Maria Pé No Chão: uma instalação artística e sua representação do
corpo
Cíntia Guimarães Santos Sousa
A instalação “Maria Pé No Chão” foi realizada através da fotografia digital,
em preto e branco, plotada em pvc, em cinco placas medindo 50 x250 cm cada e
com espessura de 2 milímetros formando um único painel montado no chão, onde
as pessoas puderam circular ao seu redor ou passar por cima.
Para analisar a instalação partindo de uma linguagem visual para uma
textual(verbal), tomo como referência o texto As semioses pictóricas de Ana
Claudia Oliveira, que levanta uma questão logo no início:” O que o verbal mostra
da pintura? Como?”. Nesse sentido poderia partir dessas duas questões para
olhar à obra “Maria Pé No Chão” e fazer as mesmas perguntas “com o propósito
de assinalar que é em função do aspecto formal da obra que sua significação é
construída.”(Oliveira, 1995: 105)
Para construir um discurso verbal da obra é necessário percorre-la numa
busca perceptível dos elementos que a compõe, reconstruindo-a textualmente.
Nesse sentido tomei liberdade de descrever a obra “Maria Pé No Chão” realizada
através da fotografia digital, em preto e branco, plotada em pvc, em cinco placas
medindo 50 x 250 cm cada e com espessura de 2 milímetros, formando um único
painel.
O painel é montado no chão, e as pessoas podem circular ao seu redor ou
passar por cima dele. Ao deparar com o painel e compreender a montagem, surge
um olhar de desconfiança por parte dos transeuntes. Alguns olhares, mais
curiosos, como o das crianças e de alguns adultos, fazem com que estes andem
sobre as imagens, brinquem e sentem-se sobre elas.
A instalação contou com um áudio da fala da “Maria Pé No Chão”. Com a
ajuda de um profissional, foram feitos recortes e pausas a partir de uma entrevista
da mulher. Nesse sentido foi possível construir uma montagem sonora.
O áudio da fala da Maria Pé No Chão é a história dela, contada por ela. Foi
montado através de fragmentos dessa história, pequenos intervalos, recortados
em trechos de falas separados por segundos de silêncio, pausas. Outras pessoas
conversam ao mesmo tempo que a Maria, percebe-se que está num ambiente
doméstico. Uma voz de criança aparentemente fazendo perguntas.
O som vem de um lugar alto, no canto oposto à entrada da sala. No
momento em que o espectador entra no local percebe que não há nada nas
paredes e sim um som e as fotos no chão. Uma vez dentro da sala, ora o
espectador escuta as falas ora não, devido a utilização das interrupções e pausas
na montagem sonora. Com isso, os visitantes ficam curiosos e começam a
penetrar no espaço, meio que a procura de quem está falando e onde está o som.
A intenção era provocar uma determinada ação, ou interação do visitante:
andar por cima das imagens, senti-las com os pés, brincar de montar
imageticamente as partes do corpo da “Maria Pé No Chão”.
A proposta da instalação era reproduzir imagens da mulher “Maria Pé No
Chão”, nome dado a ela por familiares, e que atualmente ela é conhecida em toda
a cidade de Monte Alegre de Minas por seu apelido e não mais pelo seu nome
verdadeiro. Dona Maria Pé No Chão nunca calçou sapato, é aposentada, cria seus
netos e leva uma vida marcada por conflitos, desencontros, diferenças e
preconceitos.
Por ser uma instalação onde a obra ocupa um determinado espaço, e reúne
várias linguagens, o plano de expressão é pensado num todo, ou seja, nesse
conjunto de linguagens, para que seja possível construir um discurso da obra. É
preciso pensar no espaço da sala em que a obra ocupa, na fotografia e no espaço
sonoro, para construir um discurso da obra, neste caso não é um texto tradicional,
ou seja, uma única imagem de uma quadro.
