do Tribunal do Júri, e sua substituição pela justiça togada, tendo, entretanto, sido mantido até os dias atuais (na forma de escabinado). Os tribunais comuns tiveram uma votação igual, com vinte seis a favor e vinte seis contra. Os restantes abstiveram-se na votação. Inclusive os grandes juristas da época, Portalis e Bigot de Prêameneu, pronunciaram-se a favor da abolição do Júri. Contudo, a lei do Júri manteve-se na França até os dias de hoje, sendo regulada pelo arts. 254 e seguintes do Código Penal592. O processo penal continua sendo um assunto bastante técnico e, portanto, muitas vezes longe do debate democrático. Para aqueles que entendem que o fundamento do júri é a democracia, o debate acerca da participação do povo na administração da justiça penal sempre foi apresentado como um produto direto da democracia. Historicamente o surgimento do 590 - SILVA, Evandro Lins. A defesa tem a palavra. Rio de Janeiro: Aide, 1980,p. 63. 591 - LIMA, Alcides Mendonça. Júri: instituição nociva e arcaica, in: Revista forense, vol; 313. n.19.6. São Paulo: RT, 1961, p. 21. Com a revolução industrial e a evolução tecnológica vindoura da sociedade, verifica-se a preexistência de riscos inerentes a estas atividades. Perante o próprio Direito Penal também concerne aceitar como hipótese de uma ciência voltada à análise do risco, por tratar-se de um método teológico-racional de profunda necessidade no que condiz a verificação de atribuição da pena. A sociedade se desenvolve de tal maneira que suraem riscos tecnológicos e de outras ordens, consistindo àquela em uma sociedade moderna de risco, in: PREUSSLER,Gustavo de Sousa. Aplicação da Teoria da Imputação Objetiva no Injusto Negligente.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,2006,p.25. 592 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 43. 283 Tribunal do Júri coincidiu com mudanças ou revoluções democráticas: as Franquias e Cartas Medievais, a independência americana e a Revolução Francesa593. Como muitos estudiosos e praticantes comentam ao longo dos séculos o Tribunal do Júri, que evoluiu na Inglaterra e que foi transplantado em outras partes do mundo, é uma instituição única. Ele reúne um pequeno grupo de leigos, que são recrutados em um lugar temporário, com a finalidade de decidir se uma pessoa acusada é culpada de um crime ou qual dos dois lados deve prevalecer em uma disputa civil. Os jurados são recrutados por lei, e são relutantes em servir no Tribunal do Júri. Eles são instrutores na disciplina formal da lei e da sua lógica. Os jurados ouvem as provas e evidência, muitas vezes de uma forma confusa e contestada, onde são fornecidas instruções, na maioria das vezes apenas na forma oral, sobre os conceitos legais, e dali enviados para um quarto sozinhos, onde decidem um veredicto sem a ajuda das pessoas profissionais que desenvolveram as provas e explicaram suas funções. Nas decisões criminais, o júri determina se uma pessoa acusada pode ser submetida à prisão, e, em alguns casos, a uma execução letal, ou se pode ser absolvida ou confinada a uma instituição mental. Em alguns casos, os júris civis decidem questões complexas envolvendo causalidade e responsabilidade e determinam somas compensatórias e exemplares, envolvendo somas bastante altas594. 593 - TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse. Zürich: Schulthess Verlag, 2005, p. 125 594 - VV.AA. World Jury Systems. (Edited by Neil Vidmar). Oxford, 2000, p. 3. Não há nada completamente como eles nossa sociedade: um grupo de estranhos que se reunem e são obrigados a sentar em silêncio e ouvir diferentes versões de uma história em que eles não têm qualquer interesse pessoal, e que são, então, trancados dentro de uma sala onde eles devem ficar enquanto tentam resolver o que eles acreditam ser a verdade de tudo o que ouviram. Eles são membros padrões do júri, que podem ser em número de seis a 12 pessoas. Eles podem ser obrigados a chegar a uma decisão unânime, ou não. Eles não têm nenhum propósito, nenhuma função contínua, além de seu veredicto. Uma vez que eles dão o seu veredicto, eles desaparecem de volta para sua comunidade com nenhuma outra responsabilidade em relação aos eventos que por um breve período (por vezes não mais do que algumas horas) ou um longo periodo (às vezes por um ano ou mais) os mantiveram cativos. No entanto, devido à conclusões a que chegarem, alguns que foram julgados por eles,perderam suas vidas e outros foram obrigados a pagar milhões de dólares para pagar os danos e erros que cometeram. As decisões do júri, às vezes, mudaram o curso da història, causaram leis que depois foram revogadas ou promulgadas, tem o merito de garantir as nossas liberdades. Ao realizar tudo isso, os jurados não dão motivos para suas ações, e, ao contrário de qualquer outro grupo que se possa imaginar, não procurar nada por si mesmos, eles são, como bem reportou o magistrado da Suprema Corte americana, William O. Douglas, a única agência do nosso governo que não tem ambição. (cf: GUINTER, Jonh. The Jury in America and civil juror. Oxford: Facts on File Publications, 1993, p. XII.) 284 O fato é que uma vez dentro da sala de julgamento, os jurados podem perder completamente a noção de aspectos dogmáticos da ciência penal e processual penal, deixando-se dissuadir apenas pela oratória, ou algum argumento mais forte manejado pela acusação e pela defesa. Nos Estados Unidos, há possibilidade de se dar uma “direção” ao Tribunal do Júri, desde que o próprio júri peça explicações sobre temas técnicos, como legitima defesa, homicídio em conexão com a intenção, provocação, atenuantes etc.595. Em um livro biográfico, um jurado conta as suas experiências no Tribunal do Júri. Segundo ele, “os dois primeiros dias de nossas deliberações consistiu em um esforço sustentado para entender as acusações, o que implicava, e como estávamos a percorrer acerca de considerá-las. Algumas dessas considerações teria sido mais fácil se tivéssemos sido capazes de ver as instruções do juiz, que leu após as alegações finais. Tudo os que nos foi dado, no entanto, foi uma folha que listou os veredictos possíveis com nomes para cada um: “assassinato em primeiro grau (cometido com intenção); assassinato de segundo grau (indiferença depravada), e homicídio culposo (negligente) ”596. Convocados unicamente para o julgamento, não podiam os membros do júri ter conhecimento, antes da abertura da audiência, nem das provas que foram produzidas, nem sequer da natureza do caso que lhes seria submetido. Tinham, porém, o dever de resolver as questões de fato com fundamento exclusivo em provas cuja preparação cabia inevitavelmente a outros. Decerto, o juiz preside o julgamento e, uma vez ouvidos os advogados das partes, dá ao júri as instruções necessárias quanto às regras de direito aplicáveis na espécie. Mas não toma parte alguma nas deliberações do júri. Mais: a ingerência do juiz antes do julgamento, seja a propósito da redação dos veredictos, e, por conseguinte da determinação das questões que o júri terá de resolver, seja no tocante à instrução do feito, equivaleria a restringir a soberania do júri. Inevitável, assim, que o papel do juiz deva ser passivo e que toda atividade processual, inclusive a instrução do processo, seja deixada exclusivamente às partes. Tocalhes determinar não só o objeto do litígio, mas igualmente as próprias questões discutidas. Também lhes toca controlar os elementos à luz dos quais o júri formará sua convicção. Noutros termos, sendo necessariamente passivo o papel do Júri, juiz do fato, o processo não pode deixar de reconhecer que predomina o papel das partes597. 595 - TAYLOR, Richard. Jury. Unanimity in homicide. The criminal law review. Oxford: Oxford University Press, April 2001, p. 261-338. 596 - BURNETT, D. Graham. A Trial by jury. New York: Alfred A. Knopf, 2001, p. 81. 597 - JOLOWICZ, Jonh Antony. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? Revista Forense, vol. 328, out.-nov.-dez. 1994, p. 62. 285 Sendo o júri uma instituição que varia sensivelmente quer no tempo, quer no espaço, observa-se o alcance limitado desta instituição, que apenas na França, no período 1791-2000, o júri (o Tribunal Revolucionário e depois Cour d’assises), recebeu pelo menos 13 reformas sucessivas598. No que respeita ao escabinado, contudo, raciocinamos de forma inversa a um raciocínio que começou em meados do século XX, e vem sendo reiteradamente repetido, na mesma fórmula e com as mesmas palavras. O sistema Europeu, antes de abolir o Tribunal do Júri, o aperfeiçoou, segundo o sistema jurídico destes países. Optou-se por uma reforma, que ao mesmo tempo garantisse o sistema de participação popular, na forma do escabinado, com a participação de juízes leigos e togados, acrescentando mecanismos, para evitar as decisões arbitrárias e dissociáveis do direito positivo: O julgamento conjunto por juízes leigos e togados, quer em relação à matéria de fato, quer em relação à matéria de direito. É de se salientar que, com exceção dos Estados Unidos e partes do Canadá, o júri tem em grande parte sido abandonado para o julgamento de processos civis, e que a sua utilização em casos criminais tem declinado, uma vez que muitos países que experimentaram os júris criminais há muito tempo abandonaram este sistema599. Montesquieu concebia este modelo de tribunal popular em função de uma participação democrática, e, ao contrário, pensava em uma justiça pelos pares, por aqueles iguais ao acusado. Também defendia que o poder de julgar não deve competir a um senado permanente, mas sim a determinadas pessoas do povo, como em Atenas, nomeadas por um período determinado, e na forma prevista na lei. Rousseau tinha moderada fé na substancial igualdade entre os homens, no bom sentido, referente à justiça e à integridade, que lhe pareciam qualidade comuns a todos os cidadãos componentes de um Estado bem organizado600. 598 - Ainsi en 1793 (création du Tribunal dit révolutionnaire), 1794 (lois d'exception dites de Prairial), 1795 (retour au Tribunal révolutionnaire originei), 1808 (abandon du jury d'accusation), 1824 (attribution à la Cour les trois magistrats professionnels - de la déclsion sur les circonstances atténuantes), 1832 (transmission de cette compétence au jury), 1881 (abolition du résumé du Président), 1932 (Ie jury se joint à la Cour pour la décision sur la peine), 1942 (Cour et jury statuent en eommun sur les deux questions; passage à six jurés), 1945 (passage à sept jurés), 1958 (passage à neuf jurés; majorité oblígatoire des juges lajes), 1978 (modifieation du reerutement des jurés) et 2000 (appel des arrêts de Cour d'assises). In: TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse. Zürich: Schulthess Verlag, 2005, p. 127. 599 - VV.AA. World Jury Systems. (Edited by Neil Vidmar). Oxford, 2000, p. 4. 600 - ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Coleção L&PM Pocket, 2003,p. 45. 286 Outro argumento bastante lembrado é o referente à capacidade dos jurados, que, por serem leigos, chegam a traduzir-se na negação da justiça por se entregar aos leigos a difícil e complexa arte de julgar em conformidade com a ciência da lei e com a técnica de sua ajustada aplicação aos fatos concretos601. Após considerarmos às causas da resistência doutrinária ao Tribunal do Júri é conveniente estabelecer que as instituições democráticas também tenham entrado em colapso, quer pela ausência de parâmetros dentro da chamada pós-modernidade, quer pela ausência de pronta resposta aos ditames e da democracia organizacional e que tem atingindo em cheio o Poder Judiciário e o Ministério Público dentro do contexto da chamada pós-modernidade602. Atualmente, no Brasil, a legislação especial que trata de matéria criminal, quer criminalizando condutas ou declarando-as equiparadas a tipos já previstos no Código Penal, quer abordando aspectos relativos à caracterização dos delitos ou à aplicação ou extinção das penas, alcança o expressivo número de 109 (cento e nove) diplomas, sendo 91 (noventa e uma) leis, 17 decretos-leis e 1 (um) decreto. Quanto às leis extravagantes no campo das contravenções penais, o número chega a 10 (dez) diplomas, sendo 7 (sete) leis, 2 (dois) decretos-leis e 1 (um) decreto. A soma global chega a 119 (cento e dezenove) diplomas dispondo sobre crimes e contravenções, à parte das normas do Código Penal. Nesse número não estão incluídos os decretos e as portarias que se limitam à tarefa de simples 601 - OLIVEIRA, Edmundo et.al. Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT,1999, p. 102. 602 - Acompanhando a modernidade, o Poder Judiciário do Mato Grosso do Sul realiza em caráter experimental o primeiro júri digitalizado no Brasil. No banco dos réus estará um rapaz acusado de matar a tiro um homem durante briga em frente a um clube em Campo Grande. Ao longo da audiência, saem de cena as tradicionais pilhas de processos produzidos com papéis e, no lugar deles, entram os notebooks e o data show, equipamento que projeta imagens.“Sabemos que pelo menos 70% dos cartórios das comarcas brasileiras já digitalizaram seus processos, mas um júri digitalizado nunca foi realizado ainda”, disse ao UOL Notícias o juiz Aluízio Pereira dos Santos, da 2ª Vara do Tribunal do Júri, em Campo Grande, autor da ideia. Ele informou que aos sete jurados serão distribuídos três notebooks. “Ao consultar o processo, o jurado não precisa mais folhear páginas e páginas, é só clicar no teclado e ele terá na tela o assunto tratado”, afirmou o magistrado. Um servidor do fórum, especialista em informática, participa do julgamento para auxiliar os jurados que tiverem dificuldades em acessar o computador. Para a medida ter sucesso e não ocorrer vícios a ponto das partes arguirem nulidades, todas as peças processuais foram digitalizadas e serão colocadas à disposição dos jurados e partes no plenário, um notebook, um projetor e um data show, permitindo que todos conheçam, com a mesma amplitude, todas as provas”, disse o juiz. Disponivel em: «http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/09/02/primeiro-julgamento-100digital-do-brasil-acontece-nesta-sexta-em-campo-grande.jhtm.» Acesso em 15 de outubro de 2011. 287 regulamentação da lei. No campo da administração da justiça penal, os seus operadores estão sofrendo a amarga experiência da inflação legislativa, responsável por um tipo de direito penal do terror que, ao contrário de seu modelo antigo, não se caracteriza pelas intervenções na consciência e na alma das pessoas, tendo à frente as bandeiras do preconceito ideológico e da intolerância religiosa. Ele se destaca, atualmente, em duas perspectivas bem definidas: a massificação da responsabilidade criminal e a erosão do sistema positivo. A primeira fomenta o justiçamento social determinado pelos padrões sensacionalistas da mídia que subverte o princípio da presunção de inocência e alimenta a fogueira da suspeita que é a justiça das paixões, consagrando a responsabilidade objetiva; a segunda anarquiza os meios e métodos de controle da violência e da criminalidade, estimula o discurso político e revela a ausência de uma Política Criminal em nível de Governo Federal603. Hassemer nos fala da erosão normativa, ou seja, o fato de que as normas sociais, as normas da vida de todos os dias, que são normas não escritas, estão expostas à erosão, isto é desaparecem, perdem a eficácia. O que é evidente, o que não tem que se fundamentar, o que vale por si mesmo, o que é tradição, o que é informal, o que é perecível (…). A erosão de normas tem como efeito um enfraquecimento da orientação normativa. As normas sociais orientam, são úteis, ditas de forma metafórica, estabelecem aquilo que se pode confiar que se pode reclamar e por isso a sua erosão causa desorientação, perda de segurança normativa604. No direito português, tomando o étimo grego do vocábulo, podemos reconhecer que o processo penal está em crise. Estamos a atingir o momento a partir do qual é indispensável tomar decisões sobre a sua reforma, de cuja necessidade já quase ninguém parece duvidar. Parafraseando o nome de um quadro célebre de Vieira da Silva, podemos afirmar que o processo penal está na rua. Sucedem-se as violações do segredo de justiça, proliferam 603 - DOTTI, René Ariel. A crise do sistema penal, in:Revista Forense, v. 352-Out.-Dez. de 2000, p. 154. A erosão normativa, ligada a sociedade de risco, leva ao endurecimento da legislação penal, e a prevenção, o aumento das medidas cautelares e excepcionais, tais como prisões preventivas, utilização cada vez mais frequente de escutas telefônicas, agentes infiltrados, aumento de medidas processuais inaudita altera pars, e assim por diante. A crise não se situa só no Direito Penal, mas também no Direito Processual Penal, que não tem avançado nas últimas decadas, salvo com intervenções pontuais. O Código de Processo Penal Brasileiro foi promulgado em 1940, sob forte inspiração autoritária e absolutista. 604 - HASSEMER, Winfried. Processo penal e direitos fundamentais, in: Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais,in: PALMA, Maria Fernanda (coord.).Lisboa: Almedina, p. 20. 288 declarações contraditórias de magistrados e advogados sobre processos em curso. Por vezes, o processo penal acaba por se transformar num duelo midiático605. O crime faz parte da sociedade e a ela se encontra intrínseca e extrinsecamente ligado, sendo uns motivados por questões pessoais (orgulho, inveja, etc.) outros por questões políticas (luta pelo poder, prepotência, descrença do povo, etc.), por motivos religiosos, pela ganância, pelo lucro fácil, etc. Para Anabela Miranda Rodrigues "o crime se adapta às novas formas de socialização. A globalização forneceu as técnicas, os homens e os meios". O crime goza de uma dupla opacidade: de um lado, é invisível, banal, 'gasoso'. Não é um comportamento previamente identificável. Deixou de poder falar-se, em relação a ele, das três unidades do teatro clássico: tempo, lugar, ação. De outro lado, a relação imediata crimeestigmatização social esfumou-se. O crime é cada vez menos um ato e cada vez mais um conjunto de atos impercetíveis como ilícitos e só a reconstituição do todo revela os traços de cada uma das partes".606 6. Em busca da imparcialidade dos jurados no Tribunal do Júri clássico e no escabinado: as recusas imotivadas dos jurados 6.1. A prática do júri de habilitação na Inglaterra A prática do júri de habilitação607 na Inglaterra, (ou seja, verificar a experiência dos jurados) parece entrar em conflito com o Lord Chief Justice Pratice Direct de 1973, em que foi reafirmado que o júri é composto por 12 indivíduos escolhidos aleatoriamente a partir de listas eleitorais “[1973] 1 Ali ER 240 por Lord Widgery CJ”, ver também: “[1988] 3 AlI ER 177 por Lord Lane CJ”. É também no desafio de advertência, que Blackstone, declarou ser o júri “sagrado e inviolável, não só de todos os ataques abertos, mas também a ataques formais, maquinações secretas, que podem minar e aniquilar com o júri e os jurados”.608 605 - PEREIRA, Rui. O domínio do inquérito pelo Ministério Público,In: Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais, in: PALMA, Maria Fernanda (Coord.). Lisboa: Almedina, 2004, p. 119. 606 - LIMA, Ricardo Alves. Transcriminalidade e Sistema de direito penal europeu.Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 2012, p.72. 607 - Jury Vetting 608 - VV.AA.Criminal Justice: Introducion to the criminal justice system in England and Wales.London & New York: Longman, 1995, p.186. 289 Em 1978, no julgamento dos Srs. Aubrey, Berry e Campbell (o chamado julgamento dos segredos oficiais ABC), dois jornalistas e um soldado foram acusados de coletar inforrnação secreta. O advogado de um dos acusados descobriu que algumas semanas antes do julgamento, tinha sido fornecido à acusação uma lista de jurados em potencial. Os que estão na lista havia sido examinado de forma a verificar a sua "lealdade com a condenação dos réus”. Como resultado da descoberta, o julgamento foi interrompido e um novo julgamento foi ordenado diante de um novo júri. Os três acusados foram finalmente absolvidos. Em outubro de 1978, a pressão dos parlamentares e da imprensa levou o Procurador-Geral (Attorney-General) a tornar públicas suas orientações sobre o controle do júri, que foi então admitido, uma vez que já existia desde 1974, na sequência de julgamento Angry Brigade.As orientações da Procuradoria da República, foram revistas e a versão atual é aberta à inspeção nos relatórios de lei.609 A situação jurídica de habilitação de um júri parece, então, ser esta. A verificação de registros criminais de condenações é admissível e desejável, a fim de eliminar pessoas desqualificadas (R v McCann). A verificação dos registros policiais, e a realização de Inquéritos, em conformidade com as orientações da Procuradoria-Geral, conforme descrito acima, também é lícito (R v McCann, and others). Hoje defesa e acusação têm vindo a focar diferentes aspectos da tradição de classe, defendendo conselhos cada vez mais centrados em um júri de pares. Eles procuram escolher um júri com características de raça, religião, classe social, e intelectual, semelhante a do acusado. Embora eles esperem que os jurados venham a refletir de forma inteligente sobre as provas, eles também querem que os jurados tenham simpatia emocional com a condição de réu e a sua vida privada. Enfim, jurados que compartilham a experiência de vida e preconceitos do réu, são considerados mais propensos a aceitar as teses e argumentos defensivos, Assim, a defesa quer excluir jurados, que de forma geográfica ou socioeconómicas, não partilham necessariamente os padrões de vida e dos costumes que podem ter sido fatores subjacentes ao alegado crime. Por outro lado, pode argumentar-se que os procuradores ao enfatizar o júri imparcial que se refere o Bill of Rights, procuram os jurados com diferentes experiências e preconceitos e que se esforçam para estender as fronteiras do júri, além de gênero do réu, raça, classe e prática de vida do acusado. Nestas condições, no entanto, eles também querem um corpo de 609 - cf: Practice Note (jury: stand by: jury checks} [1988J 3 All lER 1086; for earlier versions see [1980] 3 All ER 786 and [1980] 2 All ER 457. 290 jurados altamente emotivos, sem qualquer tipo de preconceito contra o réu, ou o seu modo de vida.610 É também geralmente aceito, que um júri deve estar livre, para elaborar o seu o veredicto, livres de quaisquer pressões externas, como violência, ameaças, intimidação ou tentativa de suborno. É também importante que um júri não deve ser submetido a uma pressão indevida do juiz, mas se eles são submetidos a esta pressão, isso pode levar à anulação da condenação do réu em sede de recurso em razão de uma irregularidade material do curso do processo. 6.2. A voir dire americana e a escolha científica dos jurados A regulamentação das recusas peremptórias ou imotivadas, também pode ser problemática, quando o seu número é muito baixo, evitando assim compensar os efeitos negativos da representatividade aleatória, que não deve ser utilizada para dificultar a defesa, ou muito alto, para em seguida, conduzir um júri completamente desequilibrado. Se for feito um balanço a este respeito, veremos que pode ser encontrada com bastante frequência, este tipo de situação. Entre alguns, a voir dire nos EUA, ou a escolha do júri, com base em inúmeras questões, pode durar semanas e levar à formação de um júri racista ou socialmente tendencioso.611 A seleção dos 12 cidadãos que participarão do julgamento (integrantes do pequeno júri) ocorre em etapa prévia, denominada voir dire, momento em que as partes podem oferecer suas recusas, justificadas ou não. Há um limite às recusas imotivadas, como nos casos sujeitos à pena de morte, em que as partes podem recusar imotivadamente até vinte jurados cada uma. 612 A voir dire americana, consiste na identificação e exclusão dos jurados tendenciosos de modo a evitar a influência das características dos jurado no resultado do julgamento. Fatores demográficos, tais como ocupação, nível socioeconômico, idade, raça e gênero são revistos. Personalidade e fatores comportamentais, tais como autoritarismo e controle, crenças, e fatores específicos a uma "personalidade jurídica", também são enfocados. Enfim a voir dire procura de forma mais eficaz identificar e excluir os jurados cujas atitudes, ou experiências de 610 - LITAN, Robert E. Verdict.The Brookings insitution.Washigton DC, 2003, p.142. 611 - TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse §2005,p.125 612 - NUCCI,Guilherme de Souza.Júri.Princípios Constitucionais,cit.p.72. 291 vida podem predispô-los a serem tendenciosos no julgamento da causa. Os Estados Unidos têm utilizado o uso de consultores de seleção do júri, em certos casos. Durante a voir dire, o juiz e, em alguns casos, os advogados, perguntam ao potencial candidato à função de jurado, para determinar se eles são qualificados para servir como tais, e para identificar ou não, se possuem qualquer preconceitos que possam interferir com sua habilidade de ser imparcial. Nos Estados Unidos, o processo de seleção de pessoas para servirem como jurados é muitas vezes visto como sendo de fundamental importância para o resultado de um julgamento. Na verdade, alguns juristas defendem que os casos são ganhos ou perdidos na base de seleção do júri. Por várias razões, a importância do voir dire, é provavelmente maior nos Estados Unidos do que na maioria dos outros países que usam júris.613 Nos últimos anos, os advogados, têm tentado melhorar a sua capacidade para identificar e eliminar jurados indesejáveis, indo além da abordagem tradicional de seleção do júri, sendo que nos Estados Unidos, é comum, a contratação de consultores para realizar teste de seleção do júri científico. A seleção do júri científico refere-se a utilização de técnicas de pesquisa em ciências sociais, para identificar os jurados desejáveis e indesejáveis. Em vez de depender de generalizações grosseiras de grupos de pessoas físicas, os consultores de seleção do júri, tentam identificar origens e atitudes de pessoas físicas, que vivem na jurisdição do qual o júri serão sorteados que são relevantes para o caso específico em questão. A abordagem e maior especificidade deve levar a uma maior capacidade preditiva. Neste processo, os consultores utilizam uma variedade de técnicas, incluindo pesquisas na comunidade no pré-julgamento, bem como o julgamento dos possíveis membros do júri e, em alguns casos podem criar uma situação, simulada, para os jurados, para examinar a relação entre as características e preferências, e sua relação com o veredicto dos jurados.614 Na fase da escolha, possuem as partes, ampla liberdade na formulação de indagações aos jurados (visando à seleção dos que irão compor o conselho de sentença), diferentemente do que ocorre no Reino Unido, onde costumeiramente quem interroga é o juiz, havendo um limite ao número de perguntas, que se autorizam às partes, sendo raras as recusas neste sistema. Feita a seleção dos jurados que irão compor o pequeno júri (Petty Jury) e instalada a 613 - LIEBERMAN, Joel D; KRAUSS, Daniel A. Jury Psychology: Social aspects of trial processes, V.1. Ashgate, 2004, p.100. 614 - LIEBERMAN, J. D.; SALES, B. D. Scientific Jury Selection.Washington,DC: American Psychological Association, 2007, p. 261 292 sessão de julgamento, as partes apresentam suas alegações iniciais, oportunidade em que o órgão julgador toma conhecimento da imputação e de sua negativa, bem como das provas que serão produzidas. Em tal momento, a atuação das partes, cinge-se à elaboração de sucinta exposição dos fatos que pretendem provar. No direito americano, por força da Lei 26 USCA § 6103 (HX5), o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, deve responder a um pedido escrito de um Promotor de Justiça, do Departamento de Justiça (incluindo um Procurador dos Estados Unidos), declinando o nome de algum dos jurados, que estejam envolvidos em processos com pessoas físicas ou jurídicas, que tenham sido objeto de qualquer auditoria ou investigação de impostos pela Receita Federal. O Secretário deve limitar a resposta a uma afirmação ou negação, ao responder a tal questionamento. Embora esta disposição tenha sido promulgada como parte da Lei de Reforma Tributária de 1976, nenhum tribunal de apelação, tinha comentado este estatuto até 1989, quando o Nono Circuito teve a oportunidade em United States v. Hashimoto. O Tribunal Federal, decidiu que uma das partes do processo tem um direito absoluto para descobrir se alguns dos jurados têm sido objeto de qualquer auditoria ou investigação em relação a impostos. A autorização para fazer uma reivindicação, prevista no § 6103 (h) (9), é fazer o pedido imediatamente. A proposta de investigação antecipada da lista de um Júri deve ser apresentada, juntamente com uma cópia do estatuto e uma cópia da decisão do caso Hashimoto. Se a moção for concedida, o conselho deve preparar uma carta ao secretário do Tesouro em Washington, DC, solicitando as informações de investigação fiscal em cada jurado.615 Este tipo de recusa ou desafio peremptório pode ser utilizado sem qualquer justificação das partes para a eliminação de um jurado. As recusas peremptórias são úteis nos casos em que um advogado tem uma forte suspeita de que um jurado é tendencioso, mas que não fez quaisquer declarações que indicam claramente este viés. Assim, as recusas peremptórias ou imotivadas, podem proporcionar uma salvaguarda contra os jurados que são intencionalmente enganosos, sobre as atitudes preconceituosas que eles podem realizar, ou de forma inconsciente, quanto à medida que eles são influenciados por tais atitudes. Nos Estados Unidos, para cada parte, é dado um número limitado de recusas imotivadas de jurados (com o número total dependente da jurisdição (civil versus penal),sendo que a defesa é mais beneficiada com um maior número de recusas peremptórias ou imotivadas. 615 - VVAA.Grand Jury Law and practice. Seconde Edition.V.2Tomson West, 2010, p174. 293 Outros países também fazem utilização em casos criminais dos desafios peremptórios, como a Nova Zelândia, Irlanda, Canadá e Austrália (mas na Tasmânia, só a defesa pode exercê-los). No entanto, em muitos destes países é difícil para os advogados exercê-las de forma inteligente, porque o questionamento de jurados é bastante restrito. Por exemplo, no Canadá, os jurados são normalmente inquiridos através de algumas perguntas que podem ser respondidas com "sim" ou "não". Outros países que usam júris aboliram as recusas peremptórias completamente. Por exemplo, a Escócia eliminou o uso de recusas peremptórias em 1995. A opinião geral na Escócia é que ambas as partes devem aceitar os 15 jurados escolhidos aleatoriamente em casos criminais (12 no civil), e que eventuais preconceitos dos jurados individuais não terão um grande impacto sobre o veredicto final. Veredictos não devem ser afetados porque são um produto da experiência de um grupo, que tomam uma decisão coletiva, que pode ser resolvida por uma decisão de maioria simples de 8-7. 616 6.3. As recusas peremptórias dos jurados no Direito brasileiro No Brasil, as recusas peremptórias é o termo técnico, para garantir o direito da acusação e da defesa de recusar até três jurados sem darem os motivos da recusa. A defesa se manifesta antes da acusação, sendo o único momento em que há inversão da audiência contraditória, mas em interesse da defesa. Não existe fundamento fático ou jurídico, para a recusa dos jurados, fundada em predisposição do jurado em condenar ou absolver, motivos religiosos, filosóficos etc. A inversão na ordem, contudo, não causa nulidade. O Conselho de Sentença é composto de jurados que não foram rejeitados pelas partes, que não são impedidos ou suspeitos. Os jurados excluídos ou suspeitos são computados para a constituição do número legal, mas se em consequência de suspeição ou recusa não houver o numero legal o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido, ocasionando a separação do julgamento.617 A lei simplificou sobremodo, o instituto da separação de julgamentos, dispondo o art. 469, que em sendo julgados 2 (dois) ou mais os acusados, as recusas poderão ser feitas por um 616 - KRAUSS, Daniel A; LIEBERMAN, Joel D. Psychological expertise in Court, V.II. Ashgate, 2003, p.99. 617 - FREDERICK, Jeffrey T. The psychology of the american jury.Virginia: The Michie Company, 2008, p.23. 294 só defensor, e não mais dois defensores como dispunha a lei anterior. Dispõe § 1º, que a separação dos julgamentos somente ocorrerá se, em razão das recusas, não for obtido o número mínimo de 7 (sete) jurados para compor o Conselho de Sentença. É o caso de um julgamento em que o corpo de jurados é composto, pelo quórum mínimo de 15 jurados, recusando-se peremptoriamente seis jurados, três pela acusação e três pela defesa, de forma fundamentada ou motivada, e três por motivos de suspeição e impedimento, restando apenas seis jurados, insuficientes, para compor o Conselho de Sentença. Desta forma, dar-se-á a separação dos processos, dispondo o § 2º, que determinada a separação dos julgamentos, será julgado em primeiro lugar o acusado a quem foi atribuída a autoria do fato ou, em caso de coautoria, aplicar-se-á o critério de preferência disposto no art. 429 do CPP. Em outras palavras, primeiro será julgado o autor do fato, e posteriormente o partícipe. Prevalece no âmbito da doutrina penal a distinção entre autor e partícipe, pela teoria do domínio do fato. O mesmo conselho poderá conhecer de mais de um processo na mesma sessão de julgamento, se as partes aceitarem, mas estes prestaram um novo compromisso. É possível, que o mesmo conselho julgue mais de um processo, no mesmo o dia ou em mesmo em outro dia, devendo contudo, prestar novo compromisso. Outro mecanismo mais radical, é a transferência do julgamento para outro lugar que, não seja o distrito da culpa, onde sabidamente existem preconceitos e animosidades coletivas contra a pessoa do acusado. 6.4. O sistema do duplo sorteio em Portugal Em Portugal, o legislador optou pela seleção no próprio processo, utilizando um sistema de duplo sorteio, presidido pelo presidente do Tribunal do Júri. Preocupou-se o legislador em procurar imparcialidade e isenção no processo de seleção de jurados, procurando no contraditório o surgimento de causas de incapacidade dos possíveis jurados. Adotou a escolha dos mesmos através de audiência pública, na qual os intervenientes processuais poderão alegar razões ou fatos constitutivos de impedimento para os candidatos.618 618 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 171. 295 Em consonância com o artigo 8° do Decreto-Lei nº 387-A/87 de 29 de setembro, o processo de seleção dos jurados, efetua-se através de cinco fases diferentes, efetuando-se através de duplo sorteio, o qual se processa a partir dos cadernos de recenseamento eleitoral e compreende as seguintes fases: a) Sorteio de pré-seleção dos jurados; b) Inquérito para determinação dos requisitos de capacidade; c) Sorteio de seleção dos jurados; d) Audiência de apuramento; e) Despacho de designação. É elaborado um inquérito para determinação dos requisitos de capacidade. Uma vez apurado, em resultado de sorteio, o número de 100 pessoas, o juiz manda-as notificar para, no prazo de cinco dias, responderem a inquérito, constante de modelo aprovado por portaria do Ministro da Justiça, destinado a saber se estas preenchem os requisitos de capacidade indispensáveis para o desempenho da função. Na Audiência de apuramento, o presidente ordena seguidamente a notificação das pessoas selecionadas, bem como do Ministério Público; do advogado do assistente e do defensor do arguido para, no prazo de cinco dias, comparecerem, as primeiras obrigatoriamente, com a cominação da segunda parte do nº 2 do artigo 15º, numa audiência pública de apuramento, a todos comunicando o elenco dos selecionados, bem como a respectiva profissão e morada. Nessa audiência o presidente inquire individualmente os selecionados quanto a existência de impedimentos e causas de escusa que pretendam invocar; esclarecendo-os quanto ao regime legal aplicável, sendo seguidamente a palavra concedida às entidades referidas no número anterior para que suscitem perguntas adicionais e procedam à eventual arguição de fundamentos de recusa.619 É exatamente nesta audiência, que o Ministério Público e o defensor do arguido podem recusar; cada qual, dois jurados sem explicação de motivação. Se houver assistente, este pode recusar um jurado e o Ministério Público outro. Havendo pluralidade de assistentes, representados por mais de um advogado e se divergirem na escolha, procede-se o sorteio para determinar a quem cabe a faculdade de recusa. O mesmo regime vale para a eventualidade de vários arguidos assistidos por mais de um defensor. O decreto-lei 679/ 75, de 9 de dezembro, trata do recrutamento dos jurados, constando em seu preâmbulo, que o referido Decreto-Lei era necessário para consciencializar os eleitores sobre a sua capacidade de formar o Tribunal do Júri. Assim, a idade mínima para ser eleito passou a ser de 25 anos, facto que tem a ver com a idade média do Magistrado 619 - Decreto-lei 679/ 75, de 9 de dezembro. 