PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC-SP Mailiz Garibotti Lusa Do chão do cotidiano, o protagonismo do Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas - Uma trajetória de lutas, construindo identidade e conquistando autonomia - MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2009 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Mailiz Garibotti Lusa Do chão do cotidiano, o protagonismo do Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas - Uma trajetória de lutas, construindo identidade e conquistando autonomia - MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Serviço Social sob a orientação da Profa. Doutora Maria Carmelita Yazbek. SÃO PAULO 2009 ERRATA Na página 22, no último item dos objetivos específicos, suprima-se “em cada país”. Na página 49, no primeiro parágrafo do item ‘1.2.1’, onde se lê “segundo os estudos de Henri Lefevbre”, leia-se “segundo os estudos de Henri Lefebvre”. Na página 84, no final do primeiro parágrafo, acrescente-se em ‘nota de rodapé’ a seguinte consideração: “Ao fazer esta afirmação, não se exclui o reconhecimento de que na América Latina produziram-se significativas teorizações sobre os Movimentos Sociais. Entretanto, considera-se que tal produção teórica não recebeu o reconhecimento devido no campo das ciências sociais, a ponto de significá-la como ‘paradigma teórico’ sobre os Movimentos Sociais. Ao expressar isto, também se deve ressaltar que esta é a reflexão elaborada pelos autores que fundamentaram os estudos referentes a este capítulo, muito embora existam outras e diferentes reflexões sobre a produção teórica latino-americana neste campo do conhecimento. Além disto, apontase para o fato de que na América Latina há significativas expressões dos Movimentos Sociais, cuja dinâmica por si mesma produz reflexões próprias ao contexto e conjuntura latino-americana. Enfim, estas considerações da autora, devem ser relevadas em sua discussão sobre os paradigmas teóricos sobre os Movimentos Sociais”. Na página 87, no último parágrafo, onde se lê “extratos”, leia-se “estratos”. Na página 103, no segundo parágrafo, suprima-se do período “[...] se ‘pelas bandas de cá’ pouco ou nada se discutia e se produzia neste período em termos teóricos, [...]”, o termo “ou nada”. Na página 115, acrescente-se ao terceiro parágrafo do item ‘2.2.1.5’ a seguinte nota de rodapé: “Ao reportar-se a esta leitura sobre mundialização, alerta-se para o fato de que a compreensão desta autora não perpassa pela polarização do mundo, embora localize que há uma expressiva desigualdade entre as nações, originada pelas históricas relações de exploração e dominação econômica reforçadas no capitalismo”. Na página 159, no segundo parágrafo, onde se lê “Em segundo lugar, a perspectiva teórica dos estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais é preponderantemente vinculada ao paradigma europeu”, leia-se “Em segundo lugar, a perspectiva teórica dos estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais é preponderantemente vinculada ao paradigma europeu, associado às discussões latino-americanas”. Banca Examinadora ___________________________________ ___________________________________ ___________________________________ Na distância, A presença mais uma vez se fez no coração e nas lembranças! Aos meus amores, Simplesmente pelo bem-querer e pelo pertencimento! Em reconhecimento pelos diversos compartilhamentos, Resta-me dizer... ‘muito agradecida’! Ao Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, que através da ternura, segurança e lucidez crítica expressas nas palavras de Justina, Luci e Noeli, possibilitou re-significar as lutas e conquistas de sua trajetória histórica e também compreender melhor as possibilidades de atuação de minha profissão no contexto rural. À professora e orientadora ‘Carmelita’, pelo desafio e, principalmente, prazer de tê-la como companheira nesse percurso investigativo. Amabilidade, compromisso, responsabilidade e paciência marcaram sempre as suas lições. Entretanto, seu grande ensinamento foi de que trabalhar com a autonomia do orientando é o melhor caminho para incitá-lo à luta contra as subalternidades! Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social por acreditar que àquela jovem candidata ao mestrado, recém saída da graduação, um dia pudesse se tornar mestre. Às professoras e professores, às coordenadoras e secretárias do Programa e aos colegas: efetivamente o aprendizado se deu no saber compartilhado! À Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional de Ensino Superior – CAPES pelo financiamento da Bolsa de Estudos que possibilitou a realização do Mestrado. À Iria e Sofia, cujas relações foram re-significadas na amizade. Obrigada pela presença e pelas valiosas contribuições da etapa final da redação. Enfim, de modo especial, as minhas famílias! Àquela que outra vez aceitou a distância, relevando as profundas saudades, na certeza de que a história se faz e nela ‘nossa identidade’ é reafirmada, plena de afeto e cumplicidade. Àquela que aqui foi construída, não porque dividíamos um pequeno espaço na grande capital, mas porque aprendemos a compartilhar vidas e nisso, nos fizemos mulheres ainda melhores do que já éramos. Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas ...continuarei a escrever Clarice Lispector RESUMO LUSA, Mailiz Garibotti. Do chão do cotidiano, o protagonismo do Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas – Uma trajetória de lutas, construindo identidade e conquistando autonomia. 2009. 250 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Esta dissertação de mestrado trata do Movimento de Mulheres Camponesas em sua organização e atuação no Estado de Santa Catarina (MMC/SC). Tem por finalidade analisar o processo de lutas desse movimento social campesino e feminista, observando a dinâmica de sua organização social, articulação política, bem como as estratégias criadas para efetivação de seus objetivos. Nela debate-se a concepção de mundo rural; os movimentos sociais no Brasil, com destaque para aqueles ligados ao campo; os processos de construção da identidade, autonomia e protagonismo das mulheres camponesas e do Movimento de Mulheres Camponesas, a partir de seus cotidianos de vida e de trabalho; a trajetória sóciohistórica do MMC/SC e nele as lutas e conquistas; bem como a relação entre Serviço Social e espaço rural. Para sua elaboração utilizou-se como marco de fundamentação teórico-metodológica a perspectiva crítico-dialética, adotando-se a abordagem qualitativa de investigação associada à pesquisa de tipo exploratório, muito embora em seu desenvolvimento já se avance para o nível de descrição e explicação da realidade encontrada. Enquanto técnicas procedimentais foram empregadas a pesquisa bibliográfica e documental, além da realização de entrevistas orientadas por roteiro semi-estruturado. Estas últimas foram realizadas com três mulheres camponesas, militantes e dirigentes do Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinenses. Em seu desenvolvimento são discutidas categorias teórico-analíticas como, meio rural, agricultura camponesa, movimentos sociais, relações de gênero, identidade, cotidiano, consciência crítica, luta social, protagonismo, autonomia, políticas públicas e Serviço Social. Nas considerações finais aponta-se para o fato de que o espaço rural é constituído por uma diversidade de elementos, os quais exigem atenção no seu reconhecimento, bem como competência profissional para trabalhá-los. Também se assinala a importância dos movimentos sociais no jogo dialético da sociedade, os quais atuam como forças sociais geradoras de transformações sociais, políticas, culturais e, em algumas vezes, econômicas. Colabora-se ainda para o reconhecimento da atuação do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, na esfera da conquista e garantia dos direitos, bem como no âmbito da efetivação das Políticas Públicas para o campo. E, por fim, pretende indicar o espaço rural como campo urgente de investigações e de atuação profissional do Serviço Social. Palavras-chave: Rural. Movimentos Sociais do Campo. Lutas Sociais. Gênero. Classe. Identidade. Cotidiano. Políticas Públicas para o Campo. Serviço Social. ABSTRACT LUSA, Mailiz Garibotti. From day-by-day ground routine, the leadership of the Countryside Women Movement in the lands of Catarinas - A trajectory of struggle, constructing identity and conquering autonomy. 2009. 250 p. Dissertacion (Major in Social Work). Program of Post-Graduates in Social Work Studies, Pontificial Catholic University of Sao Paulo, Sao Paulo, 2009. This dissertacion deals with the Countryside Women Movement in its organization and performance in the State of Santa Catarina (CWM/SC). Its objective is to analyze the process of struggles of this rural and femenist social movement examining the dynamics of its social organization and political articulation, as well as the strategies created to attain its target. It is debated, in this essay, the conception of the rural world, the social movements in Brazil, highlighting the ones linked to the countryside; the processes of construction of the identity, autonomy and leadership of the countryside women and of the Countryside Women Movement, starting from their day-by-day routine life and work; the social-historical trajectory of the CWM/SC and its struggles and conquests; and the relationship between the Social Work and rural space as well. For the elaboration of this work it has been taken as a landmark of therotical-methodological ground a critical-dialectic perspective. It has also been adopted the qualitative approach of investigation, associated with the search of exploitation type, notwithstanding, in its development an advance has already been made in the level of description and explanation of the existent reality. As far as the technical procedures are concerned, it has been applied the documental and bibliographical searches, besides interviews oriented by a semistructured itinerary. The three last interviews were conducted with three countryside women, militants and leaders of the Contryside Women Movement in the Catarinas Lands. Along the development of these interviews it were dicussed theoriticalanalytical categories such as, rural environment, country agriculture, social movements, relations with gender, identity, day-by-day routine, critical conscience, leadership, autonomy, public politics and Social Work. In the final considerations it has been focused on the fact that the rural space being composed by a diversity of elements demands attention to its reward, as well as, professional competence to deal with the rural space. Furthermore, it has also been highlighted the importance of the social movements in the dialectic match of the society that play as a social power, generators of cultural, political and social transformations and, sometimes, economical ones. Yet, it cooperates to the recognition of the performance of the Countryside Women Movement of Santa Catarina in the field of conquest and guarantee of rights and, in the area of attainment of public politics for the countryside as well. Finally this work indicates thus, the rural space as an imperative and urgent field of investigation and professional performance of the Social Work. Key words: Rural. Countryside Social Movements. Gender. Class. Identity. Day-byDay Routine. Public Politics for the Countryside. Social Work. LISTA DE ABREVIATURAS ABEPSS - Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social AMC - Associação de Mulheres Catarinenses ANMTR - Articulação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Brasil AP - Ação Popular BM - Banco Mundial CEB’s - Movimento das Comunidades Eclesiais de Base CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores CLOC - Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social CONAM - Confederação Nacional de Associações de Moradores CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT - Comissão Pastoral da Terra CRAS/Rural - Centro de Referência em Assistência Social / Rural CRESS – Conselho Regional de Serviço Social CUT - Central Única dos Trabalhadores FMI - Fundo Monetário Internacional MAB - Movimento de Atingidos por Barragens MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra MMA - Movimento de Mulheres Agricultoras MMC - Movimento das Mulheres Camponesas MMC do Brasil - Movimento das Mulheres Camponesas MMC/SC - Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra ONG’s - Organizações Não-Governamentais OP - Orçamento participativo PCB - Partido Comunista do Brasil PJ - Pastoral da Juventude PNAS - Política Nacional de Assistência Social PRONAF - Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar PSD – Partido Social Democrata PT - Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro TL - Teologia da Libertação UDN – União Democrática Nacional ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil SUMÁRIO PARA INÍCIO DE CONVERSA..................................................................................14 CAPÍTULO I O ESPAÇO RURAL E O SERVIÇO SOCIAL: DESVENDADNO A MATRIZ TEÓRICA A PARTIR DA SOCIOLOGIA RURAL Preparando a reflexão – À guisa de introdução do capítulo......................................29 PRIMEIRA SEÇÃO Desvendando os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’..........................................32 1.1.1 O Pensamento Conservador e o Serviço Social ..............................................32 1.1.2 As discussões sociológicas sobre o ‘rural’ – O dualismo e a crítica.................34 1.1.3 O Pensamento em Nisbet e Mannheim............................................................38 SEGUNDA SEÇÃO Modificando o olhar para o ‘rural’ ..............................................................................49 1.2.1 A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre.............................49 1.2.2 O levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre o que é o rural ...........................................................................................................................54 1.2.3 Apontamentos sobre o ‘rural’ e sobre o ‘sujeito rural’ no pensamento social contemporâneo ........................................................................................................58 Costurando as principais reflexões – À guisa de encerramento do capítulo .............66 CAPÍTULO II MOVIMENTOS SOCIAIS DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL À CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA Ao iniciar um longo e profícuo debate, faz-se o convite ............................................70 PRIMEIRA SEÇÃO Movimentos Sociais – Trajetória histórica, paradigmas teóricos e conceituação ......72 2.1.1 Os Movimentos Sociais – Desde a entrada no cenário público ao seu surgimento no campo teórico ...................................................................................72 2.1.2 Conhecendo os paradigmas teóricos para compreender os atuais estudos sobre Movimentos Sociais ........................................................................................75 2.1.3 Dos paradigmas teóricos europeu e norte americano, aos estudos brasileiros .................................................................................................................86 2.1.4 colocando em cena os ‘conceitos’ sobre Movimentos Sociais .........................91 SEGUNDA SEÇÃO Movimentos Sociais em caminhada – Um retrato brasileiro, catarinense e campesino .................................................................................................................97 2.2.1 A trajetória dos Movimentos Sociais no Brasil .................................................97 2.2.2 Nas terras catarinenses, os movimentos sociais construíram história ...........119 2.2.3 A caminhada dos Movimentos Sociais no Brasil ...........................................128 TERCEIRA SEÇÃO Para além das discussões conceituais: a abordagem dos Movimentos Sociais sob o ponto de vista de sua interação dialética na sociedade ..........................................143 2.3.1 Sobre a criação de novas relações sociais: participação e democratização como estratégias dos Movimentos Sociais .............................................................144 2.3.2 Sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das mulheres’ nos movimentos sociais – Iniciativa, autonomia e participação – construindo as relações sociais de gênero ...................................................................................................148 2.3.3 Sobre os Movimentos Sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura política como desafio atual ......................................................................................152 2.3.4 Sobre os Movimentos Sociais enquanto formuladores de políticas e construtores de cultura............................................................................................156 Alinhavando as seções deste capítulo – Algumas palavras sobre os Movimentos Sociais: dos estudos aos desafios encontrados hoje no cenário brasileiro.............158 CAPÍTULO III O MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL DA COTIDIANIDADE À CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES Para início de conversa... algumas coisas precisam ser ditas! ..............................163 SEÇÃO ÚNICA Movimento de Mulheres Camponesas e a matriz identitária...................................166 3.1.1 Os Movimentos Sociais camponeses no Brasil e o Movimento de Mulheres Camponesas ...........................................................................................................166 3.1.2 As inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e na construção da identidade das mulheres camponesas ...................................................................168 3.1.3 Avançando o olhar para ‘as identidades’ presentes no Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – Os aportes teóricos para a reflexão.................................174 Dos fios ‘das identidades’, tecendo as tramas finais – Amarrando as reflexões apresentadas à guisa de encerramento do capítulo ...............................................196 CAPÍTULO IV OS MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES E O MMC NA VOZ DAS MULHERES CAMPONESAS Sobre o caminho e os caminhantes da última parte dessa empreitada! .................201 PRIMEIRA SEÇÃO A expressão do campo na atual sociedade capitalista............................................206 4.1.1 “Não dá para tratar o campo como uma coisa única” ....................................206 4.1.2 “O dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados como cidadãos de primeira classe” ..................................................................................209 SEGUNDA SEÇÃO Os Movimentos Sociais camponeses na construção sócio-histórica do Brasil........214 4.2.1 “Olha, se não fossem os movimentos camponeses de resistência histórica nesse país, nada estaria como hoje” ......................................................................214 4.2.2 “Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses tiveram junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição Federal de 1988” .......................................................................................................................216 4.2.3 “Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações”........220 4.2.4 “Não há mudança, não há processo de transformação, caso os ‘de baixo não tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e [...] não fizerem ‘o movimento da sociedade’” ......................................................................................223 TERCEIRA SEÇÃO O Movimento de Mulheres Camponesas num olhar que parte das Terras Catarinas! ................................................................................................................224 4.3.1 “O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência, através da participação em todo esse processo de reabertura democrática” .........227 4.3.2 “Os políticos que estavam no Congresso Nacional não entendiam nada, não sabiam da vida na roça, muito menos sobre a vida das mulheres”..................231 4.3.3 “E assim começamos um novo tempo no processo político” – Os anos de 1980 para o MMA....................................................................................................233 4.3.4 “Se os outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de mulheres se colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização” – Os anos 1990: conquistas e avanços..............................................................................................235 4.3.5 “Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do Brasil” ......................................................................................................................238 4.3.6 “Nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não negar a sua história”.............................................................................................................243 4.3.7 “O protagonismo também se dá na participação política na sociedade, na participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos”...........247 4.3.8 “[...] Tem um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no processo de autonomia das mulheres” ...................................................................................251 QUARTA SEÇÃO Os direitos sociais e as políticas públicas para o campo – Conquistas, demandas e reivindicações atuais ...............................................................................................256 4.4.1 “Continuam as históricas bandeiras de luta [...]”.............................................257 4.4.2 “[...] Nós sabemos que precisamos avançar constantemente”.......................262 QUINTA SEÇÃO Serviço Social e espaço rural – Um olhar para essa relação, segundo as falas de quem vive no campo ...............................................................................................265 4.5.1 “[...] Aquilo que a gente vem sentindo, acredito, não corresponde ao papel do Assistente Social”....................................................................................................267 4.5.2 “As experiências que eu conheço são de profissionais que [...]”....................276 4.5.3 “[...] Para os Assistentes Sociais tem uma sugestão central que é essa questão da participação e da articulação com os atores organizados da sociedade”...........278 Algo a considerar olhando para a última parte dessa empreitada – O quarto capítulo!...................................................................................................................283 APONTANDO PARA UM NOVO HORIZONTE – Definitivamente, à guisa de conclusão ................................................................................................................285 REFERÊNCIAS.......................................................................................................297 APÊNDICES............................................................................................................302 Apêndice I ..............................................................................................................303 Apêndice II .............................................................................................................306 PARA INÍCIO DE CONVERSA... O contexto inicial da caminhada! Há diversos olhares sobre o rural. Olhares sociológicos, olhares históricos, olhares econômicos e economicistas, olhares políticos e politiqueiros, olhares de Estado e olhares de governos e de governantes, olhares do povo da cidade e olhares também do próprio povo do campo! Há olhares e olhares! Cada qual procurando e encontrando aquilo que o coração reclama, o raciocínio insiste e o olhar, a escuta, o olfato e o paladar possibilitam perceber. Alguns são olhares críticos, pois vêem em profundidade, captam o escondido e, nisto, enxergam o inquietante novo. Outros são olhares conservadores, vêem os contornos mais fortes do retrato pintado por outros artistas, sentem nisto uma espécie de saudosismo aconchegante e acabam se afastando da realidade que motivou tal pintura, preferindo apenas guardar a lembrança daquilo que não mais voltará. E assim, existem e transitam os olhares sobre o rural. Alguns singelos, outros audazes. No entanto, sempre a criar e a recriar, a produzir ou reproduzir um mundo particular, mundo cujo território, sujeitos e relações compõem, com a cidade, o mesmo cenário da sociedade capitalista do novo milênio. Portanto, perguntar-seia: qual é o olhar profissional do Serviço Social para o rural? Qual é o olhar que a realidade e a população camponesa demandam do Serviço Social? É na busca de respostas a estas e a outras perguntas que se coloca o caminhar nesta dissertação, assumindo os desafios, os percalços e as alegrias do caminho, mas antes de tudo, propondo-se a construir este percurso - um tanto quanto vazio de outros caminhantes -, a fim de colaborar para o desvendamento de um espaço ao mesmo tempo tímido e ansioso por conhecer efetivamente o Serviço Social. Sim, este é o horizonte último que move o processo de investigação: o espaço rural, o Serviço Social enquanto profissão e a relação que existe ou que 14 poderá existir entre eles. Mas, o que mobiliza esse horizonte último na investigação? E ainda: como adentrar neste campo investigativo, ou seja, como se aproximar deste horizonte mais amplo que orienta a investigação? Para responder a indagação inicial, deve-se dizer que o primeiro e, talvez, mais importante nexo que mobiliza essa pesquisadora em sua investigação é sua íntima relação com o contexto rural. Lá nasceu, cresceu, aprendeu grande parte das questões necessárias para viver em sociedade. Lá também lhe foram ensinados diversos trabalhos que compõem a vida social, política, econômica e cultural no campo e, com eles, foi lhe sendo ensinado o valor deste mesmo trabalho, bem como do próprio modo de vida no campo. Foram aprendizados desafiadores, os quais foram confrontados com os aprendizados urbanos, uma vez que esta investigadora também viveu parte de sua vida no meio urbano. E, entre as idas e vindas da cidade para o campo, aprendeu também a ser mulher. Descobriu que existiam papéis determinados para homens e mulheres na sociedade e que eles não lhe conferiam toda realização possível enquanto mulher, filha, irmã, amiga, companheira de lutas sociais e políticas. Sentiu, então, dificuldades de compreender e seguir tais determinações e, assim, foi se inserindo socialmente em outros espaços da sociedade, tais como: grupos de jovens, movimentos sociais, manifestações políticas e sociais coletivas, entre outros. Desta forma, viveu significativas experiências de coletividade, organização e mobilização social. Pôde adentrar no universo da participação social e política desde a sua adolescência e - a partir dela - foi descobrindo uma significativa relação com um fazer profissional que, mais tarde, se tornaria a sua própria profissão: o Serviço Social. Foi na continuidade deste caminho que, ao se inserir neste universo profissional, começou a buscar as aproximações entre sua profissão e o contexto e modo de vida que a identificavam como mulher e camponesa. Aos poucos, foi percebendo que o caminho para encontrar os nexos entre o ‘meio rural’ e o ‘Serviço Social’ era bastante árduo, já que não fora percorrido, até o momento, por praticamente ninguém. Por isso, pôs-se ela mesma a investigar esta que é questão mais ampla que a mobiliza enquanto profissional e investigadora: ‘o meio rural e o Serviço Social’. 15 Portanto, decorre disto tudo o horizonte investigativo mais amplo que a mobiliza. Ele emerge de suas identidades enquanto mulher, camponesa, Assistente Social e investigadora. Esta é ela e ela inteira se mobiliza. E, agora, mesmo na função de investigadora acadêmica, é também ela quem se convida a adentrar no caminho que maquinou para conseguir se aproximar deste horizonte investigativo último, que a move e a orienta em sua principal tarefa neste momento. Continuando, ela certamente diria: “não pense que foi fácil encontrar as pistas para começar a traçar os primeiros planos”! Muitos esboços foram feitos e tantas mais discussões foram estabelecidas com seus colegas, professoras, companheiras e companheiros de mobilização e luta social. Entretanto, por fim, encontrou-se em suas reflexões com um sujeito coletivo, o qual agregava em sua identidade as características de ‘ser mulher, ser camponesa, ser mobilizadora social e agente político’. Eis, então, que aparece em seu percurso como investigadora a figura do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil. Ora, num primeiro momento parecia ter descoberto o mapa do tesouro; entretanto, ainda tinha algo que a incomodava, que era a ausência de uma ligação deste sujeito com o seu campo profissional. Aos poucos foi se reportando ao âmbito das lutas travadas por esse movimento na perspectiva da conquista de direitos e de efetivação de políticas públicas. Percebeu, então, que esse mesmo movimento social campesino, e feminino, também trabalhava com a perspectiva assumida pela sua profissão. Foi assim que pensou em estudar, reconhecer e dar visibilidade histórica para esse sujeito coletivo – o Movimento de Mulheres Camponesas, em sua atuação específica no Estado de Santa Catarina -, demonstrando, a partir das suas experiências de organização e lutas, como há muitos nexos não visíveis entre a cotidianidade, o modo de vida rural e as esferas da conquista de direitos e da efetivação de políticas públicas, os quais se configuram também como campo de atuação de sua profissão, o Serviço Social. Portanto, assumiu a presente investigação como estratégia para se aproximar do horizonte último em seu percurso enquanto pesquisadora do Serviço Social. E, mesmo considerando-a como estratégia investigativa para alcançar um objetivo investigativo mais amplo, cuidou de traçar um plano de viagem detalhado, 16 evidenciando sua justificativa, seu objetivo, seus fundamentos teóricos e metodológicos, os procedimentos e a metodologia que adotaria em sua investigação, entre outros procedimentos. Destarte, são essas reflexões que se passa a apresentar, para que depois se possa efetivamente levar aos possíveis leitores o convite para que sejam companheiros deste campo investigativo. A leitura sobre o ‘rural’, o ‘Movimento de Mulheres Camponesas’ e o ‘Serviço Social’: relação que fundamentou o início da investigação Por vários séculos, o modo de vida rural era a forma preponderante de se viver em sociedade, pois desde a origem da humanidade, a agricultura foi uma das primeiras atividades de produção do homem em torno da qual se constituiu um modo de organização social. Sim, é verdade que a vida urbana também tinha seu destaque, tendo marcado muitos cenários nos primórdios da história da humanidade, tais como da Grécia e da Roma Antiga. Entretanto, a organização política e econômica da sociedade, já na era cristã, foi baseada no feudalismo, cuja dinâmica da formação social era o mundo ‘rural’, já que os feudos ocupavam lugar de destaque na produção e organização da vida cotidiana. Passados séculos, depois de pequenas e lentas – porém significativas-, transformações, experimentou-se a crise do modo de vida e produção feudal, o qual aqui é contextualizado como ‘a primeira grande crise do modo de vida rural’. A desestruturação do mundo feudal inicia com o desenvolvimento industrial das manufaturas, o que significa a passagem do feudalismo para o capitalismo. A vida nas vilas e cidades intensifica-se ganhando centralidade. Aos poucos, além das atenções, também os sujeitos rurais começam a se deslocar para um espaço já, timidamente, urbano. Nesta dinâmica, deslocam-se inclusive os olhares, escutas e atenções da sociedade e o rural fica entregue ao idílico, ao bucólico, ao saudosismo. Como conseqüência, passa-se a aferir uma ambivalência desigual de sentidos entre os dois espaços. Àquele urbano e capitalista, associado ao desenvolvimento, à 17 modernidade, à racionalidade e ao cientificismo que possibilita a acumulação financeira em níveis impossíveis para o outro. Àquele rural pré-capitalista, associado à estagnação no tempo medieval, ao retorno e apego ao passado, ao atraso em relação ao mundo desenvolvido, à irracionalidade técnica e científica, ao atraso tecnológico e, portanto, à pobreza de espírito presente em seu modo de vida. Vários séculos se passaram e o rural adquiriu diversas roupagens, acompanhando no seu ritmo as transformações do capitalismo. Tomou novas dimensões, construiu outras identidades e, então, nas últimas décadas percebeu-se nas sociedades capitalistas ocidentais a emergência de um ‘novo mundo rural’, fruto entre outros fatores, da reestruturação produtiva da sociedade capitalista, que atingiu o campo e a cidade. Esta ‘nova ruralidade’ ou ‘ruralidades’, também decorrente da experiência conflitiva entre os valores do campo e àqueles produzidos pela cultura urbana de massa, adentra no imaginário e nas experiências de homens e mulheres que trabalham na agricultura de base familiar. Nesse contexto, embora transformados, continuam os padrões desiguais de gênero, os quais datam de longa existência. São eles que ocasionam, no exercício da vida cotidiana. dificuldades bem maiores para as mulheres do que para os homens. É neste contexto rural, que data do final do século XX, que na região do oeste catarinense - especificamente no município de Chapecó - se observou o surgimento de diversas organizações sociais, formadas por trabalhadores rurais, as quais participavam não somente do cenário sindical e político, mas também de grupos religiosos como as CEB’s e os Movimentos Sociais. Neste período, que foi de emergência de grupos com privilegiada consciência crítica da realidade, e questionadores da ordem capitalista burguesa vigente na sociedade e no Estado, também se verifica o surgimento de movimentos sociais com forte identidade e, por conseguinte, marcados por lutas camponesas. Especificamente em meados de 1983, nota-se o aparecimento de um movimento social campesino - feminista e autônomo -, constituído apenas por mulheres trabalhadoras da agricultura, o qual foi denominado inicialmente como Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA. 18 No horizonte maior deste movimento, assim como em outros movimentos sociais do campo, surgidos no mesmo período1, encontra-se a luta pela transformação societária, a qual perpassa pela mudança do modo de produção capitalista para o socialista, a partir da perspectiva marxista. Este ideal gera um tipo de ‘mística’ própria2, e passa a se configurar como o horizonte utópico que motivará todas as lutas e conquistas diárias, necessárias para que se alcance uma situação que possibilite uma transformação revolucionária. Ainda durante os anos 80’, mesmo diante das dificuldades – as quais pareciam impulsionar as participantes – o MMA foi crescendo e tomando vulto regional, estadual e, logo, nacional, difundindo reflexões e propostas acerca do cotidiano das mulheres no campo, seus direitos e demandas. Foi esta experiência construída pelas mulheres agricultoras do oeste catarinense que contribuiu para o surgimento de inúmeros grupos de mulheres do campo em todo Brasil, que aos poucos foram se vinculando ao Movimento e, nele, fortalecendo discussões, lutas e pautas de reivindicações. Desde o princípio do Movimento, suas atividades direcionavam-se para dar visibilidade à realidade camponesa, à situação das mulheres no campo e, por conseguinte, visibilidade às lutas contra as desigualdades de gênero e a favor de políticas públicas voltadas para o atendimento de suas necessidades. Suas pautas reivindicatórias sempre tiveram como princípio orientador lutar contra o capitalismo financeiro neoliberal, contra o latifúndio rural, contra os crimes ambientais e a favor da reforma agrária e das políticas sociais para o campo, observado o enfoque de gênero. A partir do ano de 2005, baseado nas discussões de suas Assembléias Regionais, Estaduais e Nacional, o MMA delibera a mudança de seu nome e passa 1 Aqui se faz referência ao Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST - que tem seu embrião no sul do Brasil, ainda no final da década de 70’ e início de 80’. 2 Faz-se novamente menção ao MST e à configuração de sua ‘mística’. Esta se refere a um tipo de espiritualidade, não necessariamente ligada à Igreja Católica, mas com fortes traços da ‘Teologia da Libertação’. A partir dela se celebra a luta dos camponeses e camponesas no horizonte da conquista da terra, valorizando a vida cotidiana em todas as suas dimensões: de produção, política, socialcoletiva, cultural. Nela tem lugar especial a relação com a natureza, especialmente com a terra: falase em terra para produzir alimentos e relações, terra para educar e para socializar riquezas, terra para as gerações presentes e também para as futuras. É através desta mística própria, que se procura fortalecer o movimento em suas lutas atuais, ao reviver a história do movimento e, nela a memória de companheiros mortos em lutas passadas. 19 a se definir como ‘Movimento de Mulheres Camponesas’ – MMC. Esta mudança, aparentemente só na nomenclatura, na verdade foi uma mudança de cunho político, que trouxe significativas transformações na identidade desse movimento social, ressaltando seu perfil de movimento camponês feminino, com uma ligação bastante forte com a terra e com o trabalho nela desenvolvido, cuja finalidade é produzir a subsistência familiar, o que significa afastar-se do modo de produção capitalista e aproximar-se do horizonte de transformação socialista. A abrangência dessas mudanças expressa a necessidade de um olhar voltado para a realidade atual do campo. Esse olhar deve permitir reconhecer as demandas postas na cotidianidade dos sujeitos homens e mulheres ali vivendo, e, a partir dessas demandas, as possibilidades de respostas efetivas e eficazes na vida desses sujeitos camponeses – homens e mulheres -, bem como de suas famílias e comunidades rurais. É neste campo, também, que se entende configurar um dos lugares de atuação do Assistente Social. Entretanto, o Serviço Social, enquanto uma profissão que surgiu a partir do desenvolvimento do capitalismo, bem como da expansão industrial e urbana, parece que ainda não se sentiu inquirida a dedicar olhares, saberes e fazeres para o meio rural. Desde sua gênese, até os dias atuais, sua ação foi minimamente voltada ao campo, embora existam experiências significativas, estabelecidas principalmente durante o período que a profissão trabalhou a partir da perspectiva do ‘desenvolvimento de comunidade’, atuando com grupos de agricultoras e agricultores nas comunidades rurais. Não obstante tenham existido, estas experiências se configuram enquanto práticas que – possivelmente – marcaram apenas um dentre os diversos períodos profissionais da categoria. De modo semelhante, verifica-se uma tímida atuação no que diz respeito ao acompanhamento dos diversos movimentos de mulheres, ligados ao campo, e ao levantamento da dinâmica das necessidades e demandas que podem culminar na efetivação de políticas públicas voltadas para a classe trabalhadora do campo. Por conseguinte, olhando para a luta por direitos, travada pelo Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC - nestes últimos anos no Brasil, levantase a hipótese de que as principais conquistas sociais, civis e políticas voltadas para 20 a classe trabalhadora camponesa e, mais especificamente para as mulheres, tiveram forte interferência da mobilização e atuação deste movimento social feminino, camponês e autônomo. Diante do quadro levantado, torna-se imprescindível verificar a contribuição do MMC, organizado e atuante em Terras Catarinas, no que tange às conquistas camponesas frente às políticas de governo e de Estado nas últimas décadas, de forma a valorizá-las. A partir disto, será possível pensar no modo pelo qual a profissão pode atuar no espaço rural, de forma a colaborar para a alteração das relações de dominação/subalternidade no contexto das novas ruralidades e dos novos padrões de trabalho e de produção agrícola, sejam elas na dimensão capital/trabalho ou na dimensão das relações sociais de gênero. O percurso da investigação Logo de início, tinha-se nitidez em relação ao horizonte mais amplo do processo investigativo - desvendar o rural para a profissão e a profissão para os sujeitos rurais -, pois foi almejando se aproximar dele que se propôs uma investigação sobre o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC. Assim, a presente investigação foi entendida como um passo significativo na direção da concretude do horizonte mais amplo, a qual poderia ser efetivada ainda na etapa de estudos e pesquisas que envolvem os estudos de pós-graduação em nível de mestrado acadêmico, os quais foram realizados junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, no período de agosto de 2008 a dezembro de 2009. Para tanto, assumiu-se analisar o processo de luta do Movimento de Mulheres Camponesas no Estado de Santa Catarina, observando a dinâmica de sua organização social, sua articulação política e suas estratégias para efetivação de seus objetivos, logrando dar visibilidade a sua atuação na esfera da conquista e garantia dos direitos, bem como no âmbito da efetivação das Políticas Públicas – principalmente as sociais - para o campo. 21 Para cumprir tal propósito, foram definidos alguns objetivos específicos, que passaram a balizar o processo investigativo. São eles: Compreender como os estudos sobre o contexto rural adentram e perpassam pelas investigações e elaborações teóricas do Serviço Social, dedicando - para tanto - atenção especial para o campo da sociologia rural; Aprofundar a percepção sobre os Movimentos Sociais no contexto brasileiro, priorizando o olhar para os Movimentos Campesinos e neles para o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – MMC do Brasil; Apontar a trajetória histórica do Movimento de Mulheres Camponesas no Estado de Santa Catarina, dando especial atenção aos processos de construção de identidade, autonomia e protagonismo individual e coletivo das mulheres militantes; Levantar as pautas de lutas e as conquistas dos Movimentos de Mulheres Camponesas, especialmente no contexto catarinense, desde o período de seu surgimento até aquele que demarca sua atuação na atualidade; Identificar possíveis ações que o Serviço Social efetiva junto ao meio rural em cada país. É imprescindível apontar que para efetivar tais objetivos as orientações metodológicas que balizaram o desenvolvimento da investigação tiveram como marco teórico-metodológico a perspectiva crítica dialética, tendo sido adotada a abordagem de pesquisa qualitativa, através da qual se buscou fazer uma aproximação com o objeto – o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina - procurando compreender, de forma mais abrangente possível, as multideterminações da realidade camponesa, no contexto capitalista, na era do capital financeiro e numa conjuntura social, econômica, política e cultural resultante das orientações dos organismos internacionais que impõem aos Estados Nacionais as políticas neoliberais, sob o pretexto da globalização. Além disso, trabalhou-se com a pesquisa de tipo exploratório, por compreender que, primeiramente, era necessário explorar o tema, através do 22 acesso bibliográfico às várias áreas de conhecimento, às fontes documentais institucionais, bem como através da observação de campo com coleta de dados. Mesmo assim, procurou-se avançar – sutilmente – na descrição e explicação do objeto, embora se tenha considerado, desde o início até o final do processo de pesquisa, que muito mais deve ser feito nesses dois âmbitos da investigação. Já em relação aos principais aportes teóricos utilizados, há que se dizer que foram encontrados, entre outros, em Alvarez, Dagnino e Escobar (2000), Gohn (1995, 1997 e 2004), Heller (1989), Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008), Kroth (1999), Lukács (1997), Martinelli (2008), Martins (1985, 1986, 1988, 1989 e 2003), Marx e Engels (1984), Ribeiro (2005) e Scherer-Warren (1987, 1993), bem como nos próprios documentos, materiais institucionais e cartilhas formativas elaborados pelo Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil e de Santa Catarina. No que diz respeito à coleta de dados de campo, trabalhou-se com a realização de entrevistas orientadas por um roteiro pré-estabelecido3 - ou seja, semiestruturado - por entender que este procedimento permite conduzir a coleta dos dados e, ao mesmo tempo, não arriscar a dispersão de seus objetivos, possibilitando inclusive a participação direta dos sujeitos da investigação, priorizando a interação e o diálogo com os mesmos. Neste sentido, salienta-se ainda que a coleta de dados foi realizada tendo como público informante4 três mulheres camponesas militantes do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina, as quais ocupam no Movimento funções de dirigentes, tanto em nível local quanto regional, estadual, nacional e até mesmo internacional. Aqui se registra que em momento oportuno, no quarto capítulo, elas serão devidamente apresentadas, sugerindo-se que se guarde para conhecê-las. Dito isto, é importante salientar que depois de elaborada a base de conhecimento teórico-metodológico indispensável para os estudos em nível de mestrado – passo que se efetivou através dos cursos oferecidos pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP -, tornava-se imperioso refletir sobre as necessidades e demandas camponesas; as lutas e conquistas das mulheres camponesas organizadas no MMC/SC; e os direitos e as políticas públicas 3 Apêndice I: Roteiro de entrevista. 4 Apêndice II: Termo de livre consentimento de entrevista. 