A maneira como foi descrito até aqui a obra “Maria Pé No Chão” faz parte
de um primeiro momento que a autora Ana Claudia nomeia de regras de
procedimentos formais. A autora afirma que:
A segmentação do plano de expressão do sistema
pictórico
sedimenta-se
unicamente
nas
regras
de
procedimentos formais e, nessa fase inicial de análise, o
resultado é um inventário das primeiras unidades da
manifestação.(Oliveira, 1995: 109)
No segundo momento a autora passa à classificação dos elementos em
categorias (Oliveira, 1995: 109), compreendendo, portanto, que a análise nessa
segunda etapa fica a cargo das categorias segundo os formantes cromáticos,
eidéticos e topológicos. Como, exemplo, no início da análise que faz da obra “A
Lição de piano” de Henri Matisse(p.120-142).
Portanto retornando à obra Maria Pé No Chão identificamos formas,
fragmentos, figuras de um corpo, que também pode ser de vários corpos ou não.
Mas sabemos pelo próprio título da obra que se trata de um corpo só, uma mulher,
fotografada, fragmentada e remontada, tornado-se um outro “corpus no espaço”.
A obra é montada como um único painel formado por vinte e três retângulos
não homogêneos uns maiores e outros menores. Neste texto a leitura da obra
será da esquerda para a direita, como um texto escrito, de forma que é visto na
verticalidade e não na horizontalidade. Esta leitura não pretende direcionar o
espectador, foi uma maneira de organizar as imagens para construir este texto.
Acredito que a obra quando exposta no chão pode ser lida pelos quatros lados, ou
seja, da direita para a esquerda, de cima para baixo e vice-versa.
Como o painel é dividido em cinco placas de 50 x 200 cm cada placa,
encontramos na primeira e na última placa as imagens divididas em quatro
retângulos, e nas três placas centrais cinco retângulos compõe as formas das
imagens.
Na primeira placa do painel, começando da esquerda e do alto para baixo,
encontramos um retângulo com a imagem da parte de baixo do pé esquerdo,
como se a mulher estivesse caminhando, trazendo a idéia de movimento. Vemos
também um fragmento da perna direita da Maria e bem disfarçado um pedaço do
outro pé e uma pequena ponta do seu vestido. Logo a baixo vê um fragmento do
rosto, uma verruga que chama muita atenção e que está próxima a orelha que
segura o cabelo grisalho. No terceiro retângulo situado a baixo desses dois já
descritos vê duas mãos justapostas colocadas na frente da boca e ao fundo
vestígios do rosto e abaixo o ombro coberto com o vestido. No último retângulo vê
um pouco mais do rosto da Maria: seu olho esquerdo, rugas, novamente, uma
verruga e a metade de sua boca, já que é um perfil do lado esquerdo do seu rosto.
As imagens tanto nessa placa como nas demais possuem uma variação de
cinza, uma composição de claro e escuro divididas mas ao mesmo tempo criando
uma unidade.
Instalação Maria Pé No Chão
2002/2004
Na segunda placa a primeira imagem de cima para baixo é composta por
um retângulo maior que os outros quatro retângulos que se seguem na mesma
placa. E encontramos meio corpo da mulher, do quadril para baixo, encostado
numa parede e pisando num passeio cimentado, podemos observar que é uma
parede desgastada. A mulher segura (com a mão direita) uma lata de alumínio
com um pouco de água dentro, os pés e o chão estão molhados. É uma fotografia
da ação, do momento em que acabou de acontecer algo (jogar água no pé), a
idéia de movimento, como também pode ser visto na primeira foto da primeira
placa. Ainda nesse retângulo o vestido da mulher chama atenção por sua estampa
floral e pelo movimento do tecido.
No segundo retângulo temos a metade do rosto da Maria de meio perfil,
vemos também o pescoço. E mais detalhadamente observamos a sua boca
entreaberta como se estivesse sorrindo, e ao lado uma covinha formada através
de linhas verticais, e ao fundo antes das linhas curvas da orelha percebemos a
verruga. A baixo da linha do queixo várias linhas formam as marcas de expressão
do pescoço.