296 quando o mesmo começa a exercer a sua profissão e implica também alguma experiência de vida. Saber ler e escrever, é como sempre, necessário para poder ter a capacidade de ser jurado a fim de se poder ser juiz ético-social.620 A seleção dos jurados é feita, por sorteio nos conselhos e nas administrações de bairro. O Decreto-Lei também estabeleceu a remuneração dos Jurados, para que materialmente não sofressem prejuízos. Por fim, o artigo 14 do Estatuto dos Jurados, determina que os jurados decidem apenas segundo a lei e o direito e não estão sujeitos a ordens e instruções. Os números 2 e 3 determina que os jurados não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei ou em dúvida insanável sobre a matéria de fato. O número 3 dispõe que os jurados são irresponsáveis pelos julgamentos e decisões e só em casos especialmente previstos na lei podem ser sujeitos em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil ou criminal. 6.5. As entrevistas aos jurados no direito espanhol No júri espanhol as partes podem entrevistar os candidatos a jurados a fim de extrair deles seu perfil social, político, econômico, estilo de vida, religião, eventuais preconceitos de raça e cor e tudo o mais que possa refletir no julgamento do fato. Trata-se de uma medida que tem o escopo de assegurar, o máximo possível, que do júri não participe jurados que tenham algum comprometimento com os fatos, seja por preconceito, racismo ou qualquer outro sentimento que não o de justiça.621 As perguntas das partes levam em consideração determinados dados psicológicos, por isso muitas vezes são assistidas por psicólogos, durante a tramitação do processo, e a razão é simples: em um júri em que a principal testemunha contra o acusado, por exemplo, é uma mulher, a defesa seleciona mulheres para compor o júri, pois baseia-se no dado psicossocial de que elas tendem a desconfiar das pessoas do seu sexo. No mesmo sentido, as partes consultam cientistas sociais (sociólogos e antropólogos) para utilização de dados em 620 - Preâmbulo do D.L. 679/75, de 9 de dezembro. 621 - RANGEL,Paulo.Tribunal do Júri,cit.p.55. 297 relação a fatores demográficos, econômicos e culturais que possam envolver a causa, e, consequentemente, escolher os jurados que compreendam aquelas questões.622 As partes podem acordar quanto à dissolução do júri caso haja consenso no sentido de se condenar o réu, mas a pena não poderá ser superior a seis anos de privação de liberdade, isoladamente; ou cumulativamente, pena de multa ou privação de direitos. Na mesma orientação, não obstante o Ministério Público estar sujeito ao princípio da legalidade, atuando com sujeição à Constituição, às leis e demais normas do ordenamento jurídico espanhol (art. 105 da LECRIM), pode ele dispor do conteúdo material do processo e com imparcialidade, objetividade e independência funcional, retirar a pretensão acusatória com consequente dissolução do conselho de sentença e prolação de sentença absolutória. 6.6. A recusa dos jurados na França e Bélgica Na França, na presença do acusado e por sorteio, antes de tratar cada assunto e em audiência pública, da lista de sessão extraem-se os nomes dos nove jurados que irão formar o Júri do julgamento. À medida que se extraem os nomes, o Ministério Público, o acusado e o seu defensor, podem recusar algum sem mencionar os motivos, até cinco jurados por parte do acusado e quatro pelo Ministério Público.623 Na Bélgica, no dia de julgamento por um júri, os jurados podem pedir para serem dispensados, por razões aceitáveis de desculpa, apresentado pelos próprios candidatos. Assim os motivos para a desqualificação por parte dos tribunais, por iniciativa própria são aqueles, que podem estar ligados a uma má conduta moral, ou o exercício de certas funções, como membro do Senado ou do parlamento, sendo o jurado, um juiz ou um líder religioso, ou ainda servindo no exército.624 622 - SENDRA,Vicente Gimeno.Derecho Procesal Penal.3ª edição.Madrid:Codex,1999,p.78. 623 - MORAIS,Antônio Manuel.O júri no tribunal: da sua origem aos nossos dias,p.36. 624 - MALSCHE, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in Europan criminal justice systems. Ashgate, 2004, p.35. 298 Capítulo 8. Variantes e estímulos externos que podem interferir no processo equitativo pelo Tribunal de Júri 1. O princípio da oralidade como base de um julgamento justo A oralidade é o ponto primordial e piramidal do procedimento do Tribunal do Júri. O capítulo irá discutir com base na doutrina brasileira, portuguesa e americana como este importante princípio do Processo Penal, pode transmudar o processo justo em variáveis e componentes, que interferem na psique dos jurados, pudendo subverter a lógica e a razão nos julgamentos do Tribunal do Júri. O princípio da oralidade também é conhecido como a viga mestra da técnica processual. Por este princípio, predomina a palavra oral sobre a escrita. Os primeiros procedimentos processuais eram orais. Em Roma o procedimento era exclusivamente oral, mas na fase denominada extraordinaria cognitio, transforma-se em escrito, no tocante a vários atos. No Direito germânico os atos eram orais. O procedimento canônico, por ser inquisitivo predominava a forma escrita. Hoje em dia, os dois procedimentos se mesclam entre si, havendo por vezes predominância de um ou outro. É o caso do processo sumário, dos juizados especiais, do procedimento do júri etc. Em Portugal as ideias de oralidade e imediação, partir do século XIX, são trazidas com o julgamento pelo júri, sem clara referenciação dos respectivos pressupostos e corolários epistemológicos.625 A oralidade diz respeito à discussão, aos debates entre as partes. É a dialética em ação, com a primeira premissa referente ao debate ou discurso da acusação, a segunda premissa referente ao debate ou discurso da defesa, e por fim a síntese que vai ser a decisão judicial, que deve ser feita também oralmente. De acordo com este princípio, a atividade processual deve ser exercida oralmente na presença dos agentes processuais e alguns dos seus reflexos estão previstos nos artigos 96° (oralidade dos atos), 298° (finalidade do debate), 348° (inquirição das testemunhas), 350° (declarações de peritos e consultores técnicos), 355° (proibição de valoração de provas) e 360° (alegações orais). A proibição de valoração de provas não produzidas em audiência (prevista no art.º. 355°) traduz-se numa das principais demonstrações da oralidade626. 625 - MESQUITA, Paulo Dá. A Prova do Crime e o que se disse Antes do Julgamento,cit.,p.296. 626 - CARVALHO, Paula Marques. Manual Prático de Processo Penal. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 26. 299 Podemos apontar como vantagem deste princípio o fato de ser mais fácil alcançar a verdade através do diálogo e da reação dos depoentes ouvidos diretamente, assim podendo o tribunal captar a sua expressão facial e a espontaneidade ou não das respostas. Quanto aos inconvenientes, dir-se-á que caso a prova oral não seja registrada poderá verificar-se arbítrio dos juízes na sua apreciação. A regra da oralidade destina-se a garantir a imediação da prova, a espontaneidade das declarações e a publicidade627. A oralidade surge no Tribunal do Júri ante a inutilidade de exigir que os membros do júri formassem sua convicção à luz de provas escritas, sobretudo numa época em que era generalizado o analfabetismo, e acarretou a preferência muito marcada do Common Law pela prova testemunhal628. Conferindo à oralidade o instrumento próprio para a celeridade do processo, o legislador instituiu em todos os procedimentos processuais, uma audiência una, em que necessariamente haverá os debates orais das partes por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença. É o que dispõe o art.º. 403 do CPP, com a nova redação da lei nº 11.719/2008. De igual forma, nos procedimentos do Tribunal do Júri, haverá dois momentos distintos acobertados pela oralidade. Na primeira fase do júri, denominado jus accusationis, dispõe o art.º. 411§ 4º que as alegações serão orais, concedendo-se a palavra, respetivamente, à acusação e à defesa, pelo prazo de 20 (vinte) minutos, prorrogáveis por mais 10 (dez). Na segunda fase, também prevalece a oralidade, tendo em vista que os debates são orais, com a duração de 1 hora e 30 minutos. É o que dispõe o art.º. 477 do CPP, com a nova redação da lei n. 11.689/2008, disciplinando que o tempo destinado à acusação e à defesa será de uma hora e meia para cada, e de uma hora para a réplica e outro tanto para a tréplica. No processo penal brasileiro, de há muito deveria imperar a oralidade, e, assim, os depoimentos das testemunhas deveriam ser orais, não podendo ser substituídos por declarações por escrito, que não têm o mesmo valor. No Tribunal do Júri, o processo predominante já era oral, e agora passou a ser ainda mais, quando a primeira fase é predominantemente oral, tal qual no antigo processo sumário, inclusive com os debates sendo feitos oralmente. Porém, à exceção dos Juizados Especiais Criminais, onde existe predominância da oralidade, no processo penal comum, ressalvados os procedimentos 627 - EIRAS, Henrique. Processo Penal Elementar. Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 105. 628 - JOLOWICZ, Jonh Antony. A reforma do processo civil inglês. Uma derrogação do adversary system? Revista Forense, vol. 328, out.-nov.-dez. 1994, p. 62. 300 supracitados, só se dava a oralidade na coleta da prova testemunhal, no interrogatório e nas declarações de informantes ou vítimas, sendo que eram os demais atos (debates e alegações das partes), via de regra, escritos. A grande novidade agora, assim, é, sem dúvida, a audiência concentrada e oral, sendo que a concentração tanto é o objetivo da reforma que o § 7º do art.º. 411 do procedimento do Júri, que reza que “nenhum ato será adiado, salvo quando imprescindível à prova que falta, determinando o juiz a condução coercitiva de quem deva comparecer”629. As vantagens e os inconvenientes da discussão oral podem sintetizar-se da seguinte maneira. Vantagens: Maior rapidez, energia, agilidade e naturalidade na exposição; fácil adaptação do interrogatório ou da informação permanente; possibilidade de serem eliminadas más interpretações; afastamento de falsidades e rodeios; publicidade dos debates; outorga direta e imediata da audiência das partes; processo mais econômico que o escrito. São inconvenientes da discussão oral: os representantes do Ministério Público pouco ágeis, não estão em condições de interrogar ou de informar com exatidão; esquecimento de palavras faladas; possibilidade de alguma coisa importante ser esquecida ou de não ser ouvida; dificuldade de fixar a matéria processual630. A oralidade se agrega ao conceito do processo justo, que é o da comparência pessoal do acusado perante a jurisdição disciplinar, ou seja, o respeito pelo princípio da oralidade. Entende-se que “a defesa oral é a mais convincente, por permitir uma contestação direta e completa dos fatos alinhados pela autoridade repressiva”631. Do princípio da oralidade, decorrem outros princípios: a) concentração dos atos processuais, que é a realização do julgamento em um ou poucos atos processuais; b) imediação, que é o princípio, que diz que o Juiz tem um contato direto com as partes. Como resulta do próprio enunciado, a imediação coloca o juiz ou o jurado em contato direto com as provas, em ordem a poderem manejá-las pessoalmente; a oralidade faz da prova um objeto de diálogo. O princípio da oralidade é instrumental em relação ao princípio da imediação. Este princípio tem estreita conexão com o princípio da oralidade, pois tem a ver com a ideia de que 629 - AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória Perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 73. 630 - PLANELLES, Majada. A. técnica del informe ante julgados y Tribunales. 5ª Ed. Barcelona: Ed Bosch, 1991, pp. 49-52. 631 - FRAGA, Carlos Alberto Conde da Silva. Subsídio para indepedência dos juizes. O caso português. Lisboa: Edição Cosmos, 2000, p. 154. 301 haja uma aproximação comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo a que possa fundamentar a decisão com base na apreensão pessoal que o julgador tenha feito. Daqui a necessidade de, mesmo tendo-se aceito a manutenção do caráter escrito do inquérito – 275º nº 1 e 2 - se minimizar a atendibilidade da prova produzida na instrução para julgamento – 355º, nº 1 e 2 do C.P.P.632 A oralidade só funciona em pleno em relação à prova testemunhal, ainda que se trate de testemunhas indiretas ou de ouvir dizer. Paula Marques de Carvalho declara que com estreita conexão com o da oralidade, este princípio incide, fundamentalmente, no contato pessoal entre o julgador e os diversos meios de prova, traduzindo-se na regra segundo a qual não valem, em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (art.º. 355.°, n.º 1)633; c) identidade física do juiz, significando que o Magistrado que preside a instrução, colhendo provas, deve necessariamente ser o mesmo, que julgará o feito, vinculando-se à causa, ou seja o magistrado que coletou a prova deve ser o mesmo que deve proferir a sentença final 634. Alguns autores, como Fernando Capez, entendem que o princípio subsistia no procedimento do júri, enquanto outros, como Fernando da Costa Tourinho Neto, ensinam que o princípio subsiste nos procedimentos dos Juizados Especiais Criminais. Este princípio, que inexistia no processo penal, inclusive no entendimento do Supremo Tribunal Federal635 e no entendimento do Superior Tribunal de Justiça636, foi introduzido pelo legislador pela Lei n. 11.719/2008, uma vez que o art.º. 399 § 2º determina que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”. A não observância do princípio redundará em nulidade relativa, pois o princípio da identidade física do juiz não é absoluto, só ensejando nulidade do acórdão se importar em violação ao contraditório e à ampla defesa637;d) por último, o princípio da irrecorribilidade 632 - SANTOS, Gil Moreira. O direito processual penal. Lisboa: Edições Asa, 2000, p. 63. 633 - CARVALHO, Paula Marques. Manual Prático de Processo Penal. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 26. 634 ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 83. 635 - STF, 2ª T., HC 74333 / RJ - rel.rel. Min. Maurício Corrêa, j.26/11/1996. 636 - "Não vigorando no nosso ordenamento processual penal o princípio da identidade física do juiz, estando o Juiz Titular que presidiu o processo no gozo de férias, lícito é ao Juiz substituto na Comarca proferir sentença" (RHC 8.980-MG, 5.3T., reI. José Arnaldo da Fonseca, 18.11.1999, Vol.u., DO 17.12.1999, p. 386). 637 - STJ, 3ª T., AgRg no REsp 913.471/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21.02.2008, DJe 10.03.2008. 302 das decisões, que se cinge às interlocutórias para evitar a paralisação, mesmo que parcial, dos atos ou qualquer tumulto que possam prejudicar o bom andamento do processo. A oralidade vem completar as vantagens da imediação, através do amplo trabalho laboratorial que o diálogo facilita em relação às reações da testemunha no relato do fato e do seu ambiente circunstancial638. 2. O princípio da oralidade no Tribunal do Júri O Código de Processo Penal prevê, na segunda fase do procedimento dos crimes dolosos contra a vida - judicium causae -, mais especificamente durante a sessão de julgamento, a consagração máxima da concentração. Com efeito, todos os atos são reunidos numa única audiência (interrogatório, oitiva de testemunhas, debates e julgamento) e a interrupção implicará em novo julgamento, inclusive com a formação de outro Conselho de Sentença (CPP, arts. 442 e ss.). A Lei n. 9.099/95, que regulamentou os Juizados Especiais Criminais, também impõe a observância do procedimento oral e sumaríssimo, resumindo numa única audiência a defesa preliminar, recebimento ou não da inicial acusatória, oitiva de testemunhas, debates orais e julgamento (arts. 79 a 81)639. A reforma processual penal também impôs a observância de uma audiência una, quer no procedimento comum ou ordinário, quer no procedimento do júri. 2.1. Os debates orais no Tribunal do Júri brasileiro No Brasil, os debates orais começam com o Ministério Público estadual ou federal, que deverá articular a sua acusação nos limites da pronúncia e os dispositivos aplicáveis. Suprimido o libelo, e não havendo necessidade de sua leitura, o Ministério Público inicia a acusação em conformidade com a sentença da pronúncia, ou das decisões posteriores, que a confirmaram. Pode oficiar dois promotores mediante designação do Procurador-Geral, assim como dois defensores. O Ministério Público não está obrigado a pedir a condenação e pode pedir absolvição, uma vez que é fiscal da lei e de sua execução. O pedido de absolvição, contudo, não impede que o assistente pleiteie a condenação. Os quesitos de acusação devem 638 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 83. 639 - GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: RT, 2005, p. 86. 303 ser submetidos aos jurados, sendo admissível que condenem o réu. Ao Estado acusado não é dado lançar nos debates, durante a sessão de julgamento, fato estranho ao processo, tais como a afirmação do promotor de que, no intervalo, fora interpelado pelo réu para que tomasse cuidado quanto ao que afirmava, sobre si, aos jurados640. Sendo o processo promovido pela parte ofendida, o Ministério Público falará depois da parte. É direito subjetivo do Ministério Público, a retirada de qualificadoras no Tribunal do Júri. O assistente de acusação tem direito subjetivo de manifestar-se após o Ministério Público, e pleitear condenação, com base em qualificadora, não sustentada pelo Ministério Público641. A defesa consiste em contrariar a acusação, em todos os seus termos, vigorando nesta fase a plenitude da defesa, que tem extração constitucional. A defesa deve ser proferida por advogado e não por acadêmico. Não é possível concordar com a acusação em todos os seus termos, mas pode pedir a desclassificação para delito menos grave, exclusão das qualificadoras e apresentar teses incompatíveis como negativa de autoria e legitima defesa. Desta forma, a defesa pode deixar de encampar a defesa pessoal do réu em seus interrogatórios. Saliente-se que, nos procedimentos dos Tribunais, a defesa deve ser comunicada antecipadamente da data do julgamento do feito para sustentar oralmente as razões da impetração, de acordo com o art.º. 192, parágrafo único-A, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Essa comunicação poderá ocorrer por qualquer meio idôneo, sem necessidade de intimação pelos meios oficiais642. Requerida a intimação ou ciência prévia para tanto, deve ser garantido à defesa, sob pena de nulidade, o exercício do ônus de comparecer à sessão de julgamento de habeas corpus e expor oralmente as razões da impetração643. No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. A inversão da ordem causa nulidade absoluta644. 640 - STF, 1ª T., RHC 85166, rel. Min. Marco Aurélio, j. 16/12/2004, DJ 15/04/2005. 641 - STF, 1 ª T., HC 81307, rel. Min. Sydney Sanches, j. 09/10/2001, DJ 14/12/2001. 642 - STF, 1ª T., HC-ED 86889 / SP - rel. Min. Menezes Direito, j.11/03/2008DJe 10/04/2008. 643 - STF, 2ᵃ T., HC 91743 / BA , rel. Min. Cezar Peluso, j. 04/03/2008 Dje 24/04/2008 644 - STF, Tribunal Pleno, HC 87926 / SP, rel. Min. Cezar Peluso, j.20/02/2008 Dje 24/04/2008 304 Após a defesa é faculdade da acusação a réplica, que é um complemento da manifestação anterior, sempre nos limites da pronúncia. Na réplica, o Ministério Público, ainda se encontra condicionado à sentença da pronúncia, não podendo desta se afastar sob pena de nulidade. O Ministério Público, deve ser monossilábico, ao responder à indagação do juiz, se deseja ir à réplica, sob pena de oferecer a defesa a oportunidade da tréplica, sem replicar de forma autêntica, mas tão-somente velada. 2.2. A tréplica da defesa e a sua plenitude A tréplica também é facultativa, podendo a defesa silenciar se o Júri está convencido da improcedência da acusação. Na tréplica há controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca da possibilidade da defesa inovar, existindo duas correntes, uma admitindo - plenitude da defesa (Nucci), enquanto outra não (Mirabete, Tourinho, comentários p.105), pois a acusação não pode contrariar e há surpresa para a acusação. O Superior Tribunal de Justiça tem-se posicionado, a favor da inovação da tréplica. Vem o Júri pautado pela plenitude de defesa (Constituição, art.º. 5º, XXXVIII e LV). É, pois, lícito ouvir, na tréplica, tese diversa da que a defesa vem sustentando. Havendo, em casos tais, conflito entre o contraditório (pode o acusador replicar, a defesa, treplicar sem inovações) e a amplitude de defesa, o conflito resolve-se a favor da defesa – privilegia-se a liberdade (entre outros, HC-42.914, de 2005, e HC-44.165, de 2007).645 Em se tratando de faculdade da parte-ré a produção da tréplica (Código de Processo Penal, artigo 473), o seu silêncio na sessão de julgamento substancia renúncia implícita, irretratável, mormente anos após o julgamento.646 2.3. Os apartes O juiz pode permitir os apartes, sem influenciar uma das partes debatedoras. Se uma das partes exigir exclusividade,o juiz deverá garantir a não utilização dos apartes. Os apartes estão regulamentados no art.º. 497 do Código de Processo Penal, que indica que são atribuições do juiz presidente do Tribunal do Júri, além de outras expressamente referidas neste Código: XII 645 - STJ, 6ª T., HC 61.615/MS, rel. Min. Hamilton Carvalhido, rel. p/ Acórdão Min. Nilson Naves, j. 10/02/2009, DJe 09/03/2009. 646 - STJ, 6ª T., HC 18.700/DF, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 18/12/2001, DJ 08/04/2002 305 – regulamentar, durante os debates, a intervenção de uma das partes, quando a outra estiver com a palavra, podendo conceder até 3 (três) minutos para cada aparte requerido, que serão acrescidos ao tempo desta última. Se observados os critérios de respeito mútuo entre os debatedores, lealdade e boa-fé, nenhuma pecha pode ser anotada em detrimento do aparte. Essa conformação é capaz de propiciar ao jurado leigo, que só tem contato com a causa e suas circunstâncias fáticas naquele exato momento do julgamento, um contingente de informações importantes para o exercício do seu juízo de valor.647 2.4. O tempo dos debates O art.º. 477 do Código de Processo Penal, como norma cogente, declara que o tempo destinado à acusação e à defesa será de uma hora e meia para cada, e de uma hora para a réplica e outro tanto para a tréplica. Portanto durante os debates, o tempo será de uma hora e meia para cada um. Havendo mais de um acusador e mais de um defensor, o tempo para eles será combinado, desde que não ultrapassem os prazos legais, que, na falta de acordo, serão divididos pelo Juiz-Presidente, de forma a não exceder o tempo legal. Havendo mais de um réu, o tempo para acusação e defesa será acrescido de 1 (uma) hora e elevado ao dobro o da réplica e da tréplica. Devem o Ministério Público, assistentes e advogado combinarem o tempo, e caso isto não seja possível, o juiz distribuirá o tempo. Em havendo excesso de prazo na acusação, este tempo, deve ser estendido à defesa. Durante os debates podem ser reinquiridas testemunhas ouvidas e até não ouvidas, a pedido das partes, dos jurados ou de ofício pelo juiz, sendo mantidas as testemunhas já ouvidas até o fim do julgamento em plenário. A acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado (art.º. 480 do CPP). 2.5. O debate instrutório em Portugal O juízo oral constitui um momento decisivo em que se concentram todos os esforços da acusação e da defesa para convencer ao jurado acerca da viabilidade das teses apresentadas. 647 - SILVA, Amaury. Novo Júri e o aparte consentido ou autorizado. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1820, 25 jun. 2008. Disponível em: “http://jus.com.br/revista/texto/11431”. Acesso em: 25 fev. 2012. 306 Começando o debate, tanto o Ministério Público fiscal, como as partes acusadoras e as respectivas defesas, devem fazer uma exposição prévia, trazendo as linhas mestras de sua atuação e explicando em linguajar sensível e acessível os aspectos que devem levar em conta para valorizar mais corretamente todos os pontos de vista que vão ser objeto dos debates. É de considerar notável o aumento da discussão oral no julgamento por jurados no que respeita a outros processos penais, já que as diligências de investigação ficam em poder do Juiz de Instrução (art.º. 34, LOTJ), sem que as mesmas sejam lidas, exibidas ou conhecidas pelo Júri, dada a proibição de fazer a sua leitura durante a vista às declarações contraditórias prestadas anteriormente ao julgamento pelos acusados, testemunhas e peritos (art.º. 46, 5 LOTJ) e porque salvo o caso excepcional de prova antecipada ou pré-constituída, a LOTJ dispõe taxativamente que as declarações feitas em fase de instrução não terão valor de prova dos fatos nelas afirmados (art.º. 46º, LOTJ in fine)648. Em Portugal, o debate instrutório, caracteriza-se por ser: oral (art.º. 289º, n 1 e 298º do CPP); contraditório (art.289º, nº1, e 298º do CPP) e obrigatório (art.º. 289º, nº1 do CPP). A preocupação legal com o contraditório no debate instrutório evidencia-se ainda em dois aspectos: a) o juiz abre o debate com uma exposição sumária sobre os atos de instrução a que tiver procedido e sobre as questões de prova relevantes para a decisão instrutória e que, na sua opinião, apresentem caráter controverso (art.º. 302°, n. 1, do CPP), o que claramente visa facilitar, objetivar e clarificar a discussão; b) o juiz assegura a contraditoriedade na produção da prova e a possibilidade de o arguido ou o seu defensor se pronunciarem sobre ela em último lugar (art.º. 301°, nº 2, do CPP)649. A direção, disciplina e organização do debate instrutório é da competência do juiz de Instrução, conferindo-lhe a lei os mesmos poderes que ao presidente do tribunal são conferidos no âmbito da audiência de julgamento, e que são os seguintes: a) Proceder a interrogatórios, inquirições, exames e quaisquer outros catos de produção de prova cujo interesse para a descoberta da verdade se tenha, entretanto revelado (cf. art.º 299 ° n ° I) fixando livremente a ordem da sua produção (artigo 302º, nº 3 e 323º, al.a); b)Ordenar, pelos meios adequados, a comparência de quaisquer pessoas e a produção de quaisquer declarações legalmente admissíveis sempre que o entender necessário à descoberta da verdade (art.º 323º al.b; c) Ordenar a leitura de autos de inquérito ou de instrução ou de documentos (are. 323º, 648 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 135. 649 - CASTRO, Rui da Fonseca. Instrução. Lisboa: Quid Juris, 2011, p. 129. 307 al, c); d) Receber juramentos e compromissos (art.º, 323º, al. d); e) Tomar, as medidas preventivas, disciplinares e coativas, legalmente admissível, que se mostrarem necessárias ou adequadas a fazer cessar os catos de perturbação do debate instrutório e a garantir a segurança de todos os participantes processuais (art.º. 323º, al. e); f) Garantir o contraditório e impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis (art.º. 323º, al. f); g) Dirigir e moderar a discussão, proibindo, em especial, todos os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios (art.º. 323º, al. g).650 O Juiz de Instrução abre o debate instrutório com uma exposição sumária sobre os atos de instrução a que tiver procedido e sobre as questões de prova relevantes para a decisão instrutória e que apresentam caráter controverso (art.º. 302º, n. 1), concedendo, em seguida, a palavra aos participantes no debate, tendo em vista a possibilidade de requererem a produção de provas suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre aquelas questões controversas (art.º.302º,n 2), devendo recusar o requerimento que ultrapasse a natureza indiciária (arts.º 301º, n 3 e 302º, n 2). Segue-se a produção da prova, sob direta orientação do Juiz de Instrução, decidindo esta autoridade judiciária, sem formalidades, quaisquer questões que a propósito se suscitarem, podendo dirigir-se diretamente aos presentes, formulando-lhes as perguntas que entender necessárias à realização das finalidades do debate (artº 302 º n. 3). Antes de encerrar o debate, o juiz concede de novo a palavra ao Ministério Público, ao advogado do assistente e ao defensor para que estes, querendo, formulem em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre as questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória (art.º. 302º, n. 4)651. 650 - PINTO, Antônio Augusto Tolda.O novo processo penal.2ª edição.Lisboa:Reis dos Livros, p.365. 1. O debate instrutório é contínuo, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento (cfr. art. 328. °, n.º 1). 2. São admissíveis, no mesmo debate, as interrupções estritamente necessárias, em especial para alimentação e repouso dos participantes. Se o debate não puder ser concluído no dia em que tiver sido iniciado, é interrompido, para continuar no dia útil imediatamente posterior (cfr. art. 328. °, n.º 2). 3. O legislador pretendeu que o debate instrutório seja contínuo, aproveitando-se a imediação da prova a produzir com vista à descoberta da verdade material. 4. O nº 2 ao mencionar que o debate pode ser interrompido (e não adiado) por ser indispensável a realização de novos actos de instrução que não possam ser levados a cabo no próprio debate instrutório, visa a celeridade e imediação da prova a produzir, o que acarreta que os novos actos de instrução tem que ser levados a cabo em tempo próximo útil; caso contrário, o legislador teria possibilitado antes o adiamento, in:VV.AA.Código de Processo Penal.Comentado pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto.Coimbra:Coimbra Editora,2009,p.751. 651 - PINTO, Antônio Augusto Tolda. O novo processo penal. 2. Ed. Lisboa: Reis dos Livros, 2001, p. 368. 308 3. O processo de persuasão no Tribunal do Júri A partir do momento em que o júri é selecionado, o processo de persuasão torna-se primordial. Desde as declarações de abertura através da apresentação da evidência, fechamento de argumentos, instruções judiciais, comentários e deliberação, os jurados são objetos de pressões e de persuasão constante. O Tribunal do Júri é a arena ideal para a arte da persuasão quer no fórum, quer nas audiências. As partes têm controle considerável de forma e conteúdo dos seus esforços persuasivos, dentro dos parâmetros legais, das regras de evidência a da conduta adequada. Os jurados são teoricamente neutros, atenciosos e passivos, cuja função é pesar a informação apresentada a eles e chegar a uma decisão resolvendo os fatos disputados no caso. O objetivo dos advogados nos julgamentos de júri é produzir uma disposição geral favorável do caso apresentando as evidências, os argumentos e a legislação aplicável, influenciando a decisão do júri652. São fontes de comunicação os advogados, juízes e testemunhas presentes, que enviam uma mensagem de evidência, e argumentos que são transmitidas por algum meio ou modalidade, que afetarão os jurados. Eis que os principais componentes das fontes de persuasão, tais como a fonte e a mensagem, que vão afetar o receptor, têm características especiais que afetam persuasão. A primeira delas é a credibilidade. A credibilidade é um importante fator de persuasão, envolvendo a capacidade da fonte de comunicar estes assuntos com honestidade (sua confiabilidade). Com a alta credibilidade, os promotores internalizarão as atitudes desejadas no recipiente. As atitudes estão integradas no sistema de crença porque a nova atitude é percebida como correta. Esta mensagem é atribuída a duas ou mais fontes (tanto individuais, como grupos e instituições). Quanto maior a credibilidade, mais forte será a influência sobre o objeto da persuasão. A segunda é a confiabilidade, que não deixa de ser um segundo componente da credibilidade. Quando existe um conflito de interesses, a fonte de informações pode ser percebida como com a intenção de convencer, induzir em erro ou de reter informações pertinentes da plateia. Desta forma, o poder de persuasão da parte ou da fonte é suscetível de se reduzir. A terceira é o timing 653 , que não deixa de ser um aspecto efetivo da credibilidade. Timing refere-se ao princípio da oportunidade, em que as partes podem escolher 652 - FREDERICK. Jeffrey T. The psicology of the American jury. Virginia: The Michie Company Law Publichers, 2000, p. 23-24. 653 - A palavra aqui tem o significado de tempo certo, oportunidade. 309 o melhor momento para uma grande revelação. Fontes de alta credibilidade têm seu maior impacto imediatamente após a apresentação. A quarta e última se traduz na atratividade, na medida em que se revela uma característica das partes na corte. Isso pode ser identificado em características físicas (aparência) ou características não físicas (influência, status). Enquanto a credibilidade influencia a mudança de atitude através da crença de que a opinião esposada está correta, a atração influencia mudanças de atitude, incentivando uma identificação entre o ouvinte e a fonte da mensagem654. Há tipos bem diferentes de discussão jurídica. Pode-se fazer uma distinção entre as discussões na ciência jurídica (dogmática legal), deliberação judicial, debates no tribunal, tratamentos jurídicos de questões legais (quer na própria legislação ou diante de comissões ou comitês), discussão de questões legais entre estudantes ou entre juristas ou advogados ou entre pessoas juridicamente qualificadas na indústria ou administração, bem como debates sobre problemas jurídicos na mídia, onde assumem a forma de argumentos legais. As diferenças entre essas formas de discussão, que podem, por sua vez, ser divididas em outros subgrupos, são múltiplas. Algumas delas, como as negociações no tribunal e as deliberações judiciais são institucionalizadas. Esse não é o caso das outras, como a discussão jurídica de questões legais entre advogados. Com algumas das formas trata-se da questão de chegar a alguma conclusão dentro de um limite de tempo; com outras, tais como discussões da ciência jurídica (discussões dogmáticas), não existe limite de tempo. Algumas resultam em decisões comprometedoras, ao passo que outras apenas sugerem, ou estabelecem as bases para ou criticam decisões655. A oratória nunca pode ser fruto da inspiração do momento, senão da anterior preparação e conhecimento do orador656. A arte oratória exige um grande esmero na preparação, e recomenda a idealização de um plano geral, compreendendo um exórdio, uma narração, uma discussão e uma peroração; plano clássico do discurso judiciário657, sendo que o plano constitui a ossatura da obra e nunca deve ser perdido de vista, pois recorda o caminho a seguir 654 - FREDERICK. Jeffrey T. The psicology of the American jury. Virginia: The Michie Company Law Publichers, 2000, p. 164-165. 655 - ALEXY, Robert. Teoria da argumentação juridica. Tradução:Zilda Huchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2006, p. 74. 