23 voltadas para o campo - sejam as últimas já efetivadas, em fase de implementação ou somente levantadas como demandas pelos sujeitos rurais. Isso se fez tendo como base fundamental para as análises ‘o olhar para as mulheres camponesas que participam do MMC/SC’, atentando para sua cotidianidade de vida, para a dinâmica de organização e articulação das lutas e para os processos de construção de identidade, autonomia e protagonismo social que acontecem na esfera individual de vida das militantes e na esfera coletiva da dinâmica própria desse movimento social camponês feminino. Como plano para o percurso de reflexão, apontaram-se alguns itens que necessitavam maior aprofundamento, os quais passaram a compor o quadro investigativo. Primeiro, notou-se que era necessário adentrar no universo que compõe o ‘espaço rural’. Esta tarefa foi abraçada tomando-se, como referências básicas, as produções clássicas e contemporâneas da sociologia rural. Na seqüência, tornava-se imperioso adentrar no campo dos Movimentos Sociais, especialmente naqueles que se desenvolveram no contexto brasileiro, tendo um olhar ainda mais especial para os Movimentos Sociais Camponeses. Avançados estes dois itens, a demanda agora se direcionava no sentido de aprofundar questões que se identificava enquanto componentes da dinâmica, tanto do modo de vida camponês - de forma geral -, como da vida das mulheres camponesas militantes do MMC/SC e da dinâmica do próprio Movimento. Para tanto, se aprofundaram os estudos sobre a cotidianidade rural, o processo de construção da consciência crítica, da identidade, da autonomia e do protagonismo social. Superadas as três primeiras etapas, passou-se para o âmbito da investigação reservado para o aprendizado com os próprios sujeitos da pesquisa: as mulheres camponesas militantes do Movimento de Mulheres Camponesas no Estado de Santa Catarina. A partir desta etapa investigativa foi possível estabelecer um debate significativo, que, embora desafiante, foi muito profícuo, permitindo um novo saber acerca da dinâmica social, política, econômica e cultural que compõem o contexto e o modo de vida rural. As elaborações resultantes dessa quarta etapa investigativa passam a fazer parte de uma nova base de conhecimento sobre o ‘universo campesino’ e 24 especialmente sobre os cenários das mulheres camponesas e de suas lutas sociais e políticas. Estima-se que essa nova base de conhecimento possa oferecer alguns dos subsídios necessários para futuras discussões, as quais continuarão a ter como horizonte investigativo mais amplo a relação entre o contexto rural e o Serviço Social! Sobre os quatro capítulos que se seguem No primeiro capítulo deste trabalho, que leva como título “O espaço rural e o Serviço Social: desvendando a matriz teórica a partir da Sociologia Rural”, apresenta-se o estudo dos aportes teóricos, já entremeados por análises da investigadora os quais possibilitam adentrar no universo camponês, principalmente através de seu modo de vida. O capítulo é subdividido em duas partes: na primeira, abordam-se os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’, o ‘pensamento conservador’ e as relações com o Serviço Social, as discussões sociológicas sobre o ‘rural’, aportadas principalmente no dualismo e na crítica sociológica e, por fim, o pensamento conservador em Nisbet e Mannheim. Na segunda, procura-se acompanhar o processo através do qual, sutilmente, se vai modificando o olhar para o rural, discutindo-se sobre a comunidade rural e sua identificação segundo as incidências do conservadorismo e do tradicionalismo - numa leitura de Lefebvre. Logo em seguida, apresenta-se o levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre que é o rural, para, enfim, debater sobre os apontamentos acerca do ‘rural’ e do ‘sujeito rural’ no pensamento social contemporâneo. No segundo capítulo, cujo título apresenta de forma objetiva o tema de que trata “Os Movimentos Sociais”, organiza-se uma longa e profunda discussão subdividida em três blocos de estudo. O primeiro, trata da trajetória histórica, dos paradigmas teóricos e da conceituação acerca dos Movimentos Sociais, desenvolvendo um olhar desde a entrada no cenário público, o seu surgimento no campo teórico, até os principais conceitos debatidos na atualidade. O segundo bloco trabalha na perspectiva da elaboração de um retrato brasileiro, catarinense e campesino sobre os movimentos sociais, conferindo especial atenção à trajetória no 25 âmbito brasileiro, bem como a colaboração que tiveram os movimentos camponeses na construção da história em terras catarinenses. Já no terceiro bloco, para além das discussões conceituais, debate-se a abordagem dos movimentos sociais sob o ponto de vista de sua interação dialética na sociedade, abordando a questão da criação de novas relações sociais, dentre as quais se configuram a participação e democratização como estratégias políticas adotadas pelos movimentos sociais. Também debate-se sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das mulheres’ nos movimentos sociais, como possibilidade de construção de novas relações sociais de gênero, sobre os movimentos sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura de participação política e, finalmente sobre os movimentos sociais enquanto formuladores de política e construtores de cultura. No terceiro capítulo, aprofunda-se a questão dos processos de identificação, considerando que eles partem especialmente da cotidianidade de vida dos indivíduos sociais. Logo, nesse capítulo que tem por título “O Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – Da cotidianidade à construção de identidades”, aborda-se teoricamente as inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e na construção da identidade das mulheres camponesas, a matriz identitária do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, para, enfim, avançar o olhar para ‘as identidades’ presentes no referido Movimento. Por fim, no quarto e último capítulo, apresenta-se a discussão de cinco blocos temáticos. Ressalta-se que, fundamentalmente nesse quarto capítulo, as bases principais para a análise foram emprestadas do diálogo estabelecido com as três mulheres trabalhadoras, camponesas e militantes do MMC/SC, que se configuraram como sujeitos desta investigação e, gentilmente, disponibilizaram-se a compartilhar seus saberes com esta pesquisadora. Neles são realizadas análises, as quais fazem, num primeiro momento, uma reflexão sobre ‘a expressão do campo na atual fase da sociedade capitalista’, para em seguida discutir ‘os movimentos sociais camponeses no Brasil’. Posteriormente, adentra-se no debate sobre ‘o Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina’, apontando e re-significando sua trajetória histórica, sua identidade e suas lutas sociais. No quarto bloco, se faz uma reflexão sobre ‘os direitos sociais e as políticas públicas para o campo’, destacados a partir das conquistas do Movimento, além de apontar as atuais demandas e 26 reivindicações desse Movimento. É essa análise que conduz para o quinto bloco, fornecendo as bases necessárias para debater sobre ‘a relação entre Serviço Social e meio rural’, o que permite avançar na caminhada de aproximação ao horizonte investigativo mais amplo tomado por essa investigadora. Depois desta longa trajetória investigativa, ainda cabem algumas considerações, que ao mesmo tempo apontam para a finalização da etapa de pesquisa que pode ser desenvolvida no âmbito dos estudos de mestrado, mas também acenam para novas demandas de investigação no campo dos estudos e da atuação do Serviço Social no espaço rural. Portanto, sem mais delongas, eis que se parte para a investigação. 27 CAPÍTULO I O ESPAÇO RURAL E O SERVIÇO SOCIAL: DESVENDANDO A MATRIZ TEÓRICA A PARTIR DA SOCIOLOGIA RURAL O fato de que as grandes lutas sociais deste século, em diferentes regiões do mundo, tenham sido e continuem sendo lutas camponesas não é fruto do acaso. Nem é fruto de uma resistência camponesa arcaica, em nome de um idílico passado pré-capitalista. É fruto de obstinada e demorada contestação da forma assumida pela presença do capital na vida das populações rurais, combinada com uma intensificação, sem limites, da extração de excedentes econômicos, que nega e denuncia a igualdade formal e aparente na troca mercantil. José de Souza Martins Do livro ‘Caminhando no chão da noite’, 1989. p.156. 28 Preparando a reflexão – À guisa de introdução do capítulo Neste primeiro capítulo propõe-se fazer algumas reflexões sobre o estilo do pensamento conservador, o qual por longos anos auxiliou a decifrar o mundo rural, campo em que se insere o objeto de pesquisa desta dissertação de mestrado. O objetivo, a partir desta abordagem, é perceber como o mundo rural adentra nos estudos e reflexões das ciências sociais, haja vista que muitas concepções ainda permanecem como referência na atualidade. Isto feito, durante o próprio estudo será possível perceber se tais aportes incidem nas reflexões acerca das relações entre o Serviço Social e o contexto rural, tendo como mediação fundamental as políticas sociais para o campo. Os fundamentos para cumprir essa tarefa foram encontrados nos estudos de sociologia rural, tendo como principal referência os realizados por José de Souza Martins (1973, 1978, 1983, 1986 e 2003). Além destes, figuram os estudos de Robert Nisbet (1970), Karl Mannheim (1963), Henri Lefebvre (1970), Aldo Solari (1971), Valmir Luiz Stropasolas (2006), José Graziano da Silva (2003), Milton Santos (2008), Mailiz Garibotti Lusa (2008), Marilda Iamamoto (2000) e Gustavo Parra (1999). Parte dessa bibliografia foi estudada e discutida nas aulas do curso de Fundamentos Teóricos Metodológicos do Serviço Social I e II, oferecido pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP e ministrado pela Professora Dra. Maria Carmelita Yazbek. A importância do estudo proposto nesse capítulo reside no fato de que o Serviço Social, enquanto campo de produção de conhecimento, abarca timidamente as reflexões sobre o mundo rural e, de forma semelhante, também volta timidamente sua ação profissional para este meio. Neste sentido, indicam-se dois pressupostos: o primeiro, sugere que a inexistência de reflexões teóricas colaboraria para a baixa incidência da atuação profissional neste campo. O outro faz exatamente o percurso contrário: o fato da profissão dificilmente dedicar seu olhar e prática para este meio faria com que não houvesse necessidade de produzir reflexões teóricas acerca deste campo. Os dois pressupostos estão diretamente imbricados, permitindo indagar sobre os motivos pelos quais o Serviço Social discute infimamente as políticas 29 públicas – especialmente as sociais - voltadas para a área rural. Por que não são colocadas, no centro das discussões profissionais, as demandas dos cidadãos que vivem no meio rural? Por que, ao voltar o olhar para os movimentos sociais do campo, dedica-se atenção apenas para o movimento de maior repercussão nos meios de comunicação, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST, deixando-se de lado outros movimentos como o Movimento das Mulheres Camponesas - MMC? Por que discutir o objeto da intervenção profissional, a Questão Social em suas múltiplas expressões, somente a partir do contexto urbano? Poder-se-ia desconectar a ocorrência das múltiplas expressões da Questão Social no contexto urbano, da idéia de que o meio rural foi e ainda continua a ser o espaço original dos sujeitos ora urbanizados, além de ser o espaço onde, também, incidem os reflexos perversos do capitalismo e da urbanização, uma vez que o rural faz parte desta mesma sociedade, a de um capitalismo financeiro à beira de um colapso? Diante disso e também do fato de que o propósito desta investigação é debater sobre o Movimento de Mulheres Camponesas e a incidência de suas lutas no campo dos direitos sociais e das políticas públicas voltadas para as mulheres e para as famílias camponesas, visualiza-se como necessidade para o percurso teórico da pesquisa, refletir sobre os estudos que, embora não sejam próprios do Serviço Social, adentram sutilmente no modo pelo qual este discute questões correlatas ao meio rural. Estudos que se encontram no campo da sociologia rural e que perpassam necessariamente pelo estilo de pensamento conservador, que introduziu ‘o rural’ no campo das ciências sociais. Ao dizer isto, é necessário reafirmar que o ‘olhar sobre o pensamento conservador’, objetivado neste capítulo, terá como perspectiva de análise o referencial crítico fundamentado no método marxista, ou seja, no materialismo histórico dialético. Além disto, é importante destacar que, para tratar do ‘pensamento conservador’, discutir-se-á dois estilos de pensamento abordados pelos autores já mencionados: o tradicionalismo - mais enfocado por Nisbet - e o romantismo/racionalismo - por Mannheim. Neste sentido, embora se faça um percurso de passagem por estas duas abordagens, que são consideradas por Martins (1983) como estilos de pensamento, privilegia-se o olhar para o 30 conservadorismo enquanto corrente de pensamento em si mesmo e a partir dele para a compreensão sobre o rural, o qual se configura como objeto deste capítulo. Enfim, as reflexões serão apresentadas em duas seções. A primeira trará a discussão sobre ‘o rural e o conservadorismo’, a qual será desenvolvida nos itens em que se apresenta uma breve consideração sobre ‘O Pensamento Conservador e o Serviço Social’; na seqüência esboça-se a reflexão sobre ‘As discussões sociológicas sobre o rural - O dualismo e a crítica’, para então discutir acerca de ‘O pensamento conservador em Nisbet e Mannheim’. Na segunda seção deste capítulo, discutir-se-á ‘o rural’ a partir de matrizes que se distanciam do tradicional conservadorismo e se aproximam, sutilmente, dos atuais estudos da sociologia rural. Tal discussão está presente nos itens: ‘A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre’; ‘O levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre que é o rural’; e já com significativo embasamento teórico, passa-se a fazer ‘Apontamentos sobre o rural e sobre o sujeito rural no pensamento social contemporâneo’. Eis o desafio! 31 PRIMEIRA SEÇÃO Desvendando os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’ 1.1.1. O Pensamento Conservador e o Serviço Social Não há novidades em discutir o conservadorismo enquanto perspectiva, estilo, ideologia ou pensamento social - dentre outras designações que lhe são atribuídas - dado que isto já foi feito por muitos pensadores e estudiosos, tanto das ciências sociais quanto de outras áreas, tais como o Serviço Social. E por falar deste último, as várias discussões acontecidas perpassaram pela história da profissão e muito contribuíram para sua configuração nos vários momentos e contextos históricos, oferecendo-lhe hoje muitos traços quase imperceptíveis, mas que deixaram marcas que fazem parte da sua identidade profissional. Embora os primeiros grupos, escolas e pensadoras do Serviço Social não considerassem ‘conservador’ o Pensamento Social da Igreja, e nem mesmo o pensamento Funcionalista e o Positivista, no decorrer da trajetória histórica, reconheceu-se que durante os primeiros tempos da profissão, ensinou-se sutilmente o conservadorismo como matriz de pensamento e ação. O que ocorre é que, para aquele cenário, tanto da sociedade capitalista brasileira quanto das ciências sociais e humanas, o pensamento social da Igreja e o Positivismo e Funcionalismo se configuravam como vanguardas teóricas, as quais propiciavam um fazer social e político ‘progressista’ para o contexto histórico que ainda se apresentava, mesmo nas primeiras escolas de Serviço Social, quando a profissão ainda estava sendo gestada e o assunto era quais bases teóricas dariam sua fundamentação. Vivia-se um período de buscas incessantes pelas melhores matrizes para alicerçar a profissão: belga, norte-americana e outras tantas. Já nelas, mesmo que indiretamente, discutia-se o conservadorismo. Ensinava-se, aprendiase, debatia-se e, por fim, agia-se segundo esta mesma orientação. Discutia-se o conservadorismo quando se começou a indagar sobre outras concepções que possibilitassem outros olhares para a realidade, para os 32 sujeitos e para a própria profissão e até no próprio momento de ruptura com esta corrente! E mesmo depois disto, continuou-se discutindo o conservadorismo como forma de balizar as discussões, contrapondo constantemente à nova base de fundamentação teórica, sendo este um dos modos de descobrir, através destes mesmos contrapontos, em que a nova corrente transformava o olhar e o agir, que naquele momento mostravam-se muito mais politizados. E, mesmo hoje, continua-se discutindo o conservadorismo, ora para apreender o processo histórico de fundamentação teórico-metodológica da profissão, ora para desvendar os porquês das várias percepções de mundo e formas de agir que, mesmo fazendo parte de um passado recente, ainda deixam algumas marcas no agir profissional contemporâneo. Entretanto, não é exatamente sobre o ‘conservadorismo no Serviço Social’ que se procurará tratar. O objetivo deste capítulo é discutir o ‘conservadorismo’ enquanto matriz de pensamento social vinculada ao tradicionalismo e, a partir desta, desvendar os ‘respingos teóricos’ que permanecem na compreensão sobre o rural para o exercício da profissão de assistente social. Talvez resida aí a colaboração deste momento da investigação: a partir da discussão sobre conservadorismo e tradicionalismo, dar pistas para desvendar sobre como a profissão percebe o rural, ou seja, como se relaciona com o campo e o camponês, para posteriormente compreender como podem ser as relações da profissão com os movimentos sociais camponeses. Poder-se-ia perguntar: por que discutir o conservadorismo para chegar até o ‘rural’? E por que discutir o rural? Qual a importância de desvendar a percepção de rural presente no Serviço Social? Feitas as indagações, entende-se que as respostas viriam de imediato ao dizer que o caminho que a maioria dos estudiosos desta questão fez, especialmente aqueles que se dedicaram à sociologia rural, passou pelas discussões sobre as interferências da corrente teórica conservadora. Poderia se dizer, ainda que discutir o rural significa dispor-se a compreender um espaço da sociedade capitalista, que, mesmo fazendo parte do todo que a constitui, geralmente é colocado como um espaço periférico a ela. Logo, como um espaço que não demanda olhares, escutas, debates e, portanto, atendimento. 33 Enfim, para pensar a relação entre Serviço Social, contexto rural e pensamento conservador, tão importante quanto os pressupostos já levantados para a abordagem desta temática, é reafirmar aquilo que alguns estudiosos já disseram: a questão social5 não se manifesta somente nos centros e periferias urbanas, ela está presente e deixa marcas também no rural e; muitas vezes, origina-se neste rural, um espaço da sociedade capitalista, lugar de morada e de trabalho de muitos cidadãos. Portanto, lugar que também demanda o olhar do Serviço Social. 1.1.2 As discussões sociológicas sobre o ‘rural’ - O dualismo e a crítica José de Souza Martins, ao introduzir a crítica à sociologia rural, fala sobre a existência de um dualismo ou ambigüidade nos esquemas teóricos subjacentes à análise do mundo rural, afirmando que o que alguns consideram como ambigüidade, ele apenas vê como esquema dualista ou como ambigüidades de origem da sociologia. Segundo o autor (1986, p.11)“[...] a crítica à razão dualista vem de longe, num ritmo constante, e foi desde sempre vinculada à necessidade de produzir uma explicação totalizadora e histórica para os descompassos entre a cidade e o campo, na cidade e no campo”. 5 Tomada como objeto do Serviço Social, é trabalhada por vários autores sob perspectivas que ora se aproximam e ora se afastam. Neste momento não se adentrará neste âmbito da questão; no entanto, cumpre explicitar que a perspectiva adotada nesta investigação segue a direção de Iamamoto (2008), para quem a ‘Questão Social’ “ [...] é mais do que as expressões de pobreza, miséria e ‘exclusão’. Condensa a banalização do humano, que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do trabalho social - e dos sujeitos que o realizam - na era do capital fetiche. [...] Neste cenário, a ‘velha questão social’ metamorfoseia-se, assumindo novas roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o impulsionam. Fratura esta que vem se traduzindo na banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche do dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esferas da vida social. Violência que tem no aparato repressivo do Estado, capturado pelas fianças e colocado a serviço da propriedade e do poder dos que dominam o seu escudo de proteção e de disseminação. O alvo principal são aqueles que dispõem apenas de sua força de trabalho para sobreviver: além do segmento masculino adulto de trabalhadores urbanos e rurais, penalizam-se os velhos trabalhadores, as mulheres e as novas gerações de filhos da classe trabalhadora, jovens e crianças, em especial negros e mestiços. [...] A questão social expressa, portanto, desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização ” (IAMAMOTO, 2008, p.125;144;160. Grifos no original). 34 No que se refere ao dualismo, Martins (1986, p.13) o entende como sinônimo das ambiguidades presentes na sociologia. Afirma: “[...] as ambigüidades de origem da sociologia se expressam simultaneamente no conservadorismo e no cientificismo, ‘comportando-se’ na particularização da realidade e na particularização do conhecimento - como rural de um lado e sociologia rural de outro”. Esta idéia é desenvolvida, aos poucos, pelo autor, que demonstra a partir das reflexões de três sociólogos, Mannheim, Nisbet e Lefebvre, como tal ambigüidade vai se fazendo presente também nos estudos sociológicos voltados para o rural, ora enfatizando um, ora enfatizando outro aspecto do pensamento. Sinteticamente, para Mannheim, a ‘ambigüidade sociológica’ consiste na relação entre as condições sociais e históricas e a definição da produção do conhecimento num dado momento. Ou seja, “[...] as intenções básicas configuram não só o modo de ser, mas também o modo de pensar [...]” (MANNHEIM, 1963, apud Martins, 1986, p.14), o que faz com que as teorias do pensamento se configurem como reflexos do modo de vida prevalecente na sociedade, no determinado período em que tal pensamento surge e se torna vigente. Este receberia também interferências do período anterior - considerado como tradicional que seriam como que ‘heranças’ deixadas pelo pensamento vigente até então. Segundo Martins [...] Mannheim consegue mostrar como uma ciência apoiada em pressupostos conservadores, como a sociologia de Tönnies, só se torna possível com base num estilo de pensamento que é, necessariamente, racionalista. A reflexão que dá corpo e estrutura ao conservadorismo é, na época do racionalismo, científica e, portanto, racional (MANNHEIM, 1963, apud Martins, 1986, p.15). Para Nisbet, haveria um “compromisso entre determinadas necessidades socialmente fundamentadas de produção do conhecimento e determinadas idéias já conceptualizadas (sic) e estruturadas num sistema de conhecimento politicamente fundado” (NISBET, 1970, apud Martins, 1986, p.13). Portanto, a ‘ambigüidade sociológica’ estaria na inter-relação entre o pensamento tradicional de uma época específica, fundado politicamente, segundo o modo de vida e os interesses dominantes na sociedade naquela época e o pensamento que começa a se desenvolver e firmar a partir de então. 35 Já para Lefebvre, “[...] a sociedade capitalista define e redefine categorias através das quais procura auto-interpretar-se e nas quais busca fundamentos para um programa político de ordenação social e de neutralização de tensões sociais” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.13). Assim, o pensamento vigente na sociedade teria sempre algo novo, mas também algo herdado do pensamento anterior (um misto entre novidade e reforma), o qual seria produzido pela própria sociedade a fim de suprir suas necessidades de auto-compreensão e organização social e política, naquele determinado período. Este dualismo expresso por Martins (1986) com base no pensamento dos três autores, que é também considerado por vários sociólogos como uma espécie de ambigüidade teórica, exerce uma interferência imediata na compreensão fragmentada entre o mundo e a realidade rural e a urbana, fazendo com que não somente exista uma separação entre eles, mas que eles se situem em pólos totalmente opostos de uma mesma sociedade, não possibilitando relacionar tais esferas como partes interligadas de uma mesma realidade e em um mesmo tempo histórico. Considerando a interferência das teorias sociológicas no modo pelo qual o Serviço Social apreende e interpreta o “rural”, especificamente das teorias sociológicas sobre o rural, sejam conservadoras ou tradicionais, percebe-se a relevância de que, neste capítulo, se trate primeiramente de tais teorias para depois discutir a forma pela qual o Serviço Social reflete e trabalha acerca do meio rural. Esta percepção possibilitaria não somente localizar o campo teórico da investigação proposta, mas também avançar para além dos desafios de tal reflexão, ampliando o espaço de debate e, com ele, as possibilidades de produções próprias do Serviço Social nesta área. Para isto, considerando novamente Martins (1986), afirma-se que é de fundamental importância conhecer a razão deste dualismo sociológico, para então poder avançar sobre os seus limites, o que para ele significa desenvolver o pensamento crítico. Segundo o autor A crítica nem é produto da suposta genialidade de alguns, nem se confunde com a recusa do conhecimento, com a simples objeção aos modelos de explicação definidos como insatisfatórios para a análise de certos aspectos da realidade. O procedimento crítico é aquele que incorpora, ultrapassando, determinado conhecimento (MARTINS, 1986, p.12). 36 É com base nesta mesma proposta que se pretende desenvolver aqui a reflexão. Ou melhor, será a partir da crítica à visão fragmentada da sociedade em seus vários espaços, e da tentativa de reconhecer os nexos entre rural e urbano, que se procurará aproximar os debates feitos no campo do Serviço Social acerca do ‘mundo rural’. Assim, partir-se-á da reflexão de Martins (1986) refletindo sobre a necessidade de um olhar crítico que avance na direção da superação de determinadas concepções e estilos de pensamento, o que implica um olhar político, isto é, um olhar que possibilite visualizar as razões e determinações históricas que levaram ao desenvolvimento de alguns pensamentos, que se tornaram hegemônicos na sociedade capitalista. Partindo deste pressuposto, é possível compreender que “a própria noção de rural seria elaborada a partir de determinadas condições e circunstâncias sociais, [...] sendo que a premissa [para a reflexão] é a de que o rural é parte de uma forma de construção social da realidade, ainda que no âmbito do chamado conhecimento sociológico” (MARTINS, 1986, p.12-13). Portanto, Martins (1986), ao ter elegido como seu objeto de reflexão a sociologia rural, a partir de um pensamento crítico e de um olhar político, oferece os fundamentos necessários para que se possam discutir os elementos do pensamento conservador que deixaram marcas na compreensão do ‘rural’, não somente por parte do Serviço Social, mas de várias outras áreas do conhecimento. Porém, antes de finalizar esta reflexão, deseja-se introduzir uma pergunta que tem sido colocada de forma recorrente no campo dos estudos sobre o meio rural e que, portanto, toca também essa investigação. ‘Estar-se-ia vivendo um momento em que está acontecendo o ‘fim do rural e dos camponeses’? Esta pergunta tem espreitado a sociologia rural há vários anos, indagando inclusive sobre suas bases de estudo. No entanto, por mais que se desenvolvam debates e investigações acerca desta indagação, ela parece sempre recente. Vejase o que já dizia Jacques Guigou: Há praticamente dez anos se proclamou “o fim dos camponeses”; devemos constar, hoje, “o fim dos rurais”? E se se (sic) tratasse, mais precisamente, do fim da ideologia que tende a identificar “os rurais” como uma categoria social particular, arbitrariamente separada do resto da sociedade? O campo não seria afetado pelas leis da transformação sócio-política e institucional 37 que atingem o conjunto de uma formação social? (GUIGOU, 1971, apud Martins, 1986, p.136) Nas indagações do autor, fica explícito o questionamento à própria sociologia rural, às suas intenções e, nisto, por conseqüência, torna-se objetiva a pergunta sobre quais são as suas demandas e quem são os reais autores delas. Mesmo na sociologia rural tais indagações ainda permanecem na contemporaneidade. Reconhecendo-se as transformações pelas quais passou e continua passando o meio rural, neste período de acirramento do capitalismo financeiro, parece ser oportuno se colocar a questão: como deve ser a ação profissional desenvolvida no meio rural, seja ela de qualquer área profissional e o saber voltado para este campo? Por outro lado, há que se registrar que a sociologia rural em sua perspectiva crítica avançou nesta questão, apresentando hoje significativas reflexões, as quais oferecem indicativos interessantes também para o Serviço Social sobre o que é o rural e quais suas demandas. Acima de tudo, o que se coloca atualmente é o reconhecimento da identidade rural sem, no entanto, fragmentá-la como se fosse uma realidade à parte da sociedade, tal como se fazia ao pensar ‘numa integração social do campo à cidade’. Destarte, serão apresentadas, a seguir, as reflexões mais recentes sobre o espaço rural. Entretanto, antes de se fazer tais reflexões, é necessário buscar, no pensamento conservador, as origens de como este rural era percebido e tratado pela sociologia rural, em seus primórdios. 1.1.3 O pensamento conservador em Nisbet e Mannheim Primeiramente, é interessante registrar que a reflexão que se propõe apresentar aqui não é nem tão simples e nem tão objetiva como se esperaria. Pelo contrário, tanto o pensamento de Nisbet quanto de Mannheim, acerca do conservadorismo e, por conseqüência, do tradicionalismo, do racionalismo burguês e do pensamento progressista, foram elaborados segundo uma lógica sociológica que perpassa vários outros contornos não apropriados pelo Serviço Social e que, 38 portanto, não se tornam tão objetivos nos estudos desta última área do conhecimento. Mesmo reconhecendo que tal dificuldade está posta, arrisca-se em desenvolver esta reflexão, com a intenção de colaborar para desvendar um pouco mais os traços do pensamento conservador com base, essencialmente, nestes dois pensadores e, a partir deles, a incidência no modo pelo qual se compreende o espaço rural. Antes disso, opta-se, enquanto percurso metodológico, por apresentar três considerações acerca dos principais conceitos que serão abordados neste item, a partir do que indica o Dicionário Básico de Filosofia. Conforme Japiassú e Marcondes, “conservadorismo é a doutrina ou atitude justificando a manutenção de um regime político ou social existente, de uma civilização ou cultura e opondo-se a toda mudança nas instituições, na moral, na religião, nos usos e costumes” (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p.55). Já , por tradicionalismo, compreende-se a atitude conservadora de apego à tradição, à doutrina ou aos costumes e idéias que são aceitas pela sociedade, grupo social, ou escola de pensamento, resistindo às críticas e inovações (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p.270). E, finalmente, por racionalismo entende-se A doutrina que privilegia a razão dentre todas as faculdades humanas, considerando-a como fundamento de todo conhecimento possível. O racionalismo considera que o real é em última análise racional e que a razão é, portanto, capaz de conhecer o real e de chegar à verdade sobre a natureza das coisas. O racionalismo designa doutrinas bastante variadas suscetíveis de submeter à razão todas as formas de conhecimento (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p.233). Definidos estes conceitos, parte-se para a discussão acerca dos estudos de Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.43), o qual inicia refletindo sobre o que ele denomina como ‘idéias-unidade’, as quais constituem a chave de um sistema ou escola de pensamento, e não apenas a biografia deste ou daquele pensador. Para ele, estas idéias seriam os elementos dos sistemas, que permitiriam identificar “[...] sistemas tão complexos e diferentes entre si, como o idealismo platônico, a escolástica medieval, o racionalismo secular e o romantismo”. Além disto, ele parte do pressuposto de que “vemos não só os elementos constitutivos, as idéias- 39 unidades, mas também os novos agrupamentos de homens e idéias, percebendo afinidades e oposições que poderíamos não imaginar que existissem“. Desta forma, Nisbet prepara seu campo de reflexão para apresentar, em seguida, as idéias e temas do pensamento do século XIX, juntamente com seus pares antinômicos, dentre os quais se encontram aquelas que ele identifica como as idéias-unidades essenciais da sociologia daquele período: a “[...] comunidadesociedade, autoridade-poder, status-classe, sagrado-secular e alienação-progresso .(NISBET, 1973, apud Martins, 1986, p.43). A partir delas, o autor passa a debater sobre as idéias do racionalismo individualista dos séculos XVII e XVIII e sobre a reação do tradicionalismo contra a razão analítica, que pôde ser notada nos vários campos do saber, desde a literatura, a filosofia, a teologia, a jurisprudência, a historiografia, até a sociologia. Mas, para que esse movimento das escolas ou sistemas de pensamento possa ser compreendido e apreendido por quem dele se interessar, Nisbet (1973, apud Martins, 1983, p.48) alerta para um cuidado que se deve ter. Segundo ele, A falácia sobre a origem das idéias transformou freqüentemente a história do pensamento em seqüências abstratas de idéias geradas uma após outra. No pensamento político e social, em particular, é preciso ver constantemente as idéias de cada época como respostas às crises e aos desafios conseqüentes das grandes mudanças de ordem social. Dito isto, e antes de tratar diretamente sobre o conservadorismo, este pensador vai identificar três ideologias, que para ele estão em questão, dado que se configuram como sistemas de pensamento praticamente contemporâneos: o liberalismo, o radicalismo e o conservadorismo. A primeira das três grandes ideologias do século XIX é o liberalismo. Conforme Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.49), “o que distingue o liberalismo é a devoção ao indivíduo, em especial aos seus direitos políticos, civis, crescentemente, sociais”. Ele ainda complementa ao dizer que “aquilo que a tradição representa para o conservador e o uso do poder para o radical, a autonomia individual representa para o liberal”. Em relação à segunda das três ideologias, Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.50) afirma que Encontra-se no radicalismo - que freqüentemente deriva do liberalismo e alia-se a ele - uma mentalidade muito diferente. [...] O elemento que o distingue, ao meu ver, é o senso das possibilidades redentoras contidas no 40 poder político. [...] o que tivemos no radicalismo do século XIX, uma linha absolutamente secular, foi um milenarismo revolucionário nascido da fé no poder absoluto; não o poder em si mesmo, mas em nome da libertação racionalista e humanitária do homem das tiranias e desigualdades. Ao se referir ao conservadorismo - principal objeto de estudo deste item Nisbet já inicia sua reflexão dizendo que esta é a corrente, que dentre as três, é a menos analisada, mas que, no entanto, deveria acontecer o contrário, pois justamente nela o autor encontra estreita singularidade com as idéias-unidade da sociologia. Para Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.51), “o conservadorismo moderno é, pelo menos em sua forma filosófica, produto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Produto não-intencional, involuntário, e odiado pelos protagonistas de ambas as revoluções, mas, não obstante, seu produto”. E ele continua, afirmando: [...] O ethos do conservadorismo é a tradição, essencialmente a tradição medieval. De sua defesa da tradição social surgiu a ênfase em valores tais como comunidade, parentesco, hierarquia, autoridade e religião, e também a sua premonição de um caos social, coroado pelo poder absoluto, se os indivíduos fossem arrancados dos contextos desses valores, pelas forças do liberalismo e do radicalismo. Como demonstra Nisbet (1973, apud Martins, 1986), há um claro retorno das idéias difundidas e defendidas na Idade Média, porém isto ocorre sem que os pensadores, ditos modernistas, percebam o fato. Segundo ele, “[...] cada vez mais, a sociedade medieval fornecia um modelo comparativo ao modernismo, para a crítica deste último” (p.55). Neste sentido, percebe-se que a clara intenção de Nisbet é demonstrar que haveria em cada indivíduo uma espécie de conservadorismo intrínseco as suas concepções, que não deixa rastros visíveis, mas que os liga ao passado e às idéias deste passado, agora, em colisão com a modernidade. De acordo com Nisbet, “há um conservadorismo de conceitos e símbolos e um conservadorismo de atitudes”. Isto fica expresso na afirmação a seguir, quando, ao analisar três expoentes do modernismo, dentre os quais Weber e Durkheim, diz que “[...] a partir da visão atual, é possível perceber nos escritos destes três homens, correntes profundas de conservadorismo, que se moviam em direção contrária a sua filiação política manifesta” (NISBET, 1973, apud Martins, 1986, p.43). 41 Já partindo para finalizar a discussão sobre a relação de aproximação sociologia e conservadorismo, Nisbet destaca dois pontos que devem ser enfatizados nesta relação, quais sejam: “a base moral da sociologia moderna” e “a estrutura intuitiva e artística de pensamento” (1973, apud Martins, 1986, p.58). Observa-se que o sentido da primeira já é bastante explícito, dispensando maior debate; porém, em relação à segunda, é importante refletir que Nisbet, ao perceber a existência deste elemento na relação sociologia/conservadorismo, acaba por colocar em questão uma das características mais afeitas desta ciência, que é a sua própria cientificidade, defendida, até então, como princípio da racionalidade. Além desses aspectos, importantes na consideração de Nisbet acerca do conservadorismo e sua relação com a sociologia, deseja-se apresentar aquilo que o autor denomina de “certas proposições gerais dos pensadores conservadores, a respeito da natureza e do homem, as quais divergem radicalmente daquelas visões que os racionalistas e individualistas haviam enfatizado” (NISBET, 1970, apud Martins, 1986, p.65). Somente então é que se partirá para discutir a influência de seu pensamento na sociologia rural. Fazendo um resumo das onze proposições defendidas pelo autor (NISBET, 1970, apud Martins, 1986, p.65-72), verifica-se que: A primeira, e mais abrangente proposição, diz respeito à natureza da sociedade, enquanto uma entidade orgânica, com leis internas de desenvolvimento e com relações pessoais e institucionais infinitamente sutis. Em segundo lugar, está a primazia da sociedade sobre o indivíduo: o homem existe apenas dentro da sociedade e para ela. A terceira é que a sociedade não pode ser desmembrada, mesmo para fins conceituais, em indivíduos; a unidade irredutível da sociedade é e deve ser em si mesma uma manifestação da sociedade, uma relação, alguma coisa que seja social. A quarta proposição refere-se ao princípio da interdependência do fenômeno social, havendo uma delicada inter-relação entre crença, hábito, associação e instituição. 42 A quinta, diz respeito ao princípio das necessidades, em que são primordiais, não os direitos naturais fictícios, mas as necessidades inalteráveis do homem, ou seja, suas vontades. A sexta é o princípio da função, em que toda pessoa, todo costume, toda instituição, serve a alguma necessidade básica da vida humana, ou contribui com alguns serviços indispensáveis para a existência de outras instituições e costumes. Em sétimo lugar, os conservadores deram ênfase aos pequenos grupos sociais como unidades irredutíveis da sociedade. Em oitavo lugar, os conservadores foram levados a reconhecer a realidade da desorganização social, causada pelas mudanças revolucionárias sobre as instituições tradicionais. Em nono lugar, os conservadores foram levados a insistir sobre o valor indispensável dos elementos sagrados, irracionais e nãoutilitários da existência humana. Em décimo lugar, estava o princípio da hierarquia e do status, sem os quais não pode haver estabilidade. E, finalmente, os conservadores enfatizaram o princípio da legitimidade da autoridade, aquela que provém dos costumes e das tradições de um povo, quando é formada por inúmeros elos numa corrente que começa com a família, prossegue através da comunidade e da classe e culmina na sociedade mais ampla. Não é necessário discutir cada um destes princípios para chegar à conclusão de que realmente houve uma explícita inter-relação entre o pensamento conservador e os princípios da sociologia moderna. Entretanto, o que se deseja chamar a atenção é para a incidência do conservadorismo na sociologia rural e, principalmente, sua interferência em muitas das concepções acerca do que é o ‘rural’. Neste sentido, observa-se que de forma bastante intensa vários dos princípios propostos pelos conservadores, como modelo para a sociedade orgânica e funcional, foram transplantados para o reconhecimento das comunidades rurais. Levantam-se aqui duas hipóteses para a ocorrência de tal fato. 43 A primeira diz respeito ao fato de que as comunidades rurais sofreram, de forma pouco significativa, as transformações causadas pelas Revoluções Francesa e Industrial; logo, elas permaneceram por muito tempo como lugares onde todos os princípios defendidos pelos conservadores continuavam inalteráveis e, portanto, palpáveis na realidade, mesmo após as transformações revolucionárias. Já a segunda hipótese parece percorrer o caminho oposto da primeira. Refere-se ao fato de que o próprio espaço rural continha elementos de um tradicionalismo e moralismo fortes, coesos e impregnados na vida e na organização cotidianas. Impediam, ainda, que as transformações ocorressem, fazendo com que se permanecesse num estágio, considerado por muitos como que ‘parado no tempo’, fora da ordem capitalista e da modernidade, ou seja, um estágio précapitalista. Por conseguinte, não havia necessidade de teorizações que combatessem uma realidade desorganizada; pelo contrário, a partir da realidade rural era possível idealizar as novas transformações voltadas para o retorno do tradicional. No caso de Mannheim (1959, apud Martins, 1986), quer-se destacar que o percurso metodológico deste autor foi o de situar o conservadorismo alemão da primeira metade do século XIX, e a partir dele focalizar o ‘romantismo’, para então levantar a contra-argumentação em relação ao iluminismo. É importante perceber que, para Mannheim (1959, apud Martins, 1986, p.84), “[...] o romantismo é um fenômeno europeu que surgiu aproximadamente ao mesmo tempo em todos os países, como parte de uma reação às circunstâncias e problemas comuns característicos de um mundo capitalista racionalizado“. Conforme a reflexão de Mannheim, a Alemanha gestou as bases européias que fortaleceram o conservadorismo como contracorrente de pensamento ao iluminismo, processo este que só foi possível a partir do desenvolvimento silencioso, mas bastante enraizado, do romantismo alemão, que esteve presente nas mais diversas áreas do conhecimento, da literatura ao historicismo. Para Mannheim (1959, apud Martins, 1986, p. 95), O significado sociológico do romantismo está na sua função de oponente histórico das tendências intelectuais do Iluminismo. Em outras palavras, contra os representantes filosóficos do capitalismo burguês. [...] se apossou das esquecidas formas de pensamento, [...] trabalhou-as e desenvolveu-as conscientemente e, finalmente, as colocou contra o modo de pensamento 44 racionalista. [...] Assim, a “comunidade” é colocada contra a “sociedade”, [...] a família contra o contrato, a certeza intuitiva contra a razão, a experiência intelectual contra a experiência material. O romantismo, para Mannheim (1959, apud Martins, 1986), pode ser considerado como uma contracorrente do Iluminismo e do Capitalismo Racionalista, que foi muito forte pelo próprio enraizamento de suas idéias, que fizeram com que se reconstruísse ou revivesse a Idade Média em seus aspectos religiosos, irracionais e bucólicos; porém, permanecendo no plano da reflexão, ficando invisíveis por toda uma época, mas que uma vez trazidos à tona da vida social, tenderam a unir certas tendências anticapitalistas. Neste sentido, estavam interessados no romantismo “[...] a monarquia ilustrada e o empresariado objetivando os poderes feudais; e, os pequenos proprietários camponeses e o estrato da pequena burguesia que surgiu das antigas corporações de ofício” (MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.96). Percebe-se aí, a forte ligação do romantismo com alguns dos segmentos rurais, o que oferece novamente os indicativos de que o conservadorismo, também na perspectiva de Mannheim, teve influências na sociologia rural desde o seu surgimento até o seu desenvolvimento. Outro fator bastante significativo do estudo de Mannheim (1959, apud Martins, 1986) para esta investigação, é a diferenciação que ele faz entre conservadorismo e tradicionalismo. Sinteticamente, para o autor, Existem dois tipos de conservadorismo [...], há o tipo que é mais ou menos universal e há o tipo moderno. [...] O primeiro poderíamos chamar de “conservadorismo natural” e o segundo de “conservadorismo moderno”, [...] sendo que quando falamos de conservadorismo, queremos dizer conservadorismo moderno, algo essencialmente diferente do tradicionalismo (MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.102). Já em relação ao tradicionalismo, Mannheim afirma que, Tradicionalismo significa uma tendência a se apegar a padrões vegetativos, a velhas formas de vida que podemos considerar como razoavelmente onipresentes e universais. Esse tradicionalismo “instintivo” pode ser considerado como a reação original a tendências deliberadas de reforma. [...] Já a palavra “tradicionalista” designa, em grau maior ou menor, a característica psicológica formal de toda mente individual. A ação “conservadora”, no entanto, depende sempre de um conjunto concreto de circunstâncias (MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.102). Dada esta diferenciação, poder-se-ia fazer diretamente a relação com a ‘máxima’ que diz que ‘todo tradicionalismo é conservador, mas nem todo 45 conservadorismo é tradicional’. A partir dela, cabe outra indagação, que agora está diretamente ligada a um dos conceitos da sociologia ‘comunidades rurais’, muito utilizado no Serviço Social. Alguns pensadores da sociologia rural identificam as comunidades rurais, assim como outros tipos de comunidades - quilombolas, indígenas etc - como comunidades tradicionais. Seria possível situá-las, realmente, nesta categoria distinguida por Mannheim? Elas seriam naturalmente conservadoras de hábitos, costumes, valores morais e, portanto, de tradições? É neste ponto que se nota a incidência da perspectiva sociológica de Mannheim (1959, apud Martins, 1986) na sociologia rural: a caracterização do tradicionalismo e a influência da tendência tradicionalista saudosista no próprio conservadorismo (não obstante, compreenda-se a diferenciação entre eles). Além disto, detecta-se a grande contribuição deste pensador, ao relacionar o conservadorismo alemão com o romantismo europeu, o que torna bem mais objetiva a interação entre conservadorismo e sociologia rural, visto que o romantismo enquanto estilo de pensamento remete diretamente ao bucolismo rural e às tendências tradicionalistas de retorno à vida comunitária e familiar, entre as várias outras características já apresentadas pelo autor, as quais encontram nexo direto com a identificação do campo feita pela sociologia rural. Para oferecer um contraponto aos dois pensadores tomados como base de referência para expressar o pensamento conservador, apresenta-se também alguns indicativos de Lefebvre, para quem o conservadorismo fica expresso numa das tendências da sociologia de direita, que “[...] tende a justificar pelas descrições empiristas, certas teses morais, metafísicas e políticas, [as quais] opõem-se trabalhos históricos, tomando a realidade em seu movimento e tendências, e, portanto, objetivos, trabalhos influenciados pelo marxismo ou expressamente marxistas” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.148). Para este autor, mesmo considerando a raridade dos documentos e textos que tratam da vida camponesa, quando ela ainda era o modo de vida predominante na sociedade, são passíveis de identificação com a tradição conservadora - com incidências do romantismo - os escritos dos séculos XVII a XIX. Eles falam sobre a nova agricultura de tipo capitalista (mencionada pelos fisiocratas); sobre a nova revolução agrícola que acompanharia a revolução 46 industrial, sem, no entanto, acabar com o modo de vida tradicional do camponês; falam da vida patriarcal, cuja possibilidade de desaparecimento já causava uma espécie de nostalgia; e, por fim, sobre a importância política da burguesia rural e dos proprietários fundiários, cuja honra era expressa pelas “[...] virtudes e valores morais da estabilidade, da obediência e da resignação” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.147). São expressões desta forma de pensamento, pensadores como os franceses Bonnemière, Balzac e George Sand da primeira metade do século XIX e os expoentes da segunda metade do século XIX, que segundo Lefebvre (1970), ainda hoje possuem grande valor teórico, Léopold Delisle, Charles Ribe, Brutails, Bladé, Curie Leimbres e Celnac-Moucaut. Ainda ligado ao pensamento conservador, mais especificamente à corrente positivista - funcionalista, encontra-se com grande destaque a figura de Le Play, cujo principal livro intitula-se A organização da família, segundo o modelo eterno, provado pela observação das raças, o qual se contrapõe, nos estudos relativos ao problema camponês, com a obra de Engels A origem da família, da propriedade privada e do Estado (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986). Destarte, parece evidente que a sociologia rural e os estudos direcionados para a compreensão e intervenção do espaço rural, têm na sua origem a intercorrência do pensamento conservador. Um dos motivos desta forte aproximação ao pensamento conservador, diz respeito às próprias características do modo de vida camponês ainda predominante na sociedade ocidental, as quais colocam este espaço como um lugar próprio de relações voltadas para a conservação da organização e da ordem, consideradas tradicionais da vida no campo. É neste ponto que se encontra nexo direto com aquilo que Lefebvre (1970, apud Martins, 1986, p.146) tratou como ‘nostalgia’, ou como, “[...] saudade melancólica frente ao desaparecimento da vida patriarcal, que teve sua beleza e sua grandeza, apesar de suas limitações”. Buscando outro aporte para refletir o conservadorismo, encontrou-se em Parra (1999) a reflexão de que Las ideas conservadoras defendían uma concepción de sociedade entendida como uma entidade orgânica com leyes internas propias de 47 desarrolho [...]