No terceiro retângulo tem-se uma imagem na horizontal de meio corpo da
Maria, semelhante a primeira imagem dessa placa a diferença está que nesta
imagem a água que está na lata é derramada sobre os pés e a naquela outra
imagem a água não cai e ela está na vertical.
No penúltimo retângulo temos em detalhe os pés, direito e esquerdo, com
uma parte da perna. Sendo o pé esquerdo por cima do dedo do pé direito. Existe
um brilho nos pés, dado que estes estão molhados. Vemos também as linhas
profundas, quase que rachaduras do chão cimentado, formando desenhos com as
pedras e os desgastes do chão. Por último num detalhe da figura mais
aproximado, possibilidade dada num programa de computador, vemos quatro
dedos dos dois pés. O que chama atenção são as unhas desgastadas, quebradas
e as rachaduras dos dedos.
A terceira placa é dividida em cinco retângulos, como na segunda e na
quarta placa, diferenciando da primeira e da última que possuem quatro divisões.
Voltando para a terceira placa observamos duas imagens semelhantes, a primeira
na horizontal e a terceira na vertical que divide o espaço com outra imagem
também na vertical, contrapondo com as imagens horizontais que a cercam. São
retângulos justapostos, um saindo do outro, o retângulo do lado esquerdo é a
metade de um perfil do rosto e do pescoço, neste encontra-se linhas marcantes
que o envolve. O retângulo do lado direito são duas linhas que descrevem os
lábios ampliados. Saindo do canto esquerdo da boca um objeto não definido, o
que parece é um cachimbo. Acima da boca no lado esquerdo da figura encontrase a ponta do nariz formando um triângulo reforçado pela sombra do mesmo. Na
parte de baixo desta terceira placa encontramos dois pés um lado do outro,
grandes e ampliados, temos uma outra imagem que assemelha a essa e que a
contrapõe, situada na placa seguinte no primeiro retângulo, os mesmos pés, mas
agora não tão ampliados.
Na quarta placa encontramos dois retângulos justapostos, um saindo do
outro, como no terceiro retângulo da terceira placa, mas aqui a imagem é de dois
dedos da mão da Maria, a esquerda, e do lado direito toda a sua mão fechada
compondo o retângulo. A última imagem desta placa também é a parte de cima da
mão, aberta e com os dedos esticados vistos pela metade. O detalhe do pescoço
da Maria é registrado na penúltima foto, onde encontramos também parte de sua
orelha e alguns fios de cabelo branco e um pedaço de seu vestido. Mas o que
chama mais atenção são as linhas profundas que formam em seu pescoço,
criando uma textura no seu corpo.
As duas primeiras fotos da última placa mostram o perfil do rosto da Maria,
sendo a de cima com mais detalhes das rugas do olho direito e do pescoço, além
de uma covinha em sua bochecha. Na foto de baixo temos apenas o registro de
seu olho direito semi aberto, esta imagem é mais focada no rosto da Maria do que
a outra. Já na terceira foto desta placa vemos um pedaço da perna e do calcanhar
da mulher, é a única imagem que não repete no painel. As demais fotografias são
ampliadas, reduzidas, recortadas, aproximadas chegando a pequenos detalhes e
até invertidas, para compor o painel.
Na parte inferior da última placa vemos um pé na horizontal, ou melhor a
planta do pé esquerdo, o que parece ser a mesma imagem que deu início a essa
descrição, situada no alto da primeira placa no sentido vertical. Nessa última
imagem ela está na horizontal, com um giro de 180°, e com um corte que
possibilita ver apenas o pé e não mais uma parte da perna e do vestido da Maria.