656 - MAJADA, Arturo. Oratória Forense. Barcelona: Bosch, 1951, p. 54. 657 - GARÇON, Maitre Maurice. Eloqüência Judiciária. Tradução de Zilda Filgueiras. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1976, p. 43. 310 reduzido a um simples breve esquema útil a consultar a todo o momento, para não nos afastarmos do necessário e não esquecer o principal658. O traço comum mais importante consiste no fato de que em todas as formas de argumentação ele é (ao menos em parte) o argumento é jurídico. A questão sobre o que distingue a argumentação jurídica da argumentação geral prática é um dos problemas centrais da teoria do discurso jurídico. Um ponto pode ser estabelecido mesmo neste estágio: a argumentação jurídica é caracterizada por seu relacionamento com a lei válida; contudo, isso precisa ser determinado. Isso esclarece uma das mais importantes diferenças entre a argumentação jurídica e a argumentação prática geral. No contexto da discussão jurídica nem todas as questões estão abertas ao debate. Essa discussão ocorre com certas limitações659. Existem várias maneiras em que a estruturação de gêneros do discurso desempenha um papel constituindo múltiplos pontos de vista ou a diversidade de interpretação em práticas discursivas. Primeiro, devem ser reconhecidas diferentes formas de enquadramento interpretação social da realidade. Assim, uma história é uma maneira diferente de enquadrar a realidade do que uma palestra ou de um processo no tribunal, mesmo quando os eventos que estão sendo representados são os mesmos eventos. O fato é que mesmos os juízes profissionais assumem ideias políticas e ideológicas, que por vezes influenciam a forma de ver o acusado de um crime, previsto em lei660. A persuasão sempre foi considerada um instituto importante pelos primeiros escritórios gregos. A habilidade de persuadir os outros era considerada como uma arte e eles formalizaram várias “teorias” de persuasão. O conceito de arte retórica foi ideal de excelência no antigo mundo cultural grego. Foram ideais de excelência, muitas vezes incorporados à virtude da persuasão. Considerou-se mais nobre para convencer verbalmente uma pessoa, e não usar a força bruta para convencê-lo, porque o discurso foi considerado como a maior 658 - FERENCZY, Peter Andreas. A sustentação oral no plenário do Tribunal do Júri:Uma visão da defesa. in: Revista Forense. Janeiro-fevereiro-março de 1998, p. 468. 659 - ALEXY, Robert. Teoria da argumentação juridica. Tradução:Zilda Huchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2006, p. 75. 660 - PHILIPS, Susan U. Ideology in the languages of judjes. How judges, pratice law, politcs, and courtroom control .Oxford: Oxford Press, 1998, p. 13. 311 conquista que um homem culto poderia atingir. A disciplina da retórica foi o centro do processo educativo no oeste da Europa por mais de dois mil anos661. O triângulo retórico descrito - um aparelho conceitual ou instrumento de observação e análise do território da disciplina - tomou, até hoje, três formas ou manifestações retóricas, complementares entre si e cobrindo espaços e funções sociais diferentes: a clássica, a literatura especializada ou simplesmente literária e a comunicativo-funcional. Embora concomitantes, o pleno desenvolvimento de cada uma delas no tempo situa-se em momentos diferentes, respectivamente, na Antiguidade Clássica, no Renascimento, prolongando-se até ao século XIX, e na segunda metade do século XX. O espaço da primeira é bem conhecido, como sendo o tribunal e o fórum; o da segunda é a formação/ilustração dos altos funcionários do Estado; e o da terceira são as empresas, as organizações e as instituições662. Platão e Sócrates, em inúmeros de seus escritos, demonstraram a importância da retórica. Em seu Fedro, Platão representava Sócrates dizendo: “Não é a retórica, em geral, uma arte universal de encantar a mente com argumentos, que é praticada não só em defesa da lei e em assembleias públicas, mas também em casas particulares, tendo assim a ver com assuntos, grandes como pequenos?” Platão esteve principalmente preocupado com a ética, ou a utilização adequada de retórica. Ele não estava preocupado com os mecanismos de como a retórica persuade o ouvinte. Curiosamente, Platão acreditava que a retórica seria invariavelmente usada para o mal, o que parece irônico naquilo que ele mesmo usou para sua própria vantagem ao apresentar suas ideias663. Isso não significa, contudo, a outorga de uma carta em branco ao julgador, até porque a antes referida legitimação primária não pode ser delegada. Assim, nesses casos a obrigação de fundamentar as escolhas adquire uma feição peculiar, devendo o juiz demonstrar o racional apego aos standard na decisão concreta, sobretudo em função do produto do ordenamento como um todo, pois, esses utilizadores tem que obter a consolidação e a aceitação de valores dominantes da sociedade. 661 - VINSON, Donald E.; DAVIS,S. Davis. Jury persuasion. psychological strategies & trial techiniques. Glasser Legal Work, 1996, p. 25. 662 - REI, José Esteves. Vestigios da retórica clássica na comunicação social. In: A retórica greco-latina e sua perenidade. Actas do congresso. Iiv.Universidade de Coimbra, 1997 (pp.539-547), p. 544. 663 - VINSON, Donald;E. DAVIS, S. Davis. Jury persuasion. psychological strategies & trial techiniques, cit., p. 26. 312 Nesse sentido, o debate não pode extravasar as grandes linhas das decisões judiciais, e da efetividade, e sempre deve visar a consecução do bem comum, segundo o sistema acusatório, preservando-se os direitos e as partes. Assim, podem ser empregados os atos decisórios no desenvolvimento dos debates; o que está vedado, sob pena de nulidade, é o seu uso como autoridade. 4. O efeito da palavra oral nos jurados O efeito da palavra (tanto a escrita como a falada) produz-se nos juízos e nos tribunais em geral, e não somente no Júri. Dir-se-á que naqueles, os magistrados estão prevenidos e, conhecendo o direito, poderão separar o joio do trigo. Os jurados, não somente trazem as mesmas desconfianças, entretidas através da arte, da literatura, da imprensa, do rádio, do cinema, contra a magia e a alquimia profissionais, como ouvem, a cada passo do julgamento, advertências dos promotores. Neste contexto, ingressa como fator a liberdade do acusado, a garantia da plenitude de defesa, ocasião em que o defensor poderá utilizar-se de todo e qualquer argumento, desde argumentos pertinentes à lógica jurídica, até argumentos de autoridade664, falácias, retóricas vazias, e até mesmo, inclusive, em casos extremos, o argumento baseado na compaixão. É comum observar nos Tribunais do Júri, argumentos dos mais comuns utilizados principalmente pelo defensor do acusado, que, mesmo culpado, deve ser poupado pelo Júri, uma vez que primário e de bons antecedentes, e irá encontrar na cadeia um ambiente nocivo, para sua “educação criminal” ou o “aprendizado no mundo do crime”, que tornará o culpado, mais perceptível ao ambiente criminógeno das prisões. Neste contexto, podem ingressar ataques à acusação, até mesmo pessoais, aos Tribunais e instituições estatais. Também é muito comum entre os argumentos a “demonização” da pessoa da vítima, uma vez que pelo menos, e segundo estatísticas policias, 90% dos crimes de homicídios praticados no Brasil, estão relacionados com o tráfico ilícito de entorpecentes, 664 - No Brasil, os argumentos à autoridade durante o julgamento perante o Tribunal do Júri ficaram prejudicados, em face da nova redação conferida ao artigo 478, que determina que durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: a) à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; b) ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo. 313 sendo certo que as vitimas, dentro do contexto dos crimes contra a vida, tem alguma passagem pela polícia, em termos de antecedentes criminais. Estes e outros argumentos, estranhos em muitos casos ao juiz togado, trazem forte impressão no Tribunal do Júri, causando a absolvição do acusado, em processo em que o juiz monocrático certamente o condenaria, uma vez que além dos jurados estarem albergados pelo sigilo dos votos, ainda estão acobertados pela convicção íntima ou moral com que julgam o acusado. É de se observar que o jurado, conquanto indivíduo retirado das camadas sociais compreenda o apelo feito pela defesa, mesmo em argumentos que podem beirar a irracionalidade jurídica, e absolvem o acusado, justamente em razão destes argumentos, quer em face dos rituais adequados utilizados pela defesa, quer em razão da comoção que tais argumentos possam trazer ao corpo de jurados, em face de gestos teatrais da defesa. As influências que operam junto aos jurados também se exercem junto às testemunhas, aos delegados de polícia e, mesmo ao Ministério Público e à Magistratura. Quanto ao Ministério Público, reconhece-o a lei, tanto que lhe confere a faculdade de apelar. Por que não considerar as instruções tumultuadas ou desvirtuadas, as “pronúnciaschaves”, os conselhos formados à feição, as datas de julgamento fixadas de propósito, o jogo de substituições e outros expedientes? Por que não atentar nos mandantes excluídos dos inquéritos, apesar da notoriedade pública, tanto mais acintosa nos meios pequenos, nas testemunhas de encomenda e outros vícios? Mesmo que a independência seja reconhecida, os jurados são muitas vezes criticados como significativamente mais sugestionáveis do que “juízes profissionais”. Essa influência indevida pode ter como fontes principais a suscetibilidade, uma vez que são mais impressionáveis que os juízes profissionais. Os juízes têm o encargo de informar o júri sobre questões técnicas e jurídicas, e, em alguns sistemas, fazer um resumo do caso. Neste campo das suscetibilidades, o júri também tem muita sensibilidade para os encantos da retórica iniciada pelos representantes das partes. Os jurados são, muitas vezes, sensíveis, quer ao chamado argumento à piedade, em que o advogado de defesa roga aos jurados que não condenem o acusado a uma pena de prisão, quanto ao argumento da autoridade, muitas vezes provenientes do direito penal do inimigo, em que o Ministério Público consegue a condenação do (s) acusado (s) apenas munido com seus antecedentes criminais. Algumas aparições também são capazes de influenciar os julgamentos dos leigos, como, por exemplo, o fato do réu ostentar alguma coisa fora dos padrões de comportamento, 314 aceitos normalmente pela sociedade. Pode ser uma testemunha chave, de última hora, que cause um impacto no júri popular. O uso de algemas influencia negativamente a imagem do acusado, e é proibido o julgamento do réu algemado em alguns países. Da mesma forma, os antecedentes criminais são uma porta para a condenação665. O Tribunal do Júri é caracterizado pelo intenso debate entre acusação e defesa, no sistema ora conhecido como adversary system, que não se confunde com o princípio do contraditório, em especial no sistema anglo-saxão. Este sistema é conhecido pelo embate em igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Neste caso, o Ministério Público, representado pelo prosecutor, não age na fiscalização da lei, sendo inviável, o pedido de absolvição do réu, mesmo diante da dúvida, uma vez que o Promotor de Justiça tem como escopo a condenação do acusado. Na Commom law, a opção de submeter alguém a julgamento cabe a entidade diferenciada da que investigou. É o tribunal (magistrate court, magistrate, grand jury), e não a polícia, que toma aquela decisão, realizando um debate oral entre acusação e defesa, geralmente público (preliminary inquiry ou preliminar examination, por exemplo)666. Diretamente relacionada, eis a questão da compreensibilidade, que são os aspectos da oralidade e rapidez do julgamento, referindo-se ao grau em que os participantes do processo não podem se valer de materiais escritos, em como na imediaticidade da ouvida das testemunhas no tribunal. Em sistemas jurídicos onde um júri ou os juízes leigos estão envolvidos, a oralidade e a rapidez do julgamento são geralmente elevados. Os participantes leigos não devem ter quaisquer preconceitos e devem ter uma mente aberta quanto possível, por ocasião dos debates orais. Em um julgamento oral e imediato, o estudo e assimilação das 665 - Em um julgamento nos Estados Unidos ocorreu uma situação interessante: John Ditullio, 24 anos, foi acusado de participar de um grupo neonazista que ameaçavam e chegaram a matar pessoas que tivessem relações muito próximas com negros. Ocorre que John, a pedido de seu advogado, e que foi deferido pelo juiz da causa, vai ser maquiado todo o dia em que houver audiência para esconder as tatuagens que fez enquanto estava na prisão, entre elas há símbolos nazistas, arames farpados, palavrões, cicatrizes e entre outras, e o pior, tal serviço será bancado pelo Estado. A justificativa do pedido foi para não influenciar ou assustar o júri quando do julgamento, como disse o próprio advogado de Ditullio: “Nenhum jurado vai olhar para John e julgá-lo com imparcialidade. Com as tatuagens ele mete medo”. A situação é tal que somente na décima tentativa é que uma maquiadora aceitou fazer o trabalho, pedindo ainda o anonimato, e recebendo 125 dólares por sessão. (cf: Jus sperniandi. Disponivel em: «http://esperniandijus. blogspot. com/2010/12/e-imparcialidade.html. »Acesso em 10 de janeiro de 2011) 666 - FERREIRA, Marques. O novo Código de Processo Penal.In: Jornadas de direito processual penal. Coimbra: Almedina, 1991, p. 88. 315 evidências é mais direto e, portanto, mais confiável do que em uma situação onde as evidências encontram-se relacionadas em relatórios e entregues por escrito à decisão667. 5. A possibilidade de manipulação dos jurados no julgamento oral O julgamento oral envolve a utilização da oratória e, portanto da manipulação dos jurados. A propósito da manipulação do comportamento no âmbito de um julgamento, o filme “12 Angry Men (1957)” permite-nos abordar a interligação entre dois domínios aparentemente tão diferentes como a Psicologia e o Direito. Se passarmos do domínio do Direito à área mais vasta que é a Justiça, verificamos que, numa perspectiva global, os domínios da Psicologia e da Justiça estão interligados desde o fim do século XIX, sendo esta ligação bem visível nas teorias explicativas do crime desenvolvidas no âmbito da “Criminologia positivista”, da qual a escola positivista italiana (e nesta, Lombroso) é um dos exemplos mais conhecidos. Contudo, só a partir da década de oitenta se assiste a uma maior colaboração entre estes dois saberes, pois o cidadão começa a exigir não só que cada crime seja punido, mas também que a Psicologia explique as razões do comportamento do criminoso e ajude a vítima a ultrapassar as consequências do episódio vivido668. Na Inglaterra e nos Estados-Unidos, porém, existe o que se chama o “julgamento dirigido”. O Juiz, que preside o Tribunal do Júri, dirige os trabalhos, orienta os jurados. Tanta força é outorgada ao presidente da Tribunal do Júri, que ele, por ato próprio, pode rejeitar a decisão coletiva, dissolvendo o órgão quando o julgamento, no seu entender, não estiver de acordo com a realidade do processo, convocando, então, nova sessão, para levar o caso ao julgamento de outro Tribunal do Júri. Além disso, nos Estados Unidos, o veredictum tem de ser unânime e, se não obtido o "quórum" integral, os jurados se reunirão tantas vezes quantas forem necessárias para chegarem a um resultado sem discrepância. Quando se trata de réu confesso, o presidente do Tribunal do Júri pode julgar diretamente o processo, sem necessidade ou obrigatoriedade de submeter o caso à apreciação dos jurados. Por conseguinte, o poder, a competência, a 667 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p. 3. 668 - QUEIRÓZ, Cristina. O júri:Quem manipula quem, ou o contributo da psicologia no estudo do jurado. in: Julgar. Nº 10, 2010, p. 182. 316 autoridade que possui o juiz togado que preside o julgamento, tanto na Inglaterra, como nos Estados Unidos, é enorme, muito acima das prerrogativas e responsabilidades dos jurados669. O fato é que o jurado, exatamente por não pertencer ao meio jurídico, e desconhecer o discurso jurídico, muitas vezes ignora a diferença existente entre técnica de convencimento através da oralidade e técnicas de manipulação, que pode ser levado a efeito de várias maneiras como se verá. Muitos autores têm sugerido uma forma de evitar a manipulação dos jurados. O recrutamento de jurados entre aqueles que têm uma certa escolarização é uma delas. A democratização do Júri, portanto, exigem, ao lado da idoneidade, também a capacidade intelectual, o bom senso e o equilíbrio, pois à toda evidência o ignorante será um jurado facilmente sugestionável, sujeito à manipulação das partes. Isso não impõe naturalmente diploma de escola superior, mas exige capacidade de compreensão e entendimento do significado dos atos de que vai participar670. Não cremos, contudo, que a escolaridade evitará a manipulação, uma vez que sempre subsistirá a falta de compreensão da linguagem que é falada. Desta forma, é comum, mesmo os advogados que tem notável saber jurídico, não empregar o saber jurídico, quando dos debates em plenário, ao invés lançar mão dos argumentos cotidianos junto aos jurados, tais como o ataque aos organismos que investigam o crime e são responsáveis pela persecução penal, como a polícia e o Ministério Público, a legítima defesa muitas vezes sem fundamento, os argumentos à autoridade, misericórdia etc. 6. Rituais e simbologia do Tribunal do Júri: a encenação como objeto da ritualista do Tribunal do Júri Pode-se dizer que o direito é argumentação, ou seja, o fundamento racional das normas jurídicas e das decisões judiciais há-de ser buscado nas argumentações, o que aponta tanto para uma análise do conhecimento e do processo de produção do direito quanto para sua 669 - LIMA, Alcides Mendonça. Júri: instituição nociva e arcaica.In: Revista forense, vol; 313. n.19.6. São Paulo: RT, 1961, p. 201-202. 670 - BONFIM, Edilson Mougenot. Júri: do inquérito ao plenário. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38. 317 aplicação. Em outras palavras, e na terminologia da doutrina alemã, uma análise, de um lado, do discurso de justificação ou de fundamentação e, de outro, do de aplicação671. Indubitavelmente, os debates no plenário do Júri provocam as mais desencontradas paixões, tanto dos críticos quanto dos defensores da instituição. Na dialética desse momento, o debatedor vale-se de duas contingências que, mesmo separáveis, no mais das vezes são apresentadas juntas: a) o discurso, como manifestação oral persuasiva, utilização da retórica, da “conversa amiga, macia”, da contundência ordinatória, do apelo emocional,etc.;b) a interpretação cênica, mímica, teatral, irreverente, gesticular672. A ritualística do júri tem o seu momento maior por ocasião dos debates. Havendo uma pessoa apenas em julgamento, o tempo será de uma hora e meia para cada umas das partes defesa e acusação. Na hipótese de haver mais de um acusado, o tempo é aumentado em uma hora, independentemente do número de réus. É nos debates entre acusação e defesa que a sorte do acusado será decidida. Como ocorre esse embate entre acusação e defesa? Os mais diferentes tipos de discursos e recursos retóricos são utilizados no plenário. Estilos gongóricos, teatrais, “técnicos”. Alguns julgamentos tornam-se burlescos. Há julgamentos, como o que condenou José Rainha, líder do MST, a 26 anos de prisão, em que um dos 671 - SANTOS, Fernando Ferreira. Direitos fundamentais e democracias. O debate Habermas- Alexy. Curitiba: Juruá, 2008, p. 63. Acerca do jogo cênico no processo, cf: Porque o poder precisa ser exteriorizado para ser visto e respeitado, o julgamento deve constituir uma apresentação dramática e pública dos símbolos que representam o poder de julgar. Max Ascoli, p.ex., vê no processo penal uma espécie de representação sacra na qual, com procedimentos teatrais, o delito é reconstituído e julgado. Em especial no júri transcorre um duelo não só retórico como também cênico, um verdadeiro espetáculo teatral, em que se procura explorar os impulsos dos jurados mediante uma dramatização que mescla suas emoções com as angústias das personagens do crime. Depois do julgamento, a própria punição também tende a ser um espetáculo, como bem observou Nietzsche. Como um ato político de manifestação e reafirmação do poder, também precisa de publicidade. Com tudo isso devidamente potencializado pela sociedade do espetáculo, lutar contra a espetacularização do processo é tarefa inútil. Porque o processo é um "primo" do teatro. O primo chato. "Historicamente, o julgamento é moldado com base no teatro e oferece aos litigantes e à sociedade (o público) o tipo de catarse que o teatro promove. Daí que o processo é inerentemente dramático, in: BECHAR,L.A.Qual é o jogo do processo?Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris,2012,p.202. 672 - NASSIF, Aramis. Júri: Instrumento da soberania popular. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 121. 318 advogados, assistente da acusação, chegou a se ajoelhar e chorar. Enfim, existem tantas formas e maneiras de atuação em plenário quanto são os protagonistas do espetáculo673. No Tribunal do Júri, existe um discurso recorrente por parte de praticamente todos os promotores e em quase todos os julgamentos. Os promotores dizem: “o promotor não é um acusador sistemático”. “O promotor está aqui para defender o interesse da sociedade”. “O promotor é o advogado da sociedade”. “O promotor está aqui para fazer justiça; nós somos promotores de justiça”. “O promotor defende o interesse público e o advogado defende o interesse privado do acusado”. Arremata, declarando esses discursos, no contexto de julgamento no plenário do Tribunal do Júri, ganhando uma dimensão retórica de valorização do papel do promotor e desvalorização do papel do advogado perante os jurados674. Por seu turno, o Tribunal do Júri, regido pelo princípio da oralidade, tem nos discursos da acusação e da defesa, o sustentáculo final da condenação ou absolvição. O caráter cerimonial da sessão de julgamento e o atuar teatral das partes envolvidas aspectos não muito acolhedores a um leigo convocado para compor o tribunal - acabam, às vezes, por influenciar o espírito do jurado de modo a lhe retirar a tranquilidade necessária à realização de um julgamento equilibrado. A atenção que o jurado deveria dispensar em relação à prova, não raro, é deixada de lado, cedendo espaço à situação de perplexidade, originada pelo novo e estranho ambiente. Registra-se ainda a superficialidade de seu trato em relação ao conjunto probatório quando, na formação de sua convicção, ele prefere o encanto da oratória e declamações sentimentais aos ditames da razão675. A instalação da fé cênica é um estado de prontidão psicofísica para a realização de uma determinada tarefa. Para obter a fé cênica, necessário se faz acreditar no que é imaginário. Portanto, se o orador não acreditar no conteúdo dos autos, não acreditar piamente na possibilidade de fazer prevalecer suas argumentações, estará prejudicada a instalação da mencionada “fé cênica”676. Os jurados não se comoverão. Não conseguirão, apesar de 673 - STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos & rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 98. 674 - FIGUEIRA, Luis Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 36. 675 - GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do Júri. Aspectos críticos relacionados à prova. São Paulo: Atlas, 2008, p. 8. 676 - KUSNET, Euzênio. Atar e Método. Rio de Janeiro: SNT, 1975, p. 64. 319 esforçarem-se para tanto, acomodar-se em suas próprias cadeiras. Os jurados, entediados, irão devanear, pensando talvez no saldo negativo da conta bancária, na atuação do defensor em sessão anterior, recordar problemas pessoais, etc. Esta “instalação da fé cênica” deve necessariamente ocorrer em dois níveis. Primeiro: de forma objetiva, com a finalidade de captar a atenção dos jurados, de forma que não lhes reste a possibilidade de desviarem suas atenções em devaneios. Segundo: de forma subjetiva, com a finalidade de permitir a comunicação emocional entre os jurados e o orador. Comunicação emocional, semelhante à do espectador que está a chorar ou a rir diante de um bom filme projetado no cinema677. A qualidade de uma história não depende apenas da medida em que está em conformidade com a evidência do processo, mas também sobre a coerência de uma história e sua plausibilidade, isto é, o conhecimento geral do mundo à nossa volta. Josephson (1994) argumenta que “devemos aceitar ser cautelosos sobre uma hipótese, mesmo se ela é claramente o melhor que é apresentado pelo narrador, mas não é suficientemente plausível em si mesma”. A coerência de uma história no âmbito do Tribunal do Júri pode de “per si” influenciar no veredicto, independentemente da prova. Na verdade, como Bennett e Feldman, têm mostrado, a confiança das pessoas em uma história muitas vezes não depende se ela realmente aconteceu, mas na coerência da história. Em um experimento, eles pediram 85 alunos para avaliar a verdade das histórias e o que foi dito por outros alunos. Alguns destas estórias eram realmente verdadeiras (isto é, os acontecimentos narrados como realmente tinham acontecido) e outras histórias foram inventadas. A relação entre aqueles que acreditaram na verdade das histórias dependeu essencialmente da coerência e da estrutura da história678. Já na velha Grécia, no século V antes de Cristo, conhecido pelo século de Péricles, os sofistas criaram a retórica (arte da palavra ou da oratória), mediante a qual procuravam arrastar o povo e chegar ao poder. O vestuário das imagens, a emoção da palavra e o vigor teatral do orador, eis os instrumentos postos ao serviço dos objetivos a alcançar, com desrespeito pela verdade que saía ardilosamente maltratada e manipulada. Mas cedo esta má 677 - FERENCZY, Peter Andreas. A sustentação oral no plenário do Tribunal do Júri:Uma visão da defesa, in: Revista Forense. Janeiro-fevereiro-março de 1998, p. 468. 678 - BEX, Flóris J. Arguments, stories and criminal evidence.A formal hibridy theory. Springer: Universidade of Dundee, 2002, p. 96. 320 retórica veio a sofrer os golpes sagazes de Sócrates e acabaria por ser reestruturada e dignificada com Platão e Aristóteles679. Até mesmo a democracia é objeto da ritualística do Tribunal do Júri. É comum o Ministério Público, recorrer a duas figuras de linguagem em seus discursos: a) “no Tribunal do Júri é o povo julgando”; b) “o júri é soberano para decidir como quiser”. Esses dois discursos são reiteradamente produzidos e reproduzidos por advogados e membros do Ministério Público no contexto das práticas judiciárias e contribuem, de forma decisiva, para o processo de produção e circulação das representações sociais sobre essa instituição. De acordo com o senso comum jurídico, o Tribunal do Júri é uma instituição popular e democrática. Segundo essa visão, o julgamento pelo Tribunal do Júri é uma forma de participação popular na administração da Justiça, realizada por pessoas do povo680. Podemos identificar os processos de acumulação de riquezas e do poder das armas, ocorridos do meio para o fim do século XII, com a constituição e a concentração do Poder Judiciário nas mãos de alguns poucos. Naquele momento, surgiu com vigor a Justiça centralizada e verticalizada, a qual retirou dos cidadãos o direito de “resolver, regular ou irregularmente, seus litígios”, fazendo com que passassem a “submeter-se a um poder exterior a eles, que se impõe como poder judiciário e poder político”. Foucault, em apertadíssima síntese de sua obra, demonstrou, reiteradamente, que a apropriação da administração da Justiça e dos procedimentos judiciários pelo poder político permitiu que este se ampliasse, também por meio da elaboração de novos conceitos e figuras que acompanharam aquele movimento de tomada de poder, tais como o inquérito, os autos, as cortes togadas e o Procurador (que surgiu para “dublar a vítima” no cenário judicial): “As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça”681. Ao nível da macronarrativa, o julgamento pelo júri é, em muitos aspectos significativo, canonicamente construída em termos de estrutura clássica linha laboviana. Ele oferece uma introdução e informações básicas para o caso durante as declarações de abertura, uma apresentação dos eventos no crime, perguntas às testemunhas, e um resumo final de avaliação 679 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 57. 680 - FIGUEIRA, Luis Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 131. 681 - FOUCAULT, Michel.A verdade e as formas juridicas. 3ªed, trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 67. 321 nos argumentos de fechamento. O julgamento então constrói a um clímax durante o processo de deliberação, concluindo com uma resolução na forma de um veredicto682. Truman Capote nos dá um exemplo dessa ritualística do Tribunal do Júri, na figura de um velho advogado, ao fazer a defesa de Perry Smith e Richard Hickock, quando utiliza um velho truque de oratória: o advogado ao ler as escrituras finge que se perdeu e depois prossegue: “como fez Green neste momento: Não interessa. Creio ser capaz de repetir de cor. No Gêneses, nove, versículo seis: Quem derramar sangue humano, verá o seu sangue derramado pela mão do homem”683. De outro lado, encontramos o exemplo de Paulo, apóstolo dos gentios, cuja retórica tinha grande poder de convencimento. Paulo, no Areópago, por exemplo, começa sua conferência de maneira humilde (mas só na aparência), para ir ganhando autoridade ao longo do discurso e poder se impor ao chegar no final de sua exposição, o que também significa na superação do cristianismo em relação à religião grega e pagã em geral684. Na Espanha, a cenografia e a disposição dos atores alcança uma especial relevância no que pode ser determinante de impactos psicológicos e que, de alguma maneira, influenciam na percepção do que acontece na sala. A excessiva relevância do magistrado presidente, como se vê nas películas norte-americanas, pode dar a impressão que os jurados cidadãos ocupam uma posição secundária ou subordinada. A única previsão ambiental que contempla especificamente é relativa ao lugar do acusado, que se encontra situado de forma que se possibilite a sua imediata comunicação com os defensores (artº 42,2 da LOTJ)685. A doutrina americana registra, a propósito desta questão, de uma verdadeira multidão, alinhados ao redor da praça do tribunal, a testemunhar a presença de pessoas de cada vila e município. Alguns estão presentes como atores (papel beatifico) e alguns espectadores. Durante dias e dias o drama se desenrola. O bem e o mal são representados ora por um conjunto de atores, agora por outro. O jogo tem muitos atos, como um melodrama chinês. Ele 682 - CONTERILL, Janet. Language and power in court. A linguist analisys of the O.J.Simpson Trial. New York: Palgrave Macmillan, 2004, p. 23. 683 - CAPOTE, Truman. A sangue frio. Trad. Maria Isabel Braga. Lisboa: Biblioteca Visão, 2000, p. 283. 684 - NAVA, Manuel Guillén de La. El discurso de Pablo el Areópago (Hechos 17,22-31): Un ejemplo de la adaptácion de la retórica cristiana al estoicismo, in: A retórica greco-latina e sua perenidade. Actas do congresso. Liv. Universidade de Coimbra, 1997, p. 544. 685 - MARTÍN PALLÍN, José Antonio. El jurado, otra forma de justicia? Poder judicial, Madrid, 3. Época n. 45, 1997, p. 203-239. 322 tem a unidade de tempo, lugar e pessoas que vem ao julgamento, como quem vai ao futebol, e ele tem um ódio escuro, emocionante como uma folha de aventura temível da virtude. Vizinho está lutando contra o vizinho, parente contra parente. As apostas são altas, por sorte pode mudar de mãos na palavra de uma testemunha ou a maquinação inteligente entre os oradores forenses. Corações podem ser quebrados pelo voto do júri. Famílias podem ser separadas ou envolvidas em brigas ou talvez o mais horrível e mais sedutor de todos os dramas, um ser pode ser condenado a morrer. Não há dúvida de que muito em geral em todo o país, por várias gerações, os ensaios do Tribunal do Júri, tem satisfeito o desejo natural do ser humano para o melodrama686. A ritualística do Júri, representada por jargões próprio do Tribunal, como as citações bíblicas, a macronarrativa, o apelo à emoção, a teatricidade, o vestuário, o apelo, á democracia etc. 7. Fatores que influenciam a decisão dos jurados: O sentimento e a emoção Já no ano de 1890, em Portugal se chegava a uma conclusão que o Tribunal do Júri não era o melhor dos mundos como dizia Voltaire em seu Cândido ou otimismo. Com efeito, já se discorria que embora fosse uma das mais belas conquistas do regime liberal, nem sempre esta instituição - é força confessá-lo - corresponde ao ideal do legislador e ao ideal da justiça. As funções de jurado, desempenhadas gratuitamente, investem o cidadão numa espécie de sacerdócio que ele nem sempre está habilitado a desempenhar com a necessária competência. Nem todos compreendem o seu elevado papel, e quase todos o consideram não como um sagrado dever social, mas como um encargo pesadíssimo, de que desejam ver-se aliviados o mais rápido possível. Se há muitos que tem boa vontade de acertar e de cumprir o seu mandato, a maior parte dos jurados não possui, todavia, a instrução e a independência suficientes realizar a função augusta e sagrada que a lei declinou neles como juízes. Muito mais que da sua inteligência, a aplicação da justiça depende da sensibilidade do jurado. Como sucedem em todas as multidões, os jurados são intensamente impressionados pelo sentimento e muito pouco pelo raciocínio (Le Bon). “Não resistem à vista de uma mulher que amamenta, ou de um desfilar de órfãos”. Excitar a compaixão dos jurados mover-lhes o seu sentimento para abafar os imperativos da razão, é recurso usual na prática judiciária. 686 - GLEISSER, Marcus. Juries and Justice. New York: A. S. Barnes, 1968, p. 30. 323 Prosseguindo, aduz que com esse sentimentalismo quase mórbido do nosso povo imprevidente e generoso, quantas injustiças não se comete, e quanta vez esses gestos de magnanimidade, ditados por corações transbordantes de bons sentimentos, não vêm cair sobre a própria sociedade que os faz, e novos crimes que a impunidade estimula687? Ao recordamos o fracasso de jurado em nossas experiencia histórica, suas discrepâncias existentes enquanto o tipo do jurado a estabelecer (fundamentalmente, a polêmica entre os partidários do jurado puro ou anglo-saxão e os defensores do modelo escabinado); fato é que a justiça será mais cara e mais lenta com o jurado; a insuficiência dos meios materiais; bem como a falta de interesse dos cidadãos em formar parte dos jurados, é um fato que não podemos explicar a apatia do legislador durante estes anos.688 A atitude dos júris tem sido conhecida por mitigar os rigores da lei penal e levaram à reforma nas primeiras décadas do século XIX, todos os crimes (cerca de 146 deles, com exceção do furto e desordem) foram, em tese, puníveis com a morte. No século atual, os jurados que eram eles próprios os motoristas, estavam relutantes em condenar pessoas acusadas de homicídio culposo causados por veículos, que poderiam em tese ser punidos com uma sentença de prisão perpétua. Por essas razões, em 1956, o parlamento criou o ilícito, menos sério, de causar morte por condução perigosa, que levou uma pena de prisão até cinco anos (Road Traffic Act 1956, S. 8, mais tarde contidas no Road Traffic Act 1988 S. 1) 689. 7.1. O acompanhamento da prova pelos jurados Os jurados podem ser incapazes de seguir a prova em um processo longo e complicado de calúnia ou fraude comercial, em face da sua inexperiência e desconhecimento, o que pode significar que eles são facilmente influenciados pelo que as partes podem dizer-lhes, em detrimento das questões reais no caso. Conhecendo estas deficiências dos jurados, o governo inglês decidiu introduzir mudanças legais destinadas a tornar mais fácil para os jurados acompanhar o processo. Essas alterações estão contidas na Criminal Justice Act 1987. Em um caso de fraude, grave ou complexa, um juiz do Tribunal da Coroa pode ordenar a realização de uma “audição” de preparação antes do júri, se reunir para deliberar, se considerar que tal audição produzirá benefícios substanciais. Os benefícios que podem advir de uma audiência 687 - CAMARGO, Odecio Bueno. Patologia do Júri. São Paulo: RT, 1989, p. 3. 