. Las instituiciones habían sido creadas por Dios y por lo tanto antecedían al hombre; se recupera el concepto de comunidade, família y pequeno grupo, como mínima expresión de la sociedade; existe um rescate de elementos irracionales (religiosidade, costumbre, tradición, etc) como constitutivo de la sociedade, em claro rechazo a la “racionalizassóm total del mundo” y de la vida “moderna” (PARRA, 1999, p.60). Ora, são confirmados pelo autor, os principais pressupostos que fundamentam o conservadorismo, destacando-se os aspectos da vivência comunitária e familiar e a irracionalidade como elemento constituinte da sociedade. Estes aspectos não são novidade, mas confirmações daquilo que outros autores já manifestaram. E, antes de finalizar este item, reporta-se a Iamamoto (2000), considerando que a mesma oferece reflexões importantes sobre o tema proposto, sendo uma delas a afirmação de que é Mannheim (1963) quem considera o conservadorismo moderno como um tradicionalismo tornado consciente. Segundo ela, a fonte de inspiração do pensamento conservador provém de um modo de vida do passado, que é resgatado e proposto como uma maneira de interpretar o presente e como conteúdo de um programa viável para a sociedade capitalista. Os conservadores seriam assim, “profetas do passado”6. Recorrendo a categorias típicas do racionalismo capitalista elabora-se a exaltação deliberada de formas de vida que já foram historicamente dominantes e que passam a ser consideradas válidas para a organização da sociedade atual (IAMAMOTO, 2000). E, relembrando Martins, Iamamoto diz que, Analisando a ambigüidade presente no pensamento conservador, sustentase que racionalismo e conservadorismo são duas maneiras de viver e de ver a sociedade, portanto dois pensamentos, integrados a um único estilo de pensamento, que exprime um modo de vida: o da sociedade capitalista (1978, apud Iamamoto, 2000, p.23). Neste sentido, a própria autora ressalta que “[...] o conservadorismo não é apenas a continuidade e persistência no tempo de um conjunto de idéias fruto da herança intelectual européia, mas de idéias que, reinterpretadas, transmutam-se em uma ótica de explicação e em projetos favoráveis à manutenção da ordem capitalista”, as quais, portanto, funcionaram e, freqüentemente continuam funcionando, como combustível do motor do capitalismo contra as transformações societárias e deste mesmo modo de produção (IAMAMOTO, 2000, p.23). 6 Expressão citada por Iamamoto (2000, p.22) em anuência a Robert Nisbet (1969; 1980). 48 Finalizando este item, reforça-se a idéia de que os estudos voltados para o rural, na sua origem e, em algumas situações, ainda hoje, tomaram e tomam emprestadas do pensamento conservador as bases para fundamentação de seu olhar sobre o modo de vida no campo, as relações sociais, políticas e culturais lá desenvolvidas e sobre os processos produtivos. Esta apreensão é importante para se compreender os direcionamentos oferecidos pela sociologia rural e por vários outros pesquisadores da área, para os desafios, necessidades e demandas apresentadas pelos sujeitos que ali atuam. SEGUNDA SEÇÃO Modificando o olhar para o rural 1.2.1 A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre Neste item da investigação, procurou-se indicar como era identificada a comunidade rural na primeira metade do século XX, na perspectiva do pensamento conservador, segundo os estudos de Henri Lefevbre, analisados no artigo ‘Problemas da Sociologia Rural’, o qual integra o quinto capítulo do livro organizado por José de Souza Martins, Introdução Crítica à Sociologia Rural,. Foi neste artigo que se encontrou a caracterização de comunidade rural e, por conseguinte, do modo de vida no campo, de forma mais objetiva dentre os vários textos de sociologia rural daquele período. As observações que configuram esta identidade permitem, ao mesmo tempo, caracterizar ‘o rural’ de meados do século XX, conhecer alguns traços da sociologia rural de cunho conservador e, inclusive, delinear um paralelo sobre as transformações que ocorreram nesta configuração identitária daquele momento até hoje. 49 Dito isto, passa-se a dar voz às palavras de Lefebvre, para quem uma primeira identificação é a de que: A comunidade rural ou comunidade de aldeia não é uma força produtiva, nem um modo de produção. Não é uma força produtiva, ainda que, evidentemente, esteja relacionada com o desenvolvimento das forças produtivas: com a organização do trabalho da terra nas condições técnicas (conjunto de instrumentos de trabalho) e sociais (divisão de trabalho e modalidades de cooperação) determinadas (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.151). No texto acima, Lefebvre aponta para um dos pontos mais polêmicos na discussão sobre o rural, mesmo na atualidade: qual modo de produção está vigente no mundo rural numa forma de organização social em que predomina o capitalismo (seja nos seus primórdios, seja no estágio atual de desenvolvimento)? Poderia no meio rural existir outro modo de produção, que não o mesmo modo vigente na sociedade dita urbana? Este é um dos pontos de divergência entre os estudiosos do rural, havendo inclusive aqueles que dizem que no mundo rural, em algumas formas existentes de organização da vida e do trabalho cotidiano, ainda estaria vigente uma espécie de pré-capitalismo, ou seja, um estágio que se situaria no intervalo entre o modo anterior de produção, o feudalismo, e o atual, o capitalismo. Lefebvre deixa alguns indicativos em sua argumentação de que ele é um dos sociólogos que pensa desta forma. As argumentações dos autores que defendem esta teoria tangenciam não somente a forma de produção de riquezas, mas principalmente a intencionalidade desta produção, que também diz respeito à diversidade e quantidade de produtos. Lefebvre retrata esta polêmica ao afirmar que Todos os historiadores da comunidade rural insistiram no fato de que, numa certa época (século XVIII, na França; século XIX e até os primeiros anos do nosso século, na Rússia), ela entravou o desenvolvimento das forças produtivas, impedindo a liberdade das culturas, paralisando as iniciativas e o individualismo agrário então progressivo, submetendo o indivíduo a obrigações tradicionais, obstruindo a introdução de novas culturas e de novos instrumentos etc (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.151). Na compreensão de Lefebvre (1970, apud Martins, 1986), seria justamente a existência conflituosa com o modo de produção existente em determinado período, que impediria ‘o rural’ de identificar-se como uma força produtiva. Assim, a comunidade rural manter-se-ia, desapareceria, ou reconstituir50 se-ia em todos os modos de produção, seja escravista, feudal, capitalista ou socialista. A segunda característica diz respeito ao fato que A comunidade rural é uma forma de comunidade orgânica, e não se reduz a uma solidariedade mecânica de elementos individuais. Ali onde predominam a troca de mercadorias, o dinheiro, a economia monetária, o individualismo, a comunidade se dissolve, sendo substituída pela exterioridade recíproca dos indivíduos e pelo “livre” contrato de trabalho. Ela reúne, organicamente, não indivíduos, mas comunidades parciais e subordinadas, famílias (elas próprias de tipos diferentes, mas inseparáveis da organização geral da comunidade) (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.152, grifo no original). Nesta caracterização do autor, percebem-se duas questões fundamentais na identificação da perspectiva conservadora de pensamento: a relevância para a solidariedade e para a família. Mesmo fazendo esta relação proximal com o conservadorismo, há de se alertar para a afirmação de Lefebvre que segue esta caracterização, dizendo que embora fale de solidariedade, e nela, de solidariedade mecânica e orgânica, não está se reportando ao sentido durkheimiano, mas sim oferecendo um novo sentido a esta categorização. Destarte, destaca-se que a idéia de ‘organicidade da comunidade’ aparece aqui como um contraponto a sua dissolução e a existência da ‘troca de mercadorias’, do dinheiro, do individualismo e da liberdade de trabalho, seriam fatores contribuintes para a dissolução da solidariedade - diga-se da própria família. Já em relação à ‘família’, ela aparece como elemento fundante da organicidade existente na comunidade. É a partir da família, que as demais agregações comunitárias vão se constituindo. Neste sentido, parece ser ilógica a existência nas comunidades rurais de indivíduos isolados, ou então aquilo que hoje se identifica, para fins censitários, como ‘família unipessoal’, ou ‘família de um indivíduo só’. A terceira característica estaria relacionada à propriedade e ao seu regime. Conforme o autor Na noção de comunidade rural, não se pode, evidentemente, fazer abstração do regime de propriedade. [...] De fato, todas as sociedades situaram-se e situam-se entre estes limites abstratos: propriedade coletiva e propriedade privada, mais ou menos próximas de um limite ou de outro (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.153). 51 Embora neste item o autor discuta as várias formas de propriedade, seja coletiva; indivisa; individual; em concessão por partes iguais; ou em concessão por cotas-parte desiguais, o que se deseja destacar nesta terceira característica levantada por Lefebvre, é o fato de que a principal propriedade na comunidade rural é a propriedade da terra, já que ela é o principal meio de produção no campo. É a partir do regime de propriedade da terra que as relações no meio rural se estabelecem. Destas relações surgem grupos de indivíduos, os quais passam a se caracterizar por deterem ou não a propriedade e por terem ou não acesso à terra para nela trabalhar. No regime de propriedade e nas relações resultantes dele é que se originaram e originam muitos dos conflitos rurais, tanto em tempos remotos, quanto atuais. Logo, esta característica discutida pelo autor, adquire relevância também para esta investigação e, assim, passa a se configurar como um dos pontos interessantes para elaboração de uma reflexão sobre as atuais características do meio rural. Já a quarta característica diz respeito às relações e às funções sociais necessárias à vida numa comunidade rural. Assim, Lefebvre (1970, apud Martins, 1986) registra desde a existência de pastores de animais, até a de autoridades de Igreja. Além disso, o autor enfatiza as relações de vizinhança, afirmando que Em todas as comunidades rurais, mesmo em plena dissolução, mesmo individualizadas ao máximo, as relações de vizinhança têm uma extrema importância. [...] Quase sempre elas tiveram ou guardam um fundamento prático: a ajuda mútua nos trabalhos pesados; os papéis oficiais nas cerimônias familiares, nos casamentos e enterros; as visitas recíprocas e a mentalidade coletiva que contribuíam para evitar disputas e litígios quando da demarcação de terras (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.155). Como quinta e última característica das comunidades rurais, Lefebvre fala da organização das mesmas e, em decorrência disto, da existência de ‘funções políticas’. Nas suas palavras fica expresso que “estas, tiveram vários aspectos: defesa das comunidades contra pressões e perigos externos [...], enfim, poder exercido sobre a comunidade, por um de seus membros ou por um elemento externo, em nome de um Estado superior a ela...” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.156). A partir da reflexão sobre os vários elementos que, segundo o autor, configurariam a identidade das comunidades camponesas, pode-se perceber que muitos dos indicativos levantados há 60 anos, segundo a perspectiva do 52 pensamento conservador, podem ser encontrados, percebidos e visualizados ainda hoje por todos aqueles que dedicarem um olhar especial para o meio rural. Isto não quer dizer que aqueles que atualmente percebem que existem tais características, de forma mais ou menos presente, mas sempre no espaço rural, sejam eles mesmos conservadores, tradicionalistas ou reacionários. Pelo contrário, olhar criticamente para o meio rural e notar que as características levantadas por estudiosos conservadores, há décadas atrás, ainda persistem na contemporaneidade, significa tão somente dispor-se a refletir, discutir e polemizar a identidade rural e, através de suas características, propor-se um olhar que levante as necessidades e demandas de um espaço como este, distinto em algumas coisas e semelhante em outras, do espaço urbano. Antes de finalizar este item do capítulo, objetiva-se apresentar duas considerações importantes feitas por Lefebvre. A primeira trata de uma síntese sobre as características das comunidades rurais; e, a segunda, de um contraponto das características aqui apresentadas, com algumas outras que compõem a identidade das comunidades rurais hoje. Conforme o autor Chegamos assim a uma definição: a comunidade rural (camponesa) é uma forma de agrupamento social, que organiza, segundo as modalidades historicamente determinadas, um conjunto de famílias fixadas ao solo. Estes grupos elementares possuem, por um lado, bens coletivos e indivisos, e por outro lado, bens “privados”, conforme relações variáveis, mas, sempre, historicamente determinadas. Encontram-se ligados por disciplinas coletivas e designam - tanto tempo quanto a comunidade guarda uma vida própria mandatários responsáveis para dirigir a realização dessas tarefas de interesse geral (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.156). Para aqueles que conhecem, na prática, a vida rural em alguns recantos do Brasil, note-se que o autor, ao sintetizar todos os elementos que conformam a identidade rural, possibilita visualizar um espaço que hoje já não se encontra especificamente com tais características. Ou seja, ao juntar os elementos, embora se encontre relação deles com a caracterização do rural atual, tal caracterização parece distanciar-se, um pouco em alguns casos e muito em outros, daquilo que se identifica como modo de vida no campo. Com isto, cabe se perguntar: a reflexão até aqui realizada, tendo como referência Lefebvre, ofereceria resultados efetivos na identificação do rural na contemporaneidade? De imediato, é possível responder tanto sim quanto não. Não para todos aqueles que esperavam uma resposta pronta e acabada sobre esta identificação do 53 campo hoje. Sim, para aqueles que entenderem que todos estes elementos nada mais são do que ferramentas que podem auxiliar um olhar crítico-político que desvende as características do modo de vida camponês, reconhecendo que não se encontrará apenas um ‘modo de vida’, mas vários, dependendo da territorialidade; dos traços culturais geralmente regionalizados; do nível de inter-relação com o meio urbano; do oferecimento ou não de serviços nestes lugares ou em lugares próximos - a referência aqui é quanto às possibilidades de acesso aos serviços públicos -; da relação que se estabelece com a terra; das possibilidades de prover sustento financeiro e de gerar riquezas ou da própria dependência econômica de outros - seja do Estado, vizinhança, ou familiares urbanos, entre muitas outras possibilidades. Dito isto e, para concluir este item, afirma-se a importância de levantar os diversos elementos que possibilitem a cada estudioso ou interessado pelo espaço rural arrolar os indicativos para a identidade ‘rural’, levando-se em conta um território específico. 1.2.2 O levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre que é o rural No percurso de aproximação entre Serviço Social e discussões sobre o rural, foi imprescindível passar pelo debate da sociologia rural, o que, se imagina, ficou expresso até este momento. Ao percorrer tal caminho, deparou-se com uma das indagações iniciais da própria sociologia rural, a qual remete à pergunta que também está por trás do objeto de análise desta investigação: o que é o rural? Algumas perspectivas que respondem a esta pergunta já foram apresentadas noutros itens deste estudo. Outras o serão daqui para frente. Neste sentido, permanecendo ainda na reflexão proposta por Martins (1986) ao debater os estudos voltados para ‘uma introdução crítica à sociologia rural’, é nos estudos de Solari (1971) que se encontra a resposta a esta pergunta. Conforme o autor, O traço fundamental que, no entender dele, permeia todos os outros traços caracterizadores do rural, está na ocupação da população rural. Como diz 54 ele, “a sociedade rural é essencialmente aquela na qual os indivíduos ativamente ocupados o estão na atividade agrícola, em sentido amplo, como a exploração e o cultivo das plantas e dos animais”. O segundo traço diferenciador está nas características ambientais. Isso porque, no campo, o trabalhador deve contar com forças que em grande parte escapam do seu controle. Ou seja, há uma preponderância da natureza sobre o trabalho humano. [...] Em terceiro lugar, há uma diferença no que ele chama de volume das comunidades. Isto é, a proporção homem/terra é menor no campo e muito maior na cidade. Em quarto lugar, a homogeneidade e a heterogeneidade dos integrantes, respectivamente, da sociedade rural e da sociedade urbana. [...] A quinta característica diz respeito à mobilidade. [...] Diz ele: “apesar da grande quantidade de pessoas que emigra do campo à cidade, não há nenhuma profissão, segundo os estudos comparados, nas quais a porcentagem de filhos siga a profissão dos pais do que entre os agricultores. E finalmente [...] o princípio da herança: pois, na sociedade rural o lugar que uma pessoa ocupa é determinado essencialmente pelo lugar que seus pais ocupavam”, como decorrência de um baixo índice de mobilidade (SOLARI, 1971, apud Martins, 1986, p.26-27). Neste recorte da definição de Solari (1971, apud Martins, 1986) sobre ‘o rural’, percebe-se, numa outra leitura, que não a conservadora, vários elementos presentes ainda hoje na caracterização do espaço rural. Mesmo com as muitas transformações no modo de vida no campo, ocorridas a partir do desenvolvimento/aprofundamento do capitalismo e, com ele, a mudança nas relações sociais, a explosão de crises financeiras e crises ambientais, o inchaço das cidades-centro e, por fim, o agravamento da Questão Social no espaço rural, o que se percebe é que os elementos levantados por Solari, os quais conformam a identidade rural, continuam presentes. Embora já se observe o desenvolvimento de outras formas de ocupação no campo, além da produção agrícola, ela ainda continua a ser predominante enquanto atividade, principalmente na pequena produção familiar voltada para a produção de alimentos. Neste sentido, há vários estudos de sociólogos rurais contemporâneos, levantando reflexões acerca do desenvolvimento da pluriatividade no campo, da criação de fontes não-agrícolas de geração de renda no interior dos estabelecimentos rurais e, portanto, do aparecimento de ocupações rurais nãoagrícolas7. No que tange às características ambientais, é inerente à vida rural a aproximação com a natureza de modo mais direto do que ocorre no espaço urbano. 7 Esta reflexão é melhor desenvolvida por STROPASOLAS, Valmir Luiz, em seu livro O mundo rural no horizonte dos jovens, publicado em 2006 pela Editora da UFSC. Indica-se especificamente a discussão desenvolvida no item ‘A proposição da Pluriatividade’, p.71-81. 55 O trabalho e o próprio cotidiano das relações sociais se dão diretamente através do contato com a terra, plantas, animais, água, clima etc. Não que estas sejam por si só determinantes; pelo contrário, sem a mediação humana não seria possível o desenvolvimento da vida no campo, tal como se conhece. Entende-se que, apesar dos condicionamentos dados pela natureza, para o desenvolvimento do modo de vida rural é o sujeito do campo que provê sua produção e reprodução através da mediação com a natureza, o que também ocorre com os sujeitos urbanos. No entanto, os últimos fazem esta mediação numa configuração de relações bem menos diretas com a natureza. O outro elemento levantado por Solari (1971, apud Martins, 1986), que se refere ao volume das comunidades rurais, é a diferença entre estes dois espaços ao se traçar um paralelo entre a quantidade e a concentração de habitantes em zonas urbanas e zonas rurais. Aqui, poder-se-ia discutir tanto a partir do conceito de ruralidade como sendo apenas as áreas consideradas no plano político das cidades, como zonas periféricas ao centro administrativo e político do município (a cidade propriamente dita), seja este último independente do número total de habitantes do mesmo, quanto a partir do conceito de ruralidade como sendo todo e qualquer agrupamento populacional abaixo de um determinado número de habitantes, o que incluiria como ‘comunidade rural’ grande parcela de municípios brasileiros cujo total de habitantes encontra-se abaixo de 10 mil habitantes. Nos dois casos reconhece-se que o volume de pessoas por metro quadrado na área rural é bem inferior ao das zonas consideradas urbanas. Como conseqüência, as relações sociais desenvolvidas em espaços com menor volume de indivíduos - situação verificada no meio rural - apresentam um perfil bem mais homogêneo entre os sujeitos e seus grupos, tanto no que se refere ao modo de pensar, aos valores, aos hábitos culturais etc., em contraponto ao meio urbano, onde o perfil é, muitas vezes, bastante heterogêneo. No que se refere à ‘mobilidade’, discussão feita por Solari (1971, apud Martins, 1986), embora se note atualmente uma maior possibilidade de mobilidade geográfica, social e de ocupação no campo, ela ainda pode ser considerada bastante baixa, comparando-se com o meio urbano. Por exemplo: apesar do aumento do êxodo rural e da existência da pluriatividade no campo, é ainda 56 significativa a quantidade de jovens que seguem a mesma profissão e atividades sociais desenvolvidas cotidianamente por seus pais. A baixa mobilidade, pode ser percebida ainda na questão da permanência, frequentemente por toda a vida, no mesmo território rural e, porque não, na mesma propriedade familiar, fato este que reforça os vínculos de tradição em relação ao modo de vida rural. E, finalmente, no que se refere ao princípio da herança como elemento característico das relações do meio rural, é importante observar que a tentativa de perpetuação do domínio familiar sobre determinado território é feito, ainda hoje, através do mecanismo da definição da ‘herança familiar’. Este processo não se restringe somente ao momento final da vida dos genitores, quando é realizada a transferência oficial do poder familiar a um ou mais filhos, mas acontece, inclusive, durante todo processo de educação familiar e de transmissão de valores, vividos entre pais e filhos. Ele ocorre como se fosse parte de certa sacralidade tradicional, em que os pais repassam a seus filhos, geralmente para os filhos homens, o comando da propriedade familiar e das próprias relações familiares e comunitárias, incluindo-se nelas, o desenvolvimento de funções na organização da comunidade local, tais como a participação nos Conselhos Comunitários. Ora, é indispensável registrar que é bastante forte no cotidiano rural a incidência da cultura patriarcal, a qual é transmitida às gerações, através do ensinamento dos valores, princípios e costumes, o que acontece desde a socialização primária– realizada pela família -, até o reforço que é dado na e pela sociedade através da socialização secundária, transmitida através da igreja, da escola, do clube, do partido político, dos meios de comunicação e de todas as demais instituições da sociedade. Diante das colocações acima, fica explícita a existência de elementos que confirmam a identidade rural apontada por Solari (1971, apud Martins, 1986) há quase quarenta anos atrás, os quais, apesar das transformações ocorridas no meio rural e no modo de vida no campo, ainda permanecem como traços significativos deste modo de vida. Não há como negar que outras características têm se agregado a esta identidade, muitas das quais resultantes de uma maior interação entre os espaços rural e urbano, atualmente inseridos nas mesmas condicionalidades emergentes do 57 modelo de produção capitalista financeiro, num contexto de mundialização, globalização. Poderia se acrescentar ainda, com respingos daquilo que Milton Santos (2008) identifica como ‘outra globalização possível’, cujo enfoque está no aprofundamento das relações locais em contraposição àquelas globais. Entretanto, cabe ressaltar que, embora tenham ocorrido e continuem a ocorrer intensas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais no campo e na cidade, vários elementos que conformam a identidade ‘rural’ ainda permanecem de forma mais o menos significativa no que tange à vida em sociedade. 1.2.3 Apontamentos sobre ‘o rural’ e sobre o ‘sujeito rural’ no pensamento social contemporâneo Neste item, são discutidos alguns apontamentos que ilustram como o rural está sendo percebido e trabalhado por estudiosos do pensamento social contemporâneo. Como caminho para realizar este intento, fez-se uma reflexão a partir de algumas concepções acerca de que é o ‘sujeito rural’, aquele que vive no ou do campo. Para tanto, foram utilizados os estudos de Stropasolas (2006), como referências teóricas principais, reportando-se também a Martins (1975, 1983, 2003), a Silva (2003), a Santos (2008) e aos estudos realizados por esta acadêmica em 2008. No decorrer deste item, será possível perceber que estes últimos referem-se não diretamente à pergunta sobre o que é o rural, mas sim sobre a identidade do camponês hoje, o que também colabora para o desvendamento da questão da ruralidade. 1.2.3.1 Sobre o rural Iniciando o debate, percebe-se a importância de contextualizar historicamente como o tema da ruralidade retorna para a pauta das discussões das 58 ciências sociais e humanas. Para tanto, inicia-se a discussão da questão, com o agrônomo e cientista social Valmir Luiz Stropasolas, a partir da afirmação: [...] “no momento atual da sociedade, em que o modelo urbano-industrial está sendo questionado, o rural adquire importância enquanto maneira de se pensar o desenvolvimento, de refletir sobre a sociedade” (Stropasolas, 2006, p.29). Paulilo, ao prefaciar o livro de Stropasolas (2006, p.14) afirma que Do mesmo modo que a agricultura familiar sobreviveu e sobrevive, a despeito de todos que previam seu desaparecimento, e não foram poucos, a idéia de rural persiste polissêmica: saudosista, romântica, pessimista, crítica, da sociedade atual e principalmente mutante em função de ser resultado de jogo de forças e representações conflitantes. Fica evidente nas análises desses autores que os estudos sobre o ‘rural’ tornaram a aparecer recentemente, depois de um período de latência, provocados pelo direcionamento do modo de produção capitalista ao desenvolvimento urbano, industrial e financeiro. Além disso, durante este período, os estudos da sociologia rural que persistiam pareciam estar bem mais interessados “[...] numa ciência da ocupação agrícola e da produtividade, do que propriamente rural”, conforme ressalta Stropasolas (2006, p.30). É somente quando este sistema de produção começa a entrar em crise e a apresentar sinais de colapso, que o ‘rural’ torna à baila das discussões nas ciências sociais como sendo um espaço ‘a ser apropriado’ para a continuidade do desenvolvimento capitalista, pois o produtor capitalizado visualiza nele um ambiente atrativo para novos investimentos. É um lugar onde ainda resta um pouco de recursos naturais para serem explorados; com certa necessidade de introdução de tecnologias, ou seja, com um mercado tecnológico em franco desenvolvimento, demandando equipamentos, com mão de obra disponível e sem muitas exigências, com um mercado consumidor em plena expansão e com incentivos fiscais já não encontrados em várias regiões urbanizadas. Além destes elementos, outro fator fez com que o ‘rural’ ressurgisse na pauta das reflexões. Justamente porque as poucas discussões e proposições que havia neste campo, direcionavam-se para a as questões da produtividade e ocupação agrícolas, começou-se a perceber o surgimento de sérios problemas de exclusão social de indivíduos e de grupos sociais, pauperizados e marginalizados neste processo (STROPASOLAS, 2006). Ou seja, o enfoque produtivo das políticas 59 direcionadas para o campo, associado à ausência de um olhar político-social, acabou gerando um processo de exclusão social – que, inclusive, muito contribuiu para a alta incidência do êxodo rural, dentre vários outros problemas, que também tinham efeitos culturais, políticos e econômicos para a sociedade em geral. É neste sentido que as ciências sociais, principalmente a sociologia rural, recolocam a questão do ‘rural’ como elemento significativamente re-valorizado no debate sociológico. Assim, na contemporaneidade, nota-se a importância de um olhar específico para o campo, já que “a modernização em seu sentido amplo, redefine, sem anular, as questões referentes à relação campo/cidade, ao lugar do agricultor na sociedade, à importância social, cultural e política do espaço local” (STROPASOLAS, 2006, p.32). Encontrou-se também uma leitura interessante sobre o rural e a modernização do campo, nos estudos do geógrafo Milton Santos (2008), o qual oferece uma caracterização da vida no campo que poderia ser considerada por muitos como pessimista, mas que aqui será apresentada como um indicativo da realidade vivida no campo, já contendo um alerta, o qual confirma a justificativa apresentada no início deste capítulo, sobre a necessidade de que o Serviço Social dedique mais esforços de reflexão e ação para este meio. A premissa do olhar de Santos (2008) volta-se para o processo de globalização, visualizado de forma crítica enquanto possibilidade de outra globalização que não a globalização como fábula ou como perversidade. A partir desta premissa, Santos (2008, p.88) resgata primeiramente que Desde o princípio dos tempos, a agricultura comparece como uma atividade reveladora das relações profundas entre as sociedades humanas e o seu entorno. No começo da história tais relações eram, a bem dizer, entre os grupos humanos e a natureza. O avanço da civilização atribui ao homem, por meio do aprofundamento das técnicas e de sua difusão, uma capacidade cada vez mais crescente de alterar os dados naturais quando possível, reduzir a importância do seu impacto e, também, por meio da organização social, modificar a importância de seus resultados. Os últimos séculos marcam, para a atividade agrícola, com a humanização e a mecanização do espaço geográfico, [...] chegando-se, recentemente, à constituição de um meio geográfico a que podemos chamar de meio técnico-científico-informacional, característico não apenas do mundo urbano, mas do mundo rural. Neste fragmento, fica explícito que o centro da análise de Santos (2008) situa-se nas relações entre homem e natureza e nas formas de mediação do primeiro para com o segundo. Entende-se que é importante sua reflexão, pois ela 60 expressa um tipo de ‘vulnerabilidade’ que nem sempre é reconhecida como tal, que é a vulnerabilidade decorrente do processo de alienação do homem de seu processo de trabalho, de suas relações sociais, políticas e econômicas e, por que não, do seu próprio cotidiano. Assim, encontra-se também nesta afirmação, a caracterização do espaço rural, que alerta para uma preocupante realidade posta pelo processo de modernização agrária, a qual não é homogênea em todos os espaços rurais. No caso do Brasil, mostra-se também como uma das realidades possíveis de serem encontradas por aqueles que optarem por dedicar esforços de reflexão e ação voltados para ‘o rural’. Segundo o mesmo autor (2008), esta modernização agrária brasileira é fruto tanto de um modelo de globalização como fábula, isto é, que indica “o mundo tal como nos fazem crer”, quanto de uma globalização como perversidade, ou seja, “do mundo, de fato, como é”. Santos confirma sua percepção, referindo-se à existência de um tipo de vulnerabilidade - não muito usual conceitualmente para o Serviço Social - no campo, que pode melindrar não somente o cotidiano rural, mas também a soberania local e nacional, e nela todos os desencadeamentos decorrentes nos campos político, econômico, cultural e social. Segundo afirma este autor, O exame do caso brasileiro quanto à modernização agrícola revela a grande vulnerabilidade das regiões agrícolas modernas face à “modernização globalizadora”. [...] Verifica-se que o campo modernizado se tornou praticamente mais aberto à expansão das formas atuais do capitalismo que as cidades [...]. De tais áreas pode-se dizer que atualmente funcionam sob um regime obediente a preocupações subordinadas a lógicas distantes, externas em relação à área de ação. Daí se criarem situações de alienação que escapam a regulações locais ou nacionais (SANTOS, 2008, p.92). Já para Martins (1975), a ótica da modernização não é tão emblemática, embora seja bastante real. Conforme este autor, a modernização do campo, já naquela época – década de 1970-, e de um ponto de vista do dilema entre capitalismo e tradicionalismo, configurava-se como um problema e não como uma ficção. No entanto, a modernização passa a ser, desde aquele momento, um problema que desafia esforços de reflexão daqueles que quiserem dedicar um olhar para o ‘rural’, a fim de desvendar sua extensão e profundidade. Nas suas palavras A situação agrária, não constitui uma aberração ante o desenvolvimento atingido pela sociedade urbana, [...] que só foi e tem sido possível graças à 61 existência de uma economia agrária estruturada para absorver os custos da acumulação do capital e da industrialização (MARTINS, 1975, p.39). Este último autor, num outro enfoque sobre o campo, já no ano de 2002, ao tratar da questão agrária no Brasil e, conseqüentemente, de uma das questões prementes no mundo rural contemporâneo, afirma que “a compreensão da questão agrária no Brasil, em nossos dias, depende de considerá-la um fato histórico que se constitui num momento determinado da história social e política do país e persiste, renovado e modificado, ao longo do tempo”. Na sua afirmação, nota-se que a questão agrária no Brasil - entendida nesta investigação como um dos elementos que compõem a realidade rural -, deve ser tomada necessariamente como constituinte de um processo histórico-político do país, onde ocorrem transformações que muito mais a renovam, enquanto questão social, do que a extinguem. A inserção, mesmo que rápida, da questão agrária neste estudo justificase pelo fato de se entender que o mundo rural contemporâneo constitui-se como um espaço bastante amplo e diverso, do ponto de vista político, econômico e sócioambiental. Nele encontra-se desde o latifúndio, até os Trabalhadores Rurais SemTerra e ‘os bóias-frias’, passando também pelos agricultores familiares e pequenos camponeses, todos atendidos segundo uma mesma política agrária, sem um olhar específico para cada realidade e, nela, para as reais necessidades e demandas. Neste sentido, coloca-se mais esta questão como um dos elementos que caracterizam o espaço ‘rural’ brasileiro hoje. Um espaço permeado por diversidades de realidades, que configuram de certa forma uma heterogeneidade rural, mas também por singularidades nos modos de vida locais e entre os vários grupos ligados à terra, configurando por outro lado, certa homogeneidade. Dadas as reflexões acima, é possível arriscar até mesmo a indicação sobre a existência de um novo ’dualismo rural’ - fazendo um jogo de palavras com as reflexões de Martins, já discutidas neste capítulo - o qual se situaria na questão homogeneidade e heterogeneidade do campo, mas também na discussão da inclusão e exclusão rural. 62 1.2.3.2 Sobre os sujeitos rurais Dado que já se fez referência à diversidade da realidade rural brasileira, é importante marcar neste capítulo a existência de uma diversidade de sujeitos (ou grupos de sujeitos) neste espaço, os quais são caracterizados por vários autores também de diversas maneiras. José de Souza Martins (1983), ao tratar dos indivíduos que vivem no campo e que se encontram mais próximos do limiar entre exclusão e inclusão social, levanta a questão da abordagem da categoria ‘camponês’ e/ou ‘campesinato’. Segundo ele, estas palavras “são das mais recentes no vocabulário brasileiro, aí chegadas pelo caminho da importação política. [...] Antes disto, tinha-se aqui denominações próprias, específicas até em cada região” (MARTINS, 1983, p.22). No próprio autor, é possível encontrar algumas designações, outras ainda são trazidas da memória de quem viveu parte de sua vida no meio rural do sul do país. São elas: caipira, caiçara, tabaréu, agregado rural, arrendatário, meeiro, colono, todas relacionadas à identificação de camponês. Por outro lado, encontra-se: estancieiro, fazendeiro, senhor de engenho, seringalista, produtor rural, entre outras relacionadas à identificação de latifundiário ou, pelo menos, de grande ou médio produtor rural. Cada um destes termos, agora agregados aos conceitos de camponês e latifundiário, vai sinteticamente identificar um modo de vida no campo, levando em consideração, essencialmente, sua relação com a terra e com o trabalho nela desenvolvido. Seria importante a identificação de cada um destes grupos de sujeitos; no entanto, somente isto já demandaria uma grande pesquisa no campo das ciências sociais, humanas, políticas e econômicas e este não é o objetivo desta pesquisa. Por outro lado, há que se reconhecer a existência de uma intenção posta aqui, neste momento da investigação, de apenas se levantar a questão da identificação do ‘rural’ e, nele, do sujeito que vive no campo. Na linha de análise percorrida até aqui, passa-se a apresentar algumas reflexões de um pesquisador do mundo rural contemporâneo, a fim de identificar quem são os indivíduos que vivem no campo. 63 O economista José Graziano da Silva (2003), a partir de uma pesquisa acerca do processo de diferenciação camponesa na região sul do país, na década de 70, elaborou uma tipologia que identifica os sujeitos em: a) Capitalistas: são os produtores que não utilizam em suas unidades rurais o trabalho familiar; usam o trabalho assalariado ou permanente ou temporário; b) Empresas familiares: utilizam trabalho familiar e assalariado permanente, podendo ter o complemento do trabalho assalariado temporário; c) Camponeses: em cujas unidades rurais é utilizado o trabalho familiar, complementado ou não por assalariados temporários, mas sem uso de assalariados permanentes. Neste grupo, ainda, foi utilizada uma tipologia interna, conforme o valor da produção anual, a qual resultou em: camponeses pobres; médios; e ricos; d) Semi-assalariados: grupo caracterizado por utilizar mão de obra familiar, não utilizar mão de obra permanente, mas apresentarem-se eles próprios em situação de assalariamento em outras propriedades rurais, em atividades urbanas, ou cuja renda depende da aposentadoria rural ou outro benefício. Para finalizar, apresenta-se nos dois parágrafos seguintes, alguns traços da identificação dos rurais, levantados por esta investigadora, a partir de um estudo realizado em 2008, sobre a ‘divisão sexual do trabalho’ na agricultura familiar, na região oeste do Estado de Santa Catarina (LUSA, 2008)8. Naquele momento, notava-se a necessidade de identificar o sujeito do campo, que para tal realidade foi considerado como ‘camponês’9. Hoje, o levantamento desses traços colabora para construir uma aproximação sobre quem é o indivíduo rural no âmbito da agricultura familiar. Destarte, indicava-se que o camponês - subentendendo camponesas e camponeses - é aquele indivíduo que, vivendo no mundo rural, possui uma forte relação com a terra. Portanto, sua identidade está intimamente vinculada ao trabalho na terra, de onde tira seu sustento e o da família. A terra simboliza para ele o trabalho presente e também futuro; logo, é na terra que ele deposita as possibilidades de mudanças em sua vida. 8 A referência bibliográfica completa deste estudo poderá ser encontrada nesta dissertação, junto ao item ‘Referências’. 9 Para aquele estudo, a reflexão de Martins (2003) foi utilizada como fundamentação teórica. 64 Outro elemento que faz parte de sua identidade, é o fato dele ser um trabalhador independente no que se refere ao processo produtivo, já que o que ele vende é seu produto final e não sua força de trabalho. Assim, o camponês freqüentemente não pensa separadamente no custo de sua produção e muito menos no valor de sua força de trabalho. Além disto, o que também identifica o camponês são seus fortes laços sociais que mantém com sua família e comunidade. Esta ligação pode ser observada no fato de que ele não trabalha sozinho, mas trabalha com sua família, vendendo tudo aquilo que excede as suas necessidades de sobrevivência e de sua família. É imprescindível ressaltar que dentro deste mesmo grupo de camponeses são construídas e difundidas visões de mundo, interesses, necessidades e demandas diferentes, segundo valores próprios adquiridos e cultivados a partir do modo de vida de cada um (LUSA, 2008). 1.2.3.3 Alinhavando os vários tecidos que tratam do rural na contemporaneidade Diversos são os pontos de vista sobre ‘o que é o rural’ na contemporaneidade e sobre quem são os sujeitos rurais inseridos nesta realidade. Ora, isto não poderia ser diferente, dada a própria diversidade encontrada no espaço rural. As reflexões apresentadas nestes dois subitens demonstram a multiplicidade de realidades encontradas no campo e a necessidade de pesquisar, discutir, direcionar esforços e ações para elas e para os sujeitos nelas inseridos. No entanto, a título de alinhavar a discussão, deseja-se apresentar a concepção de Stropasolas (2006) que finaliza o breve debate aqui proposto sobre ‘o rural’ na contemporaneidade. Em relação ao mundo rural o autor assim se expressa: [...] Concebo um universo que interage, nas mais diversas dimensões, como o conjunto da sociedade brasileira e mantém estas relações que se estabelecem no cenário global. Não visualizo, assim, um espaço rural autônomo em relação ao conjunto da sociedade, que se caracterizaria por uma lógica própria e independente de reprodução social. Importa salientar, entretanto, que este mundo rural mantém particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas, que o recortam como uma realidade própria, da qual fazem parte, inclusive, as próprias formas de inserção na sociedade que o engloba. 65 Com estas palavras o autor sintetiza a idéia sobre o rural que, de certa forma, orienta - mesmo que preliminarmente - a visão de que se parte em direção ao longo percurso de pesquisa almejado. É na diversidade do rural, nas suas especificidades de realidade e formas de se relacionar social, cultural e politicamente, bem como no modo de se inserir no mundo e na sociedade, que se encontra o maior desafio: ao desvendar o rural com as lentes do Serviço Social, revelar também sua possível ação profissional junto aos sujeitos rurais. Costurando as principais reflexões – À guisa de encerramento do capítulo A partir do percurso metodológico traçado, evidenciou-se a relação entre o pensamento conservador e a origem da sociologia e especificamente neste caso, da sociologia rural. Os autores visitados permitiram, cada qual com seu enfoque específico, perceber que houve, até certo momento do desenvolvimento do pensamento sociológico, uma tentativa de separação entre o mundo urbano e o rural, que tinha por conseqüência, inclusive, a suposta separação entre dois espaços distintos, em cujo modo de produção também havia uma distinção: um capitalista e outro précapitalista, ambos coexistindo na mesma sociedade. Como conseqüência, aferia-se uma ambivalência desigual de sentidos entre os dois espaços. Ao capitalista, associava-se o desenvolvimento, a modernidade, a racionalidade e o cientificismo, os avanços da vida urbana e o desenvolvimento de tecnologias que permitiam a acumulação financeira em níveis impossíveis para o outro. Ao pré-capitalista, associava-se a estagnação no tempo medieval, o retorno e apego ao passado, o atraso em relação ao mundo desenvolvido, a irracionalidade técnica e científica, o atraso tecnológico e, portanto, a pobreza de espírito presente no modo de vida rural. Nesta ambivalência de sentidos, também tratada pelos autores estudados como dualismo de origem ou como ambigüidade sociológica, insere-se diretamente a disputa entre aqueles que defendiam de um lado o mundo rural atrasado e aqueles que defendiam o mundo urbano desenvolvido. 