È como se aquela imagem da primeira placa fosse o início do trabalho e esta a
última encerrando a obra. Causando um efeito que podemos nomear como
englobantes e englobadas, sendo que as imagens englobantes fazem parte da
primeira e da última placa, porque elas contém quatro fotografia cada uma, dando
a idéia de começo e fim. E as imagens englobadas seriam as três placas centrais,
como a própria definição de englobado, algo que está aglomerado, reunido. Estas
três placas reúnem cinco fotos em cada uma, justificando a idéia de englobado.
Podemos observar que algumas partes do corpo da Maria Pé No Chão são
mais registradas do que outras, por exemplo, os pés aparecem nove vezes
enquanto suas mãos encontramos seis registros. Neste sentido vale chamar
atenção para a distribuição e a ordenação dos pés. O pé está até mesmo no nome
da obra, criando uma micronarrativa, unificando o sujeito à sua história de vida,
que no momento em que leio o título Maria Pé No Chão é construído a idéia de
como pode ser esse sujeito. Sem a palavra pé, Maria No Chão, não faz sentido,
muda sua identidade e consequentemente a sua identificação. A nomeação “pé no
chão” a transformou em uma pessoa muito conhecida em sua pequena cidade. E
esse mesmo reforço é dado na representação aqui estudada, o pé está em todas
as placas, uma ou duas vezes registrado, ele caminha por todo trabalho, criando
movimento e direcionando o olhar do espectador. Dando a idéia de movimento
como na primeira imagem da primeira placa, a ação do lavar os pés na primeira e
terceira foto da segunda placa e a finalização da obra na última foto da quinta
placa.
Por todo painel percebe-se imagens repetitivas mas que se contrapõe
devido a montagem, os recortes e as ampliações. Os pés da “Maria Pé No Chão”
aparecem várias vezes para compor o painel, de forma alongados, dilatados,
recortados, invertidos, grandes detalhes dos dedos dos pés, ora aparece os
calcanhares ora a planta do pé, num constante movimento de formas, texturas e
contrastes.
Encontramos no painel linhas curvas como é o caso das formas dos pés,
mãos, rugas, orelhas, boca, dedos. São faces recortadas justapostas entre mãos
e dedos. Mãos que mostram linhas em confronto: curvas curtas e longas,
horizontais, verticais que contrapõe as curvas das linhas do pescoço, por exemplo,
na figura da quarta placa sendo o terceiro retângulo, estas formam pequenos
losangos lado a lado. Cruzamento de linhas horizontais, verticais e diagonais
gerando formas que vão além das formas humanas, são desenhos recriados
originando outro “ corpus no espaço”.
A cor de todo o painel é ressaltada pelo contraste das sombras dada pelo
claro e escuro dos cinzas. Os brancos obtidos pelos reflexos dos cabelos,
favorecem um contraste do branco e do cinza. Assim como as partes mais
escuras dão profundidades em algumas partes das figuras.
Para
Ana
Claudia
os
formantes
cromáticos
e
eidéticos
estão
intrinsecamente ligados e, ao se determinar um, o outro também se define
(Oliveira, 1995: 123). No construir a descrição percebo que ao mesmo tempo que
se pensa nesses dois formantes não exclui o formante topológico, especificamente
na descrição da obra aqui estudada, existe uma necessidade de pensar no espaço
que ela está inserida e o espaço percorrido pelas pessoas.
A obra montada no chão é vista de cima para baixo e de todos os lados. O
“corpo” da Maria é composto de forma fragmentado, definindo um espaço cheio de
detalhes do corpo desconstruído e ao mesmo tempo construído pelas formas
retangulares e dividindo tudo isso com o espaço externo, a sala e os corpos das
pessoas que circulam ou passam por cima da obra.
A instalação propõe certo movimento numa reiteração do corpo da Maria Pé
No Chão com os corpos dos espectadores. Ao mesmo tempo em que acontecem
interrupções, ou seja, corte nas imagens do corpo da mulher existem também
interrupções nas passagens dos espectadores e no áudio.