688 - CAMARGO, Odecio Bueno. Patologia do Júri, cit, p.23. 689 - INGMAN, Terence. The english legal process. 7. ed. London: Blackstone Press Limited. 1994, p. 187. 324 preparatória podem ser listados como: (a) as questões de identificação que possam ser relevantes para o veredicto do júri; (b) apoiar a compreensão do júri destas questões; (c) agilizar o processo perante o júri; (d) apoiar a gestão do juiz do Tribunal do Júri. Este fato, talvez se deva à regra de decisão social (SDR690), que se refere ao indivíduo como sujeito de preferências para serem combinadas e produzir a decisão do grupo. O fato é que os membros do grupo devem concordar, a fim de que prevaleça a decisão do grupo. As regras da decisão do grupo passam por um reconhecimento da diversidade de pessoas e preferências que possam estar presentes em qualquer grupo, e a necessidade de resolver o problema da diversidade em uma decisão em grupo único. Desta forma, podemos ter as seguintes hipóteses: a) a decisão do grupo não contém nenhuma diferença de opinião e pode chegar a um consenso em tudo; b) algum critério é necessário para especificar o que é “chegar a uma decisão do grupo”, como por exemplo, todos os membros devem concordar? Ou pode uma maioria substancial prevalecer? Ou talvez uma maioria simples deva ser suficiente? Ou talvez um veto a alguma regra possa funcionar691? No entanto, deve haver espaço para a variedade cidadã de se manifestar em diferentes expressões de resposta e, portanto, para persuasão. A vida política só prospera na indeterminação. Ela nunca explicita que o leque de opinião válida é infinitamente grande, ou que devemos utilizar as palavras certas ou erradas em uma discussão pública ou debate. Isto é uma distinção entre uma confinada indeterminação e um modelo de insolubilidade. Os valores absolutos do júri consistem em grande parte na sua indeterminação. O júri embora extremo em suas decisões, é também consciente de que existem diferentes pontos de vista, dos dois lados do tribunal, a partir do qual você pode olhar para o caso. Isto é uma matéria de interesse público comum692. A comunicação é o mais importante aspecto do julgamento. Sessenta por cento do total da mensagem é transmitida de forma não-verbal. Trinta por cento é transmitido através da voz, e apenas dez por cento dos ouvintes interpretam a mensagem total com suas próprias palavras. As decisões do júri são baseadas nas comunicações recebidas, tanto de forma verbal como na forma visual. Os comunicadores se referem a esta singular forma de relação, como 690 691 - Social decision rule - SAKS, Michael J. Jury verdicts. The role of group size and social decision rule. Massachusetts: Lexing Books, 1977, p. 17. 692 - KATEB, George. Hannah Arendt, politics, conscience, evil.Oxford: Publisher, Rowman & Allanheld, 1984, p. 23. 325 uma fórmula internacional designada pela equação: 60-30-10. Como se podem ver, noventa por cento do significado total de nossa informação é interpretado de forma não-verbal, através da inflexão de voz e do comportamento visual, que revelam nossos sentimentos e atitudes sobre nossas palavras. O advogado que ganha o julgamento verbal, mas perde o julgamento na parte visual tem uma oportunidade de ganhar a causa diminuída. A comunicação com os jurados aumenta a garantia de que os aspectos visuais e verbais são efetivados no julgamento, ante o fato dos advogados interagirem com os jurados. O tribunal é um pouco diferente da maioria dos ambientes sociais uma vez que o julgamento se decide através do processo de comunicação693. 7.2. O jurado e o “pânico moral” Pode também influenciar as decisões do Tribunal do Júri o pânico moral, termo que foi introduzido por sociólogo britânico Stanley Cohen em um estudo de como a sociedade britânica respondeu a confrontos entre jovens de motocicletas e policiais. O historiador Philip Fenkins explica que a palavra pânico implica não só o medo, mas um medo descontrolado, exagerado e mal dirigido. A teoria do pânico moral é um ramo da teoria da construção social, segundo o qual, periodicamente, as sociedades “descobrem” os problemas sociais que são trazidos à atenção coletiva por ativistas ou reivindicações de decisões694. Sociedades parecem ser objetos, agora e sempre, a períodos de pânico moral. A condição, episódio, pessoa ou grupo emerge para se tornar definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa; as barricadas morais são preenchidas por editores, bispos, políticos, e outras pessoas com pensamento de direita. Especialistas credenciados pela sociedade anunciam seus diagnósticos e soluções; formas de confrontamento são envolvidas ou (mais comum) são utilizados para, a condição então desaparecer, submergir ou deteriorar e então se tornar mais visível.695 693 - VINSON, Donald E.; DAVIS,S. Davis. Jury persuasion. psychological strategies & trial techiniques. Glasser Legal Work, 1996, p. 6. 694 - HUFF, C. Ronald; KILLIAS, Martin. Wrongful Conviction. International Perspectives on Miscarriages of Justice. Filadelfia: Temple University press, 2008, p. 26. 695 - COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and the Rockers. Oxford: Basil Blackwel,1987,p.86. 326 Podemos citar a ironia de Nerinx, que declara que “o sistema do júri consiste em tomar uma equipagem de doze homens: um médico, um padre, um negociante, um banqueiro, um lavrador, um industrial, um rendeiro, um vagabundo, um vendeiro e um astrônomo. Coloquese essa extravagante tripulação sob a guia de um navegante experimentado (o juiz), mas que não conhece ainda o navio em que o embarcam: largai ferros e fiai-vos na Providência Divina para boa viagem”696. 7.3. Fatores de liderança e decisionismo no âmbito do Tribunal do Júri O discurso jurídico e a oralidade é a base piramidal do direito 697. A manipulação, no entanto, é a outra vertente do discurso e envolve: a) a retórica vazia embora sofisticada; b) a mentira e o engodo; c) o ardil e a fraude; d) a omissão. Como os jurados decidem sobre um veredicto? Embora o veredicto deva refletir apenas as evidências, no caso, a pesquisa revelou que muitos outros fatores podem influenciar significativamente os jurados em seus pensamentos e emoções e, portanto, potencialmente seus veredictos. Os jurados têm atitudes e crenças sobre a natureza humana, a lei, e os processos legais são potencialmente significativos (mas não necessariamente inevitáveis). As influências sobre os veredictos incluem as percepções dos jurados, o caráter, os motivos e comportamento dos principais intervenientes no drama legal, como o réu, a vítima, o juiz, os procuradores, que representam uma categoria de fatores extrajurídicos que podem influenciar significativamente o veredicto padrão do júri. A opinião dos jurados sobre a futura periculosidade do réu, a proporcionalidade da pena potencial do réu para o crime, e outros fatores legalmente irrelevantes também podem influenciar o veredicto698. No sistema legal de Portugal, a principal limitação para o estudo do júri está relacionada com a proibição de os jurados realizarem declarações sobre o caso sobre o qual decidiram ou tenham sido designados para decidir. Se assim o fizerem, serão punidos com pena de prisão de até seis meses ou multa de até 200 dias (artigo 16º do Decreto-Lei nº 387-A/87, de 29 de dezembro). Isto limita a possibilidade de realizar estudos de campo que incluam jurados reais, ou aplicar entrevistas ou questionários a cidadãos que já participaram como jurados, 696 - CAMARGO, Odecio Bueno. Patologia do Júri. São Paulo: RT, 1989, p. 7. 697 - ARANHA, José Q.T. de Camargo Aranha. Da prova no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2004, p.128. 698 - LEVINE, J. P. Juries and politics. Belmont: Brooks/Cole Publishing, 1992, p. 32. 327 metodologias que proporcionam resultados mais generalizáveis. A análise de decisões judiciais reais tomadas por um Júri poderia ser uma metodologia a utilizar, mas a amostra seria necessariamente pequena, dada a escassa utilização do Tribunal do Júri em Portugal. Acrescenta-se a este fato a dificuldade de comparação entre os casos recolhidos, pela diversidade dos mesmos e das situações analisadas. No direito americano, há um fator que é enfatizado pela doutrina, por força do sistema de júri, adotado por aquele país: a deliberação que os jurados fazem entre si, e a existência de um jurado-presidente (foreperson), que é aquele jurado escolhido, sorteado ou mesmo indicado, que irá presidir a deliberação na sala de audiências. Dentre os 12 jurados (ou mais ou menos, conforme a legislação de cada Estado), vão sair àqueles que serão os líderes deste grupo, como existe em qualquer comunidade complexa ou mesmo tribal. Estes líderes poderão fazer a diferença em um julgamento, quer pela sua experiência anterior como jurado quer pela aptidão natural para a liderança, quer pelo fato de exercerem a liderança entre os jurados (foreperson). Estes jurados são os donos do poder em um julgamento do Tribunal do Júri. Desta forma, e em amplo espectro democrático, o veredicto é atingido por agentes do poder e seguidores. Os donos do poder são aqueles a quem outros jurados vão olhar para o conhecimento, direção e liderança. Eles são os jurados que irão determinar a inclinação das deliberações, o tipo de perguntas que serão feitas pelo júri e do resultado final. Seguidores assumem um lugar importante em um júri, pois eles tendem a ser bons ouvintes, e, porque eles não podem assumir um papel ativo nas deliberações, muitas vezes vão emitir uma opinião, que os agentes do poder podem pegar e colocar como parte do processo de tomada de decisão. Um foreperson eficaz irá transformar um seguidor em um jogador ativo. Por isso é importante, quando se olha para a composição do júri, distinguir quem vão ser donos do poder e quem serão os seguidores durante o julgamento. Muitos advogados acreditam que os donos do poder vêm apenas do maior suporte socioeconómico, mas, na verdade, eles vêm de diferentes formações e experiências. Identificar o seguidor é um apelo mais subjetivo que objetivo. As pessoas têm muitos preconceitos sobre quem é um seguidor e quem não é. Os advogados podem detectar quem tem tendências definitivas de líder e seguidor, e podem ver isso como uma oportunidade de ouro para emergir um líder, que pode fazer prevalecer as teses da acusação ou da defesa699. 699 - VV.AA. Grand Jury Law and practice. 2 ed,.Vol. 2. Tomson West, 2010, p. 281. 328 Ana Paula Zomer ratifica o seu posicionamento contrário à incomunicabilidade, porém não entende adequado seguir-se o modelo americano, em que é escolhido o jurado-líder, defendendo que a existência de hierarquia entre os jurados poderia significar uma redução da sua independência e, assim, modificar o rumo do julgamento. “Como a possibilidade de deliberação é prática comum nos sistemas que preveem a participação popular na justiça, causa perplexidade o faro de que os jurados brasileiros não possam comunicar-se entre si. Confesso que, em uma primeira análise, a interação do Conselho de Sentença que delibera parece solução a ser adotada. Entretanto, a eventual existência de um jurado líder, quero crer, ameaça as primeiras certezas. Com efeito, imaginar uma hierarquia entre os juízes de fato, na medida em que tal escalonamento lhes possa tolher a independência e o poder de decidirem de acordo com suas consciências, preocupa. Um país como o Japão, que tenta reintroduzir o Júri, suspenso por ocasião da segunda grande guerra, vê com bons olhos a incomunicabilidade, posto que, constituindo hierarquia e harmonia pilares daquela sociedade, a mera existência de um jurado ancião no Conselho de Sentença poderia mudar os originários rumos do julgamento." 700 7.4. O Tribunal do Júri e os crimes capitais Nos crimes capitais, passíveis da pena de morte, o aconselhamento é uma experiência estressante e emocional, uma tributação intelectual, quer em relação a quem fornece o aconselhamento e quer a quem os recebe. Nos Estados existem leis específicas para orientar os jurados, bem como muitas regras e orientações para ajudar os jurados chegar a uma decisão legal e vinculativa. É rotineiramente comum a Suprema Corte dos Estados modificar as regras pelas quais os jurados devem tomar as decisões. Muitas dessas diretrizes atualizadas giram em torno de questões de instruções de condenação, incluindo a capacidade do júri para considerar quaisquer fatores atenuantes, bem como fatores agravantes não anteriormente definidos em estatutos, e questões como a periculosidade do defendente no futuro, bem como a segurança da sociedade701. 700 - ZOMER, Ana Paula. Tribunal do Júri e Direito Comparado: sugestões para um modelo brasileiro. Boletim IBCCrim. São Paulo, v. 8, n.95 esp., out., 2000, pp. 10-11. 701 - CONNEL, Nadine M. Death by Jury.Group Dynamics and Capital Sentencing. El Paso: LFB Scholarly Publishing LLC, 2009, p. 23. 329 Haney e Lynch, analisaram os argumentos de vinte casos capitais da Califórnia, que tiveram lugar a partir de 1983 a 1995. Segundo os autores o deficit de atenção dos jurados cai surpreendentemente quando dos esclarecimentos das instruções relativas aos julgamentos relativos à pena capital. Os advogados ao definirem “agravantes”, em seis dos casos, proporcionaram alterações de redação incorreta da Lei e da Jurisprudência, o que importou em graves erros judiciários, em relação à aplicação da pena capital702. Entre os problemas que enfrentam o Tribunal do Júri, nos casos de sentença capital, podemos citar: 1) o fato dos jurados tomarem decisões prematuras com base nas suas conclusões pessoais; 2) a falta de representatividade na seleção dos jurados que apresenta falhas,com vários jurados pró pena de morte; 3) falha generalizada de jurados para compreender as instruções do juiz, especialmente nas formas como eles se relacionam com circunstâncias agravante e atenuantes; 4) confusão acerca da necessidade da pena de morte e sua necessidade em um condenado por um crime capital; 5) recusa da responsabilidade individual dos jurados como membro do grupo; 6) influência racial no processo de tomada de decisão; 7) subestimação da alternativa da pena de morte 703. 7.5. O perfil médio dos jurados e sua repercussão e influência das decisões do Tribunal do Júri A pesquisa sobre o perfil dos jurados foi baseada principalmente em entrevistas e observações, como nos estudos de Alschuler, 1968; Mather, 1974; Rosett e Cressey, 1976; Newman, 1956; Newman, 1966,bem como baseado em análises estatísticas de registros disponíveis, nos estudos de Bernstein et al. 1977; Heuman, 1975; Rhodes, 1979, autores citados por Nadine M. Connel, também baseou-se principalmente nos estudos similares e resultados realizados entre membros do Ministério Público americano. 704 O estudo ainda se baseou em pesquisas realizados no direito brasileiro e comparado acerca do perfil dos jurados e da doutrina. Poderíamos mencionar igualmente, os muitos fatores que hipoteticamente podem influir na convicção dos juízes leigos, desde a sua própria experiência de vida, a opinião de terceiras 702 - CONNEL, Nadine M. Death by Jury.Group Dynamics and Capital Sentencing, cit., p 10. 703 - CONNEL, Nadine M. Death by Jury.Group Dynamics and Capital Sentencing,cit., p. 26.(citações dos autores no original) 704 - MEYER Jon'a F.; GRANT R. Diana.The courts in our criminal justice system. Prentice Hall. 2008, p.361. 330 pessoas junto a elas, e a incidência de informações de assuntos judiciais publicadas nos meios de comunicação social.705 Os estudos sobre a tomada de decisão judicial utilizaram metodologias diferentes, segundo a fonte de dados a utilizar. Em primeiro lugar, têm-se realizado estudos de campo, metodologia que resulta de grande utilidade como fonte de dados sobre as deliberações reais. Também foram realizadas análises de decisões reais, quer utilizando como fontes de dados a consulta dos arquivos judiciais, com o objetivo de analisar aqueles acórdãos nos quais interveio o Tribunal do Júri, quer utilizando como fonte os próprios jurados, através de entrevistas ou questionários. Finalmente, alguns estudos utilizam júris simulados como forma de reproduzir a situação real, controlando ao mesmo tempo variáveis que não poderiam ser controladas através de outros métodos. Em Portugal, as questões relativas à deliberação e votação do Júri encontram-se no Código de Processo Penal (Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto), mais concretamente no artigo nº 365º. De acordo com a Lei, a deliberação começa depois de encerrado o julgamento, sendo dirigida pelo presidente do tribunal. Cada elemento do Júri enuncia os motivos da sua opinião, assim como os meios de prova que serviram para formar a sua convicção. Cada uma das questões será votada de forma independente das outras. A votação será realizada da seguinte maneira: votarão primeiro os jurados, por ordem crescente de idade, e depois os juízes, começando pelo juiz com menor antiguidade de serviço. O presidente recolhe os votos, e votará em último lugar. A decisão será tomada seguindo uma regra de maioria simples, sem se admitir a abstenção. A metodologia mais adequada no nosso sistema legal seria a utilização de Júris simulados. Porém, muito embora este seja um método considerado eficaz para estudar os processos psicológicos sociais, estamos conscientes das suas limitações para a aplicação dos seus resultados aos Júris reais.706 No sistema legal de Portugal, a principal limitação para o estudo do Júris está relacionada com a proibição de os jurados realizarem declarações sobre o caso sobre o qual decidiram ou tenham sido designados para decidir. Se assim o fizerem, serão punidos com pena de Prisão até seis meses ou multa até 200 dias (Artigo 16º do Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro). Isto limita a possibilidade de realizar estudos de campo que incluam jurados reais, ou aplicar entrevistas ou questionários a cidadãos que já participaram como 705 - JIMÈNEZ, Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia.Tirant Lo Blanch,2002, p.321. 706 - JÓLLUSKIN, Glória. O tribunal do júri no ordenamento juridico português:Uma abordagem na perspectiva da psicologia, in: Revista da faculdade de ciências humanas e sociais.Porto:Edições Universidade Fernando Pessoa, p.123. 331 jurados, metodologias que proporcionam resultados mais generalizáveis. A análise de decisões judiciais reais tomadas por um Júri poderia ser uma metodologia a utilizar, mas a amostra seria necessariamente pequena, dada a escassa utilização do Tribunal do Júri em Portugal. Acrescenta-se a este facto a dificuldade de comparação entre os casos recolhidos, pela diversidade dos mesmos e das situações analisadas. Uma referência merece ainda a investigação de Kalven e Zeisel sobre o júri americano, não obstante se reportar à específica experiência dos Estados Unidos, em termos de os seus resultados não serem facilmente transponíveis para outros contextos socioculturais e jurídicopolíticos. Os criminólogos americanos concluem que, em geral, os juízes condenariam num número relativamente maior de casos (isto é: condenariam em muitos dos casos em que os jurados absolvem) e aplicariam penas em média mais graves do que as aplicadas pelos jurados. Enquanto os juízes se mantêm mais fiéis às leis na sua expressão jurídica, os jurados acabam por realizar uma interpenetração e assimilação recíprocas entre as normas legais e as normas subculturais, ou os mores vigentes nos respectivos ambientes. Daí a tendência dos jurados para estenderem, para além dos limites legais, a justificação da legítima defesa; fazerem relevar praeter ou contra legem a provocação, precipitação ou negligência da vítima; recusarem a aplicação de lei cuja legitimidade ou utilidade se lhes afigura questionável. O desfasamento entre os critérios do juiz e do jurado revela-se, de forma particularmente nítida, em crimes como a violação. Neste crime - onde a diferença entre a absolvição real do júri e a condenação hipotética do juiz atinge cotas mais elevadas – os jurados propendem para “uma redefinição do crime de violação segundo a sua própria ideia de assunção do risco”. Daí a sua ostensiva predisposição para absolver ou atenuar as penas dos arguidos sempre que a vítima apareça, pelo seu passado, conduta, carácter, modo de vida, relações anteriores, etc., digna de censura.707 Nos últimos cinquenta anos, numerosos estudos foram realizados para tentar compreender o comportamento dos Júris, e até para tentar predizer o seu veredicto. Dentro desta linha de investigação, foram desenvolvidos estudos com diferentes objetivos e distintas abordagens. Algumas aproximações foram realizadas para explicar como a informação durante o julgamento poderia afetar os processos cognitivos subjacentes, e, portanto, o veredicto, utilizando para isto até simulações por computador. Outras se debruçaram sobre os fatores estruturais que influenciam a decisão, como as questões relativas ao tamanho do grupo 707 - DIAS, Jorge de Figueiredo & ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homeme delinquente e a sociedade criminógena. 2ª Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p.537. 332 ou à regra de decisão, assim como a composição do grupo, centrando-se nas características pessoais, e nas diferenças dos elementos do mesmo. Para isto foram utilizadas diferentes tipos de variáveis, como atitudes, experiência, variáveis demográficas, de personalidade, etc.. Também foram estudados os efeitos das características do arguido sobre a decisão, atendendo a questões como o sexo ou a idade, ou a influência do comportamento de juízes e advogados, centrando-se principalmente sobre o efeito das instruções sobre a tarefa dos jurados. Desde outra perspetiva, foi analisada a opinião pública sobre o Tribunal do Júri.708 Em um levantamento de potenciais jurados, "uma minoria significativa dos entrevistados disseram que não poderiam ser imparciais, se um réu fosse lésbica ou gay (31 por cento), hispânicos (25 por cento); Afro-americano (24 por cento), asiático (24 por cento); ou de cor branca (23 por cento). Apesar deste estudo, não é garantido que tais distorções teriam significativamente influência nos veredictos dos jurados, apenas parece bastante plausível que haveria essa possibilidade. Um exame recente de preconceito dos jurados brancos contra réus negros, por exemplo, encontrou evidências de polarização racial, e os autores concluem que as evidências sugerem que o preconceito racial foi particularmente visível nos casos em que a raça não era uma questão explícita colocada em causa no julgamento.709 Num nível mais amplo, o clima político da corte e da natureza da lide, bem como da opinião pública sobre o crime também são influências significativas em alguns casos. Devido ao fato de que, por lei, os veredictos do júri devem ser baseados tão-somente na prova do caso, fatores como estes são referidos como "extralegal" ou às vezes "extraprobatório”, que causam influência sobre o júri, a fim de enfatizar que eles são legalmente irrelevantes. No que referem à seleção dos jurados, os estudos avaliam os jurados em função de suas características sociodemográficas, psicossociais ou atitudinais, tentando através destas, prever o veredicto que irão apresentar. Garcia, Sanchez e Solana, analisaram diferentes estudos, concluindo que os processos de seleção efetuados por advogados são mais efetivos na linha da desejabilidade social, do que os feitos por juízes, talvez pelo poder que os candidatos a jurados percebem no juiz. O facto de a entrevista ser coletiva parece inibir os jurados, sugerindo-se que deva ser indireta ou por meio de questionários. Os advogados parecem valorizar mais a inteligência, idade, aparência, ocupação, abertura mental, sexo, raça, simpatia 708 - JÓLLUSKIN, Glória.O tribunal do júri no ordenamento juridico português:Uma abordagem na perspectiva da psicologia, in: Revista da faculdade de cièncias humanas e sociais.Porto:Edições Universidade Fernando Pessoa, p.124. 709 - MEYER Jon'a F.; GRANT R. DIANA.The courts in our criminal justice system.Prentice hall.2008, p.361. 333 e impressionabilidade, mas há estudos que demonstram que as perguntas que mais frequentemente são feitas (ex.: atitude perante o delito, opinião sobre as pessoas presas, opinião sobre o comportamento dos agentes policiais, etc.) têm a mesma eficácia, que uma seleção dos jurados feita ao acaso. Apesar disso, os consultores para a seleção de jurados, especializaram-se na análise de perfis dos indivíduos e nas atitudes que a sociedade apresenta face a determinados temas, parecendo constituir uma atividade mais lucrativa do que eficaz. Existem mesmo questionários (ex.: The Legal Attitudes Questionnaire (LAQ) de Boehm, construído nos anos 60 e Juror Bias Scale (JBS) de Kasin e Wrightsman, construído nos anos 80) que tentam prever a tendência de cada jurado para absolver ou para condenar.710 Observe-se ainda alguns pontos citados por Wrightsman, Nietzel, e Fortuna, em relação aos jurados 711 . Os jurados são processadores de informações precisas e completas. Esta suposição é refletida no fato de que normalmente os jurados não são advertidos para tomar notas sobre o julgamento. Em vez disso, eles devem confiar em suas memórias coletivas. Imagine se você fosse obrigado a lembrar de todas as coisas que você aprendeu em seus cursos, sem o benefício de tomar quaisquer notas ou fitas de áudio. O juiz tem poder discricionário para permitir que os jurados possam tomar notas, e um número crescente de tribunais estão permitindo que isso aconteça. Pesquisa realizada sobre cognição humana, memória e processos decisórios sugere que esta hipótese é questionável e heurística. 712 Outra pesquisa sobre tomada de decisão demonstra que a tomada de decisão humana é tipicamente distorcida por enviesamentos cognitivos.713 Os resultados chegados demonstram que, a tomada de decisão pelos jurados, obedece aos seguintes requisitos: 1) A exatidão dos jurados como processadores de informações está sujeito a esta questão, de acordo com uma pesquisa mostrando que os jurados dão demasiada importância a certos tipos de provas (como testemunhas), mas dão muito pouco peso à evidência estatística e probabilística. Além disto, os jurados, muitas vezes têm dificuldade em compreender e/ou aderir a instruções do júri; 2) Os jurados suspendem julgamento até ouvir todas as evidências mostradas no julgamento. 710 - QUEIRÓZ, Cristina.O júri:Quem manipula quem, ou o contributo da psicologia no estudo do jurado, in: julgar nº10,2010, p.188. 711 - WRIGHTSMAN, L.S.-Greene; E.-Nietzel; M.T-Fortune; W.H.(2002 5ªed.): Psychology and Legal system. Belmont, CA: Wadsworth-Thomson,p.124-127 712 - WRIGHTSMAN, L.S.-Greene; E.-Nietzel; M.T-Fortune;W.H.(2002 5ªed.):Psychology and Legal system, cit.,p.127. 713 - NISBETT, R. E., & Ross, L. D. (1980). Human Inference: Strategies and Shortcomings of Social Judgment. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 2001. 334 Esta suposição está claramente refletida no comando do tribunal aos jurados, para evitar que estes cheguem a uma conclusão sobre a culpabilidade do réu até que as deliberações do júri sejam terminadas. No entanto, pesquisas sobre tomada de decisão humana sugere que as pessoas normalmente avaliam a informação como ela é recebida, e que pode ser difícil para as pessoas a separar a aquisição e avaliação de informação porque os dois processos estão entrelaçados;3) Os jurados são "folhas em branco", com alguns preconceitos. A ênfase da lei, em jurados imparciais parece refletir a possibilidade desta imparcialidade, tendo em vista os processos de seleção do júri. Contudo, nem sempre e possível esta identificação. A suposição de que os jurados trazem alguns preconceitos com eles para o Tribunal do Júri é ainda mais enfraquecida, se você considerar que o processo de voir dire714 não pode identificar e eliminar os jurados tendenciosos por um número de razões. No júri o questionamento nem sempre é passível de descobrir os preconceitos dos jurados que deveriam ter sido desafiado por justa causa (motivada), se isso é devido ao fato de que o jurado pode esconder ou mesmo desconhecer seus preconceitos ou atitudes; 4) O veredicto dos jurados é baseado apenas nas provas. O sistema legal de advertência aos jurados, para evitar discutir a evidência com ninguém durante o julgamento, inclusive os próprios jurados, tem a preocupação de evitar os possíveis efeitos de polarização da exposição dos jurados para a mídia No entanto, a investigação sobre a tomada de decisões do júri apresenta muitas provas em contrário. Na verdade, parece que os veredictos do júri podem refletir as influências de muitas outras coisas do que simplesmente as evidências apresentadas no caso. Tais influências podem vir das atitudes dos jurados e experiências, as características e o comportamento dos participantes, no caso, o clima em torno do julgamento, e uma cobertura mediática de questões relacionados com o caso; 5) Os jurados não são afetados pela pressão do grupo. Idealmente, as deliberações do júri envolvem jurados, que discutem as evidências e compartilhar seus pontos de vista, e como eles tentam chegar a um consenso. Mas onde devemos distinguir entre a tentativa de convencer que não são coercitivas e as tentativas que são coercitivas ou mesmo intimidativas? O pressuposto é que os jurados se engajam em um processo cooperativo em que a deliberação parece refletir o pressuposto implícito de que este processo não irá refletir em pressões para a conformidade. No entanto, dinâmicas de grupo são tais que a facção minoritária em um júri, especialmente se este é constituído por um único jurado, são mais sujeitas a pressões intensas em conformidade com o que determina a facção majoritária. 714 - Sistema legal americano, que permite a escolha dos jurados pelas partes, a partir de perguntas pessoais acerca de ideologias, pensamento, religião etc., e que podem afetar o destino do acusado. (Nota do autor) 335 Outro fator sempre lembrado, e que deve ser discutido intensamente em outro capítulo, é a influência midiática, que pode comprometer inclusive o princípio da presunção da inocência. Não só a presunção de inocência pode resultar comprometida, com a intervenção mediática abusiva. Com efeito, a garantia de imparcialidade do tribunal se situa em uma posição de particular risco. Destarte, quando se presume que a incidência dos juízos paralelos nas decisões dos órgãos judiciais profissionais não constituem um problema quantitativamente relevante, não cabe afirmar o mesmo a respeito das decisões adotadas pelo Tribunal do Júri, cujos mecanismos de valoração são muito mais rudimentares, por onde, existe um maior risco de influência em seus membros. 715 O excesso de informação por parte dos meios de comunicação social, que podem ser fortemente incriminatórios para os culpados, podem provocar que os jurados cheguem a convicções pré-concebidas quanto a culpabilidade dos acusados, através de informações extra processuais, com a consequente violação das garantias processuais necessárias para a reta administração da justiça, ocasião em que o processo é conduzido de forma contraditória, estre acusação e defesa.716 7.6. O Tribunal do Júri e a questão racial nos Estados Unidos Mais de um século antes do julgamento de Powers v. Ohio, a Suprema Corte americana, no caso Strauder v. West Virginia, em 1880,decidiu que uma lei estadual que excluía os Africanos americanos (afro-americanos) dos júris violava a cláusula da Décima Quarta Emenda, que trata da igualdade de proteção. No entanto, por uma variedade de razões, não a menor delas; a institucionalização do racismo, os africanos-americanos continuaram a ser sistematicamente excluídos dos júris americanos em muitas áreas, e não apenas nos exestados confederados. O método desta discriminação variou entre a convocação para a formação do júri de julgamento, até a objeções ou recusas dos advogados para a formação do Jurados para o julgamento do acusado. “ (Da mesma forma, o sexismo institucionalizado impedido muitas mulheres de servir em júris.)717 Embora ao longo do tempo, os tribunais tenham decidido que a exclusão dos afroamericanos dos julgamentos do júri era inconstitucional, mas recentemente, em meados dos 715 - VV.AA.Problemas actuales de la justicia penal.Coord.Joan Picó e Junoy.Barcelona:JB,2001, p.77. 716 - JIMÈNEZ, Raquel López.La prueba en el juicio por jurados.encia.Tirant Lo Blanch,2002, p.322. 717 - VIDMAR, Neil ; HANS,P.Vakerie.American Juries:The verdict.Amherst,NY:Prometheus,2007,p73. 336 anos 1980, as objeções ou recusas peremptórias para indivíduos afro-americanos, para funcionar como jurados foram confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal como constitucional, a partir de uma visão processual do mecanismo das recusas peremptórias.718 No leading case Swain v. Alabama LN 1965, Swain, um afro-americano, foi indiciado e condenado por estupro na Comarca de Talladega County, Alabama, e condenado à morte. O caso foi objeto de recurso para o Supremo Tribunal, alegando que não havia jurados afroamericanos para compor o Conselho de sentença, alegando que dos jurados elegíveis no município, 26% eram afro-americanos, mas as listas do júri, desde 1953 só continha uma média de 10% a 15% de jurados afro-americanos. O Supremo Tribunal Federal negou o recurso, porque 8 de 100 jurados escolhidos eram afro-americanos, mas todos eram excluídos pela recusa peremptória pela acusação, declarando que a disparidade percentual global tinha sido pequeno e não refletia nenhuma tentativa estudada para incluir ou excluir um determinado número de afro-americanos. Neste caso reconhecido o desafio peremptório como uma prática legal válida, que não foi usada intencionalmente para excluir os negros dos direitos de júri, o que na prática, era uma norma era quase impossível de cumprir. 719 O precedente, contudo, foi anulado em Batson v. Kentucky, que foi um caso em que a Suprema Corte dos EUA decidiu que a recusa peremptória, não pode ser usada para excluir jurados com base apenas em sua raça. O Tribunal considerou que esta prática viola a Cláusula de Proteção Igualitária da Décima Quarta Emenda. 720 A existência de Júri composto essencialmente de pessoas brancas não refletia a realidade populacional americana, onde em muitos Estados o percentual de afroamericanos era bastante significativo. A existência deste alto índice de habitantes afroamericanos não foi capaz de evitar a elaboração de leis que impedissem os cidadãos afro-americanos de ocuparem uma vaga no júri. O problema se acirrava ainda mais quando o réu afro-americano era acusado de ter cometido um crime contra uma vítima branca. Nestes casos, em se tratando de homicídio, não apenas a condenação era certa, como a pena era sempre a mais rigorosa: a morte. Essa situação indubitavelmente criou sérios conflitos de posições entre membros da sociedade e, até mesmo, dentro da comunidade jurídica em geral, uma vez 718 - VV.AA.The Juri and democracy.How jury deliberation. Promotes civic angagement and political participation. VaOxford, 2010, p.7. 719 - Swain v. Alabama, EUA 380 202 (1965) 720 - Batson v. Kentucky, 476 EUA 79 (1986) 337 que parcela cada vez maior de indivíduos acreditava que a predominância maciça de brancos no Júri violava a representação democrática da instituição, eis que se formavam conselhos de jurados unicamente representativos de uma parcela da sociedade, enquanto a outra, nela inseridos os afro-americanos, estrangeiros e até mesmo as mulheres, ficava à margem de toda essa atividade social participativa. 