66 Ora, se foi esta a origem dos estudos sociológicos e neles a sociologia rural, e se foram estes estudos que embasaram as tímidas reflexões do Serviço Social sobre a questão do mundo rural - na ausência do desenvolvimento de reflexões próprias -, avança-se por mais um obstáculo na direção de afirmar que é justamente a relação de origem entre meio rural e conservadorismo que fez com que o Serviço Social, a partir do momento de ruptura com a matriz teórica conservadora, desvinculasse seu olhar histórico-político-social do campo, do modo de vida rural, dos sujeitos rurais, de suas necessidades e demandas e da Questão Social, latente ou manifesta naquele território. Observar a relação entre Serviço Social e meio rural, nesta ótica, oferece possibilidades de chamar atenção para o fato de que não foi o segundo que parou no tempo frente ao desenvolvimento e à modernidade, tal como contextualizava a sociologia rural até a década de 70. Foi o próprio Serviço Social que não avançou com seu olhar crítico para esta realidade, imobilizando suas reflexões e, conseqüentemente, suas ações, na época em que se trabalhava a partir da metodologia de Desenvolvimento de Comunidade. Desta forma, negou a si mesmo enquanto área de conhecimento e instrumento de ação na realidade. A finalização daquele período, a existência de uma realidade rural heterogênea, bem como uma realidade urbana altamente complexa, exigia um novo aporte conceitual e de ações. Considera-se a realização deste estudo como parte significativa da investigação, no sentido de se pensar vários passos na direção da discussão de políticas sociais para o meio rural, bem como do debate sobre a própria atuação do Serviço Social neste espaço, seja no campo da reflexão teórica, seja no campo da ação profissional. Contudo, reconhece-se que ela ainda se configura como uma singela contribuição frente à amplitude de estudos, reflexões, pesquisas e debates, necessários para que o Serviço Social possa conhecer, de fato, o que é o‘rural’, sua ruralidade e os sujeitos que lá vivem. E, a partir disto, o assistente social reconhecer-se como profissional também voltado para este espaço. Enfim, mesmo sabendo, a partir da própria experiência, que o percurso desta caminhada não é tão fácil ou simples como se desejava, reafirma-se a intenção da caminhada, renovando esforços a fim de superar os obstáculos que por 67 ventura se apresentarem. Através destas palavras fica expresso, então, o convite para avançar no percurso do próximo capítulo. 68 CAPITULO II MOVIMENTOS SOCIAIS: DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL À CONTRUÇÃO DA HISTÓRIA Não precisa ser herói Para lutar pela terra Por que quando a fome dói Qualquer homem entra em guerra É preciso ter cuidado Para evitar essa luta Pois cada pai é um soldado Quando é o pão que se disputa Se somos todos irmãos Se todos somos amigos Basta um pedaço de chão Para a vitória do trigo Basta um pedaço de terra Para a semente ser pão Enquanto a fome faz guerra A paz espera no chão Há planicies que se somem Dentre o horizonte e o rio E a vida morre de fome Com tanto campo vazio A Vitória do Trigo Dante Ramon Ledesma 69 Ao iniciar um longo e profícuo debate, faz-se o convite! Como primeiro passo da caminhada ora proposta, deseja-se fazer um convite para juntos adentrar no universo dos ‘movimentos sociais’. Entendemos que é possível afirmar que a caminhada promete ser prazerosa, embora já se saiba que longo será o seu percurso. Também é importante esclarecer que o trajeto é pleno de desafios, pois o terreno é ainda bastante inexplorado, mesmo porque sua constituição é significativamente recente. Esse terreno se parece muito com um ‘tecido a ser tecido’ numa lida artesanal, pouco a pouco, linha por linha, com enlaces consecutivos, os quais constituirão a trama sobre ‘os movimentos sociais’. Sabe-se que haverá muitos momentos dessa lida em que a linha teimará em se enovelar. Sabe-se inclusive que em alguns destes pontos será mais fácil desmanchar tais nós, porém em outros não. Mesmo assim não se desanima, pois a lida fica interessante quando existem desafios. Ao final dela, espera-se que as linhas das reflexões se entrecruzem e o resultado do capítulo acalente e aqueça as discussões seguintes. Agora, para oferecer um ‘olhar mais compenetrado’ para o estudo que se inicia, há que se apresentar o capítulo com palavras menos figuradas. Assim, adianta-se que nele são abordadas três dimensões importantes dos estudos sobre os movimentos sociais no âmbito brasileiro. São ainda organizadas em três seções, as quais estão subdivididas em partes e itens, conforme demanda seu conteúdo. Na primeira seção, aborda-se o tema dos movimentos sociais na perspectiva do reconhecimento de sua trajetória histórica, dos paradigmas teóricos e da conceituação que orienta os estudos no contexto brasileiro, na atualidade. Na segunda seção,são discutidos os ‘movimentos sociais em caminhada’. Através desta discussão visualiza-se a possibilidade de construir um retrato brasileiro, catarinense e camponês dos movimentos sociais, numa perspectiva sócio-histórica. Já na terceira e última seção, traz-se à mesa de debates, para além das discussões conceituais, a abordagem dos movimentos sociais sob o ponto de vista de sua interação dialética na sociedade. Neste debate, trata-se da criação de novas relações sociais; ‘dos movimentos de mulheres’ e da ‘participação das mulheres’ nos 70 movimentos sociais; dos movimentos sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura política como desafio atual; e, finalmente, dos movimentos sociais enquanto formuladores de política e construtores de cultura. Enfim, a partir das reflexões, indagações e discussões desenvolvidas com outros autores, imagina-se alcançar um amadurecimento teórico sobre os movimentos sociais no contexto brasileiro, que contenha as especificidades relativas ao Estado de Santa Catarina e ao contexto rural. Supõe-se que este amadurecimento possibilitará avançar para o próximo capítulo, onde será abordado o processo de construção de identidades – individuais e coletivas – das mulheres camponesas, a partir da cotidianidade. Quer fazer companhia nesta caminhada, ou ainda, nesta lida? 71 PRIMEIRA SEÇÃO Movimentos Sociais - Trajetória histórica, paradigmas teóricos e conceituação 2.1.1 Os movimentos sociais – Desde a entrada no cenário público ao seu surgimento no campo teórico Sinalizando o início de sua discussão sobre ‘a gênese e os principais enfoques conceituais sobre movimentos sociais, Silva (2001, p.15) oferece como ponto de partida a concepção de que “os movimentos sociais referem-se à práxis dos homens na história. Ou seja, compreende um agir através de um conjunto de procedimentos e um pensar através de um conjunto de idéias que motivam ou fundamentam a ação individual e coletiva”. Ora, é visível já neste apontamento introdutório que há ‘um agir’ e ‘um pensar’ que, ao mesmo tempo em que balizam, orientam e levam à ação coletiva mas também individual -, tornam-se eles próprios os elementos de uma identidade social que, ao ser partilhada, vai se construindo com e através dos indivíduos, sempre na perspectiva da coletividade. Outra estudiosa do tema aponta que, ao se refletir sobre os movimentos sociais, toma-se por base a idéia de que não existe um movimento social pensado como sujeito único, homogêneo e estruturado. O que existe são movimentos sociais; cada qual com práticas diferenciadas, com dinâmica e identidade próprias, com ciclos distintos e também com distintas formas de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. Possuem pluralidade e heterogeneidade de caráter, sendo diversos seus conflitos e interesses. Enfim, transformam-se ao longo de seu próprio fazer e acontecer histórico, sempre envoltos e participantes na conjuntura da sociedade (RIBEIRO, 2005). A mesma autora ainda colabora ao dizer que Mesmo considerando as determinações estruturais, temos visto na história dos movimentos sociais lugar para processos determinados por interesses sociais e expressos por intermédio de ações coletivas de sujeitos históricos. 72 Isto nos leva a outra premissa: que a contestação de certas relações sociais no âmbito das relações de produção e reprodução da vida social é outro elemento constitutivo dos movimentos sociais (RIBEIRO, 2005, p.67). Nota-se que para a estudiosa, os movimentos sociais, em grande parte, têm contestado a ordem vigente, e trazido, para discussão, outras perspectivas de organização social, política e cultural. Esta idéia é confirmada ao dizer que “os movimentos sociais se expressam através de um conjunto de práticas sócio-políticoculturais, nas quais os conflitos, as contradições, os antagonismos existentes são o substrato básico para as ações desenvolvidas” (RIBEIRO, 2005, p.67). A partir de Silva (2001, p. 15), toma-se ciência de que “o termo ‘movimento social’ foi criado por Lorenz Von Stein, no século XIX, por volta de 1840, na Alemanha, ao evidenciar a necessidade de um ramo da ciência social que se voltasse para o estudo dos movimentos sociais da época, como o movimento operário e o socialismo emergente”. Nota-se assim que, embora o momento mais intenso de criação, mobilização e atuação dos diversos movimentos sociais em nível mundial tenha ocorrido no século XX, principalmente, na segunda metade deste, o aparecimento dessa forma de expressão datava de mais de um século. Destarte, os ‘movimentos sociais’, enquanto expressões sociais e políticas da sociedade, são resultantes do modo de produção capitalista, tendo surgido ainda no período pós-revoluções – industrial e francesa -, sendo seu aparecimento e existência intrínsecos a essa sociedade e às novas formas de exploração por ela engendrada. Essa compreensão aproxima-se daquela de Hobsbawm (1995, apud Silva, 2001) quando aponta os ‘movimentos sociais’ como fenômenos históricos concretos, resultantes de lutas sociais, fluxos e refluxos de ação. Historicamente, os ‘movimentos sociais’ conquistaram espaço não somente no cenário público da sociedade capitalista, mas também no campo científico, tornando-se objeto de investigação, de discussões e teorizações10. Isto acontece primeiramente no âmbito das ciências sociais, quando se identificou que 10 Concordando com a compreensão de Silva (2001, p.18) de que foi em meados da segunda metade do século XX que “os ‘movimentos sociais’ ganharam status de objeto científico na academia”, cabe destacar que já havia uma primeira aproximação com o campo investigativo, no século XIX, através das ciências sociais e com cientistas tais como o já citado Lorenz Von Stein. 73 os ‘movimentos sociais’ configuravam-se como elemento significativo para a mudança social e o desenvolvimento político que vinha acontecendo desde o período pós-revolucionário. Mais tarde, já em decorrência destes primeiros estudos, outras áreas do conhecimento passam a incorporá-los como campo de produção do conhecimento e de práticas profissionais, tais como a Antropologia, a Psicologia, a Educação, o Serviço Social, entre outras. Os estudos que tratam parcial ou integralmente da história dos movimentos sociais, como os de Sader (1988), Gohn (1995 e 1997), Silva (2001), Ribeiro (2005), entre outros, apontam que eram os movimentos ligados à classe trabalhadora – especialmente o movimento operário e o sindical – que se configuravam como principais sujeitos que alimentavam os estudos iniciais, bem como conferiam identidade às primeiras expressões publicamente notadas e reconhecidas enquanto ‘movimentos sociais’. Deste modo, como já mencionado, foi na Europa que surgiram as primeiras referências ao termo movimentos sociais. No início destes estudos, a perspectiva que embasava os debates partia de abordagens marxistas, que até a primeira metade do século XX eram ligadas ao conceito de lutas sociais, cuja centralidade direcionava-se para a classe operária e para a correlação de forças entre capital e trabalho (SILVA, 2001). Não obstante a temática dos movimentos sociais ter começado a aparecer no cenário das ciências sociais através dos europeus, a partir do século XIX, ela figurava nas investigações apenas como estudos empíricos relacionados aos movimentos da classe operária, ou seja, não comportava a possibilidade de que pudesse ocorrer no restante da sociedade e nem se configurava como campo de investigação teórica. Foi somente a partir da segunda metade do século XX, que o conceito de movimento social, já com sentido mais próximo daquele usado atualmente – não restrito à classe, ao operariado e ao sindicalismo – tornou-se objeto de análise para as ciências sociais, ou seja, surgiu como conceito sociológico. Esse aparecimento no âmbito científico é atribuído aos estudos norteamericanos, conforme atesta Gohn (1997), Silva (2001) e Ribeiro (2005) e outros investigadores. Embora não se distancie muito do reconhecimento feito pelos 74 europeus de que, para além da empiria, os movimentos sociais tinham características que requeriam cientificidade no seu tratamento. Numa compreensão mais ampla do que aquela que remete à simples cronologia histórica de seu surgimento, é imprescindível para os atuais estudos envolvendo os movimentos sociais – como é o caso deste -, reconhecer o percurso investigativo de desenvolvimento do conceito, o que permite identificar as principais linhas teóricas que fundamentam os estudos e debates, inclusive na atualidade. Alguns autores já se dedicaram especificamente a essa tarefa, dentre os quais se destaca Paoli, (1995), Miranda (1997) e, notadamente, Gohn (1997). Dada a circunstância e a finalidade dessa investigação, serão utilizados tais aportes – principalmente os de Gohn - para sinalizar algumas considerações importantes para a continuidade do estudo em pauta. Portanto, parte-se para a próxima tarefa: tecer alguns apontamentos em relação aos paradigmas teóricos sobre movimentos sociais, desde o surgimento, até as discussões atuais. 2.1.2 Conhecendo os paradigmas teóricos para compreender os atuais estudos sobre movimentos sociais Para início de conversa, denota-se que desde o início dos debates tanto empíricos, quanto científicos, reconheciam-se as divergências que marcavam os estudos e as discussões dos europeus e dos norte-americanos, além daquelas mais tarde desenvolvidas por pensadores latino-americanos - mesmo que estas últimas tenham se caracterizado como sendo um ‘hibridismo’ entre as duas primeiras. Tais divergências e/ou contrapontos teóricos, levaram a identificar três linhas como sendo paradigmas independentes sobre movimentos sociais, cada qual com suas especificidades11. 11 Serão apresentadas no decorrer deste item algumas das principais idéias sobre cada um dos paradigmas teóricos sobre movimentos sociais. Porém, para maior aprofundamento da questão, indica-se recorrer ao estudo de Maria da Glória Gohn, cujo título é ‘Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos’, onde a autora desenvolve com reconhecida propriedade este tema. Ver referência completa ao final da dissertação. Ainda é importante registrar que na 75 Para tratar desses três paradigmas, a partir deste momento do estudo, passou-se a adotar principalmente as considerações de Gonh (1997), por considerar que elas permitirão expressar – sem muitas elucubrações – questões consideradas fundamentais para compreender o que se planeja apresentar nos próximos itens de reflexão12. Antes disso, é importante chamar a atenção para a concepção de Gohn (1997, p.13) sobre paradigma, quando esta afirma que “é um conjunto explicativo em que encontramos teorias, conceitos e categorias, de forma que podemos dizer que o paradigma X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou processo da realidade social”. A mesma autora ainda pondera que, dadas as diferenciações geográficas, territoriais, culturais, políticas, sociais, entre outras, é normal a existência de perspectivas diferenciadas de concepção, interpretação, reflexão e debate sobre os movimentos sociais, pois estas necessariamente se fundamentam em realidades específicas, as quais se diferenciam de lugar para lugar, segundo o contexto, a conjuntura e a estrutura, mesmo considerada a interação resultante da globalização. Dito isto, passa-se à apresentação dos paradigmas norte-americano, europeu e latino-americano, sequencialmente. 2.1.2.1 O paradigma norte-americano: quando os movimentos sociais adentram no cenário teórico Para que seja possível compreender como o tema dos movimentos sociais adentra no campo das teorias sociológicas, é significativo reconhecer os antecedentes que levaram a este reconhecimento inaugural pelos teóricos norteamericanos. Para tanto, resgata-se na história das ciências sociais o fato de que Sociologia, o autor clássico que discute o conceito de “paradigmas” é Thomas Kuhn, no livro "A estrutura das revoluções científicas". Embora isto seja reconhecido, adverte-se que o conceito será abordado, nesta dissertação, a partir dos estudos de Gohn. 12 Salienta-se, entretanto, que outros autores consultados durante esta investigação, divergem de Gohn (1997) em relação à identificação de alguns autores com as correntes teóricas aqui indicadas. Apesar da dificuldade que isto representa, considerou-se mais adequado fundamentar o debate que segue, principalmente com esta autora, apontando em notas de rodapé os pontos significativos destas divergências. 76 Nas décadas de 20, 30, 40 e 50, a partir da Escola de Chicago, de orientação reformista e matriz da sociologia norte-americana, foram elaboradas as teorias do interacionismo simbólico, entre as quais se destaca a de Hebert Blumer, tido por muitos como pioneiro das análises dos movimentos sociais. Sua teoria, denominada carências sociais, [...] via os ‘movimentos sociais’ como problemas sociais, um fator de desequilíbrio e quebra da ordem vigente, que se deseja construir (SILVA, 2001, p.17). Há que se considerar a existência de controvérsias em relação a este aparecimento do conceito sociológico de movimentos sociais. Ribeiro (2005), por exemplo, atribui o fato ao sociólogo Antony Oberschall e ao historiador Charles Tilly, ambos também norte-americanos. O conceito teria surgido na década de 1960, diretamente relacionado à ‘teoria da mobilização de recursos’. Sem entrar nas vias desta divergência e não retirando o reconhecimento e a devida autoria aos estudiosos norte-americanos, que primeiramente se dedicaram à construção do conceito (termo, estudos e observações) de movimentos sociais, bem como à corrente teórica que lhe deu origem, importa registrar que, enquanto fato social da sociedade capitalista, os movimentos sociais já ocorriam no século XIX: movimento sindical e classe operária, embora o conceito sociológico só tenha surgido, na sociologia norte-americana, por volta da metade do século XX. Em relação ao desenvolvimento do paradigma norte-americano sobre movimentos sociais, percebe-se a forte ligação existente este e o desenvolvimento inicial das ciências sociais naquele contexto. Neste sentido, identifica-se um primeiro período desta abordagem, considerada como ‘clássica’, que predominou até meados dos anos 1960. Esta abordagem subdividiu-se em cinco linhas gerais, que, embora heterogêneas, condensavam características comuns. Segundo Gohn (1997, p.23), [...] o núcleo articulador das análises é a teoria da ação social, e a busca da compreensão dos comportamentos coletivos é nela a meta principal. Estes comportamentos, por sua vez, eram analisados segundo um enfoque sóciopsicológico. A ênfase na ação institucional, contraposta a não-institucional, também era uma preocupação prioritária e um denominador que dividia os dois tipos básicos de ação: a do comportamento coletivo institucional e a do não-institucional. A ação não-institucional [...] não era guiada por normas sociais existentes e era formada por situações desestruturadas, entendidas como quebras da ordem vigente. Estes processos ocorreriam antes que os órgãos de controle social [...] atuassem, restaurando a ordem antiga ou criando uma nova, que absorveria os reclamos contidos nas agitações coletivas. Antes de tratar das cinco linhas teóricas deste paradigma, é imprescindível falar sobre outro elemento significativo para compreender o espaço e 77 o lugar dos movimentos sociais na sociedade, a partir destas teorias. Trata-se da concepção de ‘sistema político’ utilizada pelos teóricos norte-americanos. Conforme Gohn (1997, p.24), o sistema político “era visto como uma sociedade aberta para todos, plural e permeável. Mas os movimentos sociais não teriam a capacidade de influenciar aquele sistema devido a suas características espontâneas e explosivas”. Ora, fica evidente que neste paradigma teórico os movimentos sociais contracenavam como atores coadjuvantes na sociedade, não tendo a mesma importância que outras instituições sociais, nem no aspecto propositivo, nem naquele de tensionamento das estruturas da sociedade. Segundo Gohn, as principais características das cinco linhas gerais deste paradigma são: a. A primeira teoria tem origem com a Escola de Chicago e com os interacionistas simbólicos do início do século: estes delineavam os movimentos sociais como reações psicológicas às estruturas de privações socioeconômicas. É atribuída a esta corrente a primeira teoria dos movimentos sociais, atribuída a Hebert Blumer (1949). b. Segunda teoria clássica: esta corrente desenvolveu-se entre os anos de 1940 e 1950 e tinha como seu foco central a sociedade das massas. Foram representantes deste pensamento Fromm (1941), Hoffer (1951) e Kornhauser (1959). c. Terceira teoria clássica: marcou as discussões até os anos 1950, seguindo uma abordagem sociopolítica, que punha destaque nas variáveis políticas. Figurou principalmente nas teorizações de Lipset (1950) e Rudolf Heberle (1951). d. Quarta teoria clássica: esta corrente resultou de uma associação entre a teoria da Escola de Chicago e a teoria da Ação Social de Parsons. Versava sobre o comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo, tendo sido guiada pelas reflexões de Turner e Killian (1957), Aberle (1966) e Smelser (1962). e. Quinta teoria: esta corrente aborda as teorias organizacionaiscomportamentalistas, tendo sido denominada de‘corrente 78 organizacional-institucional’. No início foi marcada pelas idéias de Selzinick (1952), Gusfield (1955) e Messinger, tendo sido retomada recentemente, nos anos 1990, por pensadores dos movimentos sociais. Já no segundo momento do paradigma norte-americano sobre os movimentos sociais, nota-se a presença do que se denominou como ‘teorias contemporâneas norte-americanas da ação coletiva e dos movimentos sociais’. Conforme Gohn (1997, p.49), “as transformações políticas ocorridas na sociedade norte-americana nos anos de 1960, levaram ao surgimento de uma nova corrente interpretativa sobre movimentos sociais, a chamada Teoria da Mobilização de Recursos (MR)”. Esta teoria teve bastante relevância para os estudos norte-americanos sobre movimentos sociais, tendo predominado como referência teórica, na maioria dos estudos, por aproximadamente duas décadas. Destacaram-se dentro dela os trabalhos de Olson (1965), Gusfield (1970), Oberschall (1973), McCarthy e Zald (1973) e do historiador Tilly (1978). De forma geral, as ações coletivas eram analisadas através de explicações comportamentalistas organizacionais, contrapondo com a lógica dos sentimentos, das insatisfações e dos desajustes atribuídos e observados até então, apenas no âmbito individual, e retirando estas manifestações sociais do patamar de patologia social. As ações coletivas são analisadas segundo o nexo entre ‘custo e benefício’ dos recursos existentes, desconsiderando como componentes para esta análise os valores, normas, ideologias, culturas dos movimentos sociais (SILVA, 2001). Para Gohn (1997, p.50), Sua base explicativa principal era que os movimentos sociais são abordados como grupos de interesses. Enquanto tais são vistos sob a ótica da burocracia de uma instituição. As ferramentas básicas utilizadas na abordagem advêm de categorias econômicas, [...] sendo que a variável mais importante, como o próprio nome indica, é a de recursos: humanos, financeiros e de infra-estrutura variada. Os movimentos surgiriam quando os recursos se tornassem viáveis. Conforme Silva (2001, p.20), “a teoria de MR predominou nos estudos norte-americanos sobre movimentos sociais nos anos 70 e 80, embora fosse se 79 alterando ao incluir novos temas, bem como incorporar muitas das críticas que lhe foram feitas”. O terceiro momento do paradigma norte-americano, sobre os movimentos sociais, identificado por Gohn (1997), aconteceu já no contexto de globalização e de internacionalização dos mercados mundiais, tendo se iniciado ainda na década de 1970, a partir das críticas em relação ao individualismo e utilitarismo metodológicos da ‘MR’. Tanto foi marcado por aquele contexto e momento histórico, que passou a ser denominado como ‘teorias sobre movimentos sociais na era da globalização: a mobilização política’. Sua principal atenção, nas palavras da autora (GOHN, 1997, p.69), voltava-se ao “desenvolvimento do processo político, ao campo da cultura e à interpretação processual das ações coletivas. A ênfase passou para a estrutura das oportunidades políticas, o grau organizativo dos grupos e a aplicação da análise cultural na interpretação dos discursos”. Ela ressalta ainda que “[...] argumentou-se que outros fatores macroestruturais facilitam a geração de protestos sociais [...]. Em síntese, os protestos, os descontentamentos, ressentimentos e outras formas de carências existentes no grupo foram também reconhecidos como fontes de recursos” (GOHN, 1997, p.71). É importante deixar claro que os movimentos sociais analisados sofreram mudanças e/ou releituras - ‘movimento dos direitos humanos’ e o ‘movimento feminista’, por exemplo –‘e que essas mudanças fizeram com que surgissem novas organizações, tais como o ‘movimento ecológico’, ‘dos negros’, ‘de gays e lésbicas’, entre outros. Os representantes desta teoria foram desde novos investigadores que adentraram e/ou começaram a se destacar naquele momento no campo dos movimentos sociais, mas também aqueles que já figuravam na teoria da MR e que reformularam ou ampliaram suas idéias. No primeiro grupo encontram-se Klandermas (1988), Friedman (1992), Tarrow (1988), Morris (1992), entre outros; e no segundo, Tilly (1994), Gusfield (1996), Oberschall (1993) e McCarthy (1996) (GOHN, 1997). 80 2.1.2.2 O paradigma Europeu: quando a própria teoria está em movimento Visto o paradigma norte-americano sobre os movimentos sociais, cumpre agora fazer alguns apontamentos acerca do paradigma europeu. Sua origem, como já assinalado, remonta às mobilizações operárias e sindicais iniciadas logo após o período revolucionário – Industrial e Francês. Naquele contexto, as mobilizações e ações sociais que estavam acontecendo já chamavam a atenção de alguns estudiosos. Essas observações e os estudos delas decorrentes, ao serem incorporadas pelas ciências sociais, tornaram-se objeto de investigação de um grupo de cientistas, que logo foi identificado como ‘vertente européia’ nos estudos dos ‘movimentos sociais’. Tal vertente foi posteriormente considerada por autores como Gohn (1997), como ‘paradigma europeu clássico’. Esta corrente teórica fundava suas discussões a partir do olhar para a luta de classe, especificamente para a classe trabalhadora e notadamente com forte influência da perspectiva marxista clássica. É interessante considerar que Marx não se preocupou em criar uma teoria específica sobre os movimentos sociais, sobre a classe operária, o Estado ou qualquer outro ponto específico. Ele desenvolveu um estudo da sociedade capitalista, a partir de sua gênese histórica, e localizou no estudo da mercadoria o ponto de partida para a compreensão de todo o processo de acumulação e desenvolvimento das relações sociais capitalistas. [...] O desenrolar das relações capitalistas no interior das unidades produtivas levou à reflexão sobre uma categoria que se tornará central no estudo do movimento social da classe operária e da própria burguesia: a práxis social (GOHN, 1997, p.176). A partir da afirmação de Gohn, pode se perceber que a forma pela qual a vertente européia clássica, de perspectiva marxista, trouxe alguns elementos para os debates sobre ‘movimentos sociais’, perdurou naqueles realizados na atualidade. Embora tais debates tenham sofrido transformações próprias do movimento histórico das sociedades, esses elementos oferecem pistas sobre os movimentos sociais no momento presente, provocando indagações que permitem desvendar a identidade, a organização, as demandas e o fazer político dos movimentos sociais na contemporaneidade. 81 Marcadamente neste paradigma – donde decorrem duas correntes teóricas - e na escola européia, é notória a presença do marxismo enquanto principal aporte teórico. Gohn (1997, p.171) indica algumas características gerais deste paradigma: A análise dos movimentos sociais sob este prisma, refere-se a processos de lutas sociais voltadas para a transformação das condições existentes na realidade social, de carências econômicas e/ou opressão sociopolítica e cultural. Não se trata do estudo das revoluções em si, também tratado por Marx e alguns marxistas, mas do processo de luta histórica das classes e camadas sociais em situação de subordinação. Para a autora, o paradigma clássico se desdobra em duas correntes: uma ligada ao jovem Marx e outra ao Marx maduro. Sobre elas, Gohn (1997, p.172) afirma: A primeira corrente clássica liga-se aos estudos sobre a consciência, a alienação e a ideologia etc., e que criou uma tradição histórica humanista que teve continuidade nos trabalhos de Rosa de Luxemburgo, Gramsci, Luckács e da Escola de Frankfurt após a Segunda Guerra Mundial. Será esta leitura do marxismo que alimentará as análises contemporâneas sobre os movimentos sociais. A outra corrente [...] versa seus estudos sobre o desenvolvimento do capital, em que os conceitos básicos serão formação social, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologia, determinação em última instância, mais-valia etc. Esta última corrente privilegia os fatores econômicos, macroestruturais da sociedade. Na perspectiva desta última corrente teórica, o conflito entre capital e trabalho, que gera a luta de classes, é o principal motor da história. Para os pensadores desta corrente, a classe operária industrial tem primazia no processo de luta social e o movimento operário – tão somente este - desempenha o papel de vanguarda nas transformações sociais. Apesar de ter conseguido menos teóricos adeptos, esta corrente teórica foi bastante significativa no contexto do paradigma europeu sobre os movimentos sociais, pois foi a partir dos seus pressupostos que surgiram as indagações que levaram à elaboração de uma nova corrente teórica sobre os movimentos sociais. Tais contestações no campo teórico ocorreram tanto por parte de pensadores marxistas, quanto dos não-marxistas, dado que os pressupostos desta segunda corrente se inserem num plano mecanicista e determinista da realidade, a partir de automatismos advindos da esfera macro-econômica. Dentre os próprios marxistas, que contestam esta corrente ao abordarem o tema dos movimentos sociais, encontram-se: Manuel Castells, Jean Lojkine, Claus 82 Offe, Laclau, Eric Hobsbawm, E. P. Thompson e G. Rudé, os quais são identificados como teóricos integrantes do paradigma europeu neomarxista sobre movimentos sociais (GOHN, 1997). É fundamental delimitar que para a corrente neomarxista, “a abordagem dos fatores políticos tem centralidade”, dado que é nesta esfera da vida dos indivíduos e da própria sociedade que aparecem e se desenvolvem os processos sociais de mobilização gerados pelos movimentos sociais. Além disto, para esta corrente de pensadores, “[...] a política passou a ser enfocada do ponto de vista de uma cultura política, resultante das inovações democráticas, relacionadas com as experiências dos movimentos sociais, e tem papel tão importante quanto à economia no desenvolvimento dos processos sociais históricos” (GOHN, 1997, p.173). 2.1.2.3 O paradigma latino-americano: a confluência de teorias expressando a diversidade no campo dos movimentos sociais e a necessidade de um paradigma próprio Nesta exposição sobre os paradigmas teóricos acerca dos movimentos sociais, cabe discutir como foi seu desenvolvimento em termos de América Latina. Já em princípio, ressalta-se que ele surge e se desenvolve com tendências e perspectivas de análise que dão seguimento, principalmente, à corrente européia – em seus dois paradigmas -, com predomínio de estudos de natureza empíricodescritiva, acerca, principalmente, da identidade e dinâmica dos movimentos sociais específicos. Isto é, os estudos que predominam no campo investigativo brasileiro tratam de movimentos sociais específicos, muito contribuindo para revelar aspectos que vão dando os contornos característicos de vários outros movimentos sociais. Entretanto, não se propõem desenvolver uma teoria própria sobre os movimentos sociais, considerando a realidade brasileira. Esta visão é também de Silva (2001), que afirma que na América Latina, mais do que teorizações sobre movimentos sociais, o que ocorreu foram as ‘mobilizações de massa’, principalmente na década de 1980, mas também nas seguintes. 83 Segundo Gohn (1997), existem alguns elementos que poderiam explicar os motivos de uma ausência teórica, num contexto com intensas experiências de movimentos sociais. Assim, o contexto de desenvolvimento da nação, bem como a conjuntura sócio-econômica e política teriam fortes reflexos nesta ausência. Note-se que no período em que os paradigmas teóricos europeus e norte-americanos se desenvolveram, na América Latina vivia-se um período de desenvolvimento econômico, de controle social exercido pelos regimes militares, de arrocho salarial, supressão de liberdades, repressão política via uso de força/violência policial, aumento do consumo das classes médias, expansão do ensino superior e da tecnocracia estatal, entre outras características que contribuíram para que no Brasil ocorresse uma confluência das diversas teorias, quando não, de diversos paradigmas sobre movimentos sociais e não a elaboração de um paradigma próprio. Nesta realidade apenas acenada, emergem mobilizações coletivas com forte expressão, que protestam contra a precariedade da força de trabalho e contra o regime autoritário e de cerceamento, exigindo a reabertura política e a redemocratização do país13, tais como a grande ‘Greve do ABC Paulista de 1978’ e o ‘Movimento Diretas Já’ do início dos anos 1980. Salienta-se, entretanto, que estas mobilizações se caracterizavam mais como ‘movimentos populares’, do que ‘movimentos sociais’, não obstante sua contestação da ordem e o forte apelo político – direto – e social – mesmo que de forma subliminar. Logo, foi este tipo de movimento (popular) que ganhou expressão e se disseminou pelo Brasil e também pela América Latina. Outro elemento importante apontado por Gohn (1997) como fator explicativo em relação à ausência teórica, é a expansão dos cursos de pósgraduação em ciências sociais pelo país, justamente num momento político da década de 1980, de reabertura democrática, efervescência das manifestações contestatórias e reivindicativas da sociedade, através de grupos sociais e também da população em geral, bem como de surgimento de um número significativo de partidos políticos. A década de 1980 também foi marcada pela transformação das estruturas sindicais, num processo que já havia se iniciado na década de 1970. 13 Embora a referência adotada seja o cenário brasileiro, pode-se estender ao restante dos países latino-americanos estas mesmas características, ressalvadas algumas particularidades nacionais. 84 Nas palavras de Gohn (1997, p.215), nesse cenário, “novos pesquisadores estavam ávidos por entender os processos sociais que estavam ocorrendo e desejosos de participar de algum modo da luta contra o regime militar [...]. A onda de estudos sobre movimentos populares surgiu neste contexto, com bases teóricas européias”. Enfim, o quadro investigativo e acadêmico que figurava, retrata que A produção de conhecimento e a elaboração de estratégias políticas se cruzaram. Os estudos ficaram mais no plano descritivo porque a visibilidade aparente dos dados que se coletavam e se registravam era o que mais se destacava, num processo muito vivo, em que os discursos dos novos atores eram supervalorizados. Havia uma base teórica que consistia mais num guia de orientação político-estratégica para as ações futuras do que num referencial explicativo sobre o passado imediato (GOHN, 1997, p.215). Em relação aos paradigmas europeus, importa registrar que até meados da década de 1970, predominou a influência da corrente teórica marxista clássica ligada ao jovem Marx, a qual teve bastante repercussão principalmente a partir dos estudos de Gramsci, mas tendo também alguma incidência da corrente neomarxista, através de Castells14, na abordagem dos movimentos sociais urbanos. Já na década de 1980 começou a adentrar nas investigações a corrente teórica dos ‘novos movimentos sociais’, sendo Touraine e novamente Castells – que progressivamente tinha abandonado o referencial marxista – as principais referências nas quais os pesquisadores brasileiros foram buscar aportes para seus trabalhos. Na década de 1990 os referenciais teóricos continuaram se modificando, ao mesmo passo em que também se transformavam os movimentos sociais e o próprio cenário político, social, econômico e cultural brasileiro. Além de Touraine e Castells, começaram a figurar nas investigações dos cientistas sociais brasileiros os trabalhos de Hobsbawm – um marxista contemporâneo – e de Thompson – que retoma a categoria da experiência histórica nos marcos do materialismo histórico. Conforme Gohn (1997, p. 284), o cenário das correntes teóricas que fundamentaram os estudos brasileiros sobre os movimentos sociais na década de 1980 foram 14 Indicado por autores como Silva (2001) e Ribeiro (2005), como estudioso da corrente ‘marxista estruturalista’. 85 [...] as análises de cunho marxista para os movimentos populares, influenciadas pela corrente franco-espanhola de Castells (1973), Borja (1972), Lojkine (1981), Preteceille (1985) etc. ou as análises acionalistas de Touraine (1978) [...]. Nos anos 1980, as análises sobre os novos movimentos sociais serão influenciadas por Foucault (1981), Guattari (1985), Castoriadis e Cohn-Bendict (1981), Melucci (1989), Offe (1988) etc. [...] O denominador comum nas análises dos novos movimentos sociais no Brasil foi a abordagem culturalista, em contraposição à marxista presente com mais força na análise dos movimentos populares. É importante registrar que a autora que conferiu os principais fundamentos para o debate aqui envidado, Maria da Glória Gohn (1997), em seu trabalho faz uma contundente crítica aos estudiosos brasileiros e latino-americanos, dizendo que estes se afastaram desde o princípio de seus estudos, das teorias norte-americanas sobre os movimentos sociais, por as identificarem diretamente com a vertente funcionalista. Segundo ela, ainda durante a década de 1970 os norte-americanos estabeleceram uma espécie de interlocução com a corrente européia dos ‘novos movimentos sociais’, o que também não foi incorporado pelos cientistas sociais brasileiros. Acontece que a corrente européia marxista entra em estagnação e declínio na década de 1980 e aquela dos novos movimentos sociais, embora tenha se fortalecido e firmado neste período, também passa pela estagnação na década de 1990, o que faz com que, mais recentemente, ocorra com os estudos brasileiros sobre movimentos sociais, aquilo que Gohn (1997) denomina de ‘orfandade teórica’. 2.1.3 Dos paradigmas teóricos europeu e norte americano, aos estudos brasileiros Dado que foi apresentado um panorama geral sobre os paradigmas teóricos desenvolvidos mundialmente, os quais fundamentaram suas discussões sobre ações coletivas – fazendo referência a Gohn (1997 e 2004) -, lutas sociais, movimentos populares e movimentos sociais, entre outros conceitos e terminologias, reconhece-se também a importância de apontar alguns dos estudiosos brasileiros sobre o tema, a partir da corrente teórica em que buscaram fundamentação para seus estudos e análises. 86 Para esta empreitada buscar-se-á os aportes em Ribeiro (2005), que ao apresentar esta questão para seus leitores, consegue sintetizar através de três outros pesquisadores - Baierle (1992), Doimo (1995) e Paoli (1995) - a elaboração de ‘um balanço da literatura, vinculando filiação teórica e interpretação analítica’. Dado que o objetivo deste item é fornecer um panorama sobre os pensadores brasileiros, será enfocado apenas um dos três balanços, que é aquele realizado por Paoli. Eis o que segue, mesmo que de forma sintética.15 Para Paoli (1995, apud Ribeiro, 2005), há três linhas teóricas que podem ser reconhecidas na produção sobre movimentos sociais principalmente entre as décadas de 1970 e 1980 e avançando sutilmente nos anos 1990. Um dos enfoques, denominado de ‘estrutural marxista’, esteve presente entre 1975-1982. Suas discussões versavam sobre “[...] o potencial político dos chamados novos atores sociais; a transformação da sociedade; as análises centradas nas determinações estruturais e os movimentos sociais com natureza anti-institucional, assimilando a luta de classes (burguesia X proletariado)” (PAOLI, 1995, apud Ribeiro, 2005, p.59). Identificados como representantes deste enfoque estão Lojkine (1981), Castells (1974)16 e Borja (1975)17, sendo que dentre os autores brasileiros que seguiram tal enfoque se destacam Jacobi (1980), Nunes (1987), Kowarick (1984), Moisés (1978) e Gohn (1985). O segundo enfoque encontra centralidade no conceito de ‘ação coletiva’ e se fez presente a partir dos anos de 1982-1983. Suas análises se concentravam “[...] nos modos de agir dos grupos e extratos da população envolvida nos movimentos sociais; a questão da classe não é ressaltada, a argumentação é dirigida aos aspectos políticos e institucionais e, principalmente, à relação dos movimentos sociais ao conjunto da sociedade” (PAOLI, 1995, apud Ribeiro, 2005, p.59). Os 15 Embora ciente do perigo de uma nova leitura realizada sobre outra feita por outrem, enfrentou-se este desafio de acessar parcialmente a produção de Maria Célia Paoli (1995), através da obra ‘Movimentos Sociais em Tempos de Democracia e Globalização em Santa Catarina’, de Edaléa Maria Ribeiro (2005), por reconhecer a importância de oferecer também o panorama dos estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais e, acima de tudo, considerando a situação de que não foi possível acessar a bibliografia da própria autora. 16 Este autor é identificado por Gohn (1997) como sendo um dos críticos à corrente clássica do marxismo (a do Marx maduro) que estudou os Movimentos Sociais, compondo o que ela denominou por ‘neomarxismo’. 17 Note-se que esta identificação encontra relação com aquela feita por Gohn (1995), citada no item em que são discutidos os ‘paradigmas teóricos dos movimentos sociais’. 87 estudiosos brasileiros que se destacaram a partir deste enfoque foram Cardoso (1983), Boschi (1983), Durhan (1984), Santos (1981), Doimo (1995) e Jacobi (1989). O terceiro enfoque fundamenta-se principalmente no conceito de ‘cultura política’ e começa a ser utilizado também a partir dos anos de 1982-1983. Embora este enfoque centre suas análises no marxismo, contesta pressupostos como Sujeito único (classes populares, classe operária homogeneizada como classe única portadora do projeto revolucionário); a idéia de que as condições materiais objetivas que determinam a ação das classes sociais; idéia de que os movimentos sociais seriam formas combativas e autônomas; pressupostos da eficácia da ideologia dominante para explicar o porquê da exclusão das classes dominadas da cena política (PAOLI, 1995, apud Ribeiro, 2005, p.60). Os autores de referência deste terceiro enfoque são Gramsci, Touraine, Thompson, Castoriadis, Evers, entre outros; e os investigadores brasileiros que encontraram balizamento para seus estudos nesta perspectiva de análise são: Paoli, Telles, Sader, Scherer-Warren, Caccia Bava, Irlys, Barreira, Edison Nunes e Kowarick. Ora, note-se que a construção teórica brasileira, assim como aquela norte-americana ou européia, é bastante dinâmica, pois acompanha não somente o desenvolvimento e os avanços intelectuais, mas também as transformações do cenário cotidiano e as mudanças dos próprios objetos de investigação, predominantemente os movimentos sociais. Isto fica evidente quando se detecta que autores como, por exemplo, Kowarick, que transita do enfoque estrutural marxista para o da cultura política; ou como Jacobi, que vai do enfoque estrutural marxista para aquele da ação coletiva. Lembra-se também de Castells, que transitou nas teorias européias sobre movimentos sociais, indo do marxismo estruturalista ao neomarxismo – no período de críticas ao primeiro, em sua vertente clássica fundamentada no ‘Marx maduro’ – e, finalmente, para a teoria dos novos movimentos sociais. Gohn (1997, p.19) já alertava sobre isto ao dizer que Em alguns casos, acompanhar a trajetória de produção de determinado autor foi uma forma de acompanhar as mudanças da problemática, na prática e no debate teórico. Assim como os movimentos que se apresentam em ciclos e dão ênfases particulares a cada momento histórico, as categorias criadas para análise e os conceitos produzidos também são datados historicamente. 