Ao visitar a instalação o espectador entra na história, na vida, na cultura,
percorre caminhos percorridos e vividos pela mulher Maria Pé No Chão. A fala
dela é doce, livre, alegre, colorida e esperançosa. É um vai e vem de contos,
acontecimentos e cotidianidade. A não fala dela é pensativa, traz uma vontade de
querer mais por parte dos visitantes, de saber o que vem depois para conseguir
construir a figura Maria Pé No Chão, a idéia do nome como narrativas.
O universo da Maria é mostrado nessa obra em preto e branco num espaço
limitado contrapondo com a realidade vivida por ela, em sua fala percebemos o
quanto é colorida suas histórias, o quanto é envolvente andar por entre suas
imagens e escutá-la ao mesmo tempo, apesar desse espaço – sala - limitado
conseguimos sair dali e entrar numa história descontínua, as histórias que a Maria
conta no áudio não tem uma seqüência, por isso a idéia de descontinuidade e nos
intrigando a pensar o que está acontecendo? O que estou fazendo? Por onde
tenho que andar? O que estou escutando? Quem é esse sujeito que fala? Será
que quem fala é a mesma pessoa das imagens registradas no chão? Será que é
um andante, um andarilho “pé-rapado”?
A obra provoca um redirecionamento do olhar, uma postura não
contemplativa do espectador. O olhar não está direcionado em num único ponto e
sim percorre todo o espaço da instalação, juntamente com o caminhar e o corpo
do sujeito que entra na instalação.
Os corpos dos visitantes se movimentam neste espaço, entre as imagens
no chão e o áudio, por entre pensamentos imagéticos e histórias de uma vida que
remete a qualquer outra vida, de qualquer ser humano. Corpos que se cruzam
com outros corpos compondo um espaço, reconstruindo uma nova composição de
imagens, falas e espaço.
O que podemos considerar é que encontramos tanto nas imagens e no
som, fragmentos e recortes, montados numa composição sonora e plástica
resultando um todo que ocupa um determinado espaço, este visitado pelo público
que também faz parte da instalação.
Cabe aqui fazer um pequeno recorte da trajetória dessa pesquisa, para
entender de onde vem todas essas inquietações, em relação ao processo de
trabalho, evolvendo artista – coletas de imagens – obra – espectador.
A pesquisa nas poéticas visuais do corpo e sua representação vêm sendo
desenvolvidas desde os anos 90 através do estudo de diversas técnicas e
suportes plásticos; no campo da pintura, do desenho e da gravura (xilogravura e
gravura em metal), tendo passagem pelo xerox até chegar à fotografia e mais
recentemente as imagens digitais.
O foco dessa pesquisa visual sempre foi o corpo, no princípio da pesquisa o
elemento que marcava as representações era o pé, então comecei a xerocar
(fotocopiar)1 os pés das pessoas que tinham uma ligação com o meu dia-a-dia,
1
O uso do xerox como linguagem surgiu numa oficina de gravura no curso de especialização em
Arte e Ensino de Arte realizado na Universidade Federal entre os anos de 1996 a 1998. A partir
desta oficina o trabalho com imagens fotocopiadas ofereceu novos rumos a produção.
por exemplo: minha mãe, minha filha, meu esposo, amigos e até alunos2. Levava
as pessoas até uma máquina de fotocopiadora e as colocava em cima para fazer
a cópia da parte cima dos pés. A partir daí construí uma composição de acordo
com as características das pessoas. Neste caso o pé ajudava a pensar o corpo,
que tipo de corpo era aquele? De Homem(s)? De Mulher (es)? De Criança(s)?