721 O foco da questão se voltou para a luta por um mixed jury (Júri composto por brancos e afro-americanos) como forma de permitir uma representação mais democrática da realidade social e dos valores comunitários defendidos em cada julgamento pela instituição popular. Nesse mesmo sentido são os argumentos utilizados por Jeffrey Abramson-", quando trata dos all-withe juries, para quem o mixed Jury já possui uma longa tradição dentro da história americana do Tribunal do Júri. Não obstante, inúmeras foram as condenações de afro-americanos por tribunais compostos essencialmente de brancos, o que acabou ensejando algumas apelações à Suprema Corte, que ainda no início do século XX insistia em não enxergar prejuízo aos réus negros, o fato de serem julgados por um tribunal composto apenas por brancos. Muito interessante foi o caso da condenação de um afro-americano no Estado da Carolina do Sul, cuja população negra representava 45 do total, mas mesmo assim nenhum deles jamais havia integrado o Tribunal do Júri naquela época. Em sede de apelação, a Suprema Corte, porém, entendeu que a mera disparidade entre as composições raciais do condado e do Júri não evidenciava que o Estado estava propositadamente excluindo os negros do Júri. 722 Esta postura somente restou superada no ano de 1935, quando a nova sistemática do Júri, excluindo o antiquado e discriminatório sistema do all-whíte juries, pôs fim aos julgamentos realizados somente por jurados brancos. A discriminação ainda continuou a existir, só que agora em número significativamente menor, já que os encarregados do Júri não tinham a obrigação de formar listas anuais de jurados representativos da integralidade da população. A solução encontrada foi analisar cada julgamento, a fim de verificar se houve ou não discriminação intencional no momento de elaboração das listas de jurados.723 721 - AZEVEDO,André Mauro Lacerda.Tribunal do Júri:Aspectos Constitucionais e Procedimentais.São Paulo:Verbatim,2011. 722 - Brownfield v. South Carolina, 189 U.S. 426, 429 (1903). 723 - Norris v. Alabama, 294 V.S. 587, 592, 596-97 (1935). 338 Outra tentativa de mascarar a participação efetiva dos afro-americanos no júri residia na sua desqualificação para o desempenho da função. Muitos comíssíoners justificavam a presença bastante tímida de indivíduos da raça negra nas listas de jurados, pelo fato da grande dificuldade que havia para selecionar pessoas realmente preparadas para atuar no júri. Na verdade era mais uma forma de segregar a participação dos afro-americanos, inscrevendo nas listas alguns poucos nomes como forma de mascarar a existência de descriminação. As consequências desta discriminação recaíam severamente sobre toda a comunidade negra americana, além de impor ao acusado afro-americano um grau de severidade e injustiça totalmente inaceitável na sociedade contemporânea. A situação se invertia completamente quando a vítima era afro-americano e o réu branco, já que a impunidade era praticamente certa, eis que dificilmente um branco era condenado por ter assassinado um afro-americano, quando o júri era composto somente por indivíduos da raça branca. 339 Capitulo 9. Publicidade, mídia e o julgamento imparcial pelo Tribunal do Júri 1. A incidência da publicidade no processo e suas exceções Talvez, um dos fatores exponenciais, que mais influenciam os jurados, seja a mídia, escrita ou falada. Os jurados, consoante estudos realizados, estão potencialmente submetidos, a uma pesada carga de informação, em especial, em casos emblemáticos, que causam comoção social. Utilizaremos, elementos da doutrina portuguesa, em especial análise da Constituição portuguesa, bem como do direito brasileiro, americano e alemão. Comecemos, com o conceito de publicidade é aqui entendido como a representação dum objeto pelo pensamento, por meio de suas características gerais724. O vocábulo publicidade pode ser entendido dos vários pontos de vista, jurídicos e não jurídicos, nos quais muitas vezes surge como contraponto às expressões segredo ou sigilo. Originada no francês publicité, a palavra publicidade é, segundo os léxicos, a qualidade do que é público; (...) caráter do que é feito em presença do público: a publicidade de uma audiência. Decorrendo do senso de publicus, significa aquilo que acontece em face de todos, é a qualidade do que é público, posto ou divulgado ao conhecimento geral. É, também, a notoriedade resultante de publicação pela imprensa, ou o caráter do que é feito em presença do público: a publicidade de uma audiência725. Este princípio tem início na Índia e entre os romanos e atenienses, mas durante a inquisição perdeu a força. Trata-se de remédio de amplo espectro contra a fraude e corrupção726. Por público pode-se entender aquilo que é relativo ao povo, que se faz diante de todos; que é conhecido de todos; notório, vulgar, que não é secreto727. A expressão pública também se pode opor a privado e a secreto. No primeiro caso, diz respeito a tudo aquilo que 724 - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, 2. Ed. São Paulo, 1998, verbete respectivo. 725 - TELLES JÚNIOR, Goffredo. Curso de lógica formal, Tratado da conseqüência. 3.ed. São Paulo: Bushatsky, 1973, p. 326. 726 - O princípio encontra guarida na Declaração Universal dos Direitos Humanos:Artigo X - Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. 727 - Podemos ainda conceituar publicidade, como “todo o processo que tome possível a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognocíveis. Assim entendido, esse termo tem significado generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento semântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto, próximo ou distante, universal ou individual, etc.”, ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosa. São Paulo. Martins Fontes, 1998, p.34. 340 interessa ao Estado e à comunidade, e no segundo, diz respeito àquilo sobre o qual se guarda alguma reserva. A publicidade interessa ao direito sob todos os pontos de vista. Neste ponto, a publicidade não deve ofender a moral e a decência728. A segurança do ordenamento jurídico, por exemplo, pode ser afetada pela existência ou não de publicidade. Afirma-se, ainda, que a publicidade jurídica tende a conhecer tudo que interessa ao fato e a situação que se pretende investigar729. O preceito da publicidade impõe a adoção de um instrumento idôneo a criar se não a certeza, pelo menos uma alta probabilidade de um conhecimento dos fatos que vão ser investigados730. A publicidade, entendida em seu mais amplo sentido, tem uma influência extraordinária enquanto se refere à moralização do processo731. A publicidade, por oposição ao caráter secreto do processo inquisitório, tornava viável o controle público, sendo fator de confiança na justiça732. Estreitamente ligada à publicidade dos atos processuais, a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais diretas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objetiva, atípica, e da sua valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência da vida e conhecimento dos homens 728 - D'AMELIO, Mariano, Nuovo Digesto Italiano. V. 10. 4 Ed. Turim: UTET, 1939, p. 968, assim livremente traduzido: a publicidade “interessa ao direito sob vários pontos de vita. Acima de tudo a publicidade não deve ofender a moral e a decência”. 729 730 - MILANO, Giuffrè. Enciclopedia del diritto. V. 37. Milão: Giuffre, 1993, p. 966; - CIAPPI, Manuele. Digesta delle discipline penalistiche. Vol. 10. Torino: UTET, 1995, p. 453; assim livremente traduzido: "impõe a adoção de instrumentos idôneos a criarem, senão a certeza, ao menos uma grande probabilidade de conhecimento por parte de quem assim queira". Há ainda quem afirme que "ce qui constitue la publicité, c'est l'overture du prétoire au public.(cf:GRIOLET, Gaston et alli, in: Petit dictionnaire de droit. 4. Ed. Paris. Dalloz: “o que constitui a publicidade é a abertura do pretório público”. 731 - A adoção da publicidade no processo penal, fato sempre mencionado na doutrina, origina fundamentalmente três conseqüências:1) Assegura um processo eqüitativo y previene Ia imparcialidad; 2) satisface la percepción del publico y las exigencias de la sociedad de que la justicia muestre que hace; 3) favorece el respeto de las leyes e mantiene la confianza del púbilco en la administración de justicia.(Cf: ANITUA, Gabriel Ignacio. El principio de Publicidad Procesal Penal:Un análises com Base em la História y el Derecho comparado. Nueva doctrina Penal. Buenos Aires:Editoras del Puerto srl, 2000, p. 48). 732 - CABANELLAS, Guillermo, ao tratar da “publicidad de los juicios”, quando afirma ser esta “princípio fundamental del procedimiento moderno, opuesto al secreto inquisitorial”. (cf: Diccionario Enciclopédico de derecho usual. 15 ª. rev. atual. e ampl. Buenos Aires: Ed. HeIiasta S.R.L., 1981. 341 O princípio da prova livre é também uma consequência da intervenção popular na administração da justiça733. A expressão amplamente estudada pela doutrina de um modo geral tem na palavra publicus, que significava a princípio, o que era relativo ao povo e opunha-se a privatus, que dizia respeito a uma só pessoa. Passou, depois, a designar o que ocorria em face de todos, contrariamente ao que era mantido em sigilo e acontecia perante número limitado de pessoas734. Em Direito Romano735, a palavra publicus, está ligada, pertinente, disponível, ou no interesse do povo romano. O adjetivo publicus é aplicado a vários conceitos, em contraste com privatus como ius, iudicia, res, leges, causa utilitas, crimina officium etc736. 733 - SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. Tomo V. Lisboa: Editorial Verbo, 2002, p. 64. O princípio da publicidade, consoante a doutrina portuguesa, tem início no século XIX, quando os processos são desarticulados dos velhos processos não públicos do Ancien Regime, baseados em documentos, e passam a serem públicos. Os julgamentos são agora realizados em público. A opinião pública, sob a forma de imprensa e outros comentadores críticos, passa a intervir. Esta alteração reflete-se também na arquitetura dos edifícios dos tribunais: as salas de audiências são construídas de acordo com os novos códigos processuais, e são atribuídos lugares sentados ao público e os julgamentos são anunciados publicamente. As sentenças são, pela primeira vez, publicadas nos jornais, comentadas e debatidas. O juiz tem que explicar ao público, por escrito, por que razão o caso foi julgado de uma determinada forma e não de outra,In: STOLLEIS, Michael. O perfil do juiz na tradição europeia. O perfil do juiz na tradição européia. In: HOMEM, Antonio Pedro Barbas et. al. (Coord.) . Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2007, p. 33. Na Aústria, o Artículo 90 do Código de Processo Penal, declara que: Serán orales y públicas Ias vistas en los litigios de derecho civil y penal, si bien se podrán establecer excepciones mediante ley. 734 - TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 2,. São Paulo: RT, 1975, p.10; TUCCI, Rogério Lauria. Enciclopédia Saraiva do Direito. V. 62. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 483. 735 - A publicidade é admitida em quase todos os países, sendo contemplada no Japão em seu artigo 37onde se observa que nos casos criminais o acusado terá direito a um julgamento rápido e público por um tribunal imparcial. Na Rússia, o artigo 123, prescreve que as audiências nos tribunais serão realizadas á portas abertas. A audiência de um caso pode ser na câmara nos casos previstos pela federação (2) Audiência dos casos criminais em tribunais sem a publicidade, não são permitidas, excepto nos casos previstos pela federação. (...).Na França o princípio encontra guarida no Artigo 306 do Código de Processo penal, dispõe, “que a audiência é pública, a menos que a publicidade pudesse ser perigoso para a ordem ou a moral. ln caso, o tribunal declara assim por uma decisão feita em audiência pública. O juiz pode, contudo, proibir o acesso ao tribunal de menores, ou para menores Nos casos de uma acção judicial para os delitos de estupro ou tortura ou acompanhado por agressão sexual, uma audiência à porta fechada é concedida de pleno direito, onde o vítima ou uma parte civil são vítimas e assim o exigirem; nos outros casos, uma audiência à porta fechada só pode ser ordenada, onde as vitimas não se opõe à audição de uma testemunha. A sentença sobre o mérito deve ser sempre lida em sessão pública”. Na Bélgica, “o Artículo 148 do CPP,declara que serán públicas las audiencias de los Tribunales, a menos que tal 342 As origens remotas da regra da publicidade, que as palavras de Mirabeau tão bem expressam, desvirtuadas nos perigosos reflexos que inspiraram a indagação de Carnelutti, levaram-nos a uma tentativa de exame isento, mas preocupado em não ignorar a realidade que os meios de comunicação nos impingem, até mesmo contra a nossa vontade, de reconhecimento do valor das garantias constitucionais, mas lembrando sempre do limite acenado pela doutrina ao advertir para o fato de que o que a lei dispõe em benefício de certas pessoas e não pode servir-lhes de prejuízo737. No Estado de Direito, como se viu, predomina um tipo de processo de cunho essencialmente garantista, onde a Constituição Federal e os direitos fundamentais têm proeminência e aplicação, em detrimento de norma infraconstitucional que com este modelo sejam incompatíveis. A publicidade do processo penal, a qual corresponde não somente à ideia do controle popular sobre o modo de administrar a justiça, senão também, e mais profundamente, ao seu valor educativo, está, infelizmente, degenerada em um motivo de desordem. Não tanto o público que enche os tribunais a um limite inverosímil, mas a invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar-se com aqueles aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de julgar738. Além disso, porque a justiça é “administrada em nome do povo”, a presença do público dá uma maior garantia dessa comunicação entre o sentimento da comunidade e a decisão individual. Mas, porque a personalidade humana é um valor primário, deverão acautelar-se as situações em que possa ser ofendida a dignidade das pessoas. Exatamente porque a audiência deve contribuir para a educação cívica, a publicidade sofre restrições tanto quando possa publicidad sea lesiva para el orden o Ias costumbres; en tal supuesto el Tribunal que declarará mediante auto. En materia de delitos políticos o de prensa, deberá decidirse por unanimidad el que Ia audiencia se celebre a puerta cerrada”.Dispôe o Artículo 149.Toda sentencia deberá ser motivada. Se pronunciará en audiencia pública. (grafado em espanhol) 736 - BERGER, Adolf. Encyclopedic dictionary of roman law.Philadelphia. The American Philosophical Society. 1953, p. 651 737 - BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Ed. Coord. Alcides Tomasetti Jr. São Paulo. Saraiva, 1984, p. 37, com referência à fonte romana: "Quod favore quorumdam est, quibusdam casibus ed laesionem eorum nolumus inventum videri (L, 5, c., de legib.)". 738 - CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 2ª ed. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2010, p. 20. 343 colidir com a moral pública, como quando isso se tome indispensável para assegurar o seu normal funcionamento739. Também não cabe olvidar que os cidadãos, através do exercício do direito, podem criticar as resoluções judiciais, incidindo, inclusive, o funcionamento da administração da justiça, manifestando a sua provação ou reprovação com as decisões judiciais, de onde se deriva o princípio da publicidade das atuações judiciais ser tão decisivo ao controle do povo, e que sirva para alimentar a necessária transparência do poder judicial740. 2. A publicidade no âmbito do julgamento equitativo: Análise da jurisprudência do TEDH. A publicidade do julgamento abrange quer a natureza pública da audiência em si mesma quer da decisão final, sendo que quanto a esta última a publicidade deve ser plena, não valendo nenhuma das exceções indicadas no art.º. 6° da CEDH no que respeita à audiência em si mesma. Porém, tal não implica que todas as decisões tenham que ser lidas publicamente em voz alta, pois a norma não é violada quando a decisão seja diretamente remetida para depósito em local de livre acesso. A Corte Europeia se recusa a deduzir do princípio de publicidade, um direito absoluto a uma audiência pública (Helmers cl Suécia, 29 de outubro de 1991). A publicidade é a única garantia sujeita à limitação no próprio texto do art.º. 6ᵒ, § 1 da Convenção, que enumera uma série de hipóteses em que o acesso do público à sala de audiência pode ser restringido: quando o interesse à moralidade, à ordem pública ou à segurança nacional está em causa ou quando o interesse dos menores ou a proteção da vida privada das partes litigantes exigem esta restrição (por exemplo, a questão da publicidade da audiência nos julgados dos menores infratores T. e V. cl Reino Unido, de 16 de dezembro de 1999). Nem a literalidade, nem o espírito do art.º. 6ᵒ, § 1 impedem uma pessoa de renunciar voluntariamente de maneira expressa ou tácita à publicidade dos debates (Le Compte, Van Leuven e De Meyere), mas esta renúncia deve ser inequívoca e não pode conflitar com nenhum interesse público relevante (Haranksson e Sturesson; Schuler Zgraggen). Nos julgados Albert e Le Compte, a Corte considera que não renunciaram à publicidade dos debates nem o Sr. Le Compte, que reclamou um processo público, nem o Sr. Albert, que 739 - SANTOS, Gil Moreira. O direito processual penal. Lisboa: Edições Asa, 2000, p. 66. 740 - SANTOS, Gil Moreira. O direito processual penal, cit., p. 51. 344 mesmo não demandando nada de forma expressa, as peças do processo não mostram sua intenção de renunciar à publicidade requerida pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. Por outro lado, no julgado Haranksson e Sturesson a Corte Europeia afirma que na medida em que o processo litigioso analisado se desenvolve em geral sem audiência pública, o fato do requerente não solicitar expressamente esta audiência pública podia ser interpretado como uma renúncia inequívoca à publicidade dos debates (no mesmo sentido, Schuler Zgraggen). O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos proferiu a sentença de 12/08/1983, relativa ao Caso Axen / Alemanha. O presente caso foi submetido ao Tribunal pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos (“a Comissão”) e tem a sua origem na queixa (n. 8273/8) formulada contra a República Federal da Alemanha por um cidadão deste Estado, o senhor KarIHeinzAxen, apresentada à Comissão em 1977, nos termos do art.º. 25 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (“a Convenção”). Desta forma, a decisão do caso Axen-Alemanha em sua parte dispositiva assinalou: 1. Protegendo as partes face a uma justiça exercida em segredo e sem controle da opinião pública, o caráter público do processo judicial contribui para alcançar o direito a um julgamento equitativo consagrado no art.º. 6-1 da Convenção, garantia que constitui um dos pilares fundamentais de uma sociedade democrática. 2. Ao examinar o cumprimento deste art.º. 6-1 no que se refere ao caráter público do processo, deve ter-se em consideração a totalidade das tramitações seguidas no processo em apreço, e não apenas a fase final do recurso. 3. Não violou o art.º. 6-1 da Convenção o procedimento que consistiu em decidir um recurso cível de cassação com base nas alegações escritas das partes, e portanto sem audiência de julgamento (sessão oral), quando o tribunal de cassação se limitou a confirmar a sentença do tribunal de segunda Instância, onde a causa já havia sido decidida com respeito dos requisitos de publicidade do julgamento exigidos pelo mesmo artigo; e sendo certo que o tribunal de cassação só poderia ter revogado aquela sentença de segunda instância se tivesse realizado audiência de julgamento (sessão oral). 4. A exigência de publicidade da sentença é respeitada se, em tal caso, a decisão do tribunal de cassação não é lida publicamente mas apenas notificadas às partes que foram ouvidas previamente sobre tal procedimento, sendo depois essa sentença divulgada mediante a sua inclusão num registo de acesso público: tendo essa sentença confirmado a decisão do tribunal de segunda instância que foi lida em audiência 345 pública, este requisito de publicidade é assegurado pelas tramitações do processo, consideradas no seu conjunto741. O Sr. Pretto, não podendo exercer seu direito de retrovenda relativo a um terreno que ele havia cultivado por muitos anos como fazendeiro, moveu uma ação com vistas à recompra deste terreno. Após uma primeira decisão lhe dando ganho de causa, ele sofre duas derrotas consecutivas, em apelação e diante da Corte de Cassação italiana. O texto integral da decisão desta jurisdição máxima italiana tornou-se público através de sua disponibilidade no cartório da Corte. Esta forma de publicidade, não sendo considerada satisfatória e suficiente do ponto de vista do Sr. Pretto, tem por efeito que ele intenta um recurso perante a Corte Europeia de Direitos Humanos (atuando aqui como quarto grau de jurisdição?) invocando uma lesão ao princípio de publicidade garantido pelo art.º. 6ᵒ, § 1 da Convenção, bem como uma violação ao direito do exame de sua causa em um prazo razoável742. A publicidade constitui um dos aspectos essenciais do direito a um processo equitativo que concorre à proteção do jurisdicionado e reforça a confiança na Justiça (Pretto, § 21). O art.º. 6º, § 1 da Convenção confere ao princípio de publicidade dois aspectos: a publicidade dos debates e a publicidade do pronunciamento do julgamento do interessado. O controle destes dois aspectos é diferenciado. O princípio de publicidade se impõe diante de todo tribunal, conforme definido de maneira autônoma pela Corte Europeia. Desde que uma autoridade administrativa seja qualificada de tribunal, o direito a uma audiência pública deve ser respeitado (Fischer cl Áustria, 26 de abril de 1995). O direito de ser “ouvido publicamente” implica, quando o processo se desenvolve diante um tribunal estatuindo em primeira e única instância, o direito a uma audiência, salvo circunstâncias excepcionais (Allan Jacobsson cl Suécia, 19 de fevereiro de 1998). Desde que debates públicos tenham ocorrido em primeira instância, “a ausência dos mesmos em segunda 741 - TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM, 08/12/1983.No segredo dos deuses, in:Sub judice. Novos estilos, Lisboa, n.1 (Jan.1994), p.1-6. 742 - M. A EISSEN, La durée des procédures civiles et pénales dans la jurisprudence de la CEOH,Conseil de l’Europe, Dossiers sur les droits de I'homme, n. 16, 1996. No julgado Pretto, a Corte Européia, fundando-se sobre a prática diferenciada dos Estados europeus, admite que a publicidade da decisão não implica obrigatoriamente uma leitura em voz alta da mesma, podendo ser considerado suficiente o depósito desta decisão no cartório da Corte, acessível ao público (§ 27). Inversamente, o pronunciamento público da decisão de uma Corte de apelação se impõe quando o livre acesso de qualquer pessoa ao texto integral do julgamento não é organizado (Szucs e Werner cl Áustria, 24 de novembro de 1997). 346 ou terceira instância pode ser justificada pelas características específicas da causa” (Jan Ake Anderson cl Suécia, 29 de outubro de 1991). Mas quando uma Corte de apelação é acionada para decidir sobre uma questão de fato e de direito e que o resultado do processo revela uma certa gravidade para o requerente, a falta de publicidade dos debates constitui uma violação do art. 6 º, § 1 (Ekbatani cl Suécia, 26 de maio de 1988). Inversamente, quando o recurso não traz nenhuma questão que não possa ser resolvida de maneira adequada pela simples apreciação das peças processuais e que as consequências do processo em apelação são limitadas, a ausência de audiência pública é tolerada (Jan Ake Anderson). O requerente, que inicialmente foi designado com a inicial X, consentiu posteriormente em que se divulgasse a sua identidade. 3. A mídia e o direito à informação A liberdade de informação é a liberdade aprimorada e difundida especialmente pela imprensa escrita ou falada. A liberdade de imprensa, na medida em que não sofre interferências governamentais ou restrições de caráter censório, constitui expressão positiva do elevado coeficiente democrático que deve qualificar as formações sociais genuinamente livres. O direito à informação apresenta vários consectários, que embora parecidos e com diferenças tênues entre si, não se confundem. São eles: o direito de opinião, o direito de expressão, o direito de comunicação e o direito de informação. Este por seu turno abrange o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado743. 743 - NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Direito e jornalismo. São Paulo: Verbatim, 2008, p. 35-47. Dizer que a imprensa precisa repensar o seu papel e que ela, além de prestar relevantes serviços, é causadora de enormes injustiças, de violações lastimáveis à vida privada das pessoas, na propagação de determinado fato antes que ele esteja comprovado é, por assim dizer, "chover no molhado". A liberdade de imprensa e de expressão é fundamental nos Estados Democráticos de Direito. Como imperiosa é a noção de que o direito à informação deve ceder frente ao direito à intimidade.É muito antiga essa questão! Em meados do Século XIX, sob o pseudônimo de ARCESLÁO, um autor brasileiro assim se referiu à imprensa:"Um povo que exerce sua soberania é uma assembleia em sessão permanente, que presente a todas as necessidades da comunidade, não espera, para provê-las, o dia da reunião das câmaras: Cada cidadão espera, e fala de sua casa. Precisa pois de uma tribuna, desimpedida e livre a toda hora, gratuita, porque não deve comprar a dinheiro um direito que já tem como cidadão o direito de formar a opinião pública, de ouvi-la. (Cf: RICARDO VISCOLl DE CASTELLAZZO (ARCESILÁO). O livro do democrata. São Paulo.Typografia Americana, 1866, p. 138/143.) 347 A liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem prévia censura estabelecida. O legislador constituinte reconhece na liberdade de expressão e na liberdade de comunicação, o caráter institucional que realiza no plano de informação, do pluralismo político e ideológico. É a liberdade a ser informado. A liberdade de imprensa não é absoluta como quaisquer outras liberdades, mas sofre restrições, como o dever de fornecer a informação verdadeira e o dever de controle do informador. Pelo dever de fornecer a informação verdadeira, verifica-se que a imprensa deve zelar pela correta informação, que reproduza os fatos, de forma fidedigna. Trata-se de uma correlação entre o informante e o informador, onde o primeiro tem o dever de informar corretamente, e o segundo, o de receber a informação verdadeira. O código de ética, aprovado pela Federação Nacional dos Jornalistas esclarece em seu art.º. 2º: “A divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade”744. Segundo a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a denúncia anônima através da imprensa leva à responsabilização de seu autor, se identificado745. O direito à informação é aquele que “todos têm, a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, sendo ressalvados os casos de cujo sigilo das informações sejam imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado” (art.º 5º, inciso XXXIII da CF). É um importante corolário ao princípio da publicidade, tendo em vista que apenas em casos excepcionais, se mantém o sigilo das informações recebidas. 744 - O direito a informação verdadeira é um dos pontos brasileiros da democracia.O dever de cautela do informador indica que o jornalista deve antes checar a autenticidade da fonte, aprofundando-se nos fatos, para evitar quaisquer prejuízos á honra e á imagens de terceiros.Não é de se admirar que no Brasil, nos últimos tempos, muitas imagens têm sido destruídas por causa do comportamento, por vezes temerários, de alguns segmentos da imprensa. Hoje com o “status quo” de quarto poder, deve agir como tal, evitando a pressa e a premência do fechamento das edições, que não permite a reflexão e o desenvolvimento das idéias. 745 - Ementa.o art. 28 da atual lei de imprensa consagrou o princípio da responsabilidade sucessiva bem como a repressão do anonimato. Se o paciente foi identificado como o autor e responsável pelo escrito difamatório e injurioso, a exclusão do processo, de quem, só a sua falta, deveria ser responsabilizado, não o beneficia. Hábeas corpus indeferido. STF, 2ª T., HC 56260 / RJ, rel. Min. Cordeiro Guerra j. 16/06/1978, DJ 11/09/1978. 348 Trata-se de informações que digam respeito ou ao interesse particular ou ao interesse público, sendo ressalvadas as informações que sejam imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. Tem o Supremo Tribunal Federal brasileiro, jurisprudência consolidada, de que o direito à informação configura, na realidade, meio essencial de concretização do direito constitucional de informar, revelando-se oponível, em consequência, a quaisquer órgãos ou autoridades do Poder Público, não importando a esfera em que se situe a atuação institucional dos agentes estatais interessados746. A grande questão que se coloca é o confronto ou colisão entre o direito de informação, e a influência da mídia sobre os jurados. Alguns jornais exploraram o crime, ao sabor do temperamento do repórter. Se este é romântico, o brutal assassino por ciúme, por vaidade ofendida, transforma-se num infeliz mártir do amor, cego por uma irresistível paixão; se o jornalista é homem de maus bofes, e está com a digestão perturbada, então vai buscar contra o criminoso todos os adjetivos ásperos (feroz, miserável, bárbaro, etc.) com títulos e subtítulos em caixa alta. São essas letras garrafais e esses retratos que formam o juízo popular sobre o delito. O sumário, as diligências judiciárias, todas as demais provas passam-se à revelia do público, com a simples publicidade de duas linhas neutras na seção forense. O que se fixa o que pesa, o que se grava no espírito público, e se amplia de indivíduo para indivíduo é a primeira e alarmante notícia747. É intuitivo que a discussão a que se propõe coloca em questão dois valores imprescindíveis para o Estado de Direito, que são de um lado, liberdade de imprensa, e consequentemente o direito à informação, e de outro o direito ao julgamento justo, e consequentemente ao devido processo legal e ao juiz natural. De ordinário tenta-se a conciliação de ambos os valores, e o que se é possível, no plano abstrato, torna-se extremamente difícil realizar. Não há critério fixo e seguro que permita a priori a determinação de uma regra condutora desta tarefa748. Como se sabe hoje em qualquer lugar do mundo (e assim sempre o foi), a imprensa vem divulgando casos rumorosos, que atraem a atenção do grande público. Trata-se, como já referido, de um intenso sistema de comunicação, agora mais eficaz com a internet e a globalização. 746 - Inq 870, rel. Min. Celso de Mello, DJ 15/04/96. 747 - CAMARGO, Odecio Bueno. Patologia do Júri. São Paulo: RT, 1989, p. 15. 748 - VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e júri: Possibilidade de restrição da publicidade do processo. In: Revista brasileira de ciências criminais, ano 11 - nº 41 - janeiro-março, 2003, p. 113. 349 Em relação à internet, esta mídia está substituindo cada vez mais a mídia escrita (jornais, revistas etc.) e a mídia falada (televisão), uma vez que por esta tecnologia, a velocidade das notícias se dá em tempo real, podendo o internauta acompanhar de forma mais abrangente notícias e fenômenos ocorridos em qualquer parte do mundo. A globalização é coirmã da internet, e opera na mesma velocidade e diapasão da primeira, quer através de informações, quer pelo seu alcance, por sua intensidade, por seu impacto e por sua impressionante velocidade, sob a forma de uma sucessão de efeitos e decisões alimentando-se e exponenciando-se reciprocamente749. De sorte que hoje não se pode dizer que falta informação ao cidadão. Ao contrário, este é bombardeado com várias mídias, diuturnamente, e é evidente que a sucessão de informações através da mídia pode eventualmente formar a opinião do jurado, antes mesmo que este conheça os autos do processo, comprometendo uma série de garantias processuais, como a imparcialidade do juiz natural, e a verdade material750. Hoje, vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde as liberdades públicas são reconhecidas. Entretanto, percebemos que a imprensa passa a desempenhar um duplo papel: de um lado é informadora e, de outro, é formadora de opiniões. Com isso, na busca de melhores resultados comerciais, vem devassando a vida das pessoas cometendo verdadeiras atrocidades, desrespeitando, desta forma, direitos tutelados na Constituição Federal751. O juiz, como ocupante da posição de garantidor dos direitos fundamentais, deve estar livre de juízos paralelos (juicio paralelo) ou pressões extremas. Assim sendo, por meio da 749 - FARIA, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 64. 750 - “O cidadão deverá julgar como jurado em suprema instância causas criminais e civis, que devem ser discutidas antes da reunião do júri e formar sua opinião sobre elas, a fim de poder dar uma sentença justa e conscienciosa. Deve ouvir os interessados falarem da tribuna. É, lhe pois preciso uma tribuna para dirigir a opinião pública, e para ser dirigido por ela. “Qual será esta tribuna se não a imprensa, ou o jornal? (...) “Enfim reconhecer a soberania nacional e não lhe dar uma imprensa para exercê-la, é confiscar-lhe na prática o que em teoria não se lhe nega. (...) ”- A liberdade de imprensa será ilimitada?- Certamente mas os abusos que podem ter consequências funestas, não se podem chamar liberdade. A liberdade em todas as causas é apenas o exercício do direito. E não há instituição que possa ser mais funesta do que a imprensa, saindo do direito para ofender a terceiro, ou para falsear a opinião pública. Por isso não se deve consentir nem a calúnia, nem a injúria, nem a mentira. Há uma cousa sagrada, um santuário cuja devassa é uma profanação: é a vida privada, esse pudor da família para cuja defesa foram inventadas casas, portas e janelas nas cidades, foi levantada a cabana na tribo, e a tenda no deserto. 751 - GUERRA, Sidney Cesar Silva. A liberdade de imprensa e o direito à imagem. 2ª Ed. São Paulo: Renovar, 2003, p. 82. 350 STC 138/99, o Tribunal Constitucional espanhol reconheceu que a publicação de opinião pública ou mesmo a divulgação de opinião de agentes do Estado sobre a questão em julgamento pode exercer influência sobre a decisão judicial, até mesmo justificando motivações baseadas em argumentos não depurados pela garantia defensiva. Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o Tribunal Constitucional resolveu que o abuso de declarações predispõe a opinião pública a concluir, antecipadamente, pela culpabilidade do agente, justificando, logo, a restrição à liberdade de expressão, em proteção à autoridade e imparcialidade judicial. Mas isto não significa que seja proibida toda a forma de publicidade, razão pela qual caberia a solução pela proporcionalidade aplicada ao caso concreto752. A Constituição portuguesa talvez seja a mais fértil na concessão de direitos relacionados à informação, em geral, e à atividade jornalística, em específico. Sua compostura jurídica, especificamente no que tange ao direito de crítica e institutos correlatos, é extremamente singular, inovando em diversos sentidos e fixando extenso rol de direitos garantidores do livre fluxo informativo753. Desta forma, não é difícil afirmar que a Constituição portuguesa, inovou 752 - ATAÍDE, Fábio. Colisão entre o poder punitivo do estado e garantia constitucional da defesa. Curitiba: Juruá, 2010, p. 143. 753 - Artigo 37 - 1. Todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. 3. As infrações cometidas no exercício desses direitos ficam submetidas aos princípios gerais do direito criminal, sendo a sua apreciação dos tribunais judiciais. 4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como a indenização pelos danos sofridos. Artigo 38 – 1.