88 Além da dinamicidade histórica que interfere nas transformações do cenário dos movimentos sociais, existem as mudanças ocasionadas pela diversidade de contextos históricos onde estes processos sociais ocorrem. Ao ponderar isto não se apresenta nenhuma novidade; outrossim, corrobora-se com afirmações de outros autores, como Silva (2001, p.19), quando esta diz que Todo estudo que se realiza do ponto de vista teórico sobre movimentos sociais varia segundo o contexto histórico e a realidade de cada país, região ou cultura que expressam. Fatores, assim, como a origem, o desenvolvimento, as mudanças produzidas, o êxito ou não dos movimentos sociais devem ser levados em conta em sua observação e estudo. O que se quer ressaltar é o fato de que, embora os primeiros embriões das mobilizações sociais – sejam estas identificadas com qualquer uma das diversas terminologias e/ou categorias analíticas -, que ganharam visibilidade pública através da generalização de ‘movimentos sociais’, tenham surgido ainda no período pósrevoluções (industrial e francesa), este tipo de processo social tem uma história recente, tanto em sua existência concreta na sociedade, quanto em relação ao seu aparecimento no campo conceitual-teórico das ciências sociais e humanas. Além disto, o período desde o seu surgimento até os dias atuais foi marcado por intensas transformações, resultantes da dinâmica capitalista, as quais aceleraram mudanças também no cenário das trajetórias dos movimentos sociais. Tal fato apresenta um grande desafio, tanto aos atores dos movimentos quanto aos seus estudiosos; e, ao mesmo tempo, uma indeterminação em relação ao futuro. Para os estudiosos da questão, o desafio diz respeito à elaboração de novos estudos e investigações, assim como a construção de novos paradigmas teóricos que acompanhem o desenvolvimento destes processos. Indeterminada, é a continuidade destes processos, que embora dinâmicos e dialéticos – no ponto de vista da autora do presente estudo – coexistem com outros processos sociais, num contexto marcado pela celeridade das transformações, cuja origem remonta ao modo de produção capitalista em colapso. Torna-se, então, necessário acompanhar estas transformações, observando, discutindo, analisando, teorizando sobre tais indeterminações, que sem muita demora tornam-se fatos concretos marcando a história da sociedade. Portanto, o que permanece da reflexão até aqui feita, é o desafio no campo da produção teórica sobre movimentos sociais, própria dos investigadores 89 brasileiros, segundo o contexto brasileiro e latino-americano. Muito já se produziu desde as décadas de 1970 e 1980, quando do surgimento desses estudos no Brasil e na América Latina, o que é visível pelos vários autores nacionais que foram lembrados nos parágrafos acima. Entretanto, há ainda uma ampla reflexão teórica a se construir no que se refere à problemática dos movimentos sociais, o que implica um olhar curioso dos investigadores para muitos aspectos da realidade concreta destes movimentos. Marlene Ribeiro (1998), ao analisar os movimentos sociais faz uma crítica contundente à forma de apropriação das teorias externas à realidade latinoamericana e brasileira. Neste sentido, aponta também para a necessidade de elaboração de paradigmas próprios, que possam contribuir não somente para a academia, mas que - ao alcançarem uma reflexão sobre os movimentos sociais erigida nas contradições e possibilidades de avanços que marcam a realidade brasileira – evidenciem o movimento dialético entre esta e os movimentos sociais. A autora reafirma o que Paoli (1991) já questionava sobre as dificuldades que algumas abordagens traziam para os estudos, reflexões e análises, ao utilizarem categorias fechadas que procuravam interpretar os movimentos sociais a partir de uma única leitura das ‘novas formas de ação coletiva’, perdendo de vista a especificidade e o contexto em que as relações sociais daqueles grupos se manifestam, tornando-se práticas de um coletivo. Ribeiro enfatiza esta forma de tratar a questão quando afirma a necessidade de: Conferir aos conceitos [...] sua real dimensão que é dialética e histórica, porquanto foram construídos sobre determinadas práticas, em épocas, sociedades, classes e culturas também determinadas por outras realidades, não podendo ser impingidos como camisas de força ou categorias a priori a novas realidade em que o tempo e o dinamismo dos conflitos sociais se encarregou de alterar (RIBEIRO, 1998, p. 67). E, para encerrar este item, reafirma-se o que Silva (2001) destacou em seu artigo ‘Movimentos sociais: gênese e principais enfoques conceituais’, publicado pela Revista Kairós: uma análise teórica séria e comprometida sobre os movimentos sociais na atualidade deve perpassar pelos nexos que circunscrevem as transformações sociais, o campo da globalização e os de interação social, o campo da política, os processos democráticos e, enfim, aqueles de tomada de decisão, 90 para os quais se deve considerar como pano de fundo os influxos entre o bem comum e os interesses particulares. 2.1.4 Colocando em cena os ‘conceitos’ sobre Movimentos Sociais Neste item deseja-se apresentar um panorama conceitual em relação aos movimentos sociais, segundo os principais autores tomados como referência nos estudos brasileiros das últimas décadas. Como principal fonte, recorre-se à Maria Lúcia Carvalho Silva (2001)18, embora o debate esteja permeado pelas falas de outros investigadores. Alain Touraine (apud SILVA, 2001), cuja abordagem muito contribuiu para a teoria dos novos movimentos sociais, diz que os movimentos sociais devem ser vistos como um ‘ator coletivo’, que dispõe de vontade coletiva, bem como de comportamento coletivo. Eles seriam o motor da história e da própria sociedade, ou seja, seriam ‘agentes históricos’, uma vez que ocorrem no entorno das institucionalidades, contribuindo para mudanças e ao mesmo tempo expressando o momento histórico e apontando para o ‘devir’. Alberto Melucci (apud SILVA, 2001), estudioso italiano desta mesma corrente, cria o conceito de identidade coletiva, trabalhando na perspectiva das ações coletivas e dos sistemas sociais. Para ele, os movimentos sociais atuam na transformação da cultura e dos costumes sociais. Ele ainda afirma que esta ação requer dos atores o processamento de mecanismos, tais como, a rede de atores sociais que interagem entre si. Claus Offe é outro autor cujo pensamento foi bastante referendado no Brasil. Conforme Silva (2001, p. 24), “sua abordagem situa-se na matriz neomarxista ou pós-marxista, a partir da teoria crítica iniciada pela Escola de Frankfurt e que prossegue atualmente na produção de Habermas”. Para ele, uma das 18 Para maior aprofundamento recorrer ao artigo ‘Movimentos sociais: gênese e principais enfoques conceituais’. Referência completa no final da dissertação. Nele Silva (2001) apresenta os aportes de Gohn (1997), Touraine (1994), Melucci (1989), Offe (1988), Scherer-Warren (1987) e Castells (1983). 91 importâncias desta abordagem é que ela combina os níveis micro e macro na análise do social. Offe estabelece articulações entre os campos político e sócio-cultural. Para o autor, os movimentos sociais são novas formas de ‘expressão da vontade coletiva’. Suas reflexões tomam como pano de fundo os problemas da vida cotidiana, inseridos num contexto de aumento de ideologias e de direitos democráticos existentes legalmente. Esses movimentos reivindicam o reconhecimento como interlocutores e atuam na esfera pública e privada, já com intencionalidade de interferir nas Políticas do Estado e nos hábitos e valores da própria sociedade. Para Guattari (apud SILVA, 2001), da corrente dos novos movimentos sociais, estas expressões são colocadas no patamar de ‘revoluções moleculares permanentes’, ou seja, elas aconteceriam em todos os níveis da vida social, nos fatos cotidianos, estando articuladas às lutas de interesse político e social dos grupos sociais e, por fim, da sociedade ampla. Castoriadis (apud SILVA, 2001), filósofo grego naturalizado francês, afirma que a transformação da sociedade compreende a conquista de autonomia, a qual tem relação direta com a história construída pelos próprios homens, sendo esta a expressão do que desejam e procuram fazer os ‘novos movimentos sociais’. Manuel Castells (apud SILVA, 2001) - que transitou da crítica da corrente clássica marxista à teoria dos novos movimentos sociais, conforme já apresentado neste estudo - dedicou seu olhar investigativo para o meio urbano, trazendo para as ciências sociais a abordagem dos movimentos sociais direcionada para os movimentos urbanos, por compreender que eram tais expressões que tinham as principais implicações com as questões da cidadania. Para ele, os movimentos sociais em sua constituição e configuração encontram-se imbricados por processos sociais de mudanças, de consumo coletivo e de contradições sociais, econômicas e políticas. Castells os vê como formas de resistência e como práticas coletivas, que surgem de problemas urbanos, provocando mudanças qualitativas e contrapondo-se aos interesses sociais dominantes. São estas expressões sociais que apontam para as reais necessidades coletivas. 92 Passando para a reflexão dos autores brasileiros sobre movimentos 19 sociais , encontra-se já nas considerações iniciais de Gohn (1997, p.20) em seu livro ‘Teorias dos movimentos sociais – paradigmas clássicos e contemporâneos’, a idéia de que Os movimentos sociais são fenômenos históricos decorrentes de lutas sociais. Colocam atores específicos sob as luzes da ribalta em períodos determinados. Com as mudanças estruturais e conjunturais da sociedade civil e política, eles se transformam. Como numa galáxia espacial, são estrelas que se acendem quando outras estão se apagando, depois de brilhar por muito tempo. São objetos de estudo permanente. Enquanto a humanidade não resolver seus problemas básicos de desigualdades sociais, opressão e exclusão, haverá lutas, haverá movimentos. E deverá haver teorias para explicá-los [...]. Já Kärner (1987, p.33), define os movimentos sociais como “processos coletivos e de comunicação realizados por indivíduos, em protesto contra as situações sociais existentes”. Enquanto a socióloga e estudiosa dos movimentos sociais na América latina e Brasil, Ilse Scherer-Warren (1987, p.37, nota de rodapé), conceitua os movimentos sociais como uma ação grupal de transformação (a práxis), voltada para a realização de objetivos comuns (o projeto), sob orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção). Outra investigadora brasileira que, ao tratar sobre os movimentos sociais, toma como eixo de análise o caráter educativo que os mesmos têm agregado às suas mobilizações, organizações e lutas é Marlene Ribeiro. Para ela os movimentos sociais “reformulam papéis, estratégias, e táticas de luta, identificando aqueles que sofrem situações de exploração, discriminação, opressão e exclusão, enquanto sujeitos das transformações, sejam eles/elas operários, negros, índios, camponeses, mulheres” (RIBEIRO, 1998, p.43). 19 Serão apresentados neste item, apenas alguns dentre os estudiosos brasileiros que trabalham com o tema dos Movimentos Sociais. Isto se faz por compreender que seria necessário um estudo voltado exclusivamente para a abordagem das teorias desenvolvidas pelos investigadores brasileiros sobre ‘Movimentos Sociais’, a fim de que se pudesse discutir, senão todas, mas grande parte das conceituações produzidas. Dado que o objeto desta dissertação é ‘o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina’ – o que exige o estudo de diversas outras categorias, tais como ‘espaço rural’; Gênero; identidade; cotidiano -, optou-se por estabelecer o debate sobre os ‘Movimentos Sociais’ em apenas um dos capítulos da dissertação, reservando os demais para a discussão de outros temas que da mesma forma tangenciam o estudo do objeto em questão. Embora tal opção leve a sintetizar parte da abordagem, assume-se conscientemente o fato de trabalhar com apenas alguns autores brasileiros, ao passo que se indica para o leitor recorrer a outros, tais como Ruth Cardoso (1983) e Eunice Durahn (1984). 93 Tendo fundamentado suas reflexões na concepção de Claus Offe (1992), gramsciano representante da teoria dos novos movimentos sociais, Ribeiro ressalta que Considera como novos movimentos sociais politicamente relevantes, aqueles que pretendem estar legitimados por representações e aspirações da comunidade mais ampla; ser reconhecidos como atores políticos, ainda que suas práticas não se encontrem respaldadas pelos organismos legalmente instituídos; e realizar seus projetos para atingir não apenas o grupo, mas o conjunto da sociedade (RIBEIRO, 1998, p.47). Refletindo a partir do materialismo histórico dialético, Ribeiro (1998, p.68) afirma que, ao contrário do que alguns estudiosos apontam, o marxismo não se distancia da análise dos movimentos sociais. Ele próprio não foi tecido originalmente no seio da academia, mas sim no espaço das contradições da sociedade civil, “foi alimentado pelo expatriamento, pela perseguição, pelo cárcere, pelas revoluções, pelos organismos operários que veio a sustentar teoricamente”. Outrossim, é esta matriz de pensamento que permite ver que, a partir de uma relação dialética, os movimentos sociais transformam-se segundo o contexto da própria sociedade e transformam a ela mesma nos seus vários âmbitos, político, social, cultural e, de certo modo, também econômico. Ora, note-se que “os movimentos sociais, até por serem movimentos, não têm sempre a mesma intensidade, suas identidades são fluídas e relacionadas ao contexto em que se expressam”, ou melhor, na cotidianidade em que estão envolvidos. Por conseguinte, são geradores de uma nova cultura, contribuindo para a produção de idéias que alimentam a práxis política”. (RIBEIRO, 1998, p.63). Portanto, sob a perspectiva marxista é possível compreender que o que ocorreu a partir da década de 1990 não foi a ‘crise do desaparecimento dos movimentos sociais’, mas um período de intensas transformações e também de confluências que estes passaram, num processo dialético com a sociedade capitalista, a partir do acirramento das contradições próprias desta. Distinta perspectiva sobre os movimentos sociais é dada por Camacho (1987, p.216) que considera os movimentos sociais como uma dinâmica gerada pela sociedade civil, que se orienta para a defesa de interesses específicos. Sua ação se dirige para o questionamento, seja de modo fragmentário ou absoluto, das estruturas 94 de dominação prevalecentes, e sua vontade implícita é transformar parcial ou totalmente as condições de crescimento social. Já, Grzybowski (1991, p.18), compreende a constituição e configuração dos movimentos sociais a partir da junção de um conjunto de elementos, que segundo ele são indispensáveis para que possa existir a dinâmica intrínseca às relações sociais. Segundo ele, A percepção de interesses comuns, no cotidiano, nas condições mais imediatas de trabalho e vida, percepção produzida a partir de e na oposição com outros interesses, de outros agentes sociais, a identidade em torno dos interesses comuns, as ações coletivas de resistência etc. são um conjunto de condições necessárias dos movimentos. Só assim a tensão intrínseca às relações vira movimento. A socióloga Scherer-Warren (1993, p.69) contribui com a reflexão ao apontar para aquilo que ela considera como dois ‘pré-requisitos’ para a formação de um movimento social, os quais seriam: o reconhecimento coletivo de um direito e a formação de identidades; Segundo a autora, para o reconhecimento de um direito é fundamental a existência de um fator subjetivo, qual seja o reconhecimento de sua dignidade humana. Essa dignidade sempre foi sabotada pela classe dominante, em relação à classe subalterna, ao lhe retirar os direitos. Suas raízes encontram-se profundamente imbricadas no sistema escravocrata e colonial e logo em seguida, pelo capitalismo assolador, que acirrou a situação. Nesse sentido, Cria-se a consciência não apenas do direito a um direito, mas o direito e o dever de lutar por este direito e de participar em seu próprio destino. É o reconhecimento coletivo de um direito que leva à formação de uma identidade social e política. Reconhece-se mutuamente como pertencendo à mesma situação de carência e como portador do mesmo direito. [...] Cada movimento cria a sua identidade política específica. [...] Por outro lado, mesmo em cada movimento específico, freqüentemente os protestos e/ou demandas são plurais, referindo-se a exclusões múltiplas. Este é o caso do Movimento das Mulheres Agricultoras. Podem referir-se a um sentimento de exclusão no espaço da cidadania política, reivindicando o direito à participação política nos vários movimentos camponeses, no sindicato, etc. Suas lutas podem estar voltadas contra a discriminação por sexo, reivindicando direitos iguais quanto à aposentadoria, assistência à saúde ou mesmo ao lazer [...]. Enfim, podem lutar contra a exploração, ou expropriação em termos de classe, fortalecendo a luta mais geral. Portanto, cidadania, gênero e classe são três dimensões de luta do movimento das mulheres Agricultoras no Brasil (SCHERER-WARREN, 1993, p.70-71). Ora, fica explícito que neste processo acontece o desenvolvimento de uma sociabilidade política. Ao serem provocados a participar de um movimento, seja 95 por demandas e necessidades de seu cotidiano, seja por perceberem questões deste mesmo cotidiano que lhes causam indignação, seja porque a própria dinâmica dos movimentos sociais já organizados os atrai, os indivíduos iniciam um processo particular de politização que os leva ao desenvolvimento de uma sociabilidade política. Sociabilidade capaz de movê-los coletivamente para a politização genérica – do movimento e sociedade – levando-os a discutir e aderir a causas que num primeiro momento não figuravam como prioridade no seu cotidiano. Destarte, sem este requisito de reconhecimento de sua existência enquanto sujeito de direitos, portadores e construtores de identidades particulares e genéricas, a autora aponta que não pode haver Movimento Social e nem projeto coletivo em torno do qual lutar. Isto é confirmado por Grzybowski (1987, apud Scherer-Warren, 1993, p.71), ao dizer que “como espaços de socialização política, os movimentos permitem aos trabalhadores, primeiramente o aprendizado prático de como se unir, organizar, participar e lutar”; depois, “a elaboração da identidade social, da consciência de seus interesses, direitos e reivindicações e finalmente, a apreensão crítica de seu mundo, práticas e representações sociais e culturais”. Portanto, o que dizem, tanto Grzybowski quanto Scherer-Warren, é que no processo de construção e/ou de participação nos movimentos sociais resulta, de diferentes modos, a construção da sociabilidade, fundada na elaboração de um projeto de transformação particular e genérica. Segundo a autora, tal projeto de transformação possui [...] ao menos, duas perspectivas: uma é o objetivo específico em torno do qual a luta se trava. A outra perspectiva é a utopia de construção de uma nova sociedade, a qual é concebida como um processo em que novas relações comunitárias e societárias vão sendo constituídas. Surge daí a noção de ‘caminhada’ (inspirados na Igreja), no sentido de se transformar a partir de um processo gradual (SCHERER-WARREN, 1993, p.72). Assim, nota-se que há uma materialidade, mas também um aspecto no plano intelectual deste processo de transformação. Este último não se situa no plano ideal, mas sim pode ser reconhecido como o aspecto teleológico das lutas, que, ao mesmo tempo, situa os indivíduos e o grupo - em sua organização de dirigentes, mas também na sua totalidade – em seu horizonte utópico. 96 Ao finalizar a reflexão, assinala-se que esta última perspectiva é fundamental para a compreensão dos movimentos sociais na atualidade. Ao mesmo tempo em que lhes possibilita se identificarem frente à sociedade, alimenta sua existência ao re-significar suas lutas e relações sociais. Enfim, é esta perspectiva fundamental que muitos dos movimentos sociais de cunho transformador assumem como ‘mística revolucionária’. SEGUNDA SEÇÃO Movimentos sociais em caminhada - Um retrato brasileiro, catarinense e campesino - 2.2.1 A trajetória dos movimentos sociais no Brasil Neste item, será apresentada e, em muitos momentos, discutida a trajetória dos movimentos sociais no Brasil, que ao longo das décadas foram oferecendo uma generosa contribuição para a construção histórica do país. Como recurso didático, para a melhor visualização desta trajetória histórica, congregou-se em cinco períodos este percurso, não os segmentando a simples cronologias, mas marcando através da história dos movimentos sociais os principais momentos que se diferenciaram na história da Nação Brasileira. Assim, trata-se do período de surgimento dos movimentos e de suas primeiras expressões, a entrada no período ditatorial militar, seguida pelo momento de vigência da Ditadura Militar. Em seguida, a reflexão passará pelo período de transição democrática e de efervescência dos movimentos sociais na América Latina, dos movimentos sociais na era da globalização, cujo desafio era de continuidade; e, para finalizar, provoca-se a discussão sobre que movimentos sociais se apresentam em cena hoje. 97 Antes de adentrar na memória histórica nacional, é necessário explicitar duas premissas. A primeira refere-se à concordância com muitos historiadores, cientistas sociais e outros estudiosos contemporâneos que contestam a idéia de que os movimentos sociais surgiram no Brasil em meados da metade do século XX. Ora, esta pode ser uma verdade posta pela história e pelos estudos oficiais do Estado, ou então por aqueles que buscam legitimar os fatos e, por conseqüência, a história contada segundo os interesses do capital e da burguesia que antes eram nacionais e agora são bem mais internacionais. A segunda premissa é que, ao explicitar esta compreensão, cumpre também dizer que embora se tenha amplamente discutido o aparecimento dos movimentos sociais no cotidiano da sociedade – considerado pela maioria dos autores estudados como sendo na Europa do período Pós-Revolucões Industrial e Francesa, através do movimento operário –, o enfoque principal foi conferido ao seu surgimento no campo teórico das ciências sociais e humanas. Isto permite afirmar que não haveria incongruências entre a afirmação da primeira premissa e a realização da segunda, pois a razão colocada entre elas é fundamentalmente crítica, no sentido em que considera a história de forma dinâmica, construída por sujeitos e fatos sociais, políticos, econômicos e culturais concretos, ou seja, que possuem materialidade histórica. Cabe ressaltar que para as considerações a seguir, tomou-se como referência a compreensão de Gohn (1995, p.16), ao elaborar um trabalho em que mapeou os movimentos e lutas sociais no Brasil dos séculos XIX e XX. Nas suas palavras, “cumpre registrar que estamos trabalhando com uma concepção ampla de movimentos e lutas sociais. Na realidade estamos incluindo as principais ações coletivas registradas como reivindicações, revoltas, rebeliões, atos de insubordinações, insurreições, protestos, confabulações etc”. 98 2.2.1.1 Das primeiras expressões à entrada no período autoritário20 Para este momento da trajetória histórica dos movimentos sociais serão consideradas as ocorrências que remetem desde o século XVIII, até o período que antecedeu à Ditadura Militar. Vivia-se, primeiramente, o período colonial. Logo após vieram os tempos de luta pela independência e o período do Brasil Império. Já no final do século XIX o Brasil torna-se república e inaugura-se, então, a era presidencial brasileira. Apesar de a ocupação territorial européia ter se concentrado na faixa litorânea do país, com a formação de poucas cidades – se comparado com o quadro atual – já havia significativa diversidade de sujeitos e, conseqüentemente, diversidade de necessidades e de interesses vigentes na sociedade. Aponta-se isto, para que se possa compreender que é a fluência e confluência destes interesses que acabava por gerar os conflitos e lutas sociais do período. Assim, conforme aponta Gohn (1995, p.18), é possível perceber uma aglutinação de reivindicações no período, naquilo que ela denomina de categorias problemáticas do Século XIX. São elas “as lutas em torno da questão da escravidão; das cobranças do fisco, das lutas dos pequenos camponeses; contra Legislações e Atos do Poder Público; pela mudança do regime político [tanto para a República, quanto para o retorno da Monarquia] e, enfim, as lutas entre as categorias socioeconômicas”. Este momento da trajetória histórica ainda mantinha proximidade com o período chamado revolucionário (das Revoluções Industrial e Francesa). Desta forma, a maioria das lutas e movimentos deste período assumem um caráter bastante radical recebendo, em contrapartida, um tratamento repressivo, como o uso da violência direta. Algumas destas lutas, que ilustram o caráter geral do período, são a Inconfidência Mineira (1789) e a Conspiração dos Alfaiates na Bahia (1798). 20 Para elaboração deste subitem do presente capítulo, utilizou-se como aporte fundamental a obra de Maria da Glória Gohn (1995), intitulada ‘História dos movimentos e lutas sociais – A construção da cidadania dos brasileiros’. Referência completa pode ser encontrada no final da dissertação. Para elaboração dos demais subitens, foram incorporadas as contribuições de vários outros autores, conforme se poderá verificar durante a leitura. 99 Já na primeira metade do século XIX, os movimentos e lutas sociais apresentam um radicalismo democrático, o que faz com que muitos deles se tornem atos revolucionários. Conforme Gohn (1995, p.23): As principais lutas e movimentos sociais do período eram motins caóticos, faltava-lhes projetos bem delineados, ou estavam fora do lugar, importados de outros países; as reivindicações básicas giravam em torno da construção de espaços nacionais, no mercado de trabalho, nas legislações, no poder político etc. A mesma autora ainda afirma que “o protagonismo era sempre canalizado para os elementos estrangeiros, fazendo com que a questão da nação sobrepujasse a das classes” (1995, p.24). São exemplos de lutas e movimentos sociais neste período: a Luta dos Sete Povos das Missões (1801, na região de fronteira do atual estado do Rio Grande do Sul com a Argentina e Uruguai); o Movimento de Maçons (1802-1817); a Revolta dos Escravos (1807, na Bahia); o Ajuntamento de Pretos (1815, em Olinda); A Revolução Pernambucana (1817); as agitações políticas de rua em torno da partida de D. João VI (1821) e da proclamação da independência do Brasil (1822); a Balaiada (1830-41, no Maranhão); a Novembrada (1831, em Pernambuco); o Movimento Cabanagem (1835, no Pará); a Guerra dos Farrapos (1835-45, no Rio Grande do Sul) e a Revolução Praiera (1847-49, em Pernambuco), entre várias outras. Já na segunda metade do século XIX, assistiu-se o desencadeamento de uma reação conservadora, que gerou muita agitação, bem como uma violenta repressão. O Estado também se alterou, recompondo-se política e militarmente. Os movimentos que mais ganharam expressão versavam sobre a questão dos escravos. Além disto, houve também movimentos messiânicos, de caráter religioso e alguns deles tinham como objetivo assegurar a sobrevivência das famílias pobres. Enfim, outra característica comum a vários movimentos deste período é que, especialmente os urbanos, faziam um intercurso bastante próximo das questões relacionadas ao fisco (GOHN, 1995). São exemplos de movimentos e lutas sociais deste período, as Guerras na Bacia do Prata (1850); a primeira Greve de Escravos-Operários do Brasil (1857, no Rio de Janeiro); a Revolta de Vassouras (1858); a Guerra do Paraguai (1864-70); o Movimento Quebra-Quilos (1873, na Paraíba, em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas); a Revolta de Canudos (1874-97, no sertão nordestino); o 100 Movimento Abolicionista (1878-88); o Movimento Republicano (1880-90); o Movimento Antiescravista Caifazes (1880, em São Paulo); as reivindicações populares por melhorias urbanas (1889, no Rio de Janeiro); a criação da União Operária (1890, em Santos) e de Partidos Socialistas (1890) em São Paulo e no Rio Grande do Sul; a Revolta Federalista (1892, no Rio Grande do Sul); os movimentos grevistas em São Paulo e Rio (1892); os movimentos populares e estudantis (189396, principalmente em São Paulo – capital), entre vários outros. Já nas primeiras décadas do século XX, até o período que antecede o Golpe Militar, as lutas e movimentos sociais adquirem novo caráter. A maioria deles acontece no meio urbano e têm por referência as questões urbanas que já se faziam presentes, de forma significativa, dentro do processo de urbanização do país. Conforme Gohn (1995), novas categorias em relação às temáticas das ações e conflitos surgirão. Estas lutas sociais são: da classe operária por melhores salários e condições de vida; das classes populares urbanas por meios de consumo coletivos; das classes populares e médias por moradia; as lutas da categoria dos militares; de diversas classes sociais por legislações e normatizações pelo Estado; as lutas sociais no campo; as lutas de segmentos das classes sociais pela educação formal; as lutas e movimentos a partir de ideologias, tais como o socialismo, anarquismo, fascismo, integralismo etc.; os movimentos nacionalistas; por questões ambientais; as lutas e movimentos de gênero; também os de raça, etnia e cor; de categorias de idade, como crianças e adolescentes; as lutas pela preservação do patrimônio histórico; os movimentos regionais e as lutas cívicas. Neste momento da trajetória histórica das lutas e movimentos sociais, a questão do trabalhador migrante tomará centralidade, em relação à questão do escravo. Houve a presença forte de categorias de anarco-sindicalistas e de socialistas prestando certa ‘assessoria’ aos movimentos, assim como o faz a própria Igreja Católica. O Estado passa a tratar a questão social como questão de polícia, bem como todas as manifestações sociais e políticas como insurreições e agitações contra a nação e o governo. No início do período, o cuidado era com a ‘aparência das cidades’. Isto fez com que despontasse uma política de controle social das massas através da 101 higienização dos centros das cidades. A intenção era de atrair o capital estrangeiro e coibir ameaças contra o governo. Num segundo momento do século XX, destaca-se o populismo do Estado e as tentativas de participação das classes populares no cenário social, político, econômico e cultural do país. Neste sentido, verifica-se que este é o período de aparecimento mais efetivo das greves de trabalhadores, principalmente aqueles urbanos, mas com ocorrências também no cenário rural. Acontecem as primeiras conquistas das classes subalternas em termos de direitos sociais. Segundo Gohn (1995, p.81), [...] As classes populares começam a emergir como atores históricos sob novos prismas e vão deixando de ser apenas casos de polícia e se transformando em cidadãos com alguns direitos, como os trabalhistas. Ainda que tenham ocorrido mais no papel, essas mudanças são marcos históricos significativos. Simbolizam o coroamento de etapas de lutas dos trabalhadores e, embora tenham sido promulgadas como dádivas governamentais, foram conquistas das classes subordinadas em geral. Num terceiro momento, verifica-se a investidura do governo para o desenvolvimento industrial / econômico do país. Com isto, o capital internacional inicia seus investimentos, tendo as classes subalternas uma maior participação no campo político da nação, o que lhes confere, pela primeira vez, algum poder de pressão. Este é o momento do Estado desenvolvimentista em sua fase populista. Para fazer referência a alguns dos vários exemplos de lutas e movimentos populares do período, continua-se com os aportes de Gohn (1995), citando-se: a revolta da Vacina (1904, no Rio de Janeiro); a fundação da Liga Republicana (1906, em São Paulo); a Revolta dos Marinheiros (1910, no Rio de Janeiro); a Guerra do Contestado (1912-17, na região entre os atuais Estados do Paraná e Santa Catarina); a constituição da Confederação Operária Brasileira (1913, em São Paulo); o Movimento das Ligas Nacionalistas (1917); a Greve Geral de São Paulo (1917), o Movimento Modernista (1922); a Revolução em São Paulo (1924); o Movimento do Cangaço (1925-38, no nordeste brasileiro); a Revolução de 30 (1930); o Movimento dos Pioneiros da Educação (1931); a Revolução Constitucionalista (1932); Movimentos de Associações de Bairros (1942); o lançamento da Campanha Popular contra a Fome (1946); o Movimento por Reformas de Base na Educação (1947-61); Passeatas da Panela Vazia (1951-53, em São Paulo); o Movimento “O Petróleo é Nosso” (1954); criação do Movimento dos Agricultores Sem-Terra – 102 MASTER (1960, no Rio Grande do Sul); Movimentos Religiosos de Juventude – JAC, JOC, JUC (1954-64); as Ligas Camponesas no Nordeste (1955-1961); a Ação Popular (1962); e a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG (1963), entre outras expressões de lutas e movimentos sociais que marcaram o cenário desde o início do século XX até o Golpe Militar de 1964. Como se percebe, as mobilizações que ocorreram não foram poucas e nem tiveram caráter irrisório. Nem pequenas foram suas expressões frente à sociedade e ao Estado-Nação. Muito menos foram insatisfatórias as suas conquistas. Fazendo uma mediação entre o cenário brasileiro de expressões de lutas e movimentos sociais, com o cenário europeu e norte americano de surgimento dos paradigmas sobre os movimentos sociais, fica evidente que, se ‘pelas bandas de cá’ pouco ou nada se discutia e se produzia neste período em termos teóricos sobre os movimentos, por outro lado se detinha muito do caldo de manifestações e acontecimentos de ordem política e social com potencialidade para engrossar as discussões que ocorriam ‘pelas bandas de lá’. Entretanto, o que ocorrerá no período seguinte, o período ditatorial? 2.2.1.2 Em tempos de ditadura, quem resistia? (De 1964 ao início dos anos 1980)21 21 A partir deste subitem da investigação, não mais se deterá nas datas de surgimento das lutas e movimentos sociais, dado que, como o período é bem mais próximo do atual, opta-se por registrar os principais elementos da conjuntura social, política, econômica e cultural neste papel, deixando o registro cronológico dos movimentos e lutas surgidas nestes períodos a cargo de cada leitor, para que este contribua também para o estudo, fazendo um exercício de memória. Isto se faz com plena consciência de que o gesto não representa um abandono da trajetória histórica dos movimentos, nem a sua diminuição por não citá-los particularmente – ao menos na sua maioria. Outrossim, a escolha se dá por reconhecer que, além da história (recente) gravada na memória de cada leitor, alguns outros autores já marcaram tais registros na história escrita do Brasil. Neste sentido aponta-se como destaques a obra de Maria da Glória Gohn (1995), intitulada ‘História dos Movimentos e Lutas Sociais’; bem como aquela organizada por Ilse Scherer-Warren e Paulo Krischke, intitulada ‘Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul’; entre outras. Referências completas no final da dissertação. 103 O momento analisado a seguir não é de fácil compreensão. A intensidade dos fatos minava o campo político, mas também o econômico e o social. Aparentemente, a imagem da sociedade era de ‘silêncio’, de brandura dos fatos, de cotidiano apaziguado pelas idas e vindas entre trabalho, casa e família. Entretanto, o silêncio não era de calmaria, muito menos de ausência de contestações, manifestações e irrupções. O silêncio era de medo. Era um silêncio contraditório. O Estado militar preocupava-se em apresentar para a sociedade uma visão de “Milagre Econômico”, com algumas conquistas de direitos, dentre as quais estaria a Reforma Agrária, a melhoria nas condições de vida, o aumento dos empregos, e outras questões do cenário nacional, que eram mantidas com muita dificuldade pela classe trabalhadora e que, não muito tempo depois, eclodiriam numa crise econômica de grandes proporções, já por volta de 1973. Neste período de grande repressão, ocorreram também lutas de resistência e de protestos no país. Entretanto é fundamental registrar que aquelas que tinham caráter de movimento popular e social diminuem, embora não se encerrem, dando espaço de visibilidade para a manifestação dos partidos políticos que compunham as frentes de esquerda. Neste sentido, as investiduras no âmbito político e social, protagonizadas pelos partidos, tinham assumidamente caráter revolucionário e fundamentavam suas ações nas experiências das revoluções russa, chinesa e cubana, almejando instalar o socialismo no país. As lideranças destes partidos vivem um período de intensa articulação de forças políticas e sociais, mas também de clandestinidade. Segundo Gohn (1995, p.102), Talvez não avaliando suficientemente a força e a velocidade que o modelo capitalista teve para redefinir a sociedade brasileira, [...] a esquerda nacional sonhou com a possibilidade de implantar aqui um modelo que não correspondia ao curso dos acontecimentos locais. [Veja, por exemplo, que] sua grande estratégia estava baseada no camponês, no discurso da Reforma Agrária, da luta do campo que se propagaria para a cidade por meio do apoio dos estudantes. Nos anos finais da década de 1960 e primeiros da de 1970 a repressão militar é intensificada. Muitos líderes revolucionários são presos, torturados, assassinados e desaparecem. Os partidos políticos de esquerda obrigam-se a viver realmente na clandestinidade. Neste cenário, no entanto, deve-se reconhecer que 104 No interior de um estado autoritário e centralizador, apesar de temeroso das possibilidades de organização política contestatória da sociedade civil, estas organização mais moleculares, como os grupos de reflexão da Igreja, de mulheres e ecologistas, puderam multiplicar-se, devido as suas formas de atuação localizadas. Estes movimentos estavam, antes de tudo, criando uma nova mentalidade, uma nova cultura política, do que representando um enfrentamento ao poder central (SCHERER-WARREN, 1987, p.47). Assim, ainda em 1968 surge o Movimento das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, organizadas pela Igreja Católica segundo a perspectiva da Teologia da Libertação. Esta linha teológica, como o próprio nome diz, pretende a ‘libertação’ do homem e, para isto, assume o caráter revolucionário. Neste sentido, acabou se configurando como um grupo/espaço/movimento que funcionou como base de apoio para muitos perseguidos políticos, presos e exilados. Além disso, como fica expresso na passagem acima, este foi um dos principais movimentos – senão o principal – responsável por tecer uma rede de sustentação para as lutas sociais que começam ser traçadas ainda na década de 1970, empreendendo forças no período seguinte. Em 1973, estoura uma crise econômica que vai minando o silêncio da população, a qual volta a se insurgir contra o Estado e a sociedade capitalista burguesa nos anos seguintes, até que em 1978 os movimentos sociais eclodem, através do movimento sindical que organiza a ‘grande greve geral do ABC Paulista’. Para Eder Sader é o momento em que “novos atores entram em cena”. Assim, A novidade eclodida em 1978 foi primeiramente enunciada sob a forma de imagens, narrativas e análises referindo-se a grupos populares os mais diversos que irrompiam na cena pública reivindicando os seus direitos, a começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar direitos. O impacto dos movimentos sociais em 1978 levou a uma revalorização de práticas sociais presentes no cotidiano popular, ofuscadas pelas modalidades dominantes 22 de representação (SADER, 1988, p.26) . 22 Mesmo não sendo objeto deste estudo, assume-se o risco das críticas e faz-se um breve registro relativo à profissão. Será no fulcro das agitações, movimentos e lutas sociais da classe trabalhadora, que acontecerá em setembro de 1979, na capital do Estado de São Paulo, o histórico 3º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais – CBAS, mais conhecido como ‘Congresso da Virada’. Este foi um dos momentos mais significativos que marcou o processo de ruptura da profissão com a perspectiva conservadora. Embora não tenha sido um movimento social, acabou se configurando como um ‘movimento interno’ ou uma ‘luta profissional’ que, de dentro da própria profissão do Serviço Social, desencadeou um processo de transformação da dinâmica profissional, desde os aspectos da formação teórico-metodológica e ético-política, até as formas de atuação na sociedade, frente às questão Sociais que surgiam. Esta ‘virada’ acabou saindo dos limites profissionais e avançou para toda a sociedade, contribuindo muito para o processo de redemocratização e para os seus desdobramentos. Portanto, seu registro neste estudo não se dá sem motivos, pois na perspectiva 105 Já em crise política, o Estado autoritário e ditatorial contribui para que a sociedade se interrogue acerca das próprias questões e ângulos que emergem do olhar dos novos atores para tal cenário. Este é o marco situacional de onde são iniciadas as lutas pela redemocratização do país. Para Sader (1988), a experiência provocada pelo fechamento do Estado Brasileiro fez com que o mesmo deixasse de ser o parâmetro pelo qual se mensurava a relevância de cada manifestação social. Ocorre, assim, uma resignificação – na perspectiva da valorização - da participação social e política, principalmente por parte da classe trabalhadora. Essa valorização da “sociedade civil” acabou por expressar uma alteração de posições e significados na sociedade. Novos valores emergem tanto nas categorias de pensamento quanto nas orientações das ações sociais dos movimentos sociais e populares. Para o autor, enquanto Na primeira metade dos anos 1970 as classes trabalhadoras foram vistas completamente subjugadas pela lógica do capital e pela dominação de um Estado onipotente. [...] Já o fim dos anos 1970 assistia a emergência de uma nova configuração de classe. Pelos lugares onde se constituíam como sujeitos coletivos; pela sua linguagem, seus temas e valores; pelas características das ações sociais em que se moviam, anunciava-se o aparecimento de um novo tipo de expressão dos trabalhadores, que poderia ser contrastado com o libertário, das primeiras décadas, ou com o populista, após 1964 (SADER, 1988, p.36). Deve-se considerar que “a pausa em termos de organização da sociedade civil, ocorrida após 1964, pode representar o marco de separação entre o que se denomina movimentos sociais tradicionais e o surgimento de novas formas de organização, ou o novo caráter de algumas das antigas organizações populares” (SCHERER-WARREN, 1987, p.41). Como se pôde presenciar durante os anos 1970, em toda América Latina, novos conflitos de classe, nacionais, regionais, urbanos, rurais, de gênero, étnicos, sobre a violência ditatorial e coercitiva, a juventude, a burocracia etc., começam a levantar, em sua própria lógica, formas de identidade e conflito, que ultrapassam tanto as visões unidirecionais, economicistas e tecnocráticas da crise, quanto crítica aqui adotada, reconhece-se que o próprio Congresso da Virada, foi um movimento dialético de transformação que atingiu diretamente a profissão e tanto mais a sociedade, mesmo que indiretamente. Para maior aprofundamento sobre o ‘Congresso da Virada’ e seus desdobramentos, indica-se consultar, principalmente, a Revista Serviço Social & Sociedade, n.100, novembro de 2009, publicada pela Editora Cortez, São Paulo, Capital, bem como números anteriores desta mesma Revista. 106 aquelas simplesmente estadistas ou partidárias. Portanto, os novos movimentos sociais apontam para a emergência de uma nova ordem democrática e para a elaboração de novas formas de pensar a sociedade, a política e o desenvolvimento (GUTIÉRREZ, 1987). Adentra-se, pois, com estas bases num ‘novo tempo’23! 2.2.1.3 O período da transição democrática: participação e conquista de direitos (Década de 1980) É notório que o período da ditadura militar no Brasil produziu muitos efeitos, redirecionando a própria nação em todos os âmbitos, seja político, social, econômico e cultural. Sem saber que este seria o resultado, os governos do regime ditatorial gestaram ‘o novo tempo’ e com ele a retomada das ruas e praças pelo povo, o retorno das manifestações, passeatas e greves dos trabalhadores, o surgimento de novos movimentos sociais. O próprio contexto do período de repressão ditatorial fez emergir lideranças e militantes politizados, fazendo leituras muito críticas da realidade. Exigiam mudanças, re-significavam o nacionalismo, propunham participação. Eis que começa a se conformar uma nova identidade, a qual é particular dos cidadãos agora participantes, mas também genérica quando se reporta aos grupos sociais e políticos, aos partidos políticos, aos movimentos sociais e a toda nação. Isto é confirmado por Scherer-Warren, quando diz que A década de 1970 e início da década de 1980 foi um período histórico, nunca antes observado, de constituição de novas identidades coletivas. Estas identidades foram construídas em torno de significados múltiplos: carências comuns, defesa comunitária ou cultural. [...] Estas organizações que proliferaram da década de 1970 aos meados da década de 1980 tiveram sua relevância política durante o regime autoritário, pois se configuravam como espaço de expressão política possível para novos atores sociais. Questões do cotidiano transformam-se em demandas 23 Parafraseando o poeta e cantor Ivan Lins, quando diz na letra de sua música “Novo Tempo” (Composição: Ivan Lins e Vitor Martins, 1987), que “No novo tempo, apesar dos castigos, estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos, pra nos socorrer [...]! No novo tempo, apesar dos perigos, da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta, pra sobreviver [...]!”. A música retrata o período de insurgência dos movimentos sociais na luta pela re-abertura política e redemocratização do país. O povo sai às ruas e a música torna-se um dos hinos das manifestações e encontros dos movimentos sociais e populares nos anos seguintes. 