Em
1998 foi realizada uma exposição nomeada
“Peregrinação” - com
imagens de xerox de pés - que contava sobre acontecimentos do passado,
referências que marcaram minha vida, pessoas ligadas ao meu cotidiano. As
imagens dos pés criavam visualidades justapostas, os pés xerocados e recortados
eram montados lado a lado, dialogando com fragmentações e repetições desses
pés, construindo diversas formas. No espaço da exposição foi montada uma
instalação de uma capela, com fotos de pessoas em procissão à “Nossa Senhora
da Abadia” e em algumas dessas fotos encontrava registros de minha infância na
qual me vestia de anjo e ficava descalça para pagar promessas feitas por meus
familiares.
Cíntia Guimarães,
“Sensibilidade a flor do pé”
Técnica mista, 1998
3
A partir da inserção no curso de Mestrado em Cultura Visual e das orientações realizadas com o
professor da disciplina de Metodologia qualitativa de pesquisa, surgiram novas reflexões diante dos
trabalhos desenvolvidos até então. A questão é que os objetos permaneceram os mesmos, mas
surgiram novas reflexões sobre as relações que fazia para conseguir as imagens, ou seja, o modo
como reunia os grupos para fazerem o xerox dos pés, e pude concluir que partia de uma relação
de convivência entre as pessoas e ou grupos. É o que acontece com esse atual projeto de
pesquisa, partirei de um grupo(agora específico: artistas) para coletar imagens e produzir um
espaço de convívio e convivência. Na verdade já realizava, de certo modo, a arte relacional com
foco etnográfico, mas não tinha consciência disso.
No decorrer da pesquisa os estudos e as experimentações foram tomando
uma dimensão que só a figura do pé não dava conta das inquietações em relação
às representações e os questionamentos do corpo. Sendo assim vários elementos
começaram a surgir para estabelecer diálogos com os pés, por exemplo: perucas,
bicos de mamadeiras, pente, óculos... enfim elementos, que também eram
xerocados e que fortificavam a presença de um corpo fragmentado por objetos
que marcavam a presença e ao mesmo tempo a ausência do corpo.
Em meados do ano de 1999 tive a oportunidade de conhecer uma pessoa
que enriqueceu mais uma vez meu trabalho. Aproximei-me dela por causa de seu
nome Maria Pé No Chão. Novamente a figura do pé marcava o trabalho.
Cíntia Guimarães
Sem Título, 2001
Em virtude desse encontro, no mesmo ano que a conheci, produzi um vídeo
com suas imagens, para uma exposição coletiva chamada “O que somos?”, o
vídeo questionava: “Quem somos? Como somos? Como é nosso dia? Como
andamos?”. Desde então produzi vários estudos com o uso de fotos e relatos
dessa mulher.
O entrecruzamento de histórias da pesquisada e da pesquisadora
fortaleceu o trabalho visual e contribuiu para a própria história da artistapesquisadora. Os relatos de sua vida e suas imagens contribuíram para a
organização e construção de uma obra relevante para a pesquisa. Neste sentido
foi criada a instalação “Maria Pé No Chão” exposta pela primeira vez em 2002.
Portanto o texto aqui apresentado é uma tentativa de descrição da minha
produção plástica, com o propósito de reconstruir a obra numa linguagem verbal,
relacionando produção e contexto, entendendo que “o estudo de obras pictóricas,
afirma Ana Claudia Oliveira, impõe uma dinâmica conjugação entre
sua
organização enquanto sistema semiótico e o que nesse está inserido da história
da pintura e dos seus modos de produção, da história do autor e do seu contexto,
da história de sua geração e da estética em que é fundada . As relações intraobra são que conduzem as extras-obras e não o inverso. Agentes mútuoatuantes, porque todos esses ângulos são de uma maneira ou de outra
constituintes da tela, esses só são apreendidos no e pelo ato de repinta´-la ”.
(1995:141). Este exercício reconstruiu a obra, desmontado-a e recompondo-a num
outro texto que não é o visual, possibilitando um exercício do olhar e da reflexão
dos sentidos.
Instalação Maria Pé No
Chão. (2002/2004)
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