É garantida a liberdade de imprensa. 2. Os partidos políticos representados na Assembleia da República, e que não façam parte do governo, têm direito, nos termos da lei, a espaço nas publicações jornalísticas pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes e a tempos de antena na rádio e na televisão, a ratear de acordo com sua representatividade, de dimensão e duração e em tudo o mais iguais aos concedidos ao Governo, bem como o direito de resposta, nos mesmos órgãos, às declarações políticas do Governo. 3. Nos períodos eleitorais os concorrentes têm direito a tempos de antena, na rádio e na televisão, regulares e equitativos. (...) 351 em diversos sentidos, sendo talvez a Constituição que confere o maior rol de direitos, concernentes à liberdade de informação que o mundo contemporâneo conhece754. Artigo 42 1. É livre a criação intelectual, artística e científica. 2. Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteção legal dos direitos de autor, in: MIRANDA, Jorge (org.). Constituições de Diversos Países. (Tradução, organização e nota prévia de Jorge Miranda.) 3ª Ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1987 Coimbra, Editora Coimbra, 1988. 754 - São os seguintes direito de crítica encampado na Constituição Portuguesa elencado por Vital Serrano (op.cit.,p.63-64):1. Conteúdo do direito de informação: a proteção da informação na Constituição portuguesa chegou a um alto nível expressamente porque ficou reconhecido no artigo 37, § lº que todo indivíduo tem o direito de informar, de se informar e de ser informado. Em exegese literal já se pode concluir, pois, que: a Carta portuguesa reconheceu o direito de informação na sua tríplice dimensão, assegurando, em coordenação com outros dispositivos da Constituição, o direito de informação na sua integralidade: veja-se que o direito de informar e de receber informações na Constituição brasileira não são integrais.2. Crítica jornalística: a Constituição portuguesa incorporou expressamente ao seu texto o direito de expressão dos jornalistas e colaboradores literários. Com isso, atribuiu a todos os partícipes - eventuais e perenes - da atividade jornalística o direito de crítica.3. Orientação ideológica: o artigo 38, § 20 da Carta portuguesa delegou ainda ao jornalista a missão de intervir na orientação ideológica dos órgãos de informação. Esse direito de intervenção é concreto e fica ainda mais garantido com o direito abordado no tópico seguinte.4. Eleição dos conselhos de redação: a materialização do direito de intervenção na orientação ideológica dos órgãos de informação fica mais clara com o direito de eleição dos conselhos de redação. A Carta portuguesa atribuiu aos jornalistas que trabalhem em determinado jornal, o direito de eleger o Conselho de Redação do jornal. Dessa maneira, seja diretamente, participando do conselho, seja indiretamente, elegendo-o, os jornalistas estarão intervindo concretamente na orientação ideológica do jornal em que atuam.5. Divulgação do nome do proprietário e dos meios de financiamento: a Constituição portuguesa impõe, nos termos da lei, o dever de publicação de quem seja o proprietário e quais sejam Os meios de financiamento da imprensa periódica, com o fito de garantir ao individuo o direito à depuração informativa, pois, conhecendo quem é o proprietário e quem financia o jornal, ter-se-iam condições de entrever eventual parcialidade no trato de determinadas questões, que eventualmente interesses sejam os meios de financiamento da imprensa periódica, com o fito de garantir ao indivíduo o direito à depuração informativa, pois, conhecendo quem é o proprietário e quem financia o jornal, ter-se-iam condições de entrever eventual parcialidade no trato de determinadas questões, que eventualmente interessem ao proprietário do periódico, ou a quem o financie. Assim garante-se mais transparência à informação.6. Propriedade estatal da televisão: por expressa disposição constitucional, a televisão não pode ser objeto da propriedade privada. Na verdade, enquanto meio de comunicação social pertencente ao Estado, a televisão recebe orientação de um Conselho de Comunicação Social, composto por onze membros eleitos pelo Poder Legislativo, que influi, inclusive, na nomeação e na orientação dos órgãos de comunicação social pertencentes ao Estado ou que dele dependam.7. Direito aos meios para informar: a Constituição portuguesa assegura o direito a meios para informar: os meios de comunicação social do governo, inclusive a televisão, devem garantir o confronto de 352 O Direito Processual Penal português, também conhece a figura do segredo de justiça, que veda a crônica jornalística relativamente a atos a estes sujeitos, por via do art.º. 88.°, N.º 1 do CPP. Razão pela qual não se pode utilizar apenas o regime e as condições descritas no art.º. 86°, nº 4 para excluir do âmbito da regulação processual do segredo de justiça os jornalistas, porque, se dúvidas existissem, o art.º. 88°, n. I do CPP sempre esclareceria de forma inequívoca que estes se encontram abrangidas pelo dever de não divulgar os atos processuais sujeitos a segredo de justiça. Em conclusão, a divulgação pela imprensa do teor de atos processuais sujeitos a segredo de justiça viola o regime processual deste segredo (art.º. 88°, n. 1 e art.º. 86°, n. 4 al. b) do CPP) e pode realizar o tipo incriminador de violação de segredo de justiça, previsto no art.º 371°, nº 1 do C.P. se a atuação do agente for dolosa755. De fato, a imprensa exerce este papel importantíssimo dentro do cenário mundial e por esta importância alguns autores preferem chamá-la de “quarto poder”. O “quarto poder” seria então constituído pelos “meios de informação que desempenham uma função determinante para a politização da opinião pública e, nas democracias constitucionais, têm capacidade de exercer um controle crítico sobre os órgãos dos três poderes, legislativo, executivo e judiciário”756. A Constituição da República Portuguesa considera o direito de informação um direito fundamental (art.º. 37°, n. 1). Trata-se de um direito de estrutura complexa, reconhecendo-se três níveis de informação: “o direito de informar”, “o direito de se informar” e o” direito a ser informado”757. opinião; também atribui o direito de antena aos partidos políticos e organizações sindicais, possibilitando o acesso dessas entidades ao rádio e à televisão, o que favorece o concreto exercício do direito de crítica jornalística sem ao proprietário do Periódico, ou a quem o financie. Assim garante-se mais transparência ã informação. 755 - PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O segredo de Justiça e acesso ao processo, in: Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais. PALMA, Maria Fernanda (Coord.). Lisboa: Almedina, 2004, p. 43. 756 - BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 1. Brasília: Universidade de Brasília, 2002, p. 1040. 757 - MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3. Ed.. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 40. 353 4. Liberdade de imprensa e segurança jurídica: conflito, problematização e possíveis soluções A Alemanha foi um dos primeiros países que tratou dos problemas derivados de fotografar e colocar microfones na sala de audiência por jornalistas profissionais. A Corte Suprema de Justiça da Alemanha anulou uma decisão em 8 de fevereiro de 1957, na qual se havia proibido um advogado de exercer seu direito a negar-se a falar diante de um microfone. O ordenamento alemão garante o acesso dos meios de comunicação na sala do Tribunal e estabelece expressamente os limites de tal acesso, de forma que proíbe a realização de gravações radiofônicas e de televisão, ou mesmo as fotografias dentro da sala de audiência758. Entretanto, apesar dos prós e contras levantados, a formação da opinião pública, seja mais isenta ou menos imparcial, salientando-se que um processo puro de formação do estado de espírito da sociedade é praticamente impossível de ocorrer, pela própria natureza do ser humano e pela falta de condições de apurar realmente quais as opiniões predominantes, é fato consumado e real. Logo, cabe a pergunta: a opinião pública fere a soberania dos veredictos no Tribunal do Júri? Exerce, sem dúvida, influência negativa e deveria ser evitado o seu cultivo em torno de julgamentos ocorridos no tribunal popular, mas não é mecanismo que danifique gravemente a soberania. Deve-se enfocar a supremacia do júri e sua independência como a possibilidade que tem o povo de decidir o destino de pessoas que lhe são apresentadas para julgamento. Retira-se o jurado da sociedade para exercer tal função, de modo que não se pode pretender que existam jurados puros e isentos, mormente, como já foi ressaltado, se não têm 758 - Artigo 169.2 GVG,Titulo decimo quarto. Igualmente,quando o interesse da informação for prioritário à proteção outorgada ao indivíduo, a órbita individual deverá ceder espaço ao interesse público de ter acesso à notícia. Caso contrário, prevalece o interesse individual (aqui referiu Pilar Gomes Pavon. La intimidad como objeto de protección Penal, Madrid, Akaliure, 1989, p. 80). Outra sugestão, ainda dentro da proposta de autocontrole da mídia, é a de se fazer um esforço organizado para elevar o nível educacional e cultural das massas populares, orientando-as em seu interesse para uma atividade mais sã e construtiva, a fim de se obter uma censura espontânea contra este tipo de notícia. A nosso ver, esta é a proposta mais consentânea com um país que tenha uma sociedade civil organizada e atuante e que, em fase de um caso concreto, tinha noção do poder que o destinatário da informação tem. Referiu as campanhas de boicote contra determinados órgãos de imprensa nos Estados Unidos da América por atitudes impensadas em determinados casos, aduzindo não parecer ser este o caso do Brasil. (CF: SHECARIA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena. São Paulo: RT, 2002, pp. 338-339.) 354 conhecimento jurídico suficiente para filtrar o que se divulga na imprensa e na comunidade onde vive759. Dentro deste contexto, os estudos realizados pelos autores citados, baseados em pesquisas elaboradas por Moran y Cutler em 1991, e Davis em 1996, buscam demonstrar, respectivamente, que uma publicidade moderada e não excessivamente emotiva pode prejudicar o acusado, enquanto outros indicam que o efeito da publicidade é mais irrelevante do que parece760. No âmbito da União Europeia, estes conflitos de normas devem distinguir-se de duas outras séries de conflitos a que estão ligados. Primeiro, o conflito, já mencionado, entre uma norma constitucional e a lei que permite que se faça uma derrogação excepcional. Em certos casos, a derrogação é dupla, em caso de conflito entre normas de igual categoria. Por exemplo, o artigo 10°, alínea 2, da Convenção de Defesa dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais assinala, entre os interesses legítimos que podem ser invocados pelo Estado para limitar a liberdade de expressão, a proteção dos direitos de terceiros. Contudo, na medida em que esta expressão se refere à honra e à vida privada, diretamente protegidas pelo artigo 8º, o Estado encontra um meio de defesa mais sólido no conflito entre este artigo e o artigo 10º, uma vez que passa a ser dispensado de fazer valer as condições restritivas do artigo 10º, alínea 22761. Além disso, não se deve, também confundir o conflito de duas liberdades constitucionais com o conflito entre uma delas e o interesse geral. No sistema da Convenção de Defesa dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, maior parte dos interesses legítimos, enumerados na alínea 2 dos artigos 8º, 9º, 10º e 1.º, designam, de maneira limitativa, mas com o auxílio de cláusulas gerais (a ordem pública, a segurança nacional, etc.), a variedade de interesses de que o Estado se pode servir para restringir o exercício uma liberdade garantida ou de se imiscuir nela762. A restrição à publicidade é possível por expressa autorização constitucional em favor do direito ao julgamento justo em exame criterioso à luz das peculiaridades de cada caso. A contribuição do direito comparado aponta como critérios de verificação da necessidade da medida a sua imprescindibilidade e a inexistência de alternativa outra que não ela própria para 759 - NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 733. 760 - VELASCO, Pilar de Paul. Del procediento para las causas ante el tribunal Del jurado. Madrid: Centro de Estúdios Rámon Areces, S.A, 1999, p. 61. 761 - F. Rigaux, 1995 a, p. 410-441. 762 - ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os Juízes na mundialização. A nova revolução do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 17 355 solucionar o problema. A imprescindibilidade deve se manifestar na medida de sua pertinência lógica com a finalidade da medida. Em outras palavras, sob pena de desvio de finalidade caracterizador de abuso e constrangimento ilegal, há de se patentear o risco ao julgamento isento763. Nos Estados Unidos, existe uma discussão acerca dos destinatários da liberdade de imprensa, que em última instância é o grande público, voltado para a mídia. É esta a interpretação que grande parte da doutrina americana analisa os benefícios da primeira emenda. O beneficiário final da liberdade de imprensa é o público, quer como consumidor, quer como cidadãos que lucram com uma imprensa que serve necessidades democráticas, devendo desta forma o governo regular, o que serve ou não serve ao interesse do público em uma ordem de mídia ideal. Sob essa ótica, a imprensa tem direitos, e apenas aqueles direitos, que avançam o interesse do público em uma imprensa livre. Por exemplo, o privilégio dos 763 - VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e júri: Possibilidade de restrição da publicidade do processo, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 11 - nº 41 - janeiro-março, 2003, p. 113. Podemos enumerar cinco hipóteses de convivência harmoniosa entre o Poder Judiciário, a imprensa e os destinatários da informação: a) o conhecimento da atividade do Judiciário é direito do cidadão. Sendo os magistrados prestadores de serviço público, imprescindível se faz que essa atividade seja a mais transparente possível; b) impõe-se, para o aprimoramento da democracia no País, que haja uma maior aproximação entre Judiciário e Imprensa, veículo que esta é da atuação e da postura dos diversos segmentos sociais, mostrando como atua o Judiciário, qual a sua competência, sua estrutura, seu alcance como Poder, suas deficiências, seus abusos reais; c) fundamental, destarte, que sejam superadas as finalidades apontadas, e outras que existirem, tornando-se o Judiciário mais acessível à divulgação e, via de consequência, ao público; esmerando-se a Imprensa, por seu turno, em aperfeiçoar o seu sistema de divulgação, com inteira liberdade mais sem as distorções, os abusos e as omissões que o estágio atual está a demonstrar; d) o Estado democrático de Direito não se contenta mais com uma ação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valorização do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção de uma nova sociedade mais livre, justa e solidária; e) cada vez mais, e o próximo século se encaminha para essa demonstração, o Judiciário lerá participação maior e mais efetiva na sociedade, especialmente para conter os excessos do Poder dominante e melhor resguardar os direitos da cidadania. Nesse quadro, igualmente relevante será o papel a ser desenvolvido pela Imprensa. Daí a necessidade de ambos se aparelharem convenientemente, corrigindo suas atuais e múltiplas diligências, aprimorando seus mecanismos e buscando diretrizes que melhor atendam aos anseios de uma sociedade livre, justa, solidária e responsável. (cf.: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A imprensa e o judiciário, in: Revista Forense, Julho- Agosto- Setembro de 1995, p.453.) 356 jornalistas de não revelar fontes confidenciais, ao abrigo da presente análise, existe somente porque o reconhecimento que beneficia o papel democrático, a saber, a integridade institucional da imprensa e, assim, benefícios a mais amplo público764. Na França, o Código de Processo Penal, proibia o emprego de toda sorte de aparatos de registro e transmissão, câmaras de televisão e aparato fotográficos, com penas de multa pesadas. A lei de 6 de dezembro de 1954 reservou ao Ministro da Justiça da França, a possibilidade de tirar fotografias, quando se trate de processos de caráter histórico, em conformidade com seu artigo 38. Esta vedação terminou, ante a edição da lei de 2 de fevereiro de 1981, que modificou o art.º. 38, permitindo imagens das partes e seus advogados, antes do início da audiência, sempre com previa autorização do Presidente do Tribunal e com o consentimento das partes e do Ministério Publico765. A CRP prevê duas tendências diferentes sobre o direito de informação: o nº 2 do art.º 37° da Constituição configura-o em termos amplos, proibindo qualquer forma ou tipo de censura; mas do n.º 3 do art.º. 37° resulta também que o direito de informação não é um direito absoluto e muitos menos ilimitado, já que o seu exercício pode implicar a prática de infrações sujeitas ao regime geral do Direito Criminal. A possível tensão entre o direito de informar, enquanto valor político-jurídico fundamental, e outros interesses é assim prevista desde logo na Constituição. O que bem se compreende pois, ao contrário de outros direitos fundamentais, este não decorre diretamente da dignidade da pessoa humana, mas antes de uma concepção politicamente liberal do Estado assente na liberdade de expressão. No Brasil, quanto à colisão de direitos fundamentais diversos, podemos citar como exemplo típico, aquela entre a liberdade artística, intelectual cientifica ou de comunicação (art.º. 5°, IX da Constituição Federal/88) com a intimidade, a vida privada, a honra e a 764 - BAKER, C. Edwin. Media concetartion and democracy. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2003, p. 127. Nos EUA, os meios de comunicação se submetem, como se sabe, à autoridade da Federal Communications Commission, cuja existência foi tratada, inclusive, como fundamento para que os congressistas constituintes, no Brasil, fossem convencidos a aprovar o texto que se converteu no artigo 224 da Constituição de 1988. Enquanto a Federal Trade Commission lida basicamente com as questões concernentes à concorrência, a Federal Communications Commission lida precisamente com as causas geradoras de externalidades negativas por parte das empresas de comunicação social, notadamente os meios eletrônicos'?", até porque estes têm a evidente maior capacidade de atingimento de receptores, seja pela imediatidade da transmissão, seja por não se exigir, para que o receptor capte as mensagens provenientes da radiodifusão, alfabetização , in: CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. A mídia e a Constituição. Programação de Rádio e TV e suas externalidades.Porto Alegre:Sergio Fabris Editor,2013, p.91. 765 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 341. 357 imagem das pessoas (art.º. 5°, X da Carta Política/88). Na colisão entre a liberdade de comunicação e a intimidade, a honra e a imagem, o Supremo Tribunal Federal tem admitido uma distinção quanto às posições dos eventuais envolvidos. Nesse sentido, o Supremo estabelece critérios para a aferição da eventual ofensa à honra e à imagem, haja em vista a exposição pública das pessoas.766 4.1. Segue: O caso dos assassinatos dos soldados Lebach na Alemanha, como harmonização e ponderação entre a liberdade de expressão e o direito à intimidade Na Alemanha, por ocasião do Acórdão BVerfGE 35, 202 (assassinato de soldados Lebach),767 o Tribunal Constitucional faz uma depuração entre a liberdade de expressão e os direitos de personalidade, julgado em 1973. Os fatos que deram origem ao caso foram os seguintes: em 1969, em Lebach, um pequeno lugarejo localizado a oeste da República Federal da Alemanha, houve o assassinato brutal de quatro soldados que guardavam um depósito de munição, tendo um quinto soldado ficado gravemente ferido. Foram roubadas do depósito armas e munições. No ano seguinte, os dois principais acusados foram condenados à prisão perpétua. Um terceiro acusado foi condenado a seis anos de reclusão, por ter ajudado na preparação da ação criminosa. Quatro anos após o ocorrido, a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen – Segundo Canal Alemão), atenta ao grande interesse da opinião pública no caso, produziu um documentário sobre todo o ocorrido. No documentário, seriam apresentados o nome e a foto de todos os acusados. Além disso, haveria uma representação do crime por atores, com detalhes da relação dos 766 - CARVALHO, Joana de Moraes Souza Caravalho. Colisão de Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris.2009, p.87. Pode-se também invocar o princípio da proporcionalidade, uma vez que a vinculação da proporcionalidade com o Direito Penal evidencia-se, sobretudo, pela possibilidade de conflito entre direitos fundamentais. De um lado, a garantia e proteção do direito fundamental da segurança, em uma perspectiva objetiva, de se salvaguardar interesses da coletividade. De outro, a proteção do direito individual da liberdade, do criminoso. Com isso, a possibilidade de colisão entre direitos fundamentais, inicialmente no momento de definir quais serão as condutas criminosas e respectivas sanções, toma-se clara. O Estado, diante disto, necessita ponderar os valores em jogo e definir quais direitos fundamentais serão restringidos e em qual razão para se atingir a almejada paz pública, sem ofensa ao núcleo essencial, in:ESSADO,Tiago Cintra. O Principio da proporcionalidade no Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,2008,p.78. 767 - STIFUNG, Konrad Adenauer. Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán. Berlim: Konrad Adenauer Stiftung. 2009. p.96. 358 condenados entre si, incluindo suas ligações homossexuais. O documentário deveria ser transmitido em uma sexta-feira à noite, pouco antes da soltura do terceiro acusado, que já havia cumprido boa parte de sua pena. Esse terceiro acusado buscou, em juízo, uma medida liminar para impedir a transmissão do programa, pois o documentário dificultaria o seu processo de ressocialização. A medida liminar não foi deferida nas instâncias ordinárias. Em razão disso, ele apresentou uma reclamação constitucional para o Tribunal Constitucional Federal, invocando a proteção ao seu direito de desenvolvimento da personalidade, previsto na Constituição alemã. No caso, o Tribunal Constitucional Federal, tentando harmonizar os direitos em conflito (direito à informação versus direitos de personalidade), decidiu que a rede de televisão não poderia transmitir o documentário caso a imagem do reclamante fosse apresentada ou seu nome fosse mencionado. Eis a ementa da decisão: 1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do art.º. 512 GG. A liberdade de radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. 2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística (Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung) da liberdade de radiodifusão segundo o art.º. 512 GG, de um lado, e a proteção à personalidade segundo o art.º. 2 1 c/c. artº. 512 GG, do outro. Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, por exemplo na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação 359 atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização). A ameaça à ressocialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura. Na fundamentação do julgado, o Tribunal Constitucional Federal explicou didaticamente o processo de ponderação que estava sendo adotado para solucionar o caso: “Em casos de conflito como o presente, vale, por isso, de um lado, o princípio geral de que a aplicação dos §§ 22, 23 KUG em face de programas de televisão não pode limitar a liberdade de radiodifusão excessivamente. De outro lado, existe aqui, em contraposição às demais leis gerais na acepção do art.º. 5 II GG, a peculiaridade de que a limitação da liberdade de radiodifusão serve, por sua vez, à proteção de um alto valor constitucional; o interesse da pessoa em questão contra a divulgação ou apresentação de sua imagem, a ser considerado no contexto do § 23 KUG, é reforçado diretamente pela garantia constitucional da proteção à personalidade [do art.º. 21 c. c. art.º. 11 GG]. A solução do conflito deve partir do pressuposto de que, segundo a vontade da Constituição, ambos os valores constitucionais configuram componentes essenciais da ordem democrática livre da Grundgesetz, de forma que nenhum deles pode pretender a prevalência absoluta. O conceito de pessoa humana (Menschenbild) da Grundgesetz e a configuração a ele correspondente da comunidade estatal exigem tanto o reconhecimento da independência da personalidade individual como a garantia de um clima de liberdade que não é imaginável atualmente sem comunicação livre. Ambos os valores constitucionais devem ser, por isso, em caso de conflito, se possível, harmonizados; se isso não for atingido, deve ser decidido, considerando-se a configuração típica e as circunstâncias especiais do caso particular, qual dos dois interesses deve ser preterido. Ambos os valores constitucionais devem ser vistos, em sua relação com a dignidade humana, como o centro do sistema axiológico da Constituição. Certamente, podem decorrer da liberdade de radiodifusão efeitos limitadores para as pretensões jurídicas derivadas do direito [fundamental] da personalidade; porém, o dano causado à personalidade por uma apresentação pública não pode ser desproporcional ao significado da divulgação para a comunicação livre. Além disso, desse valor de referência decorre que a ponderação necessária por um lado deve considerar a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade por um programa de tipo questionável e, por outro lado, está o interesse concreto a cuja satisfação o programa serve e é adequado a 360 servir, para avaliar e examinar se e como esse interesse pode ser satisfeito [de preferência] sem um prejuízo – ou sem um prejuízo tão grande – da proteção à personalidade.”768 Este caso foi decidido, como se vê, a título de excepcionalidade, e tinha as suas peculiaridades, uma vez que na Alemanha, o que vale é a liberdade de imprensa, que somente pode ser tolhida em casos em que entra em colisão com outros bens também protegidos constitucionalmente, como a honra, a dignidade da pessoa humana e a imagem das pessoas, entre outros importantes bens, por força do art. 5º, parágrafo 1º, alíneas 1 e 2 da Lei Fundamental Alemã. 5. O Tribunal do Júri e liberdade de imprensa: a influência da mídia sobre o julgamento do Júri Entretanto, e, sobretudo relativamente àquele tipo de criminalidade que hoje faz as Manchetes da comunicação social - a criminalidade econômica e política - os jornais, televisões rádios, invocando frequentemente como fontes as próprias autoridades policiais e judiciárias, lá vão dando notícias sobre o processo que continua a gatinhar enquanto com a sua dinâmica própria os media não só dão notícia do crime, como o investigam ao jeito que lhes é próprio, condenam o eventual agente e executam a pena na praça pública, sem que o arguido, muitas vezes ainda simples suspeito, nada mais possa fazer senão desesperar e recorrer mais uma vez aos tribunais, cuja ineficácia neste domínio ultrapassa todos os limites da razoabilidade, por razões que têm que ver com a lentidão do sistema, mas também pelo conflito de valores que a questão congrega769. No interesse da investigação, mantêm-se o segredo até à acusação; em nome da liberdade da imprensa, conspurca-se o bom nome de quem quer que seja desde que possa ser “furo” jornalístico e o cidadão, ainda quando eventualmente culpado, mas sempre presumido 768 - STIFUNG, Konrad Adenauer. Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán. Berlim: Konrad Adenauer Stiftung, 2009. p.97. 769 - A interação entre imprensa e autoridades é sinérgica: promotores, juízes, delegados, advogados passam a agir e a viver para o olhar da televisão e dos flashes. Qualquer de nós há de se lembrar de ter visto uma cena paradigmática: um delegado, por exemplo, composto, com olhar grave e a voz empostada, a dizer o que ele imagine que a televisão quer ouvir dele, em concretização da teoria sartriana do ser-para-outrem, através do olhar. Porque naquele momento ele não é um sujeito, falando sobre uma investigação que está sendo feita perdeu a sua liberdade, apurada pelo olhar da câmera, tomou-se um objeto, subjugado por interesses que ele não sabe discemir,in: BASTOS, Márcio Thomaz. Júri e mída, In: Tribunal do Júri, p. 115. 361 inocente até decisão condenatória dos tribunais, pouco mais pode fazer do que resignar-se, do que isolar-se na sua casa a tentar confortar pais e filhos dos enxovalhos da opinião pública conformada pelos media770. O Brasil aprende a acompanhar telejornal como quem acompanha a uma novela ou a uma minissérie. É como se a escola do famoso jornalista policial Gil Gomes tivesse feito alunos, que estão atuando em todos os telejornais para contar o passo-a-passo de Suzane Louise von Richthofen ou do Casal Nardoni. São bons estes alunos! Eles estão muito mais aprimorados em trilha sonora, imagens aéreas, entrevista com familiares, reconstituição de cena, edição, computação gráfica e transmissão ao vivo771. Todavia, entende a doutrina, sustentada pela jurisprudência dos nossos tribunais, que o mero noticiário pela imprensa do crime ou do julgamento a ser realizado por si só não pode ser indício de imparcialidade dos jurados, ainda que as opiniões sejam desfavoráveis ao acusado, “merecendo sempre ser preservada a presunção de imparcialidade, enquanto o noticiário, que até pode ter sido gerado pela identificação do interesse geral intensamente voltado para um crime, não pode ser o retrato, ou estaríamos em um mundo de apáticos e de submissos, da opinião de uma co1etividade”772. Neste sentido, a pressão da opinião pública e da mídia sobre os jurados é um dos diversos problemas que alguns profissionais do direito insistem em imputar ao Júri e seus julgamentos. É sabido que a opinião pública realmente tem o poder de influenciar e, até mesmo, de subjugar posições individuais, sobretudo em se tratando de um país cuja 770 - SILVA, Germano Marques. Aspectos gerais do projecto de reforma do Código de Processo Penal. In: Revista jurídica da Universidade Portucalense infante Dom Henrique, nº 2, março/99, p. 45 771 - VV.AA. O Direito e a mídia no século XXI. Artigo de Patricia Gomes Ferreira, O desuso na ética na busca pela audiência, cit. p. 125. 772 - Ainda, Hermínio Alberto Marques Porto. Júri..., cit., p. 106. Edgard de Moura Biuencourt cita uma antiga decisão jurisprudencial que embasa a idéia da doutrina atual: "O fato de um jornal local ter acompanhado a formação da culpa, publicando o depoimento das testemunhas, com títulos maiores, para chamar a atenção dos leitores, não constitui motivos para, decorridos meses, supor-se que o réu não contará com a imparcialidade do júri e a segurança pessoal. Ac. T.A. D.J. 28.08.1938" (A instituição do Júri. São Paulo: Saraiva, 1939. p. 123). A jurisprudência atual é no mesmo sentido: TJSP, Desaf. 147.211, RT 708/300; RT 460/332; "A maior divulgação do fato e dos seus incidentes e conseqüências, pelos meios de comunicação social, não basta, por si só, para justificar o desaforamento, sempre excepcional do julgamento pelo Júri. A opinião da imprensa não reflete, necessariamente, o estado de ânimo da coletividade e, por extensão, dos membros integrantes do Conselho de Sentença" (STF - HC - rel. Celso de Mello - RT 701/408). VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003, p. 250. 362 escolaridade da população é bastante precária. Contudo, não se pode imputar unicamente aos jurados a possibilidade de se deixar influenciar pelos meios de comunicação e pela opinião pública, momento em que exercem sua função. O aprofundamento da questão necessita de urna análise prévia da definição do que seria a opinião pública e de como ela se forma dentro de uma nação altamente complexa como é o Brasil, caracterizada pelo profundo abismo social e pela multiplicidade étnica. 773 A opinião pública, portanto, é passível de controvérsia, não representa uma posição definitiva e o julgamento não conduz a um juízo de certeza. Tais afirmações conduzem à ideia de fragilidade dessa opinião comum, eis que pautada num posicionamento de consenso precário, cujo desenvolvimento da contradição de ideias pode levar a urna modificação da posição anterior. Além disso, por ser um consenso precário, muito difícil se torna aferir com certeza qual seria essa opinião comum e o grau de aceitação dentro da população de um país. 774 Mas o fato é que alguns julgamentos são superexpostos pela mídia. Diante de tanta atenção midiática é que se pergunta até que ponto estas pessoas tiveram um julgamento imparcial e isento. Algo parecido ocorreu em relação ao homicídio cuja vítima foi Daniela Perez, e as pressões surgidas, à época, gestaram modificação da Lei dos Crimes Hediondos, merecendo registro, ainda, o fato de que o acusado permaneceu preso, sem julgamento, por mais de quatro anos775. 773 - Segundo lição de Darcy Azambuja,"opinião é um juízo, sentimento, convicção, mas de caráter especial. Aliás, opinião é um julgamento susceptível de controvérsia. A opinião é um estado de espírito que consiste em julgar verdadeiro um fato ou uma afirmação, mas admitindo que talvez estejamos enganados [ ... ] Pública quer dizer 'do povo, de uma sociedade, comum, geral, afirmam os dicionários. Então, opinião pública é a opinião do povo, a opinião geral, a opinião comum”,in: AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Globo, 2001. p. 265-266. 774 - VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003, p. 255. 775 - LOPES FILHO, Mario Rocha. O Tribunal do Júri e algumas variáveis potenciais de influência. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2008. Alguns poucos processos penais despertam grande interesse no público. Mas eles são convertidos em um processo.espetáculo ou são comercializados. Em um auditório lotado dificilmente se poderá revelar a compreensão cénica enquanto fim do Processo Penal. No conllito entre o cenário organizado pelo Código de Processo Penal c o interesse despertado em muitas pessoas pelo caso, que as comove e preocupa, o cenário deve triunlar. A intermediação da atuação judicial ao maior público possivel é um dos fins que o Direito Processual Penal c o Direito Constitucional perseguem. Mas, em comparação com a finalidade de proteçào dos direitos da esfera privada diante da lesão através do Processo, de Possibilitar a compreensão cénica e assegurar suas condiçóes cxternas, a intermediação é tão-somente um fim acessório, o qual não pode colocar 363 A imprensa é um meio de comodidade pública que registra os acontecimentos do dia, a fim de apresentá-los aos leitores, faz conhecer sucessos futuros, adverte contra possíveis desastres, e contribuem de vários modos para o bem-estar, o conforto, a segurança e defesa do povo. Mas sob o ponto de vista constitucional a sua importância capital consiste em facilitar ao cidadão ensejo de trazer perante o tribunal de opinião pública qualquer autoridade, corporação ou repartição pública, e até mesmo o próprio governo em todos os seus ramos com o fim de compeli-los, uns e outros, a submeterem-se a um exame e a uma crítica sobre sua conduta, as suas medidas e os seus intentos, diante de todos, tendo em vista obterem a prevenção ou a correção dos males; do mesmo modo serve para sujeitar a idêntico exame e com fins idênticos, todos aqueles que aspiram a funções públicas776. Todavia, dada à peculiaridade do ritual simbólico do procedimento do júri popular, que aguça a curiosidade pública, os media acabam por transformar as partes, os jurados e o acusado em verdadeiros atores protagonistas de uma “justiça-espetáculo”, a qual é compreensível somente pela aparência, pelas impressões colhidas das informações transmitidas pela imprensa. Assim procedendo, os meios de comunicação contribuem mais para entreter por meio da ilusória ou até da falsa noção que transmitem sobre o julgamento popular do que, efetivamente, cumprir o poder-dever de informar corretamente a sociedade sobre os atos do Poder Judiciário777. Ressalte-se, também, que um dos grandes problemas da publicidade prévia e das transmissões televisivas é a sua repercussão nas audiências de debates e julgamento. O Tribunal do Júri reside não só na real possibilidade de agressão aos bens personalíssimos do acusado, das testemunhas, mas, e principalmente, na quase inevitável influência da mídia sobre os jurados, afetando-lhes a imparcialidade necessária à decisão da causa. Necessário, contudo, manter sempre acesa a ideia de que no Tribunal do Júri a publicidade é ampla, geral, realizando-se todo o procedimento a “portas abertas” desde o em perigo o verdadeiro fim do Processo Penal, in:HASSEMER,Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2005,p.226. 