107 políticas e em instrumento de defesa dos direitos de cidadania ou de contestação do autoritarismo (SCHERER-WARREN, 1993, p.115). Porém “na segunda metade da década de 1980, muitas destas organizações da sociedade civil se reorientam e passam a participar de redes mais amplas de pressão e resistência” (SCHERER-WARREN, 1993, p.116). Esta situação teve como conseqüência a constituição de Movimentos Sociais, que, a partir das articulações e redes se firmaram no cenário público, ampliaram-se em número e participação política, alterando em muito o quadro da transição democrática. Destarte, é indispensável o reconhecimento de que havia no próprio cenário da sociedade elementos que possibilitaram o processo de democratização. Certamente, as contradições do sistema capitalista, e uma política ditatorial e desenvolvimentista que beirava ao neoliberalismo, também estavam presentes. Entretanto, neste caldo foi acrescentado o principal componente: a inflamação e manifestação popular. É nela que se percebe com proeminência a presença dos movimentos populares e sociais e suas lutas, dentre as quais a luta pela redemocratização figura com significativo destaque. É fundamental identificar - a partir da perspectiva crítica adotada neste trabalho – que a mobilização da sociedade naquele período foi um movimento dialético intenso entre sociedade civil e Estado. Ao expressar isto, afirma-se que aquele contexto não surgiu de repente, como se viesse do ‘nada’; foi, sim, resultante de um percurso processual e histórico, em que foram acontecendo tensionamentos, trocas, avanços, retiradas, pressionamentos e novos avanços protagonizados pelos atores coletivos daquele cenário, o que resultou em conquistas de direito e de participação para toda a sociedade brasileira. Conquistas que iniciam na década de 1980, estendendo-se nas seguintes – embora com outras características. A importância e a intensidade de forças sociais e dos acontecimentos políticos, sociais e econômicos daquele período ficaram registradas nos dizeres de vários estudiosos que se dedicaram a compreendê-la, mesmo ainda dentro daquele contexto. Assim, segundo Gutierrez (1987), A crise que atualmente sacode a região, em concomitância com o surgimento de processos democráticos e/ou de redemocratização, teve ao centro de sua origem a emergência e/ou re-emergência de movimentos sociais. [...] Com a crise dos modos de industrialização e do sistema cultural que os acompanha, os novos comportamentos dos antigos e dos recentes atores sociais estão redefinindo, sob várias formas, as suas mútuas 108 interações, bem como as suas relações com o Estado e a política (GUTIÉRREZ, 1987, p.196). Reconhecida a significância e amplitude desse tempo histórico, é imprescindível registrar uma das principais mudanças que resultam nesse processo: a re-significação, para toda a sociedade e para o próprio Estado, da participação. Na verdade, o que houve no momento de transição democrática foi o reconhecimento de uma nova ordem de participação, tanto enquanto possibilidade dos indivíduos singulares, quanto dos indivíduos coletivos e das próprias instâncias de governo. A participação parece ter adentrado naquele momento no cotidiano dos indivíduos e grupos, os quais foram elaborando um novo conteúdo para o termo, criando novos significados e, neste processo, re-descobrindo a cidadania. Alguns autores chegam a afirmar que aquele foi o momento de surgimento efetivo da sociedade civil. Note-se o que diz Avritzer (1994, apud DAGNINO, 2002, p.09), ao considerar que é neste momento que nasce a sociedade civil. A sociedade civil brasileira, profundamente marcada pela experiência autoritária do regime militar instalado em 1964, experimenta, a partir da década de 1970, um significativo ressurgimento. Esse ressurgimento, que tem como eixo a oposição do Estado autoritário, foi tão significativo que é visto, por alguns analistas, como de fato a fundação efetiva da sociedade civil no Brasil, já que sua existência anterior estaria fortemente caracterizada pela falta de autonomia em relação ao Estado. Segundo esta leitura dos fatos históricos, os movimentos sociais – considerados como os principais atores coletivos do período – teriam contribuído em alto grau para o aparecimento de uma nova esfera de participação democrática, identificada por alguns autores, como Avritzer, como o momento de surgimento da ‘sociedade civil’ de fato. No entanto, ao falar de movimentos sociais deve-se entender realmente a pluralidade que há não somente no termo, mas na concretude que eles representam na esfera social e política da sociedade. Destarte, “a emergência dos movimentos sociais configura um panorama amplo, um horizonte muito diversificado. O que existe realmente é uma ampla gama de movimentos sociais multicoloridos, multiformes e heterogêneos” (GUTIÉRREZ, 1987, p.196). Esta tendência de pluralidade manifestou-se intensamente na primeira metade da década de 1980, mantendo-se depois em ‘continuidade’ nos anos 109 seguintes, começando a arrefecer apenas no período de transição entre os milênios. Ilustrando esta pluralidade, registra-se o surgimento do Movimento de invasões de terras na Fazenda Itupu (1981, em São Paulo); a criação da Confederação Nacional de Associações de Moradores - CONAM e da Confederação Geral dos Trabalhadores - CGT (ambas em 1982); o surgimento do Movimento de Desempregados (1983, em São Paulo); a criação da Central Única dos Trabalhadores - CUT (1983); o surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA (1983) e do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (1984); o Movimento Popular Diretas Já (1984); a criação do Movimento Negro Unificado (1986) e do Movimento dos Sem-Casa (1986, em São Paulo); a criação da Central dos Movimentos Populares e a recriação do Movimento pela Reforma Urbana (ambos em 1989), dentre vários outros24. 2.2.1.4 Movimentos sociais na era da globalização: o desafio da continuidade Uma aproximação mais efetiva do universo dos movimentos sociais na atualidade e, a partir desta aproximação entrar no universo do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil atualmente, exige deter o olhar para o contexto brasileiro nas duas últimas décadas, consideradas como ‘tempos’ de democracia, de globalização, de crise do Estado e mais recente, de crise do capitalismo25. Na seqüência das reflexões desenvolvidas nos últimos itens do estudo, passa-se a algumas considerações acerca do contexto histórico dos movimentos e lutas sociais na década de 1990. Falar deste cenário é imprescindível, tendo em vista as transformações que ele acarretou na dinâmica cotidiana da sociedade, modificando a vida da população e, conseqüentemente, interferindo na trajetória dos movimentos sociais. Gohn (1997) auxilia na tarefa, trazendo alguns elementos do período, ao afirmar que o discurso dos governantes era o de que a retomada do 24 Novamente, para esta ilustração sobre os movimentos que surgiram neste período, reportou-se ao estudo de Gohn (1995). Referência completa no final da dissertação. 25 Numa anuência a Ribeiro (2005), que faz referência em seu estudo aos “Tempos de democracia e globalização”. 110 desenvolvimento associado a uma ‘certa’ proteção social aos grupos mais pauperizados em relação à situação econômica configurava-se como único meio para a superação da crise. “Novas estratégias de intervenção social têm sido defendidas para enfrentar os entraves a uma suposta capacidade reguladora do mercado, de forma a criar oportunidades aos desempregados e subempregados” (GOHN, 1997, p.295). O desgaste da economia e a crise inflacionária, herdadas já da década de 1980, geraram situações financeiras insustentáveis não somente para o mercado e para o Estado, mas principalmente para a sociedade civil e, nesta, para a classe trabalhadora que aos poucos passou a ‘viver do não-trabalho26’. Neste cenário, cresce o setor informal, sendo um dos elementos que compõem – de certo modo - a situação identificada como ‘viver do não-trabalho’. São muitos os trabalhadores desempregados, sendo que a maioria já se encontra numa situação que dificulta ainda mais a reinserção no mercado de trabalho formal. Situações como baixa escolaridade, idade avançada, espaço de tempo sem registro em carteira de trabalho – conseqüentemente a falta de referências de empregos anteriores -, moradia nas periferias ou em locais característicos de exclusão social e de violência urbana, e muitos outros fatores, fazem com que exista naquele momento da história do Brasil, um elevado contingente de trabalhadores que passam a buscar alternativas de sobrevivência no mercado informal, passando a ficar ‘desprotegidos’ em relação à seguridade social previdenciária. A situação piora quando muitos destes não encontram alternativas de trabalho nem mesmo no setor informal, passando a viver efetivamente em situação de ‘não-trabalho’. 26 Considera-se que esta temática tem surtido muitos debates recentes sobre a condição do ‘trabalhador’ de ‘viver-do-trabalho’ ou, então, ‘viver-do-não-trabalho’. Esta discussão no Brasil, sem dúvidas, remete aos estudos de Ricardo Antunes (1999, 2005, 2006), o qual introduz e amplia o uso do termo classe-que-vive-do-trabalho, como referência à ‘classe trabalhadora’, o qual foi discutido inicialmente por Huw Beynon, no artigo “As práticas do trabalho em mutação” [In: ANTUNES, Ricardo (org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. São Paulo: Boitempo, 1998]. Configurada por alguns estudiosos como uma nova ‘categoria de análise’ nas ciências sociais e humanas, a discussão sobre classe-que-vive-do-trabalho e classe-que-vive-do-não-trabalho, remonta aos debates sobre o capitalismo na atualidade, às novas morfologias do trabalho, bem como às condições de vida desta classe. No contexto do presente estudo, não se fará a devida discussão do termo, mas apenas far-seá seu uso para ilustrar a situação daqueles indivíduos sociais que passam a viver constante, ou até, permanentemente fora do mercado de trabalho, os quais constroem outros vínculos para sobrevivência e, com isso, tencionam o Estado na provisão de políticas sociais, tais como os programas de transferência de renda, previstos na Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2005. 111 Esta mesma classe trabalhadora, em decorrência da situação, utiliza muito mais os serviços públicos e muitos deles passam a sobreviver através de programas sociais – principalmente aqueles da Política de Assistência Social -, ou então, quando não conseguem sua inserção nestes, passam a viver à margem, inclusive, do Estado - se já não bastasse estarem à margem do mercado e da própria sociedade. As relações de trabalho deixam de ser o principal foco das lutas dos trabalhadores. A luta básica passa a ser pela manutenção de um emprego, qualquer que seja, e não mais pelas condições de trabalho dentro de uma categoria. O tempo se altera em função dos novos meios de comunicação. A mídia, principalmente a TV e os jornais da grande imprensa, passa a ser um grande agente de pressão social, uma espécie de quarto poder, que funciona como termômetro do poder de pressão dos grupos que têm acesso àqueles meios. As organizações não-governamentais, por sua vez, ganham proeminência sobre as instituições oficiais quanto à confiabilidade na gerência dos recursos públicos. O “Mapa da Fome” e o “Mapa da Miséria no Mundo” deixam de ser objeto apenas dos órgãos estatísticos ou da piedade das entidades caritativas. Passam agora a ser objeto de diagnósticos das políticas públicas, na medida em que apontam os problemas fundamentais para a continuidade do sistema socioeconômico mundial (GOHN, 1997, p.296). Ainda nos anos 1990 os movimentos sociais começam a ter sua força de mobilização diminuída em decorrência deste cenário. Conseqüentemente, atenuam suas ações de maior visibilidade e seu poder de pressão. A política mundial das agências multilaterais, regidas pelo ditame ‘integrador’, passa a interferir diretamente no perfil das relações entre Estado e sociedade, colocando as políticas públicas no patamar de políticas integradoras e responsabilizando o indivíduo pela sua situação. O individualismo e a competitividade são incentivados, espraiando-se pela sociedade e minando as relações sociais. As organizações não-governamentais (ONG’s) vão ganhando espaço no cenário político, tornando-se as principais parceiras do Estado na implementação das políticas públicas. Constituem-se num grupo de interferência junto ao Estado, com força de pressão maior do que o espaço ocupado pelos movimentos sociais, principalmente na década de 1980. A forma de participação da sociedade na definição e acompanhamento das políticas de Estado também se transformou. A interferência direta na criação de direitos sociais e na implementação de políticas públicas e programas sociais, por 112 parte da sociedade civil, deixou de acontecer através do mecanismo das lutas sociais, dos movimentos populares e - embora um pouco menos - dos movimentos sociais, para ocorrer através das ONG’s, as quais se tornaram os interlocutores válidos a partir da década de 1990. Além disso, os processos de descentralização e de controle social, criados sob forte pressão dos movimentos populares e sociais, na década de 1980, e formalizados pela Constituição Federal de 1988, ao serem implementados foram institucionalizando os processos de participação da sociedade civil. Ora, se por um lado, estes processos garantiram e legalizaram espaços de participação – conselhos, colegiados, conferências etc. -, por outro, o modo como isto aconteceu fez com que muitos deles atingissem um nível de formalização tão elevado que impossibilitou a participação da grande massa de cidadãos. Ao fazer esta afirmação não se deseja retirar ou atribuir menor importância à criação destes novos espaços de participação política da sociedade civil. Pelo contrário, pretende-se marcá-los como conquistas das lutas e movimentos sociais, que realmente podem ser consideradas conquistas, pois se concretizaram na dinâmica das sociedades civil e política. Esta importância é confirmada por Silva (2001, p.33), quando aponta que Uma referência significativa no decênio de 1990, por exigência da Constituição Brasileira de 1988, no contexto das ações sociais e coletivas, vem sendo a participação da população nas estruturas de conselhos e colegiados, em geral, fruto de políticas específicas. A saber, da criança e do adolescente, dos idosos, da saúde, da educação etc., efetivando, mesmo que lentamente, o processo de descentralização participada da prestação de serviços à comunidade. Contudo, a experiência mais bem-sucedida nesse aspecto é a participação popular na elaboração do orçamento municipal, que está possibilitando novas relações entre a sociedade e o poder público. Entretanto, em face da análise crítica da conjuntura que marca a trajetória dos movimentos sociais, é necessário registrar que estas novas formas de participação repercutiram no fazer política e na cultura dos movimentos sociais, pois, mais do que nunca, estes atores coletivos tiveram de reorganizar sua participação nestes espaços, através da representatividade, bem como precisaram repensar, recriar e mesmo fortalecer espaços de controle social que possibilitassem a participação massiva de seus militantes, tais como eram as manifestações populares da década de 1980. 113 Assim, na segunda metade da década de 1990 e meados do primeiro decênio dos anos 2000, foram criados uma série de instrumentos de pressão social frente ao Estado, voltados para a interferência, logo, para a participação na decisão de várias ações de governo e outras tantas de Estado. Abaixo-assinados, campanhas nacionais e plebiscitos foram realizados pelo conjunto da sociedade civil, sendo que foi imprescindível para que isto acontecesse, a participação dos diversos movimentos sociais e populares. Este é o contexto brasileiro para os movimentos sociais da década de 1990 e meados do início do novo milênio. Conforme Gohn (1997, p.297), especificamente para a década de 1990, os seguintes elementos tiveram grande influência na dinâmica dos movimentos sociais, principalmente os populares: a. A crise econômica leva à diminuição de empregos na economia formal, levando várias pessoas para a economia informal. Nela encontram instabilidade, incertezas e o aumento da jornada de trabalho. b. As políticas econômicas dão suporte para a ampliação do mercado informal, favorecendo a mão-de-obra com custos reduzidos, mas sem filiação sindical e proteção social. Há pulverização das atividades produtivas e das relações sociais em geral. c. A economia semi-comunitária encontrará nas ONGs uma forma de servir de suporte como estrutura organizativa do processo de produção de algumas mercadorias. d. No cenário das cidades, não importa seu tamanho, passa a ser incorporado um número significativo de pessoas sem-teto, moradores de rua e de crianças. Cresce a violência em todas as suas expressões e os assaltos, furtos, seqüestros passam a ser rotina na vida de qualquer cidadão. O medo e a incerteza predominam, ainda que a economia tenha se estabilizado com a criação da nova moeda, o real. Portanto, a síntese deste momento indica a transição para um novo cenário social, político, econômico e cultural que interferirá de forma significativa na dinâmica dos movimentos sociais. Que a previsão da ‘morte dos movimentos 114 sociais’ não se concretizou, isto é uma certeza. Entretanto, a direção, os componentes e, acima de tudo, as estratégias de atuação tiveram de ser ‘re-criadas’. Este é o saldo dos tempos de democracia, globalização e ‘crises’ – anos 1990 – para os movimentos e lutas sociais no contexto brasileiro. 2.2.1.5 No novo milênio: que movimentos são estes? O ponto de partida desta nova discussão – num movimento dialético – vai buscar no momento anterior seus elementos. Assim, deseja-se destacar que os últimos anos da década de 1990 e os anos iniciais de 2000, são anos marcados pela transição. Embora ela se faça de fato na passagem para o novo milênio, opera certa transição também no cotidiano dos grupos sociais, e a partir destes, nos movimentos sociais, instituições, partidos políticos e no próprio Estado. Esta transição para o ‘novo desconhecido’ também opera transformando as relações sociais, as relações de classe e, por fim, as relações entre classes sociais e o Estado. O processo de pauperização e de exploração social e econômica se intensifica. A classe trabalhadora já entra em dilemas de identidade com o trabalho, pois passa a viver – em grande parte – do ‘não-trabalho’, ou quando muito, do trabalho informal. Não é necessário dizer que na passagem para o ‘novo desconhecido’ a precarização das condições de trabalho e a desregulamentação de direitos são intensificadas pelo Estado capitalista, com forte cunho neoliberal. A globalização, aos poucos, vai se transformando em ‘mundialização’ nas falas de estudiosos, políticos, governos e, como não, dos capitalistas. O mercado é mundial, os produtos são mundiais, o consumo é mundial e a crise também o é. Enquanto isto, a exploração do trabalho, a precarização das condições de vida e a miséria partilhada entre aqueles que não pertencem à classe alguma, são localizadas apenas numa parte deste mesmo mundo. Na outra parte, localizam-se os avanços tecnológicos, as riquezas, as melhores condições de bem-estar e as decisões de todas as políticas. Mundializa-se e separa-se ao mesmo tempo. A mundialização dos meios de comunicação, através da globalização, faz com que ora os dois mundos se encontrem ora se afastem totalmente. E, neste ‘novo desconhecido’ milênio os Estados Nacionais se encontram através de seus 115 governantes, formando grandes cúpulas e fazendo amplas reuniões onde o lado mais ‘atrasado’ tenta passar, mesmo que forçosamente, para o lado em que circulam os avanços. Note-se que agora, numa perspectiva de dominação capitalista, há somente dois mundos, pois aquele que figurava como alternativa socialista até meados da década de 1980, vai sendo exaurido na década de 1990, chegando ao novo milênio apenas como uma experiência localizada e segregada na Ilha Cubana. Observe-se também que é muito tênue a linha entre a ‘mundialização e a separação’. Esta decisão não é mais tão política, pois parte dos interesses do capital. Assim, quando o capitalismo entra em crise e colapso, os prejuízos e a recessão são mundializados, continuando-se a separar e concentrar as riquezas nas mãos de poucos. Enfim, no ‘novo desconhecido’ milênio aumentam as desigualdades e injustiças sociais, acirra-se a competitividade nos vários níveis e ampliam-se as expressões daquilo que se entende por Questão Social. Verifica-se aqui a necessidade de ‘esmiuçar’ realmente o período anterior na trajetória dos movimentos sociais, para que se possa apreender o processo presente. Destarte, neste cenário - porém num contexto nacional - fazendo um movimento dialético que vai buscar no período de fins da década de 1990 os elementos para sua discussão sobre movimentos sociais, Ribeiro afirma que [...] em tempo de produção globalizada, quando são muito fortes nas lutas sociais as tendências de descentralização e de fortalecimento do espaço e do poder locais, é preciso que os movimentos sociais se disponham a aprender com a história, no sentido de preservar a sua especificidade articulada à universalidade das lutas pela construção de uma nova subjetividade coletiva ou, como diz Souza Santos, de uma nova cidadania social (RIBEIRO, 1998, p.43). Na sua fala, constata-se que o período anterior marcado pela redemocratização, trouxe consigo ganhos, mas também grandes desafios para os movimentos sociais. Ou seja, ao mesmo tempo em que significativos avanços aconteceram no período, exigiu-se também a construção de um conhecimento – numa perspectiva sócio-histórica - sobre alguns temas incorporados à realidade brasileira naquele momento: as lutas sociais, a democracia, a participação, a universalidade, a descentralização, a construção de espaços de participação e de exercício de poder locais, entre outros. 116 Este desafio teria surgido diante do cenário social, político, econômico e cultural posto com o término da ditadura militar, e sua superação representou a materialização da ruptura com a política de governo que antes se preconizava: Na esfera econômica - o desenvolvimentismo à custa do endividamento do Estado Nacional e da conseqüente recessão; Na esfera dos direitos civis e políticos – uma política repressora e cerceadora de liberdades com vistas ao controle social feito através da violência do Estado autoritário; Na esfera da gestão do Estado – as práticas clientelistas e de construção de alianças segundo os interesses políticos e econômicos de controle e dominação do povo, que ora já tinha adentrado na cultura popular como ‘fato’ normal do cotidiano capitalista burguês. Eis que então, na mesma intensidade em que aparecem os desafios da era da conquista de direitos, surge também a necessidade de superá-los com significativa urgência. Logo, confirma-se que é no momento da ‘redemocratização’ que os indivíduos sociais, atores coletivos dos movimentos sociais e populares, inauguraram um novo período na história dos próprios movimentos e desta mesma sociedade. Assim, ao mesmo tempo desfrutam da possibilidade de protagonizarem a história da nação e são desafiados a superarem – num período de tempo breve – as contradições que haviam auxiliado a construir e que ora se mostram como empecilhos para a construção de uma nação democrática. Será sob estas circunstâncias que os movimentos sociais adentram no ‘novo desconhecido’ milênio. Diante disto tudo, Forrester dizia que O momento histórico que estamos vivendo é de acirramento da contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, em razão da revolução científico-tecnológica concentrar força-de-trabalho especializada e expulsar força-de-trabalho não qualificada, excluindo milhões de trabalhadores aos quais o capitalismo condenou à não-terra, ao não-teto, à não-instrução, à não-especialização, à não-saúde, à não-habitação, ao nãotrabalho, à não-vida (FORRESTER, 1997, apud Ribeiro, 1998, p.66). As palavras do autor, denunciam a violência gerada pelo sistema capitalista, no momento de transição entre os milênios. Esta situação é um dos elementos que leva a sugerir a indeterminação do futuro da sociedade e, nela, dos 117 movimentos sociais e das forças populares. A violência estrutural adentra na vida dos indivíduos e o novo se faz ‘desconhecido’ nos fatos do cotidiano. É esta situação que faz com que Ribeiro indague sobre O que estão querendo nos dizer os saques a supermercados, as assembléias sindicais esvaziadas, a diminuição do número de sindicalizados, os altos índices de abstenção eleitoral em um país onde o voto é obrigatório? Como interpretar, sem cair numa explicação mecânica e simplista, o fortalecimento dos movimentos religiosos “fundamentalistas” em que milhares de pessoas lotam estádios e pagam para serem abençoadas? (RIBEIRO, 1998, p.63). Realmente a resposta não será possível, caso não se reflita na dinâmica entre a mundialização e a separação dos prejuízos e ganhos, a qual é operada pelo capital. Também é necessário atentar para o fato de que os movimentos sociais são partes constituintes desta dinâmica. Eles não estão fora deste processo, observando o seu desencadeamento e aguardando o momento propício para ‘protestar’. Pelo contrário, eles compõem o quadro, muitas vezes colaborando para que ele funcione como tal, outras vezes se manifestando contrários e se mostrando combatentes a ele. Entretanto, tudo parece apontar para o fato de que, neste período, mesmo que o Estado Ditatorial brasileiro tenha saído de cena, figura neste cenário um Estado democrático e de direitos, que manipula a população e disfarça as formas de violência brutal que utiliza para governar segundo os ditames do capitalismo internacional. Ora, a violência, o conflito e a criminalização tornam-se situações presentes no cotidiano dos movimentos sociais e será a partir deles que os movimentos sociais re-significarão o seu agir político e o seu fazer social, cultural e, porque não, econômico. Este é o momento identificado por muitos autores como ‘momento de crise dos movimentos sociais’. Este quadro denota as diversas contradições surgidas neste ‘novo desconhecido’ milênio, originadas pela nova configuração mundial, globalizada. Note-se que Ribeiro confirma isto ao afirmar que Entre as mudanças que introduzem novos significados e possibilidades aos movimentos sociais está a globalização ou a mundialização da economia e dos conflitos, que coloca a humanidade em um novo patamar, acirrando-se as contradições entre o global e o local na luta que os grupos sociais desenvolvem para o reconhecimento de suas demandas específicas em 118 uma conjuntura em que as distâncias e a comunicação tornaram-se planetárias (RIBEIRO, 1998, p.51). Logo, no que tange à reflexão desenvolvida neste estudo, a questão da chamada “crise” atual dos movimentos sociais no Brasil, parece ser uma polêmica mais acadêmica do que um fato concreto. Esta mesma compreensão é partilhada por alguns autores, dentre os quais está Silva, que afirma [...] As lideranças dos principais movimentos sociais identificam que estes não desapareceram, mas estão vivendo um novo ciclo. Estão se transformando, reconfigurando-se, nesse período histórico da globalização e da pós-modernidade, que não é homogêneo, como inicialmente se difundiu, mas profundamente heterogêneo, diferenciado, entre países, regiões e comunidades (SILVA, 2001, p.33). Neste ‘novo desconhecido’ milênio, a indignação diante da falta de ética na política e a agressão a certos valores consensuais da sociedade em relação à gestão do Estado, levam à eclosão de movimentos sociais de base pluriclassista, liderados muitas vezes pelas camadas médias e articulados em torno de temas transversais à luta pela transformação societária, como as questões de gênero, raça e idade (GOHN, 1997). Portanto, o “novo” também se faz nos movimentos sociais na entrada do novo milênio. Nele, as reivindicações populares, a questão dos direitos sociais assegurados, porém não efetivados, o direito à vida e à sobrevivência reforçam-se nas manifestações e protestos, tomando lugar central como eixo articulador das lutas sociais. 2.2.2 Nas terras catarinenses, os movimentos sociais construíram história Ao se comparar, a exploração do território brasileiro e a formação sóciohistórica-cultural de seu povo, com outras culturas, constata-se que as duas são bastante recentes. Ora, a formação sócio-histórica do povo catarinense, em termos de uma constituição mais coesa e que abrange não apenas a faixa litorânea principalmente nos municípios de Laguna, Florianópolis e São Francisco do Sul, cuja ocupação açoriana iniciou ainda no século XVII - mas, sim, a maior parte de seu território, é mais recente ainda, datando do século XIX. 119 Sua ocupação deu-se principalmente através das imigrações européias, embora tenham aportado nas terras catarinenses ‘gentes’ de outras partes do mundo. Alemães, italianos, poloneses, açorianos (portugueses) e a população negra predominam, sendo que os portugueses e negros foram os primeiros a chegar – embora em menor quantidade –, tendo se estabelecido principalmente na faixa litorânea. Já os alemães foram os primeiros a chegar. Os italianos chegaram mais tarde, em maior quantidade, vindos através das colônias de imigrantes. Eram geralmente ‘migrantes’ de uma segunda ou terceira geração dos ‘imigrantes’ europeus e tendo vivido um primeiro período no Brasil, em terras riograndenses, dirigiram-se para as terras catarinenses ainda não exploradas, na esperança de neste lugar enriquecer e, então, construir a vida. Dado seu caráter recente, o desenvolvimento econômico, social, político e cultural do Estado aconteceu, sobretudo, no século XX, num contexto já interligado com o contexto mundial e nacional em seus desdobramentos. A dimensão política e social, no início do século XX em ‘Terras Catarinas’, seguia o mesmo panorama daquele nacional, sem maiores relevâncias para o campo das lutas sociais, embora na trajetória histórica alguns conflitos e manifestações populares estiveram presentes. Já na segunda metade do século XX, o quadro econômico, político e social – no que se refere a um olhar para o campo dos movimentos sociais especificamente - começa a se modificar em face das interferências nos demais âmbitos. Destarte, é fundamental reconhecer que o cenário mundial no estágio final do século XX vivia a rápida expansão dos mercados financeiros, a expansão do neoliberalismo, a introdução de novas modalidades de produção, a revolução tecnológica com conseqüências sócio-econômicas para o campo e para a cidade, que vive um intenso processo de urbanização (RIBEIRO, 2005). Acrescenta-se a isso, o êxodo rural e a migração para os grandes centros, a concentração populacional no entorno das cidades pólos, gerando grandes agrupamentos populacionais e, com isso, a sobrecarga dos serviços públicos, a marginalização de grande parcela da população, a explosão do número de desempregados e/ou de trabalhadores informais, vivendo do trabalho precarizado e desprotegido. Estão ainda presentes, nas décadas de transição entre os milênios, 120 mudanças na legislação trabalhista e previdenciária, o aumento das áreas habitacionais com ocupação irregular, a elevação das desigualdades sociais e o distanciamento entre os que muito têm e aqueles que nada ou pouquíssimo possuem. A mesma autora afirma que Os princípios orientadores, agora, seriam: flexibilização do trabalho, gerando desemprego estrutural com graves conseqüências como a perda de poder dos sindicatos e o aumento da pobreza absoluta; capitalismo financeiro extremamente volátil em detrimento do trabalho produtivo; crescimento do setor de serviços, que traz consigo precarização, subemprego, trabalho semi-escravo e outros; ciência e tecnologia como agentes do capital, ou seja, monopólio do conhecimento e da informação; transnacionalização da economia e redefinição no papel político do Estado nacional (RIBEIRO, 2005, p.82). Especificamente, no contexto brasileiro, acompanhou-se a introdução dos programas neoliberais de ajuste estrutural, ditados pelas agências internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Mundial - BM. Com isto, tornou-se factual a abertura da economia para o capital estrangeiro acompanhada pelas privatizações das empresas públicas e pela implementação de programas de estabilização financeira. Essa mudança retira, do Estado, a responsabilidade de resolver os desafios da Questão Social, fazendo com que sejam extintos, sutilmente, os direitos sociais e ocorra o desmonte da rede de proteção social, o que se explicita num discurso de uma ‘necessária’ reforma do Estado. Enfim, corrobora-se com Ribeiro (2005, p.82), pela opinião de que afirmar que “[...] este novo quadro agrava as condições de vida e de trabalho de amplos segmentos da população mundial, em especial, aquelas dos países periféricos, é redundância que precisa ser constantemente reafirmada”. Em conseqüência deste cenário e da conjuntura econômica, social, política e cultural vigentes, ocorrem também processos em que os indivíduos e grupos sociais sentem-se incitados a se manifestar e, com isso, tencionar o Estado. Assim, estes também são tempos de redemocratização associada com a retomada da participação e da organização popular nas esferas públicas. Ao se iniciarem, entre os entes federados, processos de descentralização e de partilha das responsabilidades de gestão e de financiamento do sistema público, o Estado tem seu papel redefinido. Vive-se o dilema entre conquista e, em seguida, perda da universalidade dos direitos sociais e de acesso e atendimento nos serviços públicos. 121 Em relação aos movimentos sociais em Santa Catarina, observa-se que Os anos de 1990 foram de mudança, entendida como reordenamento, revisão e reorientação destes. Não encontramos mais movimentos de massa, característica dos anos 1980. Tampouco estes puderam contar com o apoio da Igreja Progressista, exceção feita aos movimentos rurais. [...] A centralidade da luta é por cidadania, em que o projeto de uma ordem social, de fato democrática e emancipatória é compreendida claramente como processo; daí a importância que a maioria dos movimentos pesquisados dão à luta parlamentar, com todas as ambigüidades e conflitos que isto possa trazer para o interior dos movimentos. [Enfim], são anos marcados pela pulverização de movimentos, pela heterogeneidade e pluralidade (RIBEIRO, 2005, p.87). Ao iniciar a contextualização dos movimentos sociais em Santa Catarina, nota-se a importância de conhecer a trajetória histórica deste Estado, construída ao longo dos anos por imigrantes europeus e migrantes brasileiros de outras regiões, sob o prisma do desenvolvimento econômico, que centralizou nas diferentes regiões do Estado tipos característicos de economia, seja ela de extração de minérios, de indústrias pesadas de siderurgia, químicas, têxteis, de papel ou de alimentos, seja ela de base agropecuária e agroindustrial, ou uma economia baseada no setor de serviços. Como este não se configura como objetivo central desta investigação – apesar da sua importância -, destacar-se-á apenas alguns dados da região oeste, importantes para compreender o contexto em que surge o Movimento de Mulheres Agricultoras27. Neste sentido, cumpre dizer que tanto a região oeste, quanto do extremo-oeste catarinense são predominantemente rurais, com destaque para a agricultura familiar, ou seja, agricultura de pequeno porte,voltada para a produção de alimentos. Além disso, constata-se a incidência de diversas agroindústrias que se instalaram e se desenvolveram nestas regiões desde fins da primeira metade do século XX. Outra característica marcante é a forte presença da Igreja – predominantemente católica, mas também evangélicas, luterana e outras –, que há 27 Para uma contextualização mais próxima da história catarinense na perspectiva de um olhar para os movimentos sociais e para o cenário político do Estado, indica-se a obra de Ribeiro (2005), “Movimentos sociais em tempos de democracia e globalização em Santa Catarina”. Já um aprofundamento histórico específico da região oeste catarinense, poderá ser encontrado no estudo de Lusa (2008), denominado “O trabalho no contexto rural: da divisão sexual do trabalho às políticas públicas para o campo na região oeste catarinense”. 122 várias décadas trabalhou na perspectiva progressista, acentuando este perfil nas décadas de 1970 e 1980. A população que reside nestas regiões é, em sua maioria, originária de migrações internas, provenientes principalmente do Estado do Rio Grande do Sul. Seus ascendentes são imigrantes europeus que chegaram ao Brasil em diferentes fluxos, durante os períodos de guerras, entre guerras e pós-guerras mundiais, com o intuito de conquistar uma nova terra, construir uma nova vida e enriquecer através do trabalho. Somadas estas características, é possível compreender melhor a formação política de ambas as regiões, que desde o início da ocupação territorial distinguiram-se das demais regiões catarinenses. Enquanto que no oeste e extremooeste catarinense seguia-se por uma direção política mais progressista - dada a formação religiosa (progressista), a cultura rural de trabalho e as influências de ter vivido no Rio Grande do Sul, estado onde o Partido Trabalhista Brasileiro - PTB marcava o cenário político -, nas demais regiões do Estado preponderava a dominação político-oligárquica de dois partidos conservadores: a União Democrática Nacional - UDN e o Partido Social Democrata - PSD. Logo, quando observamos a região oeste, dois fatores devem ser levados em conta: uma cultura política anterior desta população e a atuação na Igreja Católica local, com uma perspectiva majoritariamente popular de empoderamento daqueles que não têm voz. O surgimento e trajetória dos movimentos sociais, exatamente nessa época [década de 1970], mostram claramente isso (RIBEIRO, 2005, p.87, grifos no original). Voltando para o contexto estadual em relação aos movimentos sociais, é fato que, embora tenham surgido mobilizações e organizações populares antes do período da Ditadura Militar deflagrada em 1964, estas eram praticamente reduzidas às manifestações de movimentos religiosos de juventude, de alguns sindicatos e associações de moradores e da Ação Popular – AP. Além destas experiências, registra-se, a partir dos anos 1950, o surgimento da Associação de Mulheres Catarinenses (AMC), reivindicando seus direitos como igualdade salarial e creches, sendo, algumas das militantes, ligadas ao Partido Comunista do Brasil - PCB, o que demonstra o perfil ideológico deste grupo (RIBEIRO, 2005). Além destas mobilizações, é possível reconhecer no cenário de mobilizações catarinenses, algumas incidências no campo sindical. Estas já 123 figuravam nos anos 1950 e seguintes, sendo ligados à Confederação Geral dos Trabalhadores – CGT e contestavam o sindicalismo oficial brasileiro. Assim, configurava-se, aos poucos, no Estado de Santa Catarina um ‘sindicalismo combativo’, cujos discursos eram deflagrados preponderantemente contra o ‘peleguismo’ sindical. A partir do Golpe Militar de 1964 todas as experiências de mobilizações, organizações e lutas populares ou sociais do Estado são reprimidas, do mesmo modo como aconteceu no restante do país, “reaparecendo somente no final da década de 1970, com um sindicalismo diferente, novas formas de associativismo civil e movimentos sociais distintos” (RIBEIRO, 2005, p.97). É neste período de ‘reaparecimento das mobilizações sociais’ no Estado, que a Teologia da Libertação - TL começa a vigorar em terras catarinenses com maior entusiasmo. Rapidamente ela vai se tornando a referência para os movimentos sociais tanto do campo quanto da cidade, marcando o período entre as décadas de 1970 e início de 1980 com o aparecimento de diversos movimentos sociais, dentre os quais se encontram aqueles ligados ao contexto de lutas rurais: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST, o Movimento de Atingidos por Barragens - MAB e o Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA. É na década de 1980 que se nota um grande número de sindicatos catarinenses de diversos setores filiando-se à Central Única dos Trabalhadores – CUT. Isto possibilita identificar que o ‘sindicalismo combativo’ ou ‘sindicalismo de oposição’ da década anterior havia se firmado no cenário estadual, contribuindo para que fluíssem alguns processos, principalmente no âmbito político da sociedade – mas também no âmbito cultural e social –, ocasionando um campo profícuo para a expansão dos partidos políticos de esquerda, destacadamente o Partido dos Trabalhadores – PT, confirmando-se em Santa Catarina o que estava acontecendo no cenário nacional. Neste mesmo período ocorre o surgimento de movimentos com temáticas e identidades diversificadas, tais como aqueles de caráter ambientalista, étnicoracial, feminista, entre outros, os quais colaboram para que o cenário catarinense da década de 1980 fosse sendo revestido por mobilizações, lutas e movimentos sociais e culturais contestatórios e reivindicativos. 124 Conforme aponta Ribeiro (2005, p.99), As regiões Oeste, Extremo Oeste e Planalto Serrano do Estado, mesmo tendo se urbanizado e se industrializado, permaneceram com base econômica fundamentalmente agrícola, o que marca profundamente os movimentos sociais mais significativos destas regiões, muitos surgidos no final dos anos 1970, início da década de 1980. São movimentos sociais marcadamente rurais, como o MAB, surgido em 1979; os Movimentos de Oposições Sindicais que apareceram no fim dos anos 1970, início dos 1980 [...]; o MMA, que tem sua fundação em 1983, bem como o MST, que oficialmente surge em 1985, mas que começa a se estruturar bem antes. Para finalizar esta seção do estudo que trata sobre o contexto histórico dos movimentos sociais catarinenses, é imprescindível registrar, segundo a mesma autora, que todos estes movimentos, mobilizações e lutas sociais surgidas no período pós-ditadura militar, tiveram forte influência da Igreja Católica Progressista. Esta interferência propositiva, cuja origem vincula-se à Teologia da Libertação, foi marcada principalmente pelo Movimento de CEBs e pelas diversas Pastorais Sociais, dentre as quais estão a Pastoral da Juventude - PJ e a Comissão Pastoral da Terra – CPT, que também datam seu surgimento em fins da década de 1970 e seguinte. Entretanto, já nos anos 1990 ocorre um recuo desta Igreja Progressista em quase todas as regiões do estado, com exceção da região Oeste e Extremo Oeste, o que faz com que aconteça, ainda naqueles anos, um arrefecimento de alguns destes movimentos. Esta tendência é confirmada nos anos 2000, quando há um visível retorno da Igreja Católica ao conservadorismo, figurado pela própria transição papal quando do falecimento no ano de 2005 do Papa João Paulo II e eleição do Cardeal Ratzinger (ligado à ala ultraconservadora da Igreja, a Opus-Dei) como seu substituto, o qual passa a se chamar Papa Bento XVI. Ainda na década de 1990 e mais intensamente a partir do novo milênio, ocorre o processo de globalização e junto com ele a mundialização da economia, o aprofundamento da política neoliberal ditada pelas agências internacionais e a monopolização da cultura pela mídia consumista mundial. Isto também vem interferir no cenário dos movimentos sociais. Todas as características deste período, já elencadas anteriormente, influenciaram no modo de ser e fazer dos movimentos sociais também em Santa Catarina. Nas palavras de Ribeiro (2005, p. 152), 125 Aliado à dimensão econômica da globalização, outro fator marcante do contexto, considerando a origem rural destes movimentos [da região oeste catarinense], foi o processo migratório campo/cidade decorrente das políticas agrícolas, até então, adotadas. [...] Acrescenta-se a isto a perda de lideranças, que na busca de subsistência, deixam a luta social. [...] Por outro lado, os movimentos da região tiveram parceiros outros que contribuíram para a reorientação das lutas, tal como a Universidade. É importante lembrar que os mesmos chegaram aos anos 1990 embalados pelas conquistas inscritas na Constituição de 1988, seja no mundo urbano, seja no mundo rural. Mas, ao longo da década, os limites, decorrentes do novo modelo econômico foram se delineando: o agravamento da crise da agricultura, o êxodo rural acelerado, a privatização, dentre outros. É óbvio que não foram apenas estes fatores a arrefecer os movimentos sociais e nem que isto tenha ocorrido somente em Santa Catarina. Igualmente, vários outros elementos colaboraram para que esta tendência de mudança nos movimentos sociais acontecesse também em outros cenários. Alguns estudiosos, ou simplesmente ‘palpiteiros’, indicavam um momento de ‘crise dos movimentos sociais’, outros chegavam a afirmar que estas formas de processos sociais estavam morrendo. Aqui não serão discutidos estes paradigmas de análise, mas cabe sinalizar que os anos 2000 foram anos de transformação, inclusive, para os movimentos sociais. E quando se fala ‘inclusive’ é porque ‘esta tal transformação’ não foi um processo solitário dos movimentos sociais, nem ocasionada apenas por eles. Tratou-se de um momento histórico de intensas, rápidas e bruscas transformações no cenário local, estadual, nacional e internacional das sociedades, sejam elas capitalistas ou então de experiência socialista. Porém, no âmbito destas transformações, os movimentos sociais não ficaram ‘esperando’ para ver o que iria acontecer. Sentindo as conseqüências da realidade, buscaram formas de compreendê-la e, por isso, começaram a investir fortemente na formação de seus quadros de militantes, o que ocorria não apenas no aspecto político, mas envolvia o processo intelectual na sua integralidade. Os movimentos sociais ligados ao campo foram alguns dentre os movimentos que mais investiram na educação formal e informal de seus quadros. Assim, observa-se ainda na década de 1990 a efetivação do projeto de ‘Universidade do Campo do MST’. O Movimento de Mulheres Camponesas também não fica para trás, instigando e incentivando para que várias mulheres camponesas chegassem nas Universidades, atingindo inclusive níveis de pós-graduação stricto 126 sensu. Exemplo disto é a militante do MMC, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto, que ainda em 1999 defende sua dissertação de mestrado no Programa de História da PUC-SP, com o título de “Atalhos da luta: trajetórias e experiências das mulheres agricultoras e do Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina (19831993)”. Este cenário de transformações foi marcado por ações significativas para a sociedade em geral, para as camponesas e os camponeses, e, principalmente, para os próprios movimentos sociais catarinenses ligados ao campo. As ações são tanto as que implicaram na construção de experiências concretas que materializaram as lutas desenvolvidas pelos vários sujeitos coletivos, como aquelas que contribuíram para a retomada dos princípios fundantes dos movimentos, as que se materializaram em conquistas de direitos sociais, as que se concretizavam na formalização de instrumentos de luta dos movimentos e aquelas que implicaram em revisão interna dos próprios movimentos, possibilitando-lhes um salto de qualidade na forma de organização. Cabe ainda ressaltar as ações de protesto, de luta por direitos, de mobilização de massa, entre outros (RIBEIRO, 2005). Por outro lado, é importante ressaltar que tais transformações iniciaram na década de 1990 e dão mostras de que até hoje não findaram. Portanto, não se sabe até onde elas chegarão e nem como será a trajetória futura dos movimentos sociais catarinenses, brasileiros e/ou latino-americanos. No entanto, o que se sabe é que os movimentos sociais são resultado do processo contraditório de construção da sociedade - de caráter dinâmico, plural, histórico e cultural -, o que faz com que passem eles mesmos pela transformação ocorrida no cenário social, político, econômico e cultural, para o qual colaboraram que acontecesse. Parece não haver dúvida de que os desafios encontrados neste cenário de transformações locais e globais foram grandes e geraram e foram gerados por crises externas e internas aos próprios movimentos sociais. Porém, não obstante as dificuldades enfrentadas, a superação destas crises resultou num momento de revisão destes movimentos. Como afirma Ribeiro (2005, p.163), “é inconteste que os anos 1990 foram de re-orientação para os movimentos rurais, em que o novo e o velho se fizeram presentes. Anos em que as lutas empreendidas se materializaram 127 num novo patamar: tanto na capacidade de negociação, quanto na dimensão nacional e internacional de atuação”. Enfim, a reflexão sobre movimentos sociais, que orientará as discussões e análises que seguem, é a de que são processos sociais dinâmicos, com caráter dialético em relação à realidade e à sociedade, uma vez que agem transformando ao mesmo tempo em que são transformados na cotidianidade. Atuam direta e indiretamente na construção de uma esfera de participação democrática; na configuração de novas institucionalidades; na constituição de valores e ideais que incidem na cultura; logo, intervindo no dia-a-dia da população; na conquista de direitos e nas suas efetivações através de políticas públicas. E, enfim, na construção de espaços de pluralidade, onde a soma de indivíduos se torna coletivo social e político, seja ele identificado como ator, sujeito, indivíduo ou outra terminologia que venha demonstrar seu protagonismo no cenário social, político e cultural. O desafio de estudar, discutir e investigar os movimentos sociais está nas suas características, o que exige uma atitude permanente de atenção para olhar, ouvir, entender e refletir no sentido de se captar criticamente a realidade, apoderarse de seus significados analíticos e traduzi-los para a sociedade, ampliando o poder de ação contido nestes processos sociais. 2.2.3 A caminhada dos movimentos sociais no campo Se até 1940 o messianismo e o cangaço foram formas dominantes de organização e de manifestação da rebeldia camponesa, a partir dos anos 50 as ligas camponesas e o sindicato serão as formas mais importantes de organização e luta política dos camponeses, ainda que convivendo com a persistência do messianismo e do banditismo com outras formas de luta e de resistência (MARTINS, 1986, p. 67). Com esta afirmação de Martins, inicia-se uma breve reflexão – ou melhor, resgate - sobre o histórico das lutas e dos movimentos sociais camponeses no Brasil. Segundo o autor, a relação de dominação e exploração no campo teve como marco de surgimento no Brasil a chegada dos portugueses e a política de 128 colonização implantada. Inicialmente, o fundamento desta dominação e exploração era o escravo e aos poucos passou a ser a terra. São estes os elementos que causam aprisionamento aos sujeitos, levando a confrontos diretos, ora entre escravos e senhores, ora entre camponeses e fazendeiros. “O fim do trabalho escravo, a revelação de um novo instrumento de dominação, revelou também a contradição que separava exploradores de explorados. Sendo a terra a mediação desse antagonismo, em torno dela passa a girar o confronto e o conflito de fazendeiros e camponeses” (MARTINS, 1986, p.63). E nesta questão dois componentes são fundamentais para a observação: o coronelismo e a questão da terra enquanto valor. O primeiro refere-se ao poder dos coronéis (exploradores), sendo este um poder exercido principalmente no contexto local, que apenas em alguns momentos adentrava no contexto mais amplo da sociedade. Isto significa que não era um poder presente e constante no cenário político da sociedade, embora tenha comparecido nele em vários momentos da história. Portanto, não lograva ser um poder político com ampla força de interferência, tal como o era o poder da burguesia urbana, embora detivesse um poder local que permitia dominar facilmente a população a ele subjugada. Além disso, deve se considerar que tal poder emanava de suas propriedades, dentre as quais estava o escravo. Quando este foi liberto, passou a ocupar seu lugar de sujeição o camponês pobre (explorado), que trabalha principalmente como foreiro ou meeiro28. Este componente guarda nexo, embora sutil, com as relações existentes hoje entre o campesinato brasileiro - especialmente os camponeses pauperizados, muitos dos quais são militantes de movimentos sociais – e a elite fundiária. Em relação ao segundo componente, pode-se dizer que este, sim, guarda nexo mais forte com a atual situação de lutas e disputas no campo, a qual remete à questão da propriedade, acesso e utilização da terra. Neste sentido, é importante salientar que num primeiro momento na história brasileira, as questões de terra diziam respeito às chamadas ‘terras consideradas em comum’, as quais eram 28 No contexto em discussão, foreiro é o trabalhador rural que alugava as terras do senhor de engenho, pagando-lhe uma importância anual em dinheiro e ficando ainda na obrigação de trabalhar alguns dias gratuitamente para o senhor de engenho; meeiro é o trabalhador rural que arrenda terras do senhor de engenho e como forma de pagamento divide com o senhor os rendimentos anuais obtidos de seu trabalho na terra. 129 indivisas e advinham de herança, sendo essa destinada ao herdeiro, justamente por ser ela o seu local de trabalho. É a partir do momento em que a terra começa a ter valor que começam as questões de disputa de terras no Brasil. Desejando fazer uma análise histórica do cenário das lutas camponesas no Brasil, volta-se o olhar para o início do século XX e para os conflitos identificados com o ‘messianismo e o cangaço’; respectivamente, a ‘Guerra do Contestado’ (1912-1916, Santa Catarina e Paraná) e a Guerra de Canudos (1896-1897, Bahia); e o movimento dos ‘Cangaceiros’ (final do século XIX e início do XX, sertão nordestino). Nas palavras de Martins, tanto um quanto outro [...] Já indicam uma situação de desordem nos vínculos tradicionais de dependência no sertão. A apropriação da terra pelos grandes fazendeiros, que fora subproduto da escravidão, passa a ser condição da sujeição do trabalho livre, instrumento para arrancar do camponês mais trabalho. [...] Ainda que essa resistência tenha ocorrido na moldura da dominação dos coronéis, messianismo e cangaço foram as formas primeiras de libertação, no sentido de manifestação de uma vontade própria (MARTINS, 1986, p.62). Conforme se destacou no início deste item, estas duas lutas sociais marcaram a história e todo o cenário brasileiro até por volta da década de 1940, quando começam a surgir movimentos camponeses em todo o Brasil. Há que se registrar, inclusive, que é na mesma região sul do Brasil, onde ocorreu o conflito caracterizado pelo messianismo, chamado de ‘Guerra do Contestado’ – divisa dos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná - que irão surgir entre as décadas de 1970 e 1980 as primeiras organizações dos movimentos camponeses mais conhecidos na atualidade: o Movimento de Agricultores Atingidos por Barragens - MAB, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST e o Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA. Mesmo hoje, estes movimentos têm em seus princípios orientadores de luta o direito à propriedade e de acesso a terra, para produzir. Entretanto, antes de iniciar a discussão sobre os atuais movimentos camponeses, é imprescindível dedicar atenção para os movimentos e lutas camponesas que marcaram a história brasileira. É importante, de saída, se dizer que as lutas camponesas foram consideradas, na grande maioria dos momentos políticos da nação como ‘lutas de menor valor’, ou de menor poder político de transformação. Entendia-se que era do 130 contexto urbano que emergiam, não somente as expressões da questão social, mas também as forças políticas que poderiam ameaçar a ordem burguesa num país continental, cujo ordenamento político de Estado ainda estava em construção. Era do urbano também que brotaria o desenvolvimento econômico, político, social e cultural da nação. O Campo figurava neste cenário ainda como nos tempos coloniais, como mero fornecedor de matérias-primas de subsistência da nação e, em outros momentos da conformação econômica brasileira, como produtor das matérias para exportação: cana de açúcar, café, algodão, entre outros, mas cujo poderio de negociação econômica e política desta produção era exercido no espaço urbanizado das capitais e pelas figuras também urbanas da burguesia brasileira. A grande questão que se colocava era a forma pela qual o campo – vida, trabalho, relações sociais, políticas, culturais, relações de produção e a própria produção – é compreendido na esfera de produção de riquezas no mundo capitalista. O mundo rural, tal como analisado no capítulo da dissertação que antecedeu a este, guarda grande associação, no campo ideológico, com o mundo arcaico/feudal. A imagem é de um mundo romântico e bucólico, mas que causa atrasos para a modernização e, portanto, para o desenvolvimento capitalista brasileiro. As lutas e movimentos sociais no campo parecem ter herdado estes ranços figurativos, recebendo respingos que os tornam lutas de menor valor, tanto para as elites que controlam o país política e economicamente, quanto para o próprio conjunto de movimentos contestatórios da ordem capitalista. Para Martins, o grande elemento responsável pela atribuição de menor valor diz respeito ao capitalismo e às relações de trabalho que nele se desenvolvem, colocando o camponês num patamar de subalternidade. Todas as lutas das categorias sociais cuja existência não está baseada no trabalho assalariado são consideradas lutas condenadas, sem futuro, sem importância histórica, portanto. É que são tidas como lutas de resistência ao desenvolvimento do capitalismo, ao progresso da sociedade, diferentes das lutas operárias que deverão levar à superação do capitalismo e à construção do socialismo (MARTINS, 1985, p.77). Por conseguinte, a vida, as demandas e lutas dos trabalhadores camponeses vão se inserindo timidamente na história social e política do país. Para 131 falar do processo do camponês ao longo da história, Martins toma como exemplo o caso da cultura de cana-de-açúcar no nordeste. Segundo ele, O agregado marginal no regime de trabalho escravo, ocupado ocasionalmente no trabalho da cana de açúcar, passa ao lugar principal como fim da escravidão, como morador de condição [aluguel da terra em troca de pagamento em dinheiro e também em dias de trabalho gratuito], para, à medida que a condição aumenta e que seu trabalho gratuito ou barato na cana é a renda que paga pela terra em que planta a sua subsistência, ir aos poucos se convertendo em assalariado (MARTINS, 1986, p.66). Ora, é indiscutível como figura a subalternidade do trabalhador camponês em todas as imagens que retratam sua relação com a sociedade, seja no campo do trabalho, da produção, seja no campo cultural e social. Em outra obra, discutindo emancipação política e libertação dos movimentos sociais no campo, o mesmo autor afirma que O ponto essencial é que a condição subalterna do camponês já não aparece nessas interpretações como decorrência de uma desqualificação, pura e simples, em face da suposta superioridade e da eficácia histórica do próprio desenvolvimento econômico. Aí a subalternidade aparece na privação do conhecimento pleno das situações e do processo histórico por parte das populações camponesas. Manifestação de uma espécie de insuficiência cultural. Aqui caberia dizer que tal insuficiência não é resultado de uma incompetência, mas, antes, expressão da própria subalternização do camponês, componente de sua pobreza (MARTINS, 1986, p.66). Somente na história mais recente é que surgem instituições ou organismos que irão mediar os conflitos entre camponeses e senhores, trabalhadores rurais e proprietários/usineiros no campo, a partir da defesa dos camponeses e contra a exploração dos fazendeiros e latifundiários. Em 1955 surgem as Ligas Camponesas e pouco tempo depois começam a aparecer alguns sindicatos. Isto acontece nas várias regiões do país, com a intensidade política mobilizadora e as características próprias de cada região. Assim, são observadas no nordeste as lutas dos trabalhadores da cana, na região do estado de São Paulo as lutas se situam no entorno da cultura cafeeira e assim por diante. Uma das regiões de conflitos camponeses que têm relevância para a história dos movimentos sociais no campo trata-se da região mineira de Teófilo Otoni e de Governador Valadares, cuja insurgência dos conflitos iniciou-se ainda na década de 1940 e se alastrou até meados da década seguinte. Especificamente na última cidade, em 1955 foi fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, não reconhecido formalmente, constituído por trabalhadores posseiros e alguns 132 arrendatários, expulsos das terras em que trabalhavam e moravam. Com este fato os conflitos na região aumentam, sendo que ambos somente irão finalizar com a repressão do Estado, tal como aconteceu com Canudos e Contestado. Sobre as Ligas Camponesas e os conflitos instalados na região do Nordeste Brasileiro, serão apresentados, sinteticamente, alguns pontos que possibilitarão compreender qual foi sua importância, bem como a de outros atores coletivos que contracenaram naquele contexto, para as lutas sociais no campo que se seguiram. Em 1955 surge no ‘Engenho Galiléia’, Pernambuco, num contexto de crise regional, de expansão dos canaviais e de expulsão de foreiros da terra, uma associação denominada ‘Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco’, logo conhecida como Liga dos Camponeses. Era formada por pequenos camponeses autônomos, foreiros expulsos ou em processo de expulsão das terras alugadas (foro) nos antigos engenhos, que no início da organização contavam com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB) e com a oposição da Igreja Católica. Espalhou-se rapidamente pelo nordeste e, mais tarde no Rio de Janeiro, representando uma instituição de luta pelos direitos dos camponeses e dos trabalhadores das ‘recentes’ usinas de cana de açúcar, contra a expulsão dos primeiros das terras e a favor de uma revolução camponesa. Segundo Martins (1986, p.77), “embora formalmente reconhecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, os trabalhadores rurais não gozavam no país inteiro de direito à sindicalização”. Isto faz com que, diante da impossibilidade de organizar um sindicato de trabalhadores rurais, crie-se uma ‘associação’ com a finalidade de organizar e legitimar as ações deste grupo de trabalhadores da canade-açúcar. As Ligas Camponesas, desde o seu surgimento, mantêm forte relação com a esfera política eleitoral, na perspectiva de avançar na conquista de seus direitos. Neste sentido, participava dando apoio ou fazendo oposição às candidaturas locais e regionais, destacando-se sua participação para a vitória no estado e na capital pernambucana de uma aliança de centro esquerda, ainda em fins da década de 1950. 133 Neste período, ainda mantinha vínculo com o Partido Comunista do Brasil, através de Francisco Julião, advogado e deputado socialista, que assessorava as Ligas Camponesas em sua organização e lutas. A atuação das Ligas acabou por reforçar o cenário de participação política tanto dos camponeses, quanto dos trabalhadores rurais das usinas, que viviam um processo de assalariamento. No período seguinte, como conseqüência do próprio avanço do movimento camponês durante os anos 1950, o presidente João Goulart (1961-1964) se empenha na regularização dos sindicatos, o que faz com que o sindicalismo rural se desenvolva rapidamente pela região e comece a acontecer um refluxo das Ligas Camponesas. As Ligas Camponesas, no entanto, continuam a insistir na sua importância e reconhecimento como defensora dos interesses dos camponeses e da própria ‘revolução camponesa’. Já o Partido Comunista começa a apoiar a criação e fortalecimento dos sindicatos de trabalhadores rurais, numa perspectiva de que a ‘revolução democrático-burguesa’ poderia acontecer a partir da convivência pacífica entre a burguesia e os trabalhadores rurais. Soma-se a esse contexto de refluxo e crise das Ligas Camponesas, o Golpe Militar de 1964 e a perseguição política aos ‘perigosos’ comunistas e movimentos sociais, instalada pela ditadura militar. Ora, se já anteriormente as Ligas viviam um período de refluxo, dado o avanço do sindicalismo rural de Estado, agora, sim, elas desapareceriam. Numa perspectiva de análise deste processo histórico de luta dos camponeses e dos trabalhadores rurais – mesmo que em fase de assalariamento -, percebe-se que houve uma correlação de forças dentro do próprio grupo de trabalhadores camponeses que viviam na região. A distinção entre eles, para confirmar a questão da centralidade da terra e da renda extraída dela, era a de que os camponeses, embora estivessem sendo expulsos da terra que anteriormente tinham alugado dos antigos senhores de engenho/coronéis, mesmo sendo explorados por eles, não eram tão empobrecidos e tinham certa autonomia de trabalho e produção. Logo, seu interesse não estava diretamente na propriedade da terra, mas numa estratégia que lhes permitisse 134 continuar produzindo cana para os usineiros, atentos à renda que poderia ser extraída da terra. Já os considerados trabalhadores rurais não tinham autonomia para produzir, tinham sido expulsos várias vezes das terras que ocupavam, viviam empobrecidos, sendo obrigados a trabalhar para os usineiros e a morar no entorno das usinas, pagando aluguel e vivendo com suas famílias em precárias condições. Para eles a luta era, sim, pelo acesso à terra e pelos seus direitos enquanto trabalhadores rurais. Conforme Martins (1986), muitos outros conflitos do campo marcaram a história brasileira em cada região ou Estado do país. A revolta de Trombas e Formoso em Goiás (1948), a Guerilha de Porecatu no Paraná (1950), a Revolta do Sudoeste do Paraná (1957) na região de Pato Branco, Francisco Beltrão e Capanema, entre outros. O autor diz que esses movimentos eram bastante distintos entre si, sendo suas características assumidas conforme o contexto de cada região. Em suas palavras, “embora tais movimentos não apresentem unidade na forma de sua expressão, organização e seus objetivos, eles apresentam certa unidade quanto à causa. De fato, o que em todos estava em jogo não era propriamente a propriedade da terra e, sim, a renda capitalista da terra” (MARTINS, 1986, p.79). Embora, neste capítulo, o objetivo é de uma explanação sobre os movimentos sociais – num sentido bastante amplo que contempla vários aspectos, desde os teóricos até os históricos sobre o surgimento -, não se pode isentar da análise de que se discorda - em parte - desta consideração de Martins (1986). Concorda-se que a maioria dos movimentos sociais do campo, os quais surgiram no Brasil da Nova República, tinham como principal zona de conflito o acesso da terra, para dela poder extrair maior renda. Dizendo isto, reconhece-se que os posseiros, por exemplo, desejavam continuar no mesmo local de onde estavam sendo expulsos, isto é, ter a posse da terra, mas não necessariamente queriam ter propriedade sobre ela. Entretanto, caso se volte o olhar para o empobrecimento e a exploração contínuos de muitos camponeses, observar-se-á que nos objetivos das lutas que travavam estava, sim, o desejo de acesso e ‘também’ de propriedade da terra. A questão sobre ‘a maior renda’ possível de ser extraída daquele chão, vinha para a 135 maioria dos movimentos sociais do campo como discussão conseqüente ao direito de ter terra para trabalhar e de nela permanecer, o direito a sua propriedade. Assim aconteceu com os combatentes da Guerra do Contestado, pintados na história brasileira como ‘fanáticos’, mas que lutavam por um espaço de terra em que pudessem trabalhar e viver com sua própria organização, gozando de autonomia, cultivando seus valores, crenças e costumes, longe da exploração da sociedade capitalista que se apresentava para eles na figura das empresas internacionais de colonização da região sul do país. Assim, também se observa no caso da luta dos trabalhadores rurais das usinas de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro. O próprio Martins, poucos anos mais tarde, irá dizer que “a compreensão sociológica das lutas populares no campo, o desvendamento do seu sentido histórico, seu alcance e seus limites passa, pois, necessariamente, por esse eixo estrutural da questão, que é a propriedade da terra: o direito que a sustenta e o uso que dela se faz” (MARTINS, 1988, p.67). Ora, tanto a propriedade da terra, quanto seu acesso, interferem diretamente no modo pelo qual se estabelece a relação com a terra. A renda possível de ser extraída desta propriedade pode, sim, em alguns momentos e contextos, ser um fator importante para significar a disputa pela terra, mas não tirará o sentido maior que é a luta pelo direito de propriedade e acesso da terra. Destarte, É particularmente essencial compreender que a forma assumida pela propriedade territorial ‘amarra’ relações sociais, organiza relações de classes, sustenta relações econômicas e relações políticas, edifica uma determinada estrutura de poder, alimenta relações de dominação, define limites para a participação democrática nas diferentes classes sociais, particularmente as classes trabalhadoras (MARTINS, 1988, p.67). Não obstante esta consideração, volta-se ao resgate da trajetória histórica dos movimentos e lutas sociais camponeses no Brasil, para registrar que todas elas sempre giraram em torno da questão da terra e da ‘premente necessidade de uma reforma agrária’. Apenas em alguns momentos a luta por direitos para aqueles que viviam no campo aparecia no rol das reivindicações, mesmo assim, eram considerados pelo Estado, pela burguesia, pelos historiadores e estudiosos como conteúdo de menor valor diante da emblemática disputa pela terra. 136 Sinaliza-se com isto, que na trajetória histórica dos movimentos sociais no campo, embora muitos aspectos das lutas sociais sejam relevados e considerados de menor valor - tais como a luta por direitos numa outra proposta de sociedade – eles estiveram, sim, presentes no ideário dos militantes. Ora apresentavam-se como luta pelos direitos trabalhistas e pelo pagamento de salário por seu trabalho, ora se colocavam no plano da conquista de autonomia e contra o mando e a dominação, seja do Estado, seja da aristocracia rural – e logo após, da burguesia - agrária e urbano-desenvolvimentista. Observa-se que Martins sinalizava, há mais de 20 anos, que uma categoria de camponeses, cuja luta estava sendo colocada ‘de lado’ era a dos pequenos proprietários rurais. Numericamente a mais importante, mas cujas lutas têm se limitado a disputas periódicas em torno de preços de produtos agrícolas. Cada vez mais subjugados pela agroindústria e pelo capital industrial, tem se orientado, sobretudo para lutas econômicas com as empresas e os bancos, ou contra a política de preços agrícolas do governo (MARTINS, 1985, p.104). É notória que a luta social no campo assume a diversidade proporcional à diversidade da própria composição territorial, populacional e cultural brasileira. Ela também conforma lutas econômicas, além daquelas sociais, as quais trazem sempre imbricações no campo político e cultural da sociedade brasileira. Outra expressão de lutas pela conquista de direitos no campo, ainda no período anterior à Ditadura Militar, deu-se através das propostas dos partidos políticos de oposição, os quais representavam a vanguarda política. Nota-se que o ‘Manifesto de Agosto’, de 1950, apresentava uma proposta coletiva de composição entre operários, camponeses e camadas médias. As questões camponesas tinham destaque e o plano da luta e da ação aconteceria através da revolução29. Martins (1986, p.84) relembra que A ação do partido em vários dos movimentos camponeses da época foi claramente influenciada pela idéia de criar governos municipais democráticos de libertação nacional. [...] Já em setembro de 1953, fora organizada a Primeira Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas em São Paulo, Paraíba e Ceará, definindo-se pela criação de sindicatos, fundação de uma entidade nacional e organização dos trabalhadores rurais. Em agosto de 1954, houve também o Congresso Nordestino de 29 O aprofundamento desta questão pode ser encontrado no livro ‘Os camponeses e a Política no Brasil’, de José de Souza Martins, capítulo II, item 5. Referência completa no final da dissertação. 137 Trabalhadores Rurais, em Limoeiro, que foi encerrado violentamente pela polícia. Em 1954, foi fundada a ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil) que seria o germe da futura Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG). Não será aqui aprofundada a proposta daquele partido. Outros autores – como José de Souza Martins - o fazem com maior propriedade e podem ser buscados diretamente pelo leitor. Pretende-se, tão somente, registrar que houve no Brasil, mesmo antes do período ditatorial militar, discussões políticas, lutas, mobilizações e movimentos sociais que dedicavam um olhar para o campo, para o camponês, sua família, seu trabalho e condições de vida. As estratégias pelas quais isto acontecia, ou mesmo as propostas que surgiam destas organizações, partidos políticos e movimentos sociais eram as mais diversas. No caso do PCB, a proposta era de ‘Revolução Socialista’, que aconteceria através da revolução passiva, que aconteceria através de reformas parciais, nos marcos da legalidade. A Igreja Católica atenta à difusão dos ideais comunistas e/ou anarquistas também se coloca nessa disputa no campo. A Igreja entrou na questão agrária através da pastoral de D. Inocêncio, por uma porta extremamente reacionária. Aquela pastoral nasceu numa reunião de fazendeiros, padres e professores rurais e não numa reunião de camponeses e trabalhadores rurais. A preocupação era com a agitação que estava chegando ao campo, com a possibilidade da Igreja perder os camponeses, como tinha perdido os operários. [...] No entender dos bispos, só a fixação do homem a terra evitaria o êxodo, a proletarização. A transformação do trabalhador em pequeno proprietário constituía assim a única saída para salvá-lo do comunismo. As propostas são destinadas a criar uma classe de camponeses que servisse de barreira de contenção da maré vermelha. Ampliar o número de pequenos proprietários para salvar a propriedade privada (MARTINS, 1986, p.88). O sindicalismo camponês teve uma trajetória semelhante àquela do urbano. Quem revisa esta trajetória é a estudiosa Scherer-Warren (1987), que ressalta o fato de que até 1964 havia uma tutela política do sindicato camponês, o qual desenvolvia lutas sociais – muito embora ainda incipiente –, as quais pairavam entre as perspectivas do populismo, do PCB e da Igreja Católica. A partir de 1964, o sindicato se institucionaliza e passa a atuar nos moldes do sindicalismo urbano, atrelado ao Estado. No período mais recente (década de 1980), depara-se com a formação de um movimento sindical paralelo àquele sindicalismo oficial no campo. Conforme a autora, [Um dos marcos é que] os sindicatos de trabalhadores rurais da Região Sul reúnem-se em Chapecó – SC, em maio de 1984, organizando novas formas 138 de luta e propondo coordenações estaduais do que denominam ‘sindicato combativo'. [...] É uma estrutura sindical diversa da atual, em pequenos grupos, engaja todos, homens, mulheres e jovens; faz crescer a consciência de classe; é mais autêntica que o próprio sindicato; é incompatível com a autopromoção; as decisões do trabalhador é que definem os rumos da luta (SCHERER-WARREN, 1987, p.44). Entre meio das décadas de 1950 e 1960 vivia-se um período tenso, de agitações sociais e de instabilidade política. Em 1961 o então presidente Jânio Quadros renuncia e João Goulart assume a presidência do país. Diante do cenário social e político já expresso – pelo menos parcialmente -, surge no estado do Rio Grande do Sul o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), através da via institucional, sob a direção do então governador do Estado, Leonel Brizola. O campo se agitava. O Estado estava temeroso. Da sociedade emanavam protestos contra a situação social e econômica e contra a onda de avanço da ação internacional no país e de dependência externa, provocada pelas políticas dos últimos governos. Em meio a esta turbulência e alegando perigo de ruptura da ordem nacional, os militares organizam um golpe e tomam o poder em 1964, instalando a ‘ditadura militar’. Todos os movimentos e lutas sociais, bem como sindicatos, partidos políticos revolucionários e organizações da Igreja Católica Progressista – ligados à Teologia da Libertação – sofrem dura repressão e são eliminados do cenário da sociedade, retornando timidamente na segunda metade da década de 1970, quando a ditadura começa a abrandar. Muitos trabalhadores rurais, líderes dos movimentos e sindicatos, militantes de partidos políticos são presos e torturados violentamente. Alguns são assassinados e outros são exilados pelo Estado autoritário. As lutas sociais que estavam em curso no cenário rural brasileiro sofrem um duro golpe e a possível reforma agrária é adiada. Vivem-se anos de silêncio e de medo. Por outro lado, há que se considerar que foi durante o período da Ditadura Militar que o Estatuto da Terra foi criado. Nota-se com isto que O golpe militar não desencadeia, portanto, a situação de conflito. Ao contrário. O golpe e a política fundiária do Estado Militar golpeiam também a luta camponesa, a revolta no campo. E trabalham para despolitizá-la. [...] O que muda com a ditadura é o direcionamento militar e geopolítico do conflito, como forma de circunscrever a luta dos trabalhadores rurais para, ao mesmo tempo, com incentivos fiscais, a transformação do grande capital em proprietário de terra (MARTINS, 1989, p.76). 139 Então, a pergunta que vem à tona é sobre os motivos que levaram o Estado ditatorial, numa conjuntura totalmente adversa à conquista de direitos e à efetivação da reforma agrária a fazê-la? Ora, as causas desta aprovação podem ser encontradas na própria forma pela qual ela foi pensada e divulgada pelo governo. A reforma agrária havia sido apresentada como medida que, possivelmente ampliaria o mercado interno, interessaria à própria burguesia, proporcionando um processo de transformação e de ‘modernização da agricultura’30, o que seria imperativo do próprio desenvolvimento capitalista (MARTINS, 1986). Portanto, a ditadura militar conseguiu atenuar significativamente as lutas e movimentos sociais no campo, quase que as levando à extinção, seja pela truculência e violência com que foram perseguidos e combatidos os camponeses e camponesas que lideravam os movimentos até aquele momento, seja pela via institucional de uma reforma agrária proposta segundo os interesses da burguesia nacional e sob os marcos do capitalismo desenvolvimentista internacional. Ou seja, uma reforma agrária que vinha de cima, fruto dos interesses da classe burguesa dominante e não da base camponesa, da classe trabalhadora. No entanto, o tensionamento político repressivo e a conjuntura econômica do país vão, gradualmente, ocasionando um desgaste do regime político autoritário, que acaba perdendo sua sustentação já no final da década de 1970. É o momento de ressurgimento dos movimentos sociais e da criação de novos. Dadas as estratégias de imobilização dos movimentos sociais, utilizadas no período inicial da ditadura, as primeiras mobilizações sociais camponesas e a própria organização dos movimentos sociais começou a agregar forças em torno dos direitos trabalhistas e do sindicalismo rural, para somente anos depois congregar forças na direção da reforma agrária. Destarte, aparecem inicialmente movimentos como o dos ‘Agricultores Atingidos por Barragens’ (MAB) e o próprio ‘Movimento de Mulheres Agricultoras’ (MMA) – objeto desta investigação. O sindicalismo combativo adquire força política e aparecem no cenário novos partidos políticos, bem como novas frentes de lutas 30 O processo de ‘modernização da agricultura’ marca o cenário do campo no Brasil, merecendo ser aprofundado. Sugere-se para isso, consultar autores como ABRAMOVAY (1992), PAULILO (1989), STROPASOLAS (2006), SILVA (2003), entre outros. 140 políticas, sociais e econômicas que unem diversos segmentos da sociedade, assumindo como bandeira comum das lutas a ‘redemocratização’ do país. Scherer-Warren (1993) salientava que entre os mais expressivos movimentos sociais e formas de organização camponesa, surgidos em fins da década de 1970 e posteriormente na década de 1980, estava o ‘Movimento de Atingidos por Barragens’ a partir de 1976, com atuação nas regiões nordeste e sul; o ‘Movimento dos Sem-Terra’, a partir de 1979, com articulação principalmente na região sul e sudoeste; e o ‘Movimento de Mulheres Agricultoras’, organizado a partir de 1981, na região sul e logo se expandindo para outras regiões e estados. Segundo a autora, “estes movimentos têm se influenciado reciprocamente e têm recebido o apoio de uma corrente do sindicalismo no campo, denominada ‘novo sindicalismo’ ou ‘sindicalismo combativo’. Por outro lado, são os próprios movimentos que também estimulam a renovação sindical” (SCHERER-WARREN, 1993, p.66). Grzybowski (1991), em um estudo que marca o início dos anos 1990, apontava que as relações sociais de produção e de propriedade são o foco central dos movimentos sociais camponeses e que, portanto, é importante visualizá-los enquanto grupos voltados, inclusive, para o fortalecimento da agricultura camponesa. Neste sentido, esses movimentos conferem as suas ações um sentido político que resulta das experiências acumuladas em vários outros pequenos movimentos sociais, tais como as Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s e Movimentos Sindicais, os quais estariam articulados às grandes lutas da classe trabalhadora. Scherer-Warren (1993) corrobora esta afirmação sobre a presença de um sentido político nas ações dos movimentos sociais do campo, dizendo que as novas formas organizadas no espaço rural valorizam a participação ampliada das bases, a democracia direta e se opõem ao autoritarismo, à centralização do poder e ao uso da violência física. Além disto, no conteúdo de suas lutas está a busca pela ampliação do espaço da cidadania, incluindo-se aí a modificação das relações sociais cotidianas. Para a autora, a maioria destes grupos pretende modificar o jogo 141 de relações de poder31 e, neste sentido, são entendidos como verdadeiros movimentos sociais. Foi neste contexto das lutas sociais no campo que, a partir das primeiras experiências de organização e atuação política e social, surgiram e se ampliaram alguns movimentos que apontaram para outras questões, além da terra, do salário (direto) e da produção camponesa. Um desses movimentos é o Movimento das Mulheres Agricultoras. Seria errôneo, porém, entender que a presença de mulheres nas lutas sociais no campo, no Brasil, seja recente. As lutas no campo já produziram mulheres líderes do porte de Elizabeth Teixeira (das Ligas Camponesas), Margarida Maria Alves (Presidente do Sindicato de Alagoa Grande, na Paraíba, assassinada em 1983), Maria Oneide Costa Lima (líder dos posseiros em São Geraldo, na conflagrada região do Araguaia-Tocantins). Em todas as lutas as mulheres se fazem presentes e empurram os próprios maridos: nas lutas de posseiros, dos sem-terra, das barragens, de assalariados, de integrados (GRZYBOWSKI, 1991). Afirmando a presença das mulheres nas lutas camponesas, o mesmo autor constata o elemento que passa a configurar aquele momento da década de 1980, como um novo momento para as mulheres na história das lutas sociais no campo: se antes elas participavam, fortaleciam e até mesmo ancoravam as lutas gerais de homens e mulheres camponeses, a partir de então elas começaram a fomentar um movimento com base nas suas questões enquanto mulheres trabalhadoras rurais. “As reivindicações estão centradas no reconhecimento social e legal de sua situação como mulheres e trabalhadoras: direito à sindicalização, à terra, à previdência social etc.” (GRZYBOWSKI, 1991, p.47). Assim, surgiram, em vários lugares do Brasil, diversos grupos de mulheres trabalhadoras rurais: as Mulheres Trabalhadoras Rurais no Rio Grande do Sul (1985), o Movimento das Mulheres do Brejo Paraibano (mesmo período), e vários outros movimentos e manifestações do norte ao sul do país. Segundo Grzybowski (1991, p.48), o Movimento das Mulheres Agricultoras surgiu como ‘movimento de base’ na região Oeste Catarinense e Norte 31 Adverte-se para o fato de que este conceito é desenvolvido por Michel Foucault, no livro “Vigiar e Punir” (1975). A partir da década de 1980, passa a ser utilizado por muitos estudiosos em todo mundo, principalmente das ciências humanas e sociais. 142 do Rio Grande do Sul, conhecida como região do Alto Uruguai. Suas lutas no contexto inicial de mobilização estavam voltadas para “A sindicalização das mulheres, seu direito à aposentadoria, direito à assistência médica e à indenização por acidentes de trabalho. Surgiu em Chapecó, em 1981, articulado à oposição sindical e adquiriu autonomia como movimento desde fins de 1982. [...] Este movimento exigiu, também, que no recadastramento eleitoral recente os juízes reconhecessem o direito das mulheres de serem identificadas como ‘agricultoras’ e não ‘do lar’”. Enfim, aparece o Movimento de Mulheres Camponesas no cenário brasileiro, desenvolvendo-se, fortalecendo-se e firmando-se no contexto social e político nacional, para surgir em seguida em outros países, aonde suas ações chegaram via a atuação em rede, através da Via Campesina. É desta forma que se constitui a realidade do campo, sendo seus contornos dados pelos próprios indivíduos que nele vivem, trabalham e lutam. São sujeitos de luta, sujeitos de garra e de presença e também por isso sujeitos de direitos. Portanto, reitera-se que “o campo está prenhe de contradições e se agita de muitas formas. Cruzam e se entrecruzam lutas. Emergem sujeitos sociais de muitas caras, impondo a sua conflituosa presença, exigindo o reconhecimento de seus direitos” (GRZYBOWSKI, 1991, p.49). TERCEIRA SEÇÃO Para além das discussões conceituais, a abordagem dos movimentos sociais sob o ponto de vista de sua interação dialética na sociedade Nesta seção do estudo serão apresentadas questões que abarcam – sinteticamente - os elementos constituintes dos movimentos sociais, através de seu pensar, discutir, organizar, mobilizar e agir. São estes elementos que juntos vão formando as tramas do tecido identitário, o qual permite reconhecer não somente as suas similaridades, mas também suas especificidades. 143 2.3.1 Sobre a criação de novas relações sociais: participação e democratização como estratégias dos movimentos sociais Os movimentos sociais sempre estiveram imersos no cotidiano da sociedade, ora compartilhando e ora – fundamentalmente - contestando valores, princípios, comportamentos e reflexões. Na contemporaneidade não seria diferente, visto que se configuram como um dos elementos que constituem a sociedade civil, portanto necessariamente interagem com os outros elementos dentro dela, bem como com aqueles que se configuram numa outra esfera, como, por exemplo, o Estado. Embora esta interação seja permanente, as formas de se relacionarem diferem de período para período, tendo em vista o desenvolvimento das forças econômicas, políticas, sociais e culturais. Portanto, haveria um movimento permanente de transformação, no qual agem os movimentos sociais tanto como agentes, quanto como sujeitos desta transformação. Provém daí o caráter de transitoriedade dos movimentos sociais, que ora é abrandado e ora é aguçado dentro desta dinâmica. Considerando isto e também a reflexão elaborada em parágrafos anteriores, de que o momento de transição para o novo milênio traz as marcas de uma transformação incerta, denominada, por isso, de ‘transição para o novo desconhecido milênio’, afirma-se que os movimentos sociais têm a possibilidade de exercer um papel nunca antes visto, nem mesmo nos tempos de reabertura democrática. Esta possibilidade de exercer papel preponderante se dá justamente pelo clima de instabilidade econômica, de descrença na governança do Estado e de falta de referências para a vida em sociedade de forma geral, visto que aumentam cada vez mais a violência, o autoritarismo, a defesa apenas de interesses pessoais, a competição e o desrespeito com a alteridade nas relações sociais. Por conseguinte, neste momento em que parece ocorrer uma ausência de direcionamento para a sociedade ampla, o aprofundamento das estratégias de ação dos movimentos sociais, segundo os princípios e valores baseados na democracia, 144 na participação, na cidadania, na justiça social e nos Direitos Humanos, pode preencher esta vacância. Tomando o Movimento de Mulheres Camponesas como exemplo, afirmase que isto seria possível por reconhecer que nas suas práticas cotidianas estes elementos estão presentes, marcando inclusive a sua identidade. A socióloga Scherer-Warren confirma isto ao dizer que nos movimentos sociais Valoriza-se a democratização interna, destacando-se a crescente participação de mulheres e jovens, o uso da democracia direta através de decisões em Assembléias e a participação de todos nas diversas comissões de trabalho. Valoriza-se também a autonomia relativa dos movimentos em relação ao Estado e partidos, [...] e ainda a resistência ativa não-violenta (SCHERER-WARREN, 1993, p.73). Mas o que os movimentos sociais deverão fazer para concretizar esta interferência positiva junto à sociedade? Quais espaços de interação são possíveis? Alvarez, Dagnino e Escobar (2000 e 2002) oferecem as respostas ao tratar sobre os espaços de participação da sociedade civil, tais como os conselhos de direitos, e neles inserir a participação dos movimentos sociais. Ora, pois, estes são espaços ainda recentes e, portanto, em construção, mas que guardam grande potencialidade no que se referem à participação efetiva, ao pleno exercício da cidadania e a materialização da democracia no novo, ainda ‘desconhecido’, mas já ‘possível’ milênio. Neste sentido, em relação à participação da sociedade civil em espaços de decisão política, tais como os conselhos gestores de políticas, as conferências temáticas ou os espaços do ‘orçamento participativo’ - OP, Dagnino (2002, p.284), argumenta. A característica central da maior parte dos espaços estudados – seu envolvimento com políticas públicas, seja na sua formulação, discussão, deliberação ou execução – exige, quase sempre, o domínio de um saber técnico especializado do qual os representantes da sociedade civil, especialmente dos setores subalternos, em geral não dispõem. [...] Além desse, outro tipo de qualificação se impõe, o que diz respeito ao conhecimento sobre o funcionamento do Estado, da máquina administrativa e dos procedimentos envolvidos. Nota-se que neste início de experiência da efetivação dos espaços de participação, há muitos desafios a serem superados, sendo um deles a própria formação política e técnica dos representantes da sociedade civil. Embora os movimentos sociais gozem vantagem em relação a vários outros grupos da 145 sociedade civil, no que tange à formação política, também enfrentam dificuldades em relação à formação técnica. Esta preocupação se agrava ainda mais quando se percebe que o principal veio de formação para os movimentos sociais na década de 1980 e parte de 1990 vinha da Igreja Católica em seus quadros originários da Teologia da Libertação, os quais desde o segundo período da década de 1990 saem em veloz retirada, tendo em vista o fugaz retorno ao conservadorismo religioso da Igreja, que partiu do Vaticano e rapidamente atingiu todo o mundo. Sobre o acompanhamento da Igreja e a formação de lideranças, Ribeiro (1998, p. 61) aponta que “o vazio deixado no lugar do trabalho desenvolvido pelas assessorias ligadas às pastorais populares foi ocupado pelas organizações nãogovernamentais, cuja atuação ainda não é suficientemente conhecida”. Ainda sobre a participação da sociedade civil, mas já no que se refere à publicização das demandas como forma de tensionamento do Estado por parte da sociedade civil, tendo em vista a conquista e efetivação de direitos, Dagnino aponta (2002, p.296) que A participação da sociedade civil na publicização de um enorme número de demandas de direitos tem alterado a face da sociedade civil brasileira ao longo das duas últimas décadas. O fato, inquestionável, de que essas demandas encontrem escasso abrigo nas políticas públicas do Estado não deve obscurecer o avanço que a sua publicização e legitimação no âmbito societal significam. Neste sentido, reforça-se a necessidade de uma atuação que também esteja voltada para o exercício do controle social por parte dos movimentos sociais, o qual passará, inclusive, pela via da publicização das demandas e, junto destas, a publicização das lutas agregadas e das formas de repressão sofridas pelos movimentos, através do Estado, o qual indiscutivelmente ainda permanece sob o jugo do capital e sob o comando de uma minoria burguesa e latifundiária. Uma atuação voltada para a publicização da luta política na América Latina, faz com que os possíveis projetos alternativos de democracia sejam visibilizados pela sociedade em geral e pelos Estados Nacionais, conferindo relevância neste cenário aos movimentos sociais que desempenham, neste sentido, um papel crítico. (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000). Diante disto tudo, é impreterível que os movimentos sociais agreguem às suas práticas democráticas, a sua participação em espaços de controle social e à 146 publicização das demandas, o reforço do conceito de cidadania em seu sentido pleno. Isto se torna cada vez mais urgente, pois num cenário de globalização e de políticas de ajuste neoliberal o que se percebe é que Enquanto a sociedade civil é obrigada a assumir responsabilidades sociais evitadas agora pelo Estado neoliberal em processo de encolhimento, sua capacidade como esfera política crucial para o exercício da cidadania democrática está cada vez mais desenfatizada. Nessa concepção, os cidadãos devem fazer-se por seus próprios esforços particulares e a cidadania é cada vez mais equiparada à integração individual no mercado (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.16). É contra esta concepção de cidadania - que remete à ‘responsabilização dos indivíduos sociais’ - preconizada pelos organismos internacionais e adotada pela maioria dos Estados Nacionais latino-americanos, e difundida pelos meios de comunicação social como única forma de sobrevivência das sociedades, através do discurso de ‘faça sua parte’, que os movimentos sociais devem se posicionar. Acredita-se que isto é possível, dado que a fala da maioria dos movimentos sociais – de perspectiva crítica – pronuncia-se na direção de Uma concepção alternativa de cidadania, que vê as lutas democráticas como contendo uma redefinição não só do sistema político, como também das práticas econômicas, sociais e culturais que possam engendrar uma ordem democrática para a sociedade como um todo. [...] O campo de ação das lutas democratizantes se estende para abranger não só o sistema político, mas também o futuro do “desenvolvimento” e a erradicação de desigualdades sociais tais como as de raça e de gênero, profundamente moldadas por práticas culturais e sociais (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.16). Sob este enfoque de cidadania e de lutas políticas foi que os movimentos sociais exerceram papel fundamental na conquista de direitos sociais e de políticas públicas. Portanto, se já naquele período de reabertura democrática, muitos movimentos não somente conseguiram reverter suas agendas em políticas públicas, expandindo as fronteiras da política institucional, como alcançaram significativas redefinições das noções convencionais de cidadania, representação política, participação e democracia, acredita-se que hoje poderão fazer ainda mais (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000). Portanto, na construção do cotidiano dos indivíduos e dos movimentos sociais, são fortalecidas as lutas sociais e, com elas, a democracia, a participação e o exercício da cidadania como identidade dos movimentos. 