776 - CCOLEY, Thomas. Princípios gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da America do Norte. Trad. Alcides Cruz. 2ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 43. 777 - Infelizmente, ressoam nas 'manchetes' dos jornais e nos prefixos do rádio algumas causas mais propícias aos espetáculos da publicidade. Então, o júri paga, por sua popularidade, ao estrépito da reportagem que, raramente, se apercebe dos juízes e tribunais togados protegidos por 'silenciadores' da rota e pela indiferença das plateias. Os incidentes mais graves morrem entre taktes e reposteiros, enquanto, em relação ao Júri, as veemências elementares agigantam-se na lente gráfica da primeira página. (cf: LYRA, Roberto. O Júri sob todos os aspectos, prefácio da obra de Ruy Barbosa, in: Revista Brasileira de Criminologia, ano III, jul.-set.,1949, n. 8, p. 48) 364 sorteio dos vinte jurados que serão convocados para o julgamento (art.º. 428 do CPP) até a publicação da sentença em público e na presença do réu (art.º. 495, XVllI, do CPP). Liberdade de imprensa e publicidade dos atos judiciais são valores democráticos que não se contrapõem, mas identificam-se. Nada há de ilegítimo na divulgação dos atos da Justiça pela mídia. Enquanto esta cumpre seu direito e função essencial de informar o público sobre a criminalidade e os atos da justiça criminal, o Judiciário, pelos meios de comunicação, torna visível ao cidadão o seu exercício de pacificar os conflitos sociais. A manifestação pública do processo é a forma mais veemente de exteriorização dos atos do Poder Judiciário. É pela publicidade dos atos do processo que a Justiça se legitima, pois se torna transparente e suscetível de controle popular, o que é imprescindível numa democracia. Ademais, a publicidade garante ao indivíduo que está sendo processado a segurança de um procedimento correto, de acordo com a lei, bem como a tutela de sua liberdade e proteção de todos os seus direitos fundamentais; a publicidade garante, finalmente, um processo justo. São estes, por conseguinte, os dois fundamentos da publicidade: o político e o jurídico. Na sociedade dos mass media a manifestação pública do processo penal se intensifica com o uso das tecnologias disponíveis. A imprensa, como expressão da liberdade de informar, assegurada na Carta Magna, divulga os atos judiciais por intermédio dos jornais, revistas, rádios e televisão. É, então, um meio eficaz de realização da publicidade do processo. Esta efetiva ingerência da mídia, no dia-a-dia da sociedade, é conhecida pela expressão agenda setting, pois, as pessoas agendam seus assuntos e suas conversas em função do que a mídia veicula. É o que sustenta a hipótese da agenda setting. Trata-se de uma das formas possíveis de incidência da mídia sobre o público. É a hipótese segundo a qual a mídia, seleção, disposição e incidência de suas notícias, vem determinar os temas os quais o público falará e discutirá778. Mas existem aqueles que entendem que o caso ora enfocado, não poderia tão-somente ser tratado ao esquema tradicional liberdade de informação versus direito a honra ou a intimidade, liberdade de informação versus êxito da investigação criminal. É precisamente esta limitação do término do conflito que condiciona e favorece a fragmentariedade e insuficiência da legislação atual. Com efeito, como destacado pelo Tribunal constitucional espanhol, a expressa referência que se faz ao art.º. 20.4 da Constituição Espanhola, a honra, a intimidade e a própria imagem, como limite à liberdade de informação há que ser entendidas a 778 - MARQUES, Durval. Midia,criminalidade e sistema social. Porto Alegre: PUCRS, 2001, p. 43. 365 título enunciativo e nunca como numerus clausus779, pois não se deve obviar a própria menção que se contem no preceito a outros direitos reconhecidos no título primeiro da norma suprema. Desta forma, a intervenção dos meios de comunicação no processo penal deve ser reconhecida junto a outros institutos jurídicos, como o direito à segurança, o direito à integridade moral (art.º. 15), direito a um processo justo e equitativo (art.º. 24), direito à presunção de inocência (art.º. 24.2), e ao juiz imparcial (art.º. 24.2), conflitos que todos eles necessitariam da intervenção ponderativa do legislador. 5.1. A mídia e a presunção de inocência do acusado A liberdade de imprensa vem sendo questionada na Inglaterra, pois é sabido que a divulgação de dados de um julgamento a ser realizado no Tribunal do Júri pode influenciar seriamente os futuros jurados. A legislação inglesa não permite a publicação e notícias nesse sentido, justamente para não romper a imparcialidade do tribunal, um sagrado direito fundamental de todo cidadão780. Contudo nos Estados Unidos, a exemplo da Inglaterra, também tem- se ampliado o âmbito do direito à liberdade de expressão e informação dos meios de comunicação social de maneira que se pode difundir qualquer informação, seja favorável ou prejudicial ao acusado781. 779 - Adaptado de VV.AA. Problemas actuales de la justiça penal. Coordenador Joan Picó i Junoy. Barcelona. JB, 2001, p. 76. "Ninguém, ainda mesmo cético por índole, se evade à infilltração das notícias e das apreciações dos jornais; elas influem na opinião dos que se julgam mais experientes,E o jurado, como qualquer cidadão, vive o massacre dessas informações. E se julga representando o povo, tende a achar que melhor representação fará se acompanhar a "opinião publicada", aquela que parece ser a opinião pública. Isso traz conseqüências terríveis, na medida em que a verdade atingida pelo julgamento passa a ser aquela dos jornais e não a verdade processualmente válida e atingível pelo caminho legal.E se assim é, para que, afinal, tanta preocupação eom a incomunicabilidade dos jurados? É certo prever o Código de Processo Penal o desaforamento do julgamento em casos de imparcialidade do júri (art. 424). Muitas vezes, no entanto, isso não basta. Seja porque pode o Tribunal superior entender não ser o motivo suficiente a justificar o “desaforamento'', seja porque a repercussão do caso é de tamanha ordem, que não há comarca da "aldeia global" que não tenha sido atingida por seu pré-julgamento (fato, diga-se, que se tem tomado comuníssimo). (cf.: Moraes, Evaristo. Reminiscências de um rábula criminalista. Rio de Janeiro - Belo Horizonte: Biguiet, 1989, p. 175). 780 - LIDSTONE, K.W. Human rights in the English criminal trial, Human rights in criminal procedure, [revisions of Papers Presented at a Conference Organized by the United Kingdom National Committee of Comparative Law, Held at Manchester in Sept. 1978], p. 72-73. 781 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 323. 366 A importância do direito à informação é tal que desde 1º de julho de 1991, a televisão americana oferece aos telespectadores, em uma cadeia única de TV (a Court TV), transmissão de matérias relacionadas a assuntos judiciais, inclusive com transmissão de processos filmados do interior da sala de audiência. A Court TV está aberta 24 horas em transmissão e transmite via satélite para todo o território americano782. A mudança de função do Parlamento torna-se evidente a natureza problemática da publicidade enquanto princípio de organização da ordem estatal: de um princípio de crítica (exercida pelo público), a publicidade teve redefinida a sua função, tornando-se princípio de uma investigação forçada (por parte das instâncias demonstrativas - da administração e das associações, sobretudo dos partidos). Ao deslocamento plebiscitário da esfera pública parlamentar corresponde uma deformação no consumismo cultural da esfera pública jurídica. Com efeito, os processos penais que são suficientemente interessantes para serem documentados e badalados pelos meios de comunicação de massa, invertem de modo análogo, o princípio crítico da publicidade, de tornar público; ao invés de controlar o exercício da justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada vez mais para preparar processos trabalhados judicialmente para a cultura de massas dos consumidores arrebanhados783. Algumas instruções, nos julgamentos, estão em campanha cuidadosamente orquestrada por uma mídia cada vez mais concentrada. O próprio Supremo Tribunal Federal admitiu que quando a mídia se torna feroz, essas campanhas podem comprometer a imparcialidade dos juízes, que, muitas vezes nem sequer têm o direito de inspecionar os autos do processo antes da abertura da audiência, mas foram capazes de seguir antes, às vezes com grande detalhe, a investigação do caso, em sua leitura midiatica diária regular. Muitas vezes visto como um atributo tradicional do júri, a soberania, não necessita de justificação das decisões. Ao contrário do juiz profissional, que a legislação impõe que as decisões devem estar motivadas. Essa isenção se justifica porque o júri era ignorante da lei, e que seu papel era limitado, em princípio, para a elucidação dos fatos784. A influência da mídia interfere com o princípio da presunção de inocência, e se conecta igualmente com outra garantia essencial do devido processo legal, com a prática da prova pertinente em ótimas condições de imediação e contradição entre as partes. Paradigma da 782 - EUDES,Yves. Um nouveau spetacle:Les procès tèlévisès.in: Le Monde Diplomatique, agoso-1992, p. 51. 783 - HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 241-242. 784 - TSCHANNEN, Pierre. La démocratie comme idée directrice de l’ordre juridque suisse. Zürich: Schulthess Verlag, 2005, p. 139. 367 produção idônea que pode ser seriamente afetada, em particular no procedimento do júri pela prática paralela midiática dos diferentes meios de provas, em como algumas das garantias processuais, tendo em vista o tratamento dado por determinados programas televisivos no chamado “juízo de Alcasser”785. Mas não só os réus e as vítimas se tornam notórios, pelo menos ante os famosos 15 minutos de fama. Os atores e protagonistas do espetáculo também são alçados imediatamente ao nível de celebridades. Como o juiz do caso, o Juiz Lance, que teve seu nome exposto, não só na mídia, mas também em todo tipo de entretenimento, uma vez que seu rosto apareceu em camisetas, trajes de Halloween, camisas e outros relacionados objetos com lembranças. Com seus traços distintivos e óculos de coruja, ele também era um alvo fácil para piadas, uma vez que a partir do momento em que ele vestiu sua toga e tomou seu lugar no banco designado aos juízes, no Departamento, o Tribunal do Julgamento de Simpson, a sua vida pertencia a uma cultura de mídia-pop universal786. Observe-se que a crítica constitucional acerca da liberdade da imprensa é mais instrumentista. A garantia de uma imprensa livre pode ser entendida e justificada sua contribuição para o especial objetivo constitucional e não como diversão fundamental para os titulares de direitos787. Afigura-se-nos inconcebível admitir a restrição da publicidade na instituição do júri. Os atos praticados no tribunal popular, como o sorteio e a recusa dos jurados, o compromisso, a formulação definitiva da acusação, a produção de provas, os debates, a discussão oral entre as partes, a publicação da sentença são características peculiares desse órgão e, portanto, a compreensão da publicidade deve estar em harmonia com esses atos788. 785 - VELASCO, Pilar de Paul. Del procediento para las causas ante el tribunal Del jurado. Madrid: Centro de Estúdios Rámon Areces, S.A, 1999, p. 63. 786 - THALER, Paul. The espetacle. Media and the making of the O.J.Simpson Story. Westport.Praeger, 2000, p. 9. 787 - BAKER, C. Edwin. Media concetartion and democracy. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2003, p. 128. 788 - VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003, p. 231. V. Devido às particularidades dos países da América, principalmente os países da América Latina, os direitos assegurados na Convenção Americana são essencialmente os direitos de primeira geração, aqueles relativos à garantia da liberdade, à vida, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito de participar do governo, o direito à igualdade e o direito à proteção judicial, dentre outros. ANNONI,Danielle.O Direito Humano de Acesso À Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,2008,p.119. 368 Questão emblemática é a possibilidade dos jornalistas e órgãos de comunicação terem direito de entrar na sala de julgamentos, e relatar os julgamentos e atos judiciais realizados. Quanto aos problemas originados pela televisão nas salas das audiências, há um certo consenso na doutrina no sentido de que este meio de divulgação produz efeitos negativos que não podem ser tolerados. Mas o reconhecimento desses possíveis perigos não permite afirmar que a tele transmissão dos atos processuais provoque, por si só e em todos os casos, uma tal distorção que justifique a regra geral de exclusão das câmeras do processo penal. O princípio da publicidade dos atos judiciais só é efetivamente realizável com a colaboração da mídia, principalmente com a televisão, que é o meio mais idôneo para dar conteúdo àquela exigência constitucional. Admite que a presença das câmeras pode influenciar levemente o comportamento de algumas pessoas, mas não impede a realização de um juízo penal justo. A possibilidade de os jornalistas assistirem ao desenvolvimento da sessão do júri, bem como relatarem e divulgarem os atos judiciais realizados, não implica que todos os meios de reportagem sejam admitidos, isto é, filmagem televisiva, fotografia, radiodifusão e outros, mas só aqueles que sejam “compatíveis com as garantias do arguido, a dignidade da magistratura, a boa ordem dos trabalhos e as finalidades do processo penal”789. Segundo o art.º. 13, 3 da Convenção Americana, não se pode restringir o direito de expressão “por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”. Tal dispositivo não apenas versa sobre as restrições governamentais indiretas, como também proíbe o abuso dos “controles particulares” capazes de produzir o mesmo resultado. Por isso, segundo interpretação da Corte Interamericana, a violação da Convenção neste âmbito pode ser produto não apenas do fato de o Estado não ter imposto a si mesmo restrições destinadas a impedir indiretamente “a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”, mas também do fato de não ter assegurado que a dita violação não resulte dos “controles particulares” mencionados no art.º. 13, 3.790 A publicidade prévia do fato criminoso ou dos atos do desenvolvimento processual pelos meios de comunicação perante os casos da competência do Tribunal do Júri, é particularmente preocupante, pois, uma vez que o julgamento é feito por juízes leigos, a 789 - DIAS, Jorge de Figueiredo. Clássicos jurídicos - Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 222. 790 - CIDH, Opinião Consultiva OC-5/85 de 13 de novembro de 1985, Série A, n. 5 - A Associação Obrigatória de Jornalistas (artigos 13 e 29 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos), parágrafo 48. 369 impressão que a mídia transmite do crime e do criminoso produz maior efeito neles do que as provas trazidas pelas partes na instrução e julgamento no plenário. Para Welton Roberto, a influência da mídia acaba deturpando o conceito de consciência e justiça, uma vez que tais elementos já teriam sido contaminados pelas informações tendenciosas e oportunistas? Essa também foi a preocupação do jurista Márcio Thomaz Bastos, que ao analisar o caso envolvendo o assassinato da atriz Daniela Perez fez a seguinte afirmação: “suponhamos que no júri dos supostos assassinos de Daniela Perez, um ou dois ou mais réus fossem inocentes. Ele, ela, ou eles teriam alguma chance de absolvição, depois da operação de 'linchamento' montada pela mãe da vítima com o apoio da Rede Globo e de toda a mídia nacional? Claro que a resposta é negativa”.791 O jurado, “cidadão incumbido pela sociedade de declarar se os acusados submetidos a julgamento são culpados ou inocentes”, é mais permeável à opinião pública, à comoção que se criou em torno do caso em julgamento, do que os juízes togados e, por sentirem-se pressionados pela campanha criada na imprensa, correm o risco de se afastarem do dever da imparcialidade e acabam julgando de acordo com o que foi difundido pela mídia. O juiz leigo no júri decide por íntima convicção, sem fundamentar o veredicto. A imprescindibilidade de exposição das razões que levaram à decisão é imposta apenas aos juízes togados (art.º. 381, 111, do CPP). Aos integrantes do Conselho de Sentença, basta que respondam sim ou não aos quesitos formulados pelo juiz-presidente (art.º. 493 do CPP). Logo, os jurados não se obrigam às provas do processo, à verdade obtida na instrução contraditória da sessão plenária, podendo agir com liberdade de consciência ao proferirem seus votos. No entanto, essa liberdade de atuação que é conferida aos jurados não os exime de decidir com isenção, imparcialidade, afastados, o mais possível, das influências ideológicas da imprensa, pois, assim como os juízes togados, também são responsáveis pela função que exercem. Ademais, suas decisões são soberanas, ou seja, inexiste a possibilidade de serem modificadas por outro órgão jurisdicional, “para absolver o réu condenado, ou condenar o réu absolvido pelo Tribunal do Júri”. Esta garantia constitucional da soberania dos veredictos (art.º. 5.°, XXXVIII, c, da CF/88) não pode ser prejudicada pelos excessos da mídia sob pena de passar a “representar o papel perigoso de instrumento da opinião pública, manipulável por segmentos mais fortes e organizados da sociedade”. 791 - THOMAZ BASTOS, Márcio [et. al.]. Tribunal do Júri: Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. pp. 112-116. 370 Ressalta Firmino Whitaker: “Desde que o jurado se mantenha na linha do dever e da honra, nenhuma responsabilidade legal resulta de seu voto; ou seja, embora brando no julgar, cometa erros ou injustiças, somente sofrerá a crítica do público que o fiscaliza e as censuras da própria consciência”. Como diz José Frederico Marques, “a soberania dos veredictos traduz (...) a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados, ser substituída por outra sentença sem esta base. Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva”. Não obstante devam ser sensatos ao julgar, e, segundo Whitaker, “não tenham o direito de negar o que é evidente”, é muito maior o risco de um veredicto sustentado na opinião pública formada e divulgada excessivamente pela mídia, sobretudo em função das evidências irretorquíveis que as reportagens e imagens televisivas apresentam sobre o caso em julgamento. Ora, o jurado é cidadão comum que também está integrado na sociedade dos média. Conhece e já se familiarizou com os fatos e as circunstâncias do crime e do criminoso que será julgado, uma vez que foram amplamente divulgados na imprensa. Por conseguinte, o clima de pré-julgamento dirigido que faz a mídia pode levá-lo a formar seu convencimento em elementos dissonantes da verdade processual. Como então garantir a imparcialidade dos juízes leigos e o direito a um julgamento justo no tribunal popular, quando os meios de comunicação interferem no ânimo dos jurados e, consequentemente influenciam o julgamento? Embora a incomunicabilidade dos jurados e o sigilo das votações, sejam garantias para que os componentes do Conselho de Sentença possam, livremente, formar seus convencimentos e expressar suas decisões, não são suficientes para impedir a interferência da mídia na independência dos juízes leigos e na verdade da decisão. O objetivo da incomunicabilidade, ou seja, assegurar a independência e imparcialidade dos jurados, já sofre interferência anterior à existência formal do ato que se verifica com o compromisso dos juízes de fato. Como cidadãos, os jurados, provocados pelos debates na mídia, já externaram suas posições, já manifestaram suas opiniões sobre os fatos relacionados com o processo, já foram influenciados pelas opiniões de terceiros, por meio de jornais, revistas, televisão, quando já não formaram suas convicções. Daí entendermos que a incomunicabilidade não resguarda, senão formalmente, a imparcialidade dos jurados. As garantias processuais - sigilo das votações e incomunicabilidade dos jurados -, como vimos, são insuficientes para evitar a influência da atividade desenvolvida pelos meios de 371 comunicação sobre o jurado, cidadão que vai julgar no Tribunal do Júri. Ademais, diante da ausência de motivação dos veredictos, fica difícil demonstrar, no caso em concreto, que a publicidade negativa pela mídia violou o princípio da imparcialidade dos jurados. Nessa hipótese sugere a doutrina, para os casos de maior repercussão na opinião pública, a suspensão do processo enquanto durar a intensa divulgação do caso pela mídia: “a parte que se sinta prejudicada por excessiva exposição pública dos fatos do processo, a ponto de razoavelmente supor que os membros da comunidade (...) estão sujeitos à influência externa, pode reclamar a suspensão do curso do procedimento, durante determinado período”792. 5.2. Mídia e o Tribunal do Júri no Direito Americano É certo que nos casos do júri a cobertura da mídia muitas vezes desempenha um importante papel na formação a opinião pública de um julgamento, como pode ser observado no caso O. J. Simpson e o caso belga de Dunant. Em contraste, o julgamento da mídia não tem o mesmo impacto nos casos envolvendo a Corte Mista, onde atuam os juízes leigos, como pode ser observado nos países escandinavos e europeus793. Naqueles pais, o conflito entre a garantia da Primeira Emenda de uma imprensa livre e da Sexta Emenda a um julgamento justo tem sido evidente nos últimos 200 anos794. Nos Estados Unidos da América, o escrutínio público do funcionamento da justiça e seus julgamentos propiciados pela mídia são valores culturais extremamente apreciados e se 792 - VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003, p. 231. Um exemplo recente do abuso no exercício da liberdade de imprensa ocorreu no ano de 2003, quando um apresentador de programa semanal do canal de televisão SBT - Sistema Brasileiro de Televisão colocou num de seus programas indivíduos armados e encapuzados, dizendo tratar-se de membros da organização criminosa denominada de Primeiro Comando da Capital PCC), constatando-se posteriormente serem na verdade atores se passando por criminosos e com a única finalidade de aumentar a audiência. A questão somente foi resolvida em 2005, quando foi paga uma multa de setecentos e cinquenta mil reais pelo apresentador, que prosseguiu normalmente com o seu programa e não ficou um dia sequer preso. O caso das entrevistas concedidas por dois falsos integrantes do PCC ao programa Domingo Legal, de Gugu Liberato, em setembro de 2003, terminou nesta terça-feira com um acordo financeiro, O apresentador teria aceitado doar R$ 750 mil às instituições de caridade indicadas pelo Ministério Público Estadual, divididas em 12 parcelas de R$ 62,5 mil. O acordo foi firmado na tarde desta terça-feira na 6ª Vara Cível. 793 - MALSCH, Marijke. Democracy in the courts. Lay participation in European criminal justice systems. New York: Ashgate, 2007, p. 17. 794 - ALEXANDER S.L., Media and American courts. Oxford: ABCCLIO, 2002, p. 13. 372 constituem em tradição. O mais importante julgamento havido naquele país foi o de Globe Newspaper Co. vs. Superior Court, caso originado no Estado de Massachusetts e apreciado pela Suprema Corte em 1982, a qual fixou os critérios ainda hoje válidos para a solução do problema795. Neste país, a relação mídia eletrônica com a justiça é ainda mais forte. Assim como a presença da mídia eletrônica no santuário alterou os discursos religiosos, a presença de câmeras no tribunal popular (júri) alterou profundamente a sua retórica. Em 1979, Ben Armstrong lançou um livro acerca da religião popular, A Igreja Eletrônica (The Eletronic Church), no qual ele evidencia o potencial do tele-evangelismo. Ele observou que a tecnologia de radiodifusão, foi “um dos maiores milagres do tempo”. Ele predisse que a mídia eletrônica iria revolucionar as igrejas e levar a religião às grandes massas de público. A profecia de Armstrong sobre a religião também pode ser aplicada na lei processual penal, uma vez antes do início da TV Tribunal (Court TV) em 1991, que deu ampla cobertura ao julgamento de estupro de William Kennedy Smith, o julgamento de mutilação sexual de Lorena Bobbitt, o primeiro julgamento dos irmãos Menendez pelo assassinato de seus pais, a televisão trouxe um completo procedimento legal em massa para o grande público, que passou atentamente a assistir aos julgamentos, inteirando-se dos procedimentos judiciais796. A Suprema Corte decidiu que nenhuma restrição genérica e abstrata ao direito de acesso da imprensa aos termos de um julgamento é aceitável, impondo-se a verificação da necessidade de restrição ou exclusão caso a caso. A corte traçou ainda dois critérios intimamente associados para a avaliação de tal necessidade. Segundo foi decidido, e este é o primeiro critério, deve haver a demonstração de um interesse governamental legítimo (compelling governamental interest), e que, agora o segundo critério, a medida restritiva sirva estritamente à satisfação deste interesse (narrowly tailored to serve that interest). O interesse governamental a que se refere o julgado deve ser entendido à luz do próprio corpo da decisão 795 - A liberdade de expressão e de imprensa garantida pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. A censura prévia dos jornalistas, em relação à cobertura especificamente preventiva, é inconstitucional, a menos que haja um “ perigo claro e presente para à administração da justiça. in: Bridges versus California EUA 314 252 (1941). A Primeira Emenda proibe "qualquer lei que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa” deve ser dado o escopo mais amplo que pode ser tolerado em uma sociedade ordenada. P. 314 US 265. P. 314 EUA 265. 796 - CONTERILL, Janet. Language and power in court. A linguist analisys of the O.J.Simpson Trial. New York: Palgrave Macmillan, 2004, p. 7. 373 cuja transcrição dispensamos, como o interesse de tutela ao julgamento justo (fair trial), isto é, o interesse do acusado que o reclama797. Também há controvérsias naquele país sobre o uso de câmaras nos tribunais em torno de quase 70 anos. A partir de 2003, todos os cinquenta estados permitem algum tipo de cobertura da câmera, seja em um sistema operacional experimental, seja em base permanente. Contudo, durante o julgamento de alguns policiais, acusados do assassinato de um assassinato de um imigrante africano, um juiz de Nova York proibiu a utilização de câmaras no tribunal (v Nova Iorque v. Boss), um tribunal superior confirmou a constitucionalidade da proibição de uso da câmera (Court TV v Nova Iorque)798. 5.3. O Tribunal do Júri e a influência da mídia na Inglaterra Na Inglaterra é frequente a colaboração da acusação e da defesa na investigação da prova. Existem medidas para proteger a independência dos juízes. A Suprema Corte da Judicatura elaborou a figura da contempt of court by publication que se destina a prevenir e a punir qualquer ofensa ou influência estranha sobre o julgamento, inclusive através de palavras e de escritos que possam afastar a Justiça dos seus fins ou interferir nas suas decisões. A imprensa não pode comentar ou criticar, a não ser nos limites mais restritos, as questões submetidas aos tribunais, o que já vem sendo defendido desde meados do século XVIII por Lorde Hardwicke, para que todos possam atuar com todas as garantias possíveis. É importante 797 - VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e júri: Possibilidade de restrição da publicidade do processo. In: Revista brasileira de ciências criminais, ano 11 - nº 41 - janeiro-março, 2003, p. 115. 798 - CONTERILL, Janet. Language and power in court. A linguist analisys of the O.J.Simpson Trial. New York: Palgrave Macmillan, 2004, p. 23. Sheppard v Maxwell, 384 EUA 333 (1966), foi uma decisão Supremo Tribunal Federal americano,caso que em analisou os direitos de liberdade de imprensa, conforme descrito na 1 ª Emenda, quando pesava contra o réu direito a um julgamento justo, conforme exigido pela 6 ª Emenda. Em uma decisão majoritária de 8-1, o Tribunal constatou que Sheppard não recebeu um julgamento justo. Notando que, embora a liberdade de expressão deve ser dada grande latitude, o Tribunal considerou que não deve ser tão ampla quanto a desviar o julgamento longe de seu objetivo principal: decidindo tanto matéria penal e civil, de forma objetiva e calma. A cobertura do julgamento por flagrante e hostil rádio de Cleveland e mídia impressa, e a disposição física do próprio tribunal - o que facilitou a colaboração entre o Ministério Público e mídia - tudo combinado para assim inflamar as mentes dos povos do júri contra Sheppard como negar-lhe um justo julgamento. O Tribunal concluiu que o juiz deveria ter adiado ou o processo ou transferir para um local diferente. Em particular, o tribunal procurou determinar se ao réu foi negado um julgamento justo para o assassinato em segundo grau de sua esposa, da qual ele foi condenado, por causa da falha do juiz, para proteger Shepard da maciça e abrangente publicidade prejudicial. 374 manter a força e a transparência dos tribunais. É muito raro na Inglaterra existir um processo de habeas corpus799. É considerado, inclusive, um desacato aos tribunais as publicações que venham contrariar referida decisão. Entre as diferentes vertente que assume a contempt of court, se encontra a difusão de informações extraprocessuais sobre um caso pendente (sub judice), ante os tribunais. A justificação desta severidade é garantir um direito justo aos que estão sendo processados. Contudo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) proferiu decisão em 26 de abril de 1979, declarando que as autoridades judiciais britânicas violaram o art.10.1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Públicas, forçando a evolução da jurisprudência britânica a um ponto mais moderado, uma vez que sentença do TEDH sustentava que a liberdade de expressão, para ser restringida em um estado democrático, somente poderia ser efetuada por força de uma lei. Desta forma, o interesse público deve prevalecer em face da liberdade de expressão800. Há casos excepcionais, contudo, que envolvem o terrorismo e a segurança nacional. Nesses casos excepcionais, considera-se que a opinião política pode interferir com o jurado em potencial, a ponto de ser tão tendenciosa, interferir com a sua justa apreciação dos fatos do caso ou levá-lo a exercer pressão indevida sobre jurados seus companheiros. E, em casos de segurança, há o perigo de que um jurado, voluntariamente ou sob pressão, revelar provas fornecidas na câmara secreta. Neste caso, são possíveis procedimentos invasivos na esfera íntima dos jurados, por meio de uma checagem em registros de polícia criminal e policiais registros da Divisão Especial, nos casos abrangidos pelos serviços de segurança, que também podem estar envolvidos. Esta checagem em registros de polícia criminal e policial registros da Divisão Especial, abrange o envolvimento de ramos especiais e os serviços de segurança exige que o Procurador-Geral requisite os referidos registros ao Diretor da Promotoria Pública. O questionamento da família, vizinhos e amigos, não é admissível, em geral, exceto quando é necessário confirmar a identidade de um jurado sobre o qual as dúvidas foram levantadas após a verificação inicial sobre os registos criminais801. 799 - MORAIS, Antônio Manuel. O Júri no Tribunal. Da sua origem aos nossos dias. Lisboa: Rugin, 2000, p. 34. 800 - STEDH Sunday Times de 26 de abril de 1979. 801 - INGMAN, Terence. The english legal process. 7. ed. London: Blackstone Press Limited, 1994, p. 196. A liberdade de imprensa acha-se consagrada na Primeira Emenda à Constituição: “Congress sball me no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise there of; or abridging the freedom of 375 O mesmo debate é travado nos Estados Unidos (liberdade de imprensa x resguardo de um julgamento imparcial pelo júri), prevalecendo a posição que visa a preservar o indivíduo contra o julgamento antecipado da mídia. Aliás, essa é uma das razões pelas quais o Conselho de Sentença fica incomunicável durante todo o julgamento (sequestratian of the jury). Se por um lado, deve o legislador agir contra essa “liberdade” indiscriminada da imprensa, vedando que casos sob julgamento no tribunal popular sejam divulgados antes da decisão definitiva, por outro é preciso ressaltar a impossibilidade em impedir que opiniões sejam levadas a público sobre qualquer evento criminoso, formando o convencimento popular802. As liberdades fundamentais podem ser reduzidas a dois casos básicos que designam liberdades políticas iguais e liberdade de pensamento, que relaciona à aplicação livre e bem informada dos princípios de justiça à estrutura da sociedade. Segundo o autor, tudo pode ser resumido a isto, e a definição da importância de uma liberdade ou de outra deve obedecer ao critério segundo o qual ela se vincula em maior ou menor grau à aplicação livre e bem informada dos princípios de justiça à estrutura social. Conclui ele afirmando que “o peso de reivindicações específicas de liberdade de expressão, de imprensa e discussão deve ser avaliado de acordo com esse critério”803. Desde o famoso caso Lüth-controversia surgido na Alemanha, ocasião em que Erick Lüth, presidente do Clube de imprensa de Hamburgo, propõe um boicote ao filme, dirigido por um ex-colaborador do regime nazista chamado Veit Harlem, o Tribunal Constitucional alemão vem decidindo reiteradamente acerca da liberdade de expressão. No caso Lüth, a produtora e a distribuidora do filme obtiveram, na jurisdição ordinária, decisão determinando a cessação de tal conduta, por considerá-la em violação do § 826 do Código Civil alemão (BGB) (“Quem, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a reparar os danos causados”). O Tribunal Constitucional Federal reformou a decisão, em nome do direito fundamental à liberdade de expressão, que deveria pautar a interpretação do Código Civil. Na sentença do BVerfGE 12, 113 [Schmid vs. Revista Spiegel], o Tribunal Constitucional alemão decidiu que a defesa de interesses legítimos cobre também as réplicas porventura ainda na gráfica, como resposta a suas publicações e seus efeitos sobre a opinião speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition to the Govemment for a redress of grievances”. 802 - NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 732. 803 - RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo. Trad. Dinah de Abreu de Azevedo: Editora Ática, 2000, p. 76. 376 pública (Art.º 5º, parágrafos 1 e 2 da Lei Fundamental; §193 StGB). No corpo final do acórdão, o Tribunal faz uma avaliação moral da literatura sensacionalista, comparável com a pornografia, que não leva em conta as razões que justificam a proteção dos interesses legítimos, fato que implica que o recorrente tem um interesse legítimo no sentido do § 193 StGB, na defesa de sua honra pessoal804. 6. Liberdade de imprensa e possibilidade de restrição da publicidade A Alemanha foi um dos primeiros países que tratou dos problemas derivados de fotografar e colocar microfones na sala de audiência por jornalistas profissionais. A Corte suprema de justiça da Alemanha anulou uma decisão em 8 de fevereiro de 1957, na qual se havia proibido um advogado de exercer seu direito a negar-se a falar diante de um microfone. O ordenamento alemão garante o acesso dos meios de comunicação na sala do Tribunal e estabelece expressamente os limites de tal acesso, de forma que proíbe a realização de gravações radiofônicas e de televisão, ou mesmo as fotografias dentro da sala de audiência805. Entretanto, apesar dos prós e contras levantados, a formação da opinião pública, seja mais isenta ou menos imparcial, salientando-se que um processo puro de formação do estado de espírito da sociedade é praticamente impossível de ocorrer, pela própria natureza do ser humano e pela falta de condições de apurar realmente quais as opiniões predominantes, é fato consumado e real. Logo, cabe a pergunta: a opinião pública fere a soberania dos veredictos no Tribunal do Júri? Exerce, sem dúvida, influência negativa e deveria ser evitado o seu cultivo 804 - STIFUNG, Konrad Adenauer. Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán. Berlim: Konrad Adenauer Stiftung e. V, 2009, p. 207-210. 805 - Artigo 169.2 GVG,Titulo decimo quarto. Outrossim,quando o interesse da informação for prioritário à proteção outorgada ao indivíduo, a órbita individual deverá ceder espaço ao interesse público de ter acesso à notícia. Caso contrário, prevalece o interesse individual (aqui referiu Pilar Gomes Pavon. La intimidad como objeto de protección Penal, Madrid, Akaliure, 1989, p. 80). Outra sugestão, ainda dentro da proposta de autocontrole da mídia, é a de se fazer um esforço organizado para elevar o nível educacional e cultural das massas populares, orientando-as em seu interesse para uma atividade mais sã e construtiva, a fim de se obter uma censura espontânea contra este tipo de notícia. A nosso ver, esta é a proposta mais consentânea com um país que tenha uma sociedade civil organizada e atuante e que, em fase de um caso concreto, tinha noção do poder que o destinatário da informação tem. Referiu as campanhas de boicote contra determinados órgãos de imprensa nos Estados Unidos da América por atitudes impensadas em determinados casos, aduzindo não parecer ser este o caso do Brasil. (cf.: SHECARIA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena. São Paulo: RT, 2002, pp. 338-339.) 377 em torno de julgamentos ocorridos no tribunal popular, mas não é mecanismo que danifique gravemente a soberania. Deve-se enfocar a supremacia do júri e sua independência como a possibilidade que tem o povo de decidir o destino de pessoas que lhe são apresentadas para julgamento. Retira-se o jurado da sociedade para exercer tal função, de modo que não se pode pretender que existam jurados puros e isentos, mormente, como já foi ressaltado, se não têm conhecimento jurídico suficiente para filtrar o que se divulga na imprensa e na comunidade onde vive806. Dentro deste contexto, os estudos realizados pelos autores citados, baseados em pesquisas elaboradas por Moran y Cutler em 1991, e Davis em 1996, buscam demonstrar, respectivamente, que uma publicidade moderada e não excessivamente emotiva pode prejudicar o acusado, enquanto outros indicam que o efeito da publicidade é mais irrelevante do que parece807. No âmbito da União Europeia, estes conflitos de normas devem distinguir-se de duas outras séries de conflitos a que estão ligados. Primeiro, o conflito, já mencionado, entre uma norma constitucional e a lei que permite que se faça uma derrogação excepcional. Em certos casos, a derrogação é dupla, em caso de conflito entre normas de igual categoria. Por exemplo, o artigo 10°, alínea 2, da Convenção de Defesa dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais assinala, entre os interesses legítimos que podem ser invocados pelo Estado para limitar a liberdade de expressão, a proteção dos direitos de terceiros. Contudo, na medida em que esta expressão se refere à honra e à vida privada, diretamente protegidas pelo artigo 8º, o Estado encontra um meio de defesa mais sólido no conflito entre este artigo e o artigo 10º, uma vez que passa a ser dispensado de fazer valer as condições restritivas do artigo 10º, alínea 22808. Além disso, não se deve, também confundir o conflito de duas liberdades constitucionais com o conflito entre uma delas e o interesse geral. No sistema da Convenção de Defesa dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, maior parte dos interesses legítimos, enumerados na alínea 2 dos artigos 8º, 9º, 10º e 1.º, designam, de maneira limitativa, mas com o auxílio de cláusulas gerais (a ordem pública, a 806 - NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 733. 807 - VELASCO, Pilar de Paul. Del procediento para las causas ante el tribunal Del jurado. Madrid: Centro de Estúdios Rámon Areces, S.A, 1999, p. 61. 808 - F. Rigaux, 1995 a, p. 410-441. 378 segurança nacional, etc.), a variedade de interesses de que o Estado se pode servir para restringir o exercício uma liberdade garantida ou de se imiscuir nela809. A restrição à publicidade é possível por expressa autorização constitucional em favor do direito ao julgamento justo em exame criterioso à luz das peculiaridades de cada caso. A contribuição do direito comparado aponta como critérios de verificação da necessidade da medida a sua imprescindibilidade e a inexistência de alternativa outra que não ela própria para solucionar o problema. A imprescindibilidade deve se manifestar na medida de sua pertinência lógica com a finalidade da medida. Em outras palavras, sob pena de desvio de finalidade caracterizador de abuso e constrangimento ilegal, há de se patentear o risco ao julgamento isento810. 809 - ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os Juízes na mundialização. A nova revolução do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 17 810 - VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e júri: Possibilidade de restrição da publicidade do processo, in: Revista brasileira de ciências criminais, ano 11 - nº 41 - janeiro-março, 2003, p. 113. Podemos enumerar cinco hipóteses de convivência harmoniosa entre o Poder Judiciário, a imprensa e os destinatários da informação: a) o conhecimento da atividade do Judiciário é direito do cidadão. Sendo os magistrados prestadores de serviço público, imprescindível se faz que essa atividade seja a mais transparente possível; b) impõe-se, para o aprimoramento da democracia no País, que haja uma maior aproximação entre Judiciário e Imprensa, veículo que esta é da atuação e da postura dos diversos segmentos sociais, mostrando como atua o Judiciário, qual a sua competência, sua estrutura, seu alcance como Poder, suas deficiências, seus abusos reais; c) fundamental, destarte, que sejam superadas as finalidades apontadas, e outras que existirem, tornando-se o Judiciário mais acessível à divulgação e, via de consequência, ao público; esmerando-se a Imprensa, por seu turno, em aperfeiçoar o seu sistema de divulgação, com inteira liberdade mais sem as distorções, os abusos e as omissões que o estágio atual está a demonstrar; d) o Estado democrático de Direito não se contenta mais com uma ação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valorização do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção de uma nova sociedade mais livre, justa e solidária; e) cada vez mais, e o próximo século se encaminha para essa demonstração, o Judiciário lerá participação maior e mais efetiva na sociedade, especialmente para conter os excessos do Poder dominante e melhor resguardar os direitos da cidadania. Nesse quadro, igualmente relevante será o papel a ser desenvolvido pela Imprensa. Daí a necessidade de ambos se aparelharem convenientemente, corrigindo suas atuais e múltiplas diligências, aprimorando seus mecanismos e buscando diretrizes que melhor atendam aos anseios de uma sociedade livre, justa, solidária e responsável. (cf.: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A imprensa e o judiciário, in: Revista Forense, Julho- Agosto- Setembro de 1995, p.453.) 379 Nos Estados Unidos, existe uma discussão acerca dos destinatários da liberdade de imprensa, que em última instância é o grande público, voltado para a midia. É esta a interpretação que grande parte da doutrina americana analisa os benefícios da primeira emenda. O beneficiário final da liberdade de imprensa é o público, quer como consumidor, quer como cidadãos que lucram com uma imprensa que serve necessidades democráticas, devendo desta forma o governo regular, o que serve ou não serve ao interesse do público em uma ordem de mídia ideal. Sob essa ótica, a imprensa tem direitos, e apenas aqueles direitos, que avançam o interesse do público em uma imprensa livre. Por exemplo, o privilégio dos jornalistas de não revelar fontes confidenciais, ao abrigo da presente análise, existe somente porque o reconhecimento que beneficia o papel democrático, a saber, a integridade institucional da imprensa e, assim, benefícios a mais amplo público811. Na França, o Código de Processo Penal, proibia o emprego de toda sorte de aparatos de registro e transmissão, câmaras de televisão e aparato fotográficos, com penas de multa pesadas. A lei de 6 de dezembro de 1954 reservou ao Ministro da Justiça da França, a possibilidade de tirar fotografias, quando se trate de processos de caráter histórico, em conformidade com seu artigo 38. Esta vedação terminou, ante a edição da lei de 2 de fevereiro de 1981, que modificou o art.º. 38, permitindo imagens das partes e seus advogados, antes do início da audiência, sempre com previa autorização do Presidente do Tribunal e com o consentimento das partes e do Ministério Publico812. A Constituição da República Portuguesa, prevê duas tendências diferentes sobre o direito de informação: o nº 2 do art.º. 37° da Constituição configura-o em termos amplos, proibindo qualquer forma ou tipo de censura; mas do nº 3 do art.º. 37° resulta também que o direito de informação não é um direito absoluto e muitos menos ilimitado, já que o seu 811 - BAKER, C. Edwin. Media concetartion and democracy. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2003, p. 127. Nos EUA, os meios de comunicação se submetem, como se sabe, à autoridade da Federal Communications Commission, cuja existência foi tratada, inclusive, como fundamento para que os congressistas constituintes, no Brasil, fossem convencidos a aprovar o texto que se converteu no artigo 224 da Constituição de 1988. Enquanto a Federal Trade Commission lida basicamente com as questões concernentes à concorrência, a Federal Communications Commission lida precisamente com as causas geradoras de externalidades negativas por parte das empresas de comunicação social, notadamente os meios eletrônicos'?", até porque estes têm a evidente maior capacidade de atingimento de receptores, seja pela imediatidade da transmissão, seja por não se exigir, para que o receptor capte as mensagens provenientes da radiodifusão, alfabetização , in: CAMARGO,Ricardo Antonio Lucas. A mídia e a Constituição. Programação de Rádio e TV e suas externalidades. Porto Alegre:Sergio Fabris Editor,2013, p.91. 812 - JIMÈNEZ. Raquel López. La prueba en el juicio por jurados.Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 341. 380 exercício pode implicar a prática de infrações sujeitas ao regime geral do Direito Criminal. A possível tensão entre o direito de informar, enquanto valor político-jurídico fundamental, e outros interesses é assim prevista desde logo na Constituição. O que bem se compreende, pois, ao contrário de outros direitos fundamentais, este não decorre diretamente da dignidade da pessoa humana, mas antes de uma concepção politicamente liberal do Estado assente na liberdade de expressão. No Brasil, quanto à colisão de direitos fundamentais diversos, podemos citar como exemplo típico, aquela entre a liberdade artística, intelectual cientifica ou de comunicação (art.º. 5°, IX da Constituição Federal/88) com a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art.º. 5°, X da Carta Política/88). Na colisão entre a liberdade de comunicação e a intimidade, a honra e a imagem, o Supremo Tribunal Federal tem admitido uma distinção quanto às posições dos eventuais envolvidos. Nesse sentido, o Supremo estabelece critérios para a aferição da eventual ofensa à honra e à imagem, haja em vista a exposição pública das pessoas.813 7. A publicidade pré-trial e a sua influência nas decisões do Tribunal do Júri Vive-se numa época de fortes tensões sociais, com grupos interessados e apostados em manipular a visão das coisas e habilmente experimentados em dar à coação moral ou ao erro formas sutis de droga aliciante. A pressão desses grupos pode conduzir o júri, em alguns casos, a situações irremediáveis de distorção da verdade e da justiça. O fanatismo pode constituir uma arma. E o fanatismo - como é sabido - é uma doença da personalidade que pertence ao foro da psiquiatria. Apreciando as provas e desenhando como certos os fatos delituosos e o seu condicionalismo, o jurado não pode esquecer-se de que, no autor desses 813 - CARVALHO, Joana de Moraes Souza Caravalho. Colisão de Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris.2009,p.87. Pode-se também invocar o princípio da proporcionalidade, uma vez que a vinculação da proporcionalidade com o Direito Penal evidencia-se, sobretudo, pela possibilidade de conflito entre direitos fundamentais. De um lado, a garantia e proteção do direito fundamental da segurança, em uma perspectiva objetiva, de se salvaguardar interesses da coletividade. De outro, a proteção do direito individual da liberdade, do criminoso. Com isso, a possibilidade de colisão entre direitos fundamentais, inicialmente no momento de definir quais serão as condutas criminosas e respectivas sanções, toma-se clara. O Estado, diante disto, necessita ponderar os valores em jogo e definir quais direitos fundamentais serão restringidos e em qual razão para se atingir a almejada paz pública, sem ofensa ao núcleo essencial, in: ESSADO,Tiago Cintra. O Principio da proporcionalidade no Direito Penal.Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor,2008,p.78. 381 fatos, está a julgar o seu semelhante. E julgar homens não é julgar coisas: é como julgar-se a si próprio, com apelo ao mesmo critério e ao mesmo esforço de compreensão. Por isso mesmo, em relação a cada caso, é preciso ter a coragem de saber libertar-se do mau aviso dos seus caprichos ou preconceitos, dos grupos de pressão e do seu egoísmo, e das influências ideológicas, tendentes a manipular a visão das coisas e dos acontecimentos, ao sabor de interesses partidários, ou em conivência com vilezas ocasionais814. Existe também o perigo “de conduzir a uma deslocação do julgamento dos órgãos estaduais para um suposto tribunal da opinião pública, através da pressão que podem exercer nos juízes ou num júri a apreciação pré-formada”. E acrescenta: “Corre-se nos nossos dias o perigo de substituir o senhorio do Estado por um senhorio dos grupos”. Discorre ainda o ilustre jurista português que o setor mais obscuro é o da influência dos grupos sobre o funcionamento da jurisdição. Admite-se, porém, que nem este setor é poupado à sua pressão. Principalmente onde o sistema do júri funciona em toda a pureza, o processo do trial by newspaper (informações abusivas sobre o funcionamento interno dos serviços públicos) fornece um expediente que pode ser largamente eficaz, desviando o funcionamento dos tribunais duma busca da verdade material815. No início na década de 1920, houve também um interesse nas diversas formas de tecnologias de comunicação e como estas podem influenciar ou persuadir as pessoas. Em 1960, um canadense educador, Marshall McLuhan, apresentou a ideia de que “os médias são a mensagem”. Ele estava convencido de que o impacto dos meios de comunicação visual do cinema e da TV foi tão grande que ultrapassou a influência de qualquer outra forma de comunicação, incluindo discurso. McLuhan e outros especialistas em comunicação de sua época advertiram que um meio visual era uma forma muito mais poderosa de persuasão. Os advogados no tribunal têm tradicionalmente utilizado argumentos verbais de forma a convencer os jurados. Mas os advogados concordam que na maioria dos julgamentos, o uso de exposições demonstrativas significam poder melhorar a sua capacidade de comunicar eficazmente com um júri. Esta visão é baseada na efetividade que o processo de aprendizagem 814 - ALMEIDA, Dário Martins. O livro do jurado. Coimbra: Coimbra Editora, 1977, p. 12. 815 - SOARES, Rogerio Ehrhardt. Direito Público e Sociedade Técnica, p. 77, 97 e 103. 382 para a maioria das pessoas envolve a visão, bem como o som. Enfim, os advogados podem utilizar das diversas mídias para influenciar as deliberações do Tribunal do Júri816. Acerca da manipulação do Tribunal do Júri, pense-se no requerimento da intervenção do júri apresentado pela acusação num caso suscetível de acompanhamento midiático, nomeadamente por força do caráter hediondo dos fatos investigados, mas em cujo processo a prova conseguida não é segura; mas pense-se, também, no requerimento pela defesa da intervenção do júri num caso suscetível de compreender forte empatia popular com o arguido. A aposta no maior grau de influenciabilidade dos jurados (ainda que, concretamente, tal influenciabilidade não exista), e pode também constituir a razão do requerimento da intervenção do júri, nuns casos para suprir deficiências da investigação, noutros para aproveitar sentimentos de compreensão social (sem repercussão no regime legal) dos fatos investigados. Note-se que, quanto a este último aspecto (o relativo ao aproveitamento da compreensão social dos tatos), o regime legal pode dar resposta adequada, nomeadamente através dos mecanismos de desculpa817. Quando um caso está sendo julgado, a atenção está voltada para os fatos do caso e a estrutura dos encargos, e se os fatos preenchem os critérios necessários para encontrar o responsável pelos delitos praticados. No entanto, muitos fatos podem acontecer antes do julgamento, e que podem influenciar o seu resultado. Estes incluem a seleção (ou atribuição) de advogados, a seleção de jurados, a determinação do local julgamento, as informações das decisões judiciais que serão admitidas no julgamento, bem como a apresentação de informações sobre o caso (ou seja, a publicidade pré-trial ou pré-julgamento) para potenciais jurados através da mídia local ou nacional. Embora a publicidade pré-julgamento (PPT) não esteja disponível para todos os casos que vão a julgamento, ela pode apresentar desafios especiais quando se está presente porque, ao contrário de outros fatores, a maioria do que aparece na mídia não está sob o controle do tribunal ou do réu. Mesmo em países que utilizam leis estatutárias para prevenir a divulgação de informações prejudiciais antes do julgamento, a PPT não é automaticamente impedidos em todos os casos. Além disso, uma vez que a PPT 816 - VINSON, Donald E.; DAVIS, S. Davis. Jury persuasion. psychological strategies & trial techiniques. California: Glasser Legal Work, 1996, p. 25. 817 - VILALONGA, José Manuel. O tribunal do júri, cit., p. 180. 383 tenha sido apresentada, não existe nenhuma espécie de controle sobre o aspecto midiático do julgamento818. Neste meio, as grandes empresas de comunicação por vezes vendem a informação que seja suscetível de consumo público, isto é, o poder econômico é utilizado para manipular e direcionar a notícia para o público consumidor, bem como acerca de qual informação pode ou não ser divulgada. Consequentemente publicam-se matérias acerca de pessoas que cometeram em tese, um ato criminal, mas por vezes se esquecem de informar que aquele que está sendo acusado tem direitos e garantias a ser preservados, exigidos para o desenvolvimento de um processo penal justo e imparcial, os quais ao serem esquecidos, fazem com que a sociedade julgue antecipadamente o caso, e seus membros cometam arbitrariedades, como invasões, linchamentos, furtos, dentre outros, e não são raras as vezes em que estas pessoas não chegam a serem processadas ou são absolvidas por ausência de provas diante da instauração de uma ação penal.819 A decisão do júri também sugere que a apresentação de uma evidência precoce tem um impacto maior do que a apresentação de uma evidência posterior. No modelo decisório, os jurados começam pela construção de uma história que engloba as informações que eles trazem a julgamento (por exemplo, a PPT820) como as informações apresentadas no julgamento. Essas histórias servem como funcionamento e moldura dentro da qual a evidência é interpretada no julgamento. Assim, ao influenciar a natureza das histórias iniciais, a PPT pode influenciar as decisões dos jurados mais tarde por sua interpretação de polarização de novas evidências821. A American Bar Association (2000) identificou seis tipos específicos de informação, que os advogados não devem divulgar devido ao seu impacto potencialmente prejudicial: (1) registrar os antecedentes criminais dos acusados; (2) o caráter ou a reputação do arguido; (3) a existência de qualquer confissão, admissão, ou declaração dada pelo acusado ou a recusa em fazer uma declaração; (4) o desempenho em exames ou testes (ou a recusa em se submeter a um exame ou teste); (5) a possibilidade de uma exceção de culpado para a infração ou em 818 - BREWER, Neil; KIPLING D. Williams. Psychology and law. An empirical perspective. Guilford Press, 2004, p. 234. 819 - PASQUALINI,Renata. O devido Processo legal e a Liberdade de Imprensa.Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor,2009,p.65. 820 - Publicidade pré-trial ou pré-julgamento. 821 - BREWER, Neil; KIPLING D. Williams. Psychology and law. An empirical perspective,cit.,p. 235. 384 uma menor ofensa; (6) qualquer opinião quanto à culpabilidade do acusado ou a inocência ou quanto ao mérito das provas no caso. As regras da American Bar Association (2000) são modelos de boa conduta profissional, pressupondo que um advogado não deve liberar potenciais informações que sejam prejudiciais ao acusado. O padrão de probabilidade substancial suscitou diversas interpretações que vão desde “razoavelmente moderado na interferência em um julgamento justo” para “ameaça grave e iminente para a administração da justiça”. Mesmo a PPT, é prejudicial, quando é liberada, e os juízes não podem necessariamente vê-la como um viés significativo contra o réu822. 8. O caso O.J Simpson: Aspectos da influência do julgamento pré-trial Entre os fatores que atraem a atenção da mídia, podemos destacar, entre outros, as personalidades e celebridades envolvidas com crimes, a natureza do crime, como aqueles que são revestidos de crueldade, ou em alguma natureza sexual. Nos Estados Unidos, país onde se debate constantemente, a influência da mídia nos julgamentos, os assassinos podem ser divididos em estrangeiros e não estrangeiro. A categoria dos estrangeiros, por seu turno, comporta duas outras classificações. O tema da mídia em relação aos não americanos envolve os imigrantes, os negros, os socialistas, líderes e trabalhadores sindicalistas, os anarquistas, os pobres, os membros da contracultura, os membros de grupos marginais religiosos, ativistas políticos, cruzados, ou advogados de causas impopulares. São considerados exemplos, nesta categoria, os casos de Albert De Salvo, o Estrangulador de Boston; Richard Speck, assassino em massa; Sacco e Vanzetti, imigrantes Italianos acusado de assassinato de roubo e morte em 1920. Outro exemplo bastante lembrado pelos autores americanos foi o caso O.J. Simpson, que ainda hoje rende ensaios e artigos jurídicos e de outras áreas científicas823. Em 1919, o Supremo Tribunal pronunciou-se sobre um dos métodos de encontrar um júri imparcial, quando o júri local tem sido exposto à publicidade prejudicial significativa sobre o caso. Em Stroud v. United States, o Tribunal considerou o apelo de Robert Strouds de sua condenação por homicídio. Stroud, o chamado “Pássaro de Alcatraz”, sustentou que o juiz deveria ter concedido a sua proposta de mudança de local. Stroud fez o movimento depois que residentes de Leavenworth, Kansas, onde o julgamento foi realizado, foram expostos a 822 - BREWER, Neil; KIPLING D. Williams. Psychology and law. An empirical perspective.cit.,p. 235. 823 - CONTERILL, Janet. Language and power in court. A linguist analisys of the O.J.Simpson Trial. New York: Palgrave Macmillan, 2004, p. 25. 385 imprensa local das provas de acusação do pré-trial, ou seja, antes do julgamento. De acordo com Stroud, a sua ampla circulação por meio da imprensa criou prejuízo nas mentes dos habitantes do Condado de Leavenworth contra ele, um preconceito sem justa causa, tendo sido deferido pelo juiz a mudança do local do julgamento824. O caso Simpson foi um dos casos mais noticiados na mídia em geral, uma vez que na época dos assassinatos, Simpson ocupava uma posição de prestígio e autoridade, e além disso, ele tinha uma posição social proeminente em face de sua riqueza e status como um herói esportivo e comentarista de mídia. Graham reflete que Simpson foi o primeiro réu que já visto, que literalmente tinha a presunção de inocência, e que também foi tão altamente considerado pelo público. Outro fator que envolve o interesse da mídia pelo caso O. J. Simpson envolve os acontecimentos (scripts) em andamento. As características definidoras de um evento de mídia como proposto por Jun e Dayan, explicam o interesse da mídia pelo caso O. J. Simpson por causas diversas. Primeiro, como uma notícia, o caso Simpson não foi planejado e antecipado pela mídia. O script é uma chave de ingredientes, que, de acordo com Steven Brill, presidente e diretor executivo de uma rede de TV, são casos já escritos ou ate mesmo imprevisíveis que são noticiados pela mídia. (“The Legacy Simpson”, de 1995, October 9, p. 55). O julgamento de O. J. Simpson, no caso, era um script constantemente em andamento com Simpson, seus amigos, seus advogados, e os espectadores, sendo adicionando ao script diariamente. O caso O. J. Simpson, como um evento noticiário, foi transmitido ao vivo interrompendo a programação normal, que atraiu uma grande audiência, o julgamento também recebeu uma enorme atenção através de outros meios de comunicação. O caso Simpson apareceu com destaque em jornais, revistas, livros, programas de rádio, e na internet. A mídia de impressão devotou espaço proporcionalmente tanto para o julgamento como fez a mídia eletrônica. A cobertura extensiva da mídia de impressão contribuiu para o espetáculo. No entanto, a definição de “eventos de mídia”, como descrito por Dayan, é focada na mídia eletrônica, ao mesmo tempo que tem vista também, para a cobertura de jornais e revistas. A cobertura extensiva da mídia de impressão contribuiu para o espetáculo do julgamento. Por exemplo, a revista Newsweek publicou seis artigos sobre o julgamento criminal de O. J. Simpson em um período de dez meses, e quase mil artigos, após os assassinatos; o Boston Globe publicou 102; o lnquirer Filadélfia publicou 121; o Dallas Mornillg News publicou 824 - BUNKER, Matthew D. Justice and media.Reconciling fair trial and a free press. New Jersey: Lawrense Erlbaum Associates Publishers, 1997, p. 50. 386 123; o Atlanta Journal and Constitution publicou 126; o Miami Herald publicou 129; o Los Angeles Times publicou 398; e USA Today, publicou 143. Dominick Dunne dá razões para destaque do caso Simpson na mídia impressa: o caso Simpson é como uma grande novela, em que luxo e romance ganham vida, com casamento interracial, amor, luxúria, mentira, o ódio, a fama, a riqueza, a obsessão, beleza, maus-tratos, perseguição, e a justiça que o dinheiro pode comprar. Jornalistas de outros gêneros se referem ao caso Simpson como “uma novela nacional, da vida real”825. Cerca de 2.000 jornalistas, representando mais de 100 organizações de notícias credenciados de todo o país e do mundo convergiam para o tribunal de Los Angeles. O caso atraiu inclusive mídias não tradicionais em reportagens de casos envolvendo celebridades. A revista World Dog mandou um repórter para cobrir o julgamento com base no interesse elevado entre os amantes do cão, em sintonia com o sofrimento do animal de estimação de Nicole Simpson, Akita, que ganiu desesperado, chamando a atenção dos vizinhos para a cena do crime826 825 - SHAW, Davis. The Simpson legacy,obssession: did the media overfeed a starving public? chapter three: tabloid tornado, mainstream mania. The Godzilla of tabloid stories, 1995. 826 - THALER, Paul. The espetacle. Media and the making of the O.J.Simpson Story. Westport.Praeger, 2000, p. 12 387 Parte 2. O escabinado e o assessorado: Análise do seu funcionamento e da Jurisprudência dos Tribunais do Júri em Portugal Capitulo1. O funcionamento do escabinado: Uma aproximação do julgamento justo e equitativo e participação dos cidadãos na administração da justiça 1.A transição do Tribunal do Júri “puro” para o escabinado No início do século XX, em razão da instituição de regimes totalitários em muitos países europeus, o júri, instituição democrática que é, perdeu sua força, sendo suprimido em alguns países, como assim aconteceu em Portugal, ainda no ano de 1927, na Áustria em 1934, Espanha em 1936 e, por fim, na Itália em 1931. Quando da ocupação da França, pelos alemães, durante a Segunda Grande Guerra, na época do Marechal Pétain, eles ali implantaram o Tribunal dos Escabinos (Schõffen, dos alemães; Échevin, dos franceses). E, desde então, é o Tribunal dos Escabinos que predomina na França, Alemanha, Áustria, Grécia, Itália, Portugal, dentre outros países da Europa continental. Trata-se de instituição parecida com o Júri. O Conselho de Julgamento é constituído de cidadãos leigos e de Juízes togados. Na França, após os debates, "les magistrats de la cour et les jurés" se reúnem na Sala das Deliberações e dali não podem sair sem as suas decisões. São nove jurados e dois Juízes togados que integram a denominada Cour d' assises, formada pela Cour propriamente dita e pelo Jury.827 A supressão das ditaduras europeias e o restabelecimento da democracia deram margem ao ressurgimento do Júri, muito embora a formação clássica, com a separação entre juízes leigos e juízes profissionais, acabasse não prosperando na maioria dos países europeus, como o foi na Itália, Portugal, Alemanha e França.828 Com o passar de tempo foi destacando alguns problemas de desempenho dos Jurados “puros”, o que resultou numa alteração em alguns países, que tinham escolhido como modelo inicial, exatamente a opção do Tribunal do Júri Na forma “pura”. 829 É com a Revolução Francesa, em fins do século XVIII, "ante a impopularidade de los tribunales de magistrados que habían convertido el arbitrio en la arbitrariedad judicial", a 827 - FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de Processo Penal Comentado. V.2. Saraiva. São Paulo,2005,p.406. 828 - AZEVEDO, André Mauro Lacerda. Tribunal do Júri:Aspectos Constitucionais e Procedimentais.São Paulo:Verbatim,2011,p.56. 829 - REBOLLO, Beatriz Sanjurjo. Los Jurados en USA y en España:Dos Contenidos distintos de la misma expresión.Madrid:Dykinson, 2004, p.54. 388 instituição foi levada para a França, de onde se espraiou por quase toda a Europa, com ligeira alteração: em vez do grande Júri, cabia a um Juiz togado dizer se era ou não caso de ser o réu submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri.830 Em 1910, o jurado seria objeto de investigação criminológica, tendo em vista os resisltados dos julgamentos pelo Tribunal do Júri. O instituto de Criminologia, criado na Faculdade de Direito, Economia e Ciências Sociais de Paris, investigou entre outras questões: a) a representatividade do jurados, tendo em vista em que grau, estes correspondiam a população parisiense; b)a expectativa dos juízes assessores e juízes profissionais, em relação á sua própria atividade.831 Com os resultados, ficaram evidentes os vícios dos jurados: inaptidão técnica, falta de conhecimento, ausências, mais aquiescente com o calor dos debates, que com ao valor das provas, de modo que a Convenção (1792),o Diretório (1795) e o Consulado (1799-1804), se viam obrigados a suspender a função de jurados em vários departamentos.832 O Escabinado, que domina a Europa continental, apresenta particularidades de um país para outro. Na Itália, por exemplo, são dois Juízes togados e seis jurados; na Alemanha, se a infração não se revestir de gravidade, o Tribunal dos Escabinos é formado de um Juiz togado e de dois jurados. Se for grave, serão três togados e dois leigos.833 2. O escabinado como opção e aperfeiçoamento do sistema do jurado “puro” Sobre os modelos de participação popular nos julgamentos que a doutrina afirma a existência de três sistemas no modelo do Tribunal do Júri: 1.O modelo do sistema de Jurado Puro, em que os Jurados são eleitos diretamente pelo povo aleatoriamente. Neste sistema do Tribunal do Júri, o jurado, enquanto elemento não profissional, apenas emite seu veredito, acerca das questões de fato (declaram provados ou não provados os fatos), sendo o Juiz técnico quem faz a redação da parte jurídica da sentença. Este sistema, considerado em 830 - BUSTAMANTE, Juan Jose Gonzalez Bustamante. Principios del derecho procesal mexicano,México: Porrúa,1971. 831 - MARTÍNEZ, GemaVarona. El jurado y la arquitetura de la verdad juridico-penal. San Sebastián (Secundino Esnaola, 15): G. Varona, 2000.p.96. 832 - FAIRÉN GUILLÉN, Victor. El jurado: cuestiones prácticas, doctrinales y póliticas de las leyes españoles de 1995. Madrid: Pons, 1997. 833 - FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de Processo Penal Comentado. V.2. Saraiva. São Paulo,2005,p.407. 389 decadência, é utilizado fundamentalmente nos países anglo-saxões como EE.UU, (se bem que segundo o professor Thaman, este país parece encaminhar-se ao sistema de Jurado misto) e Inglaterra. 2.O sistemas do escabinado, caracterizado, porque os Jurados participam, não só na determinação dos fatos provados, senão também na aplicação do direito redigindo a sentença de forma conjunta com o Juiz técnico. Este sistema é utilizado em países como França, Suíça (cujo sistema é tão similar ao da França, que se denomina de júri à francesa834), Alemanha, Itália, Portugal e Grécia. 3. O sistema de jurado misto, que é utilizado na Bélgica, Áustria e Noruega.835 O sistema do escabinado é um sistema composto por leigos e magistrados técnicos, constituindo todos eles, em um único colégio, que conhece e julga a totalidade do juízo: o juízo oral, a culpabilidade, a determinação da pena concreta a impor, a responsabilidade civil derivada do delito, não existindo esta diferenciação entre fato e direito. De acordo com Gimeno Cendra-os Tribunais dos escabinos estão compostos por juízes técnicos, e leigos. Ambos examinam as questões de fato e de direito, tanto a culpabilidade, como a aplicação da pena estão dentro de sua esfera de atuação, adaptando-se, as decisões por maioria. O escabinado, assim representa a vantagem de que os juízes leigos, são assessorados e assistidos por juízes técnicos, nas questões de direito, quando necessário. É o modelo europeu por excelência, que atualmente vigora em países como a Alemanha, Itália, Portugal e França. A maioria dos países que o adotou como evolução da fórmula do jurado puro, tomou em conta o mal funcionamento deste sistema, produzindo a reforma, que levou ao escabinado. 836. Na Suíça, a reforma constitucional de 30 de Novembro 1894, admitiu o princípio da substituição do júri por escabinos e o Código de Processo Penal, e a Lei sobre o Poder Judiciário ainda em vigor estabeleceu o escabino, em sua forma distrital, para o julgamento de crimes (composto por três juízes do tribunal e cinco assessores, ou jurados, nomeados por seis anos pelo povo),