147 2.3.2 Sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das mulheres’ nos movimentos sociais – iniciativa, autonomia e participação - construindo as relações sociais de gênero É mais freqüente dar visibilidade às lutas dos diversos movimentos de mulheres, do que conferir visibilidade para as mulheres dentro dos movimentos que congregam a participação não sexista ou misto, isto é, constituído por homens e mulheres. Este é um dos motivos pelos quais muitas mulheres deixam de participar de movimentos sociais não sexistas, para participar de movimentos constituídos apenas por mulheres. Além de conseguir maior visibilidade, para suas questões e lutas, conseguem maior possibilidade de participação dentro dos próprios movimentos. Neles as mulheres sentem que suas necessidades e demandas são constituintes das pautas de reivindicação e lutas, o que não aconteceria em movimentos mistos. Muitos elementos compõem esta situação: a possibilidade de expressar seu pensamento, de fazer uso da palavra, de conseguir sentir-se à vontade e em condições de elaborar proposições, o sentimento de igualdade em meio à diversidade de outras mulheres companheiras de movimentos, são alguns dentre vários outros elementos que possibilitam às mulheres a participação efetiva, segundo princípios democráticos, nos movimentos de mulheres na contemporaneidade. Ao iniciar este assunto, é interessante ter presente que os movimentos de mulheres no Brasil não datam de épocas recentes, muito embora a configuração atual o seja, visto que se transformaram durante a trajetória histórica, frente aos processos ocorridos não somente no Brasil, mas em todo mundo ocidental capitalista. Reconhecendo esta transformação e sua principal causa – as transformações capitalistas -, pode-se distinguir também um tradicional e um novo caráter dos movimentos sociais de mulheres a partir da década de 1970. Segundo Scherer-Warren (1987, p.46) 148 [...] O primeiro mais reivindicativo e o segundo mais autônomo. [...] A partir da década de 1970, começa-se a organizar movimentos feministas com um novo caráter: libertários. Esses movimentos não almejam apenas igualdade de condições femininas e masculinas no sistema atual. Lutam por uma sociedade modificada, onde mulheres e homens serão diferentes. Ora, fica evidente, nesta contribuição da autora, a existência de elementos das relações humanas que se transformam em pontos de reivindicação dos movimentos de mulheres, os quais passam a integrar sua bandeira de luta. Por conseguinte, é indispensável apontar que – de forma geral - o pensamento feminista sempre fez uso de conceitos de utopias libertárias tradicionais, tais como: opressão, liberdade, igualdade, justiça, emancipação, solidariedade, poder e dominação. Entretanto os movimentos de mulheres, principalmente aqueles da fase atual, inovaram através de uma visão mais radical, ao considerar que “a transformação social, como parte da libertação final da mulher, mudará todas as relações humanas para melhor. Embora centralmente sobre mulheres, o feminismo é, também, fundamentalmente sobre os homens e sobre a mudança social”. (EISENSTEIN, 1984, apud SCHERER-WARREN, 1993, p.29). Embora se perceba de que existe neste momento a garantia de que vigora na organização, manifestação e lutas dos movimentos sociais o caráter democrático, participativo, de igualdade e de justiça social, há também o compromisso de que a transformação societária, bandeira dos movimentos, contém todos esses valores. Aqui residiria o nexo entre a reivindicação pela igualdade de gênero e aquela pela construção de uma nova ordem societária. Ambas são ‘decorrentes’ e, ao mesmo tempo, são ‘requisitos’ uma da outra, pois haveria um movimento dialético entre elas, que possibilitaria avanços até atingir, um dia, o horizonte utópico. Sendo assim, nem uma e nem outra teriam maior ou menor prioridade, pois são consideradas como elementos constituintes e indispensáveis da mesma luta social. Com este perfil histórico e trajetória de lutas, adentram no cenário nacional os novos movimentos sociais de mulheres no Brasil. Segundo Maria Lúcia de Carvalho da Silva, a partir da década de 1970, É indispensável assinalar que os movimentos sociais, no Brasil como na América Latina, trouxeram à cena política, de forma majoritária, a participação das mulheres, especialmente como demandatárias de reivindicações populares por melhorias e serviços coletivos. Elas estão mudando com sua participação, forte e decidida, muitos valores e 149 comportamentos entre os sexos na cultura popular brasileira (SILVA, 2001, p.33). Maria da Glória Gohn (1995), em seu livro “História dos movimentos e lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros”, ao fazer um mapeamento dos movimentos, lutas sociais e ações coletivas, desde o século XVI até o século XX, enfatiza que os mesmos não só marcaram períodos, lugares e fatos, mas construíram a história do Brasil. É nesta história construída pelos movimentos que pode ser encontrado o Movimento de Mulheres Camponesas, que no seu surgimento denominava-se Movimento de Mulheres Agricultoras. Embora nesta obra Gohn (1995) não faça referência direta ao Movimento de Mulheres Camponesas, seu surgimento acontece no contexto histórico que a autora denomina de ‘fase das lutas pela redemocratização’, que se estende de 1975 a 1982. Nas suas palavras, Corresponde a uma fase de resistência e enfrentamento ao regime militar, que já perdera sua base de legitimidade junto à sociedade devido à crise econômica que se esboçava desde 1973 com a chamada crise do petróleo, a retomada vagarosa da inflação, o desmonte das facilidades do paraíso do consumo das classes médias. [...] Havia um clima de esperança, de crença na necessidade de retomada da democracia, da necessidade da participação dos indivíduos na sociedade e na política. Havia também a crença na força do povo, das camadas populares, quando organizadas, para realizarem mudanças históricas que outros grupos sociais não tinham conseguido realizar no passado (GOHN, 1995, p.111). Se o marco oficial de surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras é atribuído ao “[...] dia 28 de maio de 1983, no salão comunitário do Distrito de Itaberaba, quando 28 mulheres se reuniram e formaram um núcleo, que seria a primeira célula de sua organização enquanto mulheres agricultoras” (KROTH, 1999, p.71), os ‘germes’ deste surgimento já estavam presentes no período das lutas sociais que marcaram os anos finais da década de 1970 e início de 1980. Através da participação nas discussões políticas do sindicalismo combativo que estava sendo construído na região oeste de Santa Catarina, identificado como ‘sindicalismo de oposição’, as mulheres agricultoras foram conquistando o direito a ter voz, a se manifestar, a reivindicar seu direito de participar de forma direta com seu voto. É importante rememorar que se vivia o período, marcado por Gohn (1995, p.123) como “época da negociação e a era dos direitos”. O cenário das lutas sociais que anteriormente tinha como foco central a questão da classe operária, a partir 150 deste momento começa a incorporar a atuação de movimentos e lutas sociais com diversos temas e nos diversos âmbitos. Em meio às críticas de que os movimentos sociais teriam a bandeira mobilizadora do socialismo, percebe-se que “[...] ao lado das lutas sindicais, surgirão novos movimentos sociais, de luta contra as discriminações aos negros, às mulheres, aos homossexuais e outras minorias” (GOHN, 1995, p.156). Esta fala guarda conexão direta com o surgimento do MMC em Santa Catarina, visto que é da participação em um grupo que organizava a frente de oposição do sindicato dos trabalhadores rurais da região, que vai surgir o MMC. Havia um novo perfil que conformava grande parte dos movimentos sociais que antes tinha origem nas entidades político-partidárias de esquerda, dos sindicatos de oposição, das instituições religiosas ligadas à Teologia da Libertação e outras. Agora eles, pouco a pouco, iam se tornando pluriclassistas, passando a receber muitas vezes o apoio e a participação das camadas médias da população. Para alguns estudiosos isto é bom, pois faz parte do pluralismo que deve figurar na sociedade. Para outros isto é ruim, pois retira parte de sua identidade enquanto movimento de classe, interferindo nas lutas em cujos interesses começam a divergir entre uma e outra classe. Entretanto, nem todos os movimentos sociais caminham na direção da pluralidade de classe. Muitos deles, principalmente aqueles ligados ao campo, persistem na linha da identidade de classe e a partir dela na contestação política ao Estado e à sociedade capitalista neoliberal. É o caso do Movimento de Mulheres Camponesas. Mesmo num cenário contrário aos questionamentos e protestos que envidam contra o capitalismo e o Estado, assume-se como representante da classe trabalhadora camponesa e consegue persistir na afirmação de seus princípios e ideais, através da organização, formação política, manifestações e lutas. Então, contrariando os críticos dos movimentos sociais da década de 1990, a identidade do MMC continua sendo fortalecida enquanto um movimento da classe trabalhadora, constituído essencialmente pelas mulheres, considerando a luta pela justiça e igualdade de gênero, primando pela autonomia do Movimento frente aos Partidos Políticos e Sindicatos e pelo protagonismo das mulheres camponesas, tendo como horizonte utópico as lutas cotidianas na direção do ‘socialismo’. 151 Pode-se, portanto, afirmar que este é um dos Movimentos Sociais que mesmo diante dos limites e desafios colocados pela sociedade capitalista competitiva e excludente, não abre mão dos valores e princípios que o orientou desde o surgimento, tornando-se um dos Movimentos Sociais através do qual é possível discutir a questão da autonomia. 2.3.3 Sobre os movimentos sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura política como desafio atual Ao tratar da relação entre cultura e política nos movimentos sociais latinoamericanos, Alvarez, Dagnino e Escobar, (2000), trazem a discussão para o campo que vai desde a identidade dos movimentos sociais, até as novas formas de atuação coletivas, muitas das quais protagonizadas em rede. Neste sentido, indicam que se vive um momento de transformação, ao mesmo tempo realizado e vivido pelos movimentos sociais em sua grande parte, no qual há uma passagem da cultura – no sentido amplo - para a política cultural – no sentido estreito do laço constitutivo entre cultura e política, processo no qual o cultural se torna fato político – e, processualmente da política cultural para a cultura política de grupos sociais, da população e do povo. Este último movimento acontece através das inferências que a política cultural opera na construção da cultura política de um povo, sendo esta compreendida como a ‘formação’ específica de cada sociedade, sobre o que se concebe como política. As políticas culturais determinam fundamentalmente os significados das práticas culturais, tendo vínculo direto com o exercício do poder e, reciprocamente, coma resistência a ele. Já a cultura política é resultante de vários elementos na conformação cultural de um povo, inclusive do elemento constituído pelas políticas culturais, no sentido dos modos de fazer e difundir a cultura. Devido a tudo isto é que Alvarez, Dagnino e Escobar são contundentes em afirmar que As políticas culturais dos movimentos sociais tentam amiúde desafiar ou desestabilizar as culturas políticas dominantes. [Neste sentido,] devemos 152 aceitar que o que está em questão para os movimentos sociais, de um modo profundo, é uma transformação da cultura política dominante na qual se movem e se constituem como atores sociais com pretensões políticas (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.26). Desta forma, reitera-se os autores quando estes defendem que os movimentos sociais, ao atuarem nas sociedades – também – através da política cultural que lhes é própria, contribuem para a construção de uma cultura política associada à concepção de cidadania, igualdade, democracia, participação, entre outras concepções, as quais são significadas e re-significadas a partir dos valores e vivências cotidianas dos movimentos sociais e dos indivíduos que os constituem. Sader (1988, p.20) também corrobora com a idéia, ao dizer que Ao observarmos as práticas desses movimentos, nós nos damos conta de que eles efetuaram uma espécie de alargamento do espaço da política. Rechaçando a política tradicionalmente instituída e politizando questões do cotidiano dos lugares de trabalho e de moradia, eles “inventaram” novas formas de política. Mas a história dos movimentos sociais não é apenas a sua história interna. Os trabalhadores são o resultado não somente de suas próprias ações, mas também de sua interação com outros agentes. Portanto, esta é mais uma das dimensões pelas quais os movimentos sociais operam para a transformação da sociedade na atualidade. Ela está diretamente relacionada com o que alguns autores, como Marlene Ribeiro (1998), identificam como ‘caráter pedagógico’ dos movimentos sociais, dado que este último é profundamente constituído pelo político e pelo cultural destes movimentos, em sentido amplo. Mas atenção, ao elaborar este nexo, deve-se tomar como fundamento a idéia de que “ao explorar o político nos movimentos sociais, devemos ver a política como algo a mais que um conjunto de atividades específicas (votar, fazer campanha ou lobby), que ocorrem nos espaços institucionais claramente delimitados, tais como parlamentos e partidos”, embora elas também constituam o conjunto das práticas dos movimentos na atualidade. “Ela deve ser vista como abrangendo também lutas de poder realizadas em uma ampla gama de espaços culturalmente definidos como privados, sociais, econômicos, culturais entre outros” (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.29). Este fazer ‘político’ dos movimentos sociais está presente em todas as suas práticas, desde a reflexão até a concretude de suas ações. Já o fazer ‘política’ se manifesta, como expresso pelos autores citados anteriormente, em vários 153 âmbitos que não somente aqueles institucionalizados. Isto reveste suas práticas de um significado e importância especiais, dado que através delas os movimentos sociais vão agindo, continuamente, de forma direta e indireta, para a construção da cidadania e da democracia social – elementos fundamentais para a sociedade que almejam construir e para o momento presente dos grupos e classes sociais subalternos. Não distante disso, Alvarez sustenta que as demandas, discursos e práticas políticas, bem como as estratégias políticas e de mobilização de muitos movimentos sociais atuais estão amplamente espalhadas, às vezes, de modo invisível, pelo tecido social, com suas redes político-comunicativas atingindo parlamentos, a academia, a Igreja, os meios de comunicação e assim por diante (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.36). A partir das considerações sobre a difusão da cultura e da política dos movimentos sociais, pretende-se chamar a atenção para duas dimensões daquilo que pode ser considerada como ‘ a atuação em rede’ destes movimentos. Uma delas diz respeito ao que Alvarez (apud ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000) aponta como forma “invisível” de atuação: as interferências nas mudanças que os movimentos sociais vão gerando nos modos de pensar e agir das instituições e dos indivíduos que compõem a sociedade. Também diz respeito à forma pela qual as agendas, reivindicações e lutas de um movimento social vão se disseminando e entrecruzando com as de outros movimentos, construindo-se aos poucos pautas e lutas coletivas. Seu significado seria o de que as práticas dos movimentos sociais vão minando o modo de ser da sociedade, se alastrando invisivelmente de modo a operar na direção da transformação social. Outra dimensão remete à atuação direta em redes de movimentos sociais, termo mais usual nos atuais estudos. Observa-se, hoje, a constituição de várias redes de movimentos sociais, que se congregam desde o nível local, chegando até o nível internacional. Nessas redes são discutidos os objetivos comuns, pautas e estratégias de ação, são organizadas e efetivadas ações, que extravasam o nível interno dos movimentos e, freqüentemente o nível local das manifestações, chegando ao nível amplo das manifestações compartilhadas por diversos movimentos sociais, os quais passam a se congregar em forma de rede de atuação política, cultural e social. 154 Slater (2000) insere esta discussão sobre as novas formas de atuação e de relacionamento ‘dos e entre’ os movimentos sociais, na esfera da teoria política social e no contexto de interpretação dos movimentos sociais, situando-a como uma questão relativa à dialética entre interior e exterior dos movimentos sociais. Para ele, esta é uma questão difícil, pois a maioria dos estudiosos sobre movimentos sociais visualiza a situação de forma cristalizada, como se existisse uma fronteira intransponível entre a interioridade dos movimentos – o mundo da comunidade, participação, moralidade, responsabilidade democrática, obrigações e direitos e fidelidades - e sua exterioridade – os mundos alternativos de estrangeiros, dos acasos, dos princípios externos e das imoralidades incertas. Não haveria permeabilidade entre esta fronteira e tudo que a transgredisse seria considerado como ameaça de anarquia e de destruição do próprio movimento. Na sua concepção dialética, Slater (2000, p.520) afirma que “a política moderna é uma política espacial”. Para ele “é óbvia a importância de ligar o interior e o exterior, de ver o global, o regional e o local como intimamente entrelaçados, em vez de mundos separados e desconectados”. Neste sentido, organização e participação dos movimentos sociais em redes assume a perspectiva de totalidade, permitindo construir nexos entre os contextos, situações e realidades, as quais, resguardadas as particularidades, tocam a sociabilidade ampla, dado que compõem um cenário geral que partilha os efeitos de um capitalismo financeiro, globalizado e neoliberal. A constatação deste entrelaçamento do marco situacional, também possibilita entrelaçar mobilizações, manifestações e lutas sociais, congregando a uma só voz as questões comuns e reforçando aquelas relacionadas às especificidades. Para Slater (2000, p. 524), é necessário estar atentos à dinâmica ampla do entrelaçamento – em redes – entre o interior e o exterior, pois ela “varia bastante entre os próprios movimentos, assim como os graus de conexão entre os diferentes tipos de luta no interior de uma mesma sociedade”. Já Alvarez, Dagnino e Escobar (2000, p.37) inserem uma nova expressão na discussão sobre a ‘atuação em rede’. Para eles, esta atuação remete à construção de “teias de movimento social”. Nas suas palavras, “o termo transmite o aspecto intrincado e precário dos múltiplos laços e imbricações, estabelecidos entre 155 organizações dos movimentos, participantes individuais e outros atores da sociedade civil e o Estado”. Quando construídas, as ‘teias dos movimentos sociais’ passam a congregar / apoiar um ou mais objetivos dos movimentos particulares, auxiliando na difusão de seus discursos e demandas, agindo de dentro e também contra as instituições e culturas políticas dominantes. Em relação aos movimentos sociais do campo, é impossível não inferir sobre a construção da ‘via campesina’, que, de forma sintética, é uma rede mundial de movimentos sociais, que tem como objetivo primeiro a luta pela democracia, pela igualdade e pela justiça social no campo. Mais adiante, se retornará a esta questão da rede / teia de movimentos sociais camponeses para maior aprofundamento. Diante dessas considerações, entende-se que uma avaliação adequada dos movimentos sociais - principalmente no que se refere à articulação, organização e impactos - exige um aprofundamento da ‘teia de relações’ que conseguiram construir e o que esta representou para a materialização de seus objetivos e difusão de seus valores, princípios e ideais. Ou seja, “quando examinamos o impacto dos movimentos, devemos avaliar a extensão em que suas demandas, discursos e práticas, circulam de modo capilar, como numa teia, em arenas institucionais e culturais mais amplas” (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.37). 2.3.4 Sobre os movimentos sociais enquanto formuladores de políticas e construtores de cultura A mesma corrente de pensadores que defende a ‘crise e desaparecimento dos movimentos sociais’ que teria se iniciado na década de 1990, defende que eles teriam desempenhado um papel menor no processo de redemocratização, cujo auge se deu em meados de 1985. Apesar da ampla difusão da relação histórica no Brasil entre os movimentos sociais e o processo de redemocratização do país, “a contribuição real ou potencial [dos primeiros] para a expansão e o aprofundamento da democracia foi questionada”, tanto por alguns analistas dos movimentos sociais, quanto por parte 156 do próprio corpo político institucional. Esta contestação é rebatida por Dagnino, que defende que “os movimentos sociais no Brasil contribuíram para dar novo significado às relações entre cultura e política em suas lutas pela democratização” (DAGNINO, 2000). O argumento da autora - composto por três idéias – é o de que, em primeiro lugar, “os movimentos sociais desenvolveram uma concepção de democracia que transcende os limites tanto das instituições políticas enquanto tradicionalmente concebidas, como do modelo das “democracias realmente existentes”. Segundo ela, “o traço distintivo desta concepção [...] é que sua referência básica, mais do que a redemocratização do regime político, é a democratização da sociedade como um todo” (DAGNINO, 2000, p.80). Em segundo lugar, “a operacionalização dessa concepção de democracia está sendo levada adiante por meio de uma redefinição da noção de cidadania e de seu referente central, a noção de direitos”. Já a terceira idéia que funda o argumento da autora, é o de que “essa ênfase na sociedade não implica, uma recusa da institucionalidade política e do Estado, mas, ao contrário, implica uma reivindicação radical de sua transformação” (DAGNINO, 2000, p.81). Seguindo a tese32 de que os movimentos sociais trazem implicações para o campo político-cultural das sociedades, parece evidente de que contribuíram para a produção de um cenário político, cultural e social que colaborou para o desencadeamento do processo de redemocratização, bem como foram um dos principais atores coletivos daquele período que, com suas manifestações e protestos, intensificaram e aceleraram o andamento de tal processo. Além disso, tomando em consideração que toda e qualquer mudança no campo da cultura política não ocorre apenas num momento isolado, mas permanece conformando os valores políticos - neste caso - da sociedade, até que processualmente ocorram novas transformações culturais, é possível atribuir aos movimentos sociais a participação direta e indireta nas ocorrências políticas do início da década de 1990, tal como o processo de cassação e impeachment do então 32 Ver considerações de ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, no artigo “O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos” (2000). Referência completa no final da dissertação. 157 presidente Fernando Collor de Mello (1992), que havia sido eleito durante o primeiro pleito com eleições diretas para presidente, depois da quebra do regime militar. Apesar daquele movimento – denominado de ‘movimento das caras pintadas’ – ter tido caráter popular e não social, muitos dos indivíduos que o protagonizaram constituíam-se também como atores coletivos, já que militavam nos mais diversos movimentos sociais que vigoraram no cenário público brasileiro durante o período de redemocratização. Para efeitos desta investigação, ao adentrar na trajetória histórica do Movimento de Mulheres Camponesas, fica clara a presença das mulheres neste cenário de protesto político, compondo forças com vários outros movimentos. Como afirma Dagnino (2000) em um de seus argumentos, o processo de redemocratização não pode ser considerado somente a partir das transformações na institucionalidade política do Estado. Para além desta, o processo de redemocratização significou a ocorrência de mudanças nos parâmetros de cidadania, participação e democracia, ou seja, mudanças que atingem o epicentro da cultura política de uma sociedade, as quais não teriam acontecido com este mesmo sentido sem a atuação dos movimentos sociais. Portanto, nesta perspectiva de análise, ao concordar com a autora sobre a importância dos movimentos sociais como elementos que contribuíram para o processo de redemocratização do país, recusa-se a idéia que minimiza o potencial de atuação política e cultural dos movimentos sociais – especialmente do MMC, objeto principal desta investigação – tanto nos espaços da sociedade ampla, quanto frente às transformações operadas diretamente na esfera política – institucional dos Estados. Alinhavando as seções deste capítulo: algumas palavras sobre os movimentos sociais: dos estudos aos desafios encontrados hoje no cenário brasileiro Antes de tudo é imprescindível dizer que se buscou fazer um mergulho no tema dos ‘movimentos sociais’, na ótica teórica, histórica, conceitual e de experiências contadas. Uma imersão na vida de indivíduos sociais e atores coletivos 158 que colaboraram para a construção - cada qual do seu jeito, embora estivessem juntos e compusessem o mesmo contexto – da história do povo e da nação brasileira. Sobre esta imersão, alguns pontos serão salientados, ainda que todos mereçam destaque. Em primeiro lugar, deve-se considerar que os movimentos sociais são expressões sociais e políticas resultantes dos intercursos da sociedade capitalista. Destarte, embora já adensados na sociedade, são expressões recentes na história da humanidade, mas que, desde o seu aparecimento, configuraram-se como elementos fundamentais para o movimento dialético da sociedade em geral, uma vez que tencionam principalmente o Estado, mas também o mercado e os demais elementos constituintes da sociedade civil, desafiando-os a atuar. Portanto, são forças sociais significativas para o movimento da sociedade, tendo a possibilidade de imprimir ações na direção de transformar e também de serem transformados neste mesmo movimento dialético. Em segundo lugar, a perspectiva teórica dos estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais é preponderantemente vinculada ao paradigma europeu. Isto se explica por dois fatos principais: o primeiro deve-se à presença ainda tímida, ou pouco reconhecida, dos movimentos sociais no cenário público da sociedade brasileira, do início até meados da segunda década do século XX. O segundo referese ao fato de que será somente a partir deste mesmo período que começarão a funcionar os cursos de pós-graduação na área das ciências sociais, através dos quais seria possível o desenvolvimento de teorias e de um paradigma teórico próprio. Não obstante, é preciso reconhecer a riqueza de produções – tanto em termos de qualidade de abordagem, quanto em termos de quantidade de publicações – que já existe no campo científico brasileiro. Em terceiro lugar, enfatiza-se que a característica de ‘tensionamento político e social’ que os movimentos sociais trazem na sua identidade, faz com que sejam colocados em ‘segundo ou terceiro, ou quarto plano’ nos meios de comunicação, no que tange à publicização de suas agendas, lutas, reivindicações, conquistas, enfim, de suas trajetórias sociais. É obvio que isso não poderia ser diferente, tendo em vista que a maioria deles contesta a sociedade capitalista e as políticas de Estado e de governo. Entretanto, há que se perguntar o que é possível 159 fazer para mudar esta situação, a qual é responsável por criar falsas imagens sobre os movimentos sociais, colocando-os no papel de vilões na história da sociedade? Um quarto ponto a ser ‘alinhavado’ remete à trajetória dos movimentos sociais camponeses. Foi tornando-se cada vez mais evidente durante a investigação, que desde o surgimento dos movimentos sociais no Brasil até o presente momento, os movimentos sociais camponesas marcaram o cenário nacional, posicionando-se intransigentes na luta pela conquista e defesa de direitos, ora para o campo, ora para a sociedade em geral. Foi a partir de suas manifestações, protestos e, muitas vezes, conflitos armados que o desenho atual dos direitos e das políticas sociais para o campo foi construído. Salienta-se ainda que, dentre as lutas camponesas a que mais tem fôlego e ganha forças é a luta pela terra – propriedade, acesso e condições de trabalho. Inclusive, que esta é uma das principais lutas contra o atual modelo econômico e que é por isso que seu combate é feito de forma tão intensa pelo Estado burguês e pelos próprios latifundiários, que fazem uso não somente da coerção, mas também da repressão violenta, ocasionando muitas mortes e tragédias no campo. No quinto e último ponto desta tarefa de alinhavar os elementos conclusivos do capítulo, deseja-se destacar a importância e o significado histórico do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil - MMC. Sua trajetória, embora recente, demonstra o nível de empenho e organização que as camponesas militantes e dirigentes dedicam ao movimento. Sabe-se que várias conquistas de direitos e políticas foram protagonizadas por elas, mesmo que isto ainda não esteja registrado nas páginas das produções teóricas sobre os movimentos sociais no Brasil. No tocante à conquista de espaço público, o MMC recebe destaque por ser um dos movimentos sociais que luta pela visibilidade política e social de suas práticas, sem descuidar de seus valores, princípios e objetivos, os quais fazem parte do cotidiano das mulheres camponesas, sendo cultivado por elas em seu dia-a-dia: no trabalho, com a família, no grupo de base, nos momentos de mística, nas Assembléias, nas campanhas e momentos de formação e, inclusive, nos momentos de manifestações, protestos e lutas sociais. 160 Portanto, como resultado desta imersão no tema dos movimentos sociais, feita neste capítulo, nota-se a construção de uma base teórica importante para alcançar o objetivo desta investigação, qual seja ‘analisar a incidência da atuação do MMC na esfera da conquista e garantia dos direitos e na efetivação de políticas públicas para o campo no Brasil. Permanecem deste capítulo várias indagações e vários desejos de descobertas. Algumas caminham na direção da identidade deste movimento, outras na direção dos direitos e políticas conquistadas e outras, ainda, seguem na direção do protagonismo destas mulheres do MMC. Então o jeito é continuar na lida e convidar para um novo mergulho, agora já no terceiro capítulo. 161 CAPITULO III O MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL – DA COTIDIANIDADE À CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES — O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, [...] Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. [...] Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. Fragmento de “Morte e Vida Severina” João Cabral de Melo Neto 162 Para início de conversa... algumas coisas precisam ser ditas! Desde o início desta empreitada se teve clareza sobre a amplitude do desafio proposto, ao se pretender desvendar a identidade do Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil, a partir da discussão sobre a cotidianidade, a consciência, o particular e o genérico da humanidade, os indivíduos reais com suas ações e condições materiais de vida. Na verdade, a aceitação do desafio é o que motiva e encoraja a continuar a caminhada, pois é ele que confere cores, cheiros, sabores e outras sensações ao caminho e ao próprio caminhar. E, se é a partir da cotidianidade que o debate será construído, é essa mesma cotidianidade que concede os cheiros, sabores e outras sensações ao desafio, o que significa tomar emprestado, ao pensamento de Agnes Heller (1989), a afirmação de que é na vida cotidiana que os sentidos são colocados em funcionamento. Parece importante destacar que o desafio não deixa de incitar para sua superação e por isto tem sabor! Como já dizia o poeta Mario Quintana33: “se as coisas são inatingíveis... Ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas!” Pois bem, parte-se! Mas para não se sentir solidão na caminhada, foram colocados na mala alguns mestres que têm importante papel para a empreitada proposta. Ora! Que pretensão, dir-se-ia! Heller, Lukács e o próprio Marx! Sim, são companheiros de caminhada, porém o desafio assumido é só nosso! Eles fazem parte daquilo que desafia, motiva, concede sensações, promete conhecimentos antes não acessados. Eles próprios configuram-se como ‘desafios’. Para esta conotação de desafio não se almeja a superação - por não ser minimamente a pretensão - mas sim, a conquista. Inicialmente, o plano traçado para a caminhada tinha como horizonte maior - como já dito - o desvendamento da identidade dos sujeitos da investigação para elaboração da dissertação de mestrado: O Movimento de Mulheres 33 Sobre ‘As Utopias’ em seu poema Espelho Mágico. 163 Camponesas do Brasil - MMC. Entretanto, como se aproximar desse horizonte continuava-se com a sensação de inquietude. Não se imaginava um caminhar que permitisse apenas a percepção do processo de identificação dos sujeitos, mas que revelassem, de forma geral, os processos que ocorrem com diversos sujeitos, mesmo marcando o MMC como sujeito central neste momento de estudo. Qual seria o plano mais significativo que possibilitasse isto? ... As indagações continuavam. Até que, já no segundo semestre de mestrado e também do curso ‘Serviço Social: Identidade e Contemporaneidade’, ministrado pela Professora Dra Maria Lúcia Martinelli aconteceu um instigante encontro com Agnes Heller e a sua discussão sobre ‘o cotidiano’. Ora, o plano inicial parecia começar a se mover e provocar novas perguntas investigativas. Eis que então se encontra a primeira categoria: o cotidiano! Mas como e o que é esse tal cotidiano? Como se estrutura a cotidianidade? Existem outros elementos que precisam ser considerados? ... E a resposta foi afirmativa. Foi-se adentrando no espaço da ‘consciência do ser humano’, mas também de sua constituição enquanto ser particular-genérico; de suas necessidades de integração sociais; dos aprendizados que surgem disto; do processo de maturação do indivíduo para a vida em comunidade e dos elementos da própria vida social, tendo sempre como pano de fundo a cotidianidade de Agnes Heller. Assim, sutilmente foi se aproximando da dinâmica - que ora apenas se aposta enquanto possibilidade de processo - que confere os contornos à identidade dos sujeitos em questão: as mulheres camponesas mobilizadas e organizadas no movimento social, o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil! Feitas essas colocações, apresenta-se brevemente o conteúdo do capítulo, já dizendo que este, ao contrário do segundo capítulo, será composto de ‘Seção Única’, pois a discussão apresentada aqui, centraliza-se num único tema de análise: a matriz identitária. Depois de iniciada a conversa e tendo dito os primeiros traços do plano da caminhada, é necessário agora falar um pouco sobre estes sujeitos que - para fins deste estudo - foram os artistas principais. Eis que então o primeiro passo – compreenda-se primeiro item - ao iniciar a caminhada será dedicar um espaço especial para falar destes sujeitos, ‘as mulheres camponesas em movimento’! 164 No passo seguinte – segundo item do capítulo - discute-se brevemente sobre a cultura patriarcal e as relações de gênero no campo, as quais, de forma transversal nas atividades do cotidiano, imprimem a identidade das mulheres e homens camponeses de modo geral. Tomado o contexto sobre o coletivo de que se tratará, no terceiro item deste capítulo, partir-se-á para a análise de algumas das categorias já apresentadas na introdução, para ao final chegar mais próximo do horizonte desejado: a identidade dos sujeitos da investigação. Eis que se parte! 165 SEÇÃO ÚNICA Movimento de Mulheres Camponesas e a matriz identitária 3.1.1 Os movimentos sociais camponeses no Brasil e o Movimento de Mulheres Camponesas Brasil, final da década de 70’ e início de 80’, período de transição do regime militar e ditatorial para o civil e democrático. É o momento de efervescência dos movimentos sociais. Na cidade e no campo é época de reflexão crítica acerca da realidade do país, de mobilização e participação popular para a defesa da liberdade política e para conquista de novos direitos sociais. A Igreja, através de sua linha mais crítica baseada na Teologia da Libertação, que se difundia rapidamente por toda América Latina, colabora para esta mobilização através das Comunidades Eclesiais de Base, as CEB’s. Surgem neste pré-caldo democrático, além de vários movimentos sociais, também novos partidos de esquerda, dentre os quais o Partido dos Trabalhadores. No entanto, não é somente no contexto de conquistas sociais, de participação e mobilização que se está envolvido. A realidade que se coloca é também de uma assoladora crise financeira e fiscal em todo país e continente. No campo, acrescenta-se ainda o contexto de concentração de terras, de políticas de defesa dos latifúndios, do capital internacional e das agroindústrias, além de um assustador empobrecimento do trabalhador rural que gera um movimento de migração para as cidades, nunca observado antes em tamanha proporção. É o acirramento da questão social no campo e, em conseqüência, o aumento do êxodo rural. Segundo Tavares (1992, p.09), O descanso da terra é coisa do passado e agora a palavra chave é mais produtividade. De novo, só os grandes proprietários são privilegiados. As culturas de exportação têm todas as prioridades. A terra valoriza mais ainda e ao agricultor sem posses resta amargar a cidade grande. Entre os anos 70 e 80 mais de 16 milhões de pessoas saíram do campo. 166 Mas este é também um período de ‘resistência camponesa’. E tal como aconteceu na época de Canudos e do Contestado, grupos de camponeses começam a se organizar e se mobilizar na luta por terra e por direitos sociais. Iniciam-se as ocupações de terra, que posteriormente levam ao surgimento do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. “Neste tempo, junto com as ocupações, os pequenos produtores lutam pela conquista dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais que estavam nas mãos de dirigentes comprometidos com o governo, os chamados pelegos” (TAVARES, 1992, p.15). As mulheres começam a participar das mobilizações sociais e a reivindicar direitos de igualdade em relação aos homens, e de participação política. Parafraseando Tavares (1992), pode-se afirmar que no mundo rural, ‘as agricultoras vão à luta’, Segundo a autora (1992, p.19), “a falência do campo faz a mulher partir para a luta concreta, num campo até então masculino”, referindo-se à participação sindical e à criação de um movimento social autônomo, o Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA. Apesar de longa, a passagem que segue, também de autoria da jornalista Elaine Tavares, contextualiza exatamente o surgimento do MMA. Nas reuniões falavam sobre a terra, a política agrícola, o reconhecimento dos direitos da mulher. Pela primeira vez a mulher participava de forma organizada e tinha como objetivos, a sindicalização e o reconhecimento da profissão. [...] Foi então que em maio de 83, 28 mulheres se reuniram em Itaberaba34 e fundaram o primeiro núcleo do Movimento de Mulheres Agricultoras. [...] Depois da fundação do primeiro núcleo, a discussão se espalha pelo campo. Em quase todas as cidades do Oeste [catarinense] vão se formando núcleos e o movimento começa a crescer como entidade. No dia 8 de março de 84 (Dia Internacional da Mulher), o Movimento faz sua primeira manifestação pública e reúne 500 mulheres em Chapecó. Discutem questões como aposentadoria, saúde e política agrícola, educação, reforma agrária, falta de terra e discriminação (TAVARES, 1992, p. 18,19,21). São reconhecidas, aqui, algumas das características deste movimento, que perpassam a sua história, conformando sua identidade: a capacitação política crítica das militantes; a organização a partir de grupos de base; a mobilização e manifestação em torno de datas significativas para as mulheres e para o mundo rural; o reconhecimento e a valorização da profissão; as falas denunciantes da realidade rural excludente e as lutas reivindicatórias de direitos sociais. Enfim, uma identidade em consonância com a militância engajada na luta pelo acesso aos 34 Distrito rural do município de Chapecó, localizado no oeste catarinense. 167 direitos, pela valorização da mulher e do homem camponeses, pela igualdade social e pela transformação societária. Atualmente, o movimento está organizado em vinte e dois estados brasileiros. Realiza Assembléias Deliberativas em todas as instâncias - nacional, estaduais, regionais e municipais. Quanto à organização, possui equipes de coordenações e direções executivas em cada nível de participação, sendo que no nível local a mesma corresponde ao Grupo de Base. Numa entrevista35 concedida à socióloga rural Maria Ignez Paulilo, uma das lideranças do Movimento no Brasil, Dona Adélia Schmitz, identifica o MMC como um movimento autônomo, democrático e popular. Segundo ela: Somos um movimento classista, das mulheres trabalhadoras do campo que compõem a classe trabalhadora. [...] Nossa causa é a transformação da sociedade. Por isso nós lutamos por direitos sociais; pela garantia de uma Previdência pública, universal e solidária; salário maternidade [...]; saúde pública integral com atendimento humanizado para todos e todas; fim da violência contra a mulher, por uma agricultura camponesa com políticas públicas; produção de alimentos saudáveis; soberania alimentar; reforma agrária; crédito especial para as mulheres; defesa, preservação, multiplicação e conservação da biodiversidade; acesso e garantia de documentos pessoais e profissionais para as mulheres camponesas; [...] entre outras reivindicações (PAULILO e SILVA, 2007 [15(2)], p.399-417). Neste excerto, fica explícita a forte identidade camponesa ligada à militância política e social, bem como a existência de uma pauta reivindicatória que é levantada como bandeira de luta em todos os espaços públicos onde o movimento consegue participar. Foram estas características que levaram a optar por dedicar maiores esforços de investigação, no campo brasileiro, para este que é um movimento social, cujas militantes são mulheres, as quais se identificam – inclusive como trabalhadoras camponesas. 3.1.2 As inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e na construção da identidade das mulheres camponesas 35 Entrevista publicada na Revista Estudos Feministas, maio-agosto/2007, sob autoria de Paulilo e Silva. A referência completa da entrevista encontra-se no item que finaliza este estudo. 168 O modo de vida construído no cotidiano dos indivíduos incide em diversas dimensões do mesmo: seja nas atividades consideradas de ordem prática, seja naquelas intelectuais, ou sociais, políticas, culturais e, porque não, econômicas. E incidindo nas mais diversas dimensões do cotidiano, este modo de vida vai sendo construído, criado, recriado e, geralmente, perpetuado para além das vidas que o vivenciam. Uma das estratégias desta perpetuação diz respeito ao fato do modo de vida e a cotidianidade dos indivíduos adentrar sutilmente no imaginário e nas experiências de homens e mulheres, imprimindo-lhes traços na subjetividade, que passam a ser reproduzidos automaticamente e só dificilmente são questionados no sentido de uma transformação. Nas mulheres e homens rurais este processo ocorre muito mais efetivamente, já que as estruturas da vida camponesa promovem transformações mais lentas e graduais que aquelas do contexto urbano. Assim, as relações sociais são cotidianamente reiteradas e reproduzidas enquanto modelos ideais de sociabilidade, integração e solidariedade que possibilitam a produção e reprodução da vida. A pesquisa de Lusa (2008) sobre o mundo rural da agricultura familiar36, já observou a continuidade de padrões desiguais de gênero no cotidiano dos camponeses. Estes padrões datariam de longa existência e ocasionariam às mulheres maiores dificuldades para o exercício da vida cotidiana, do que para os homens. Segundo foi observado, essas dificuldades iriam desde o acesso a serviços e benefícios sociais, até a participação social efetiva junto aos grupos sociais locais e a própria sociedade ampliada. Nota-se neste quadro a presença de um elemento que também aparece nas relações de gênero, o qual se evidencia significativamente na divisão sexual do trabalho: trata-se da atribuição de identidades. Conforme Martinelli (2008, p.11), “a identidade atribuída decorre de circuitos externos ao indivíduo, não opera com a totalidade do processo social, é visualizada como dada, pressuposta, préestabelecida e se encontra distanciada do processo histórico e esvaziada de substancialidade política”. 36 Nos marcos de uma pesquisa desenvolvida no contexto da região oeste do Estado de Santa Catarina. Referência completa no final do estudo. 169 Esta categoria analítica indica a existência de uma identidade que é prévia à existência do próprio indivíduo social e que lhe é atribuída como sendo ‘sua própria identidade’. É como se fosse colocada uma máscara permanente no indivíduo, que o impossibilita de construir ele mesmo a sua identidade, através das suas relações sociais, políticas e culturais, segundo o contexto e a conjuntura em que vive. Ora, ao considerar que as identidades são construções sócio-históricas, que acontecem no próprio movimento da vida cotidiana, através das relações e do jogo de forças no campo social, político, econômico e cultural (MARTINELLI, 2008), não é possível admitir que as identidades de homens e mulheres sejam conferidas, até mesmo impostas, segundo padrões ou modelos da sociedade. Além disso, há que se notar que essas identidades atribuídas são forjadas para que contribuam à plena expansão do capital, o que possibilita indicar que também através das identidades atribuídas o capital manipula a sociedade. É possível observar que na divisão sexual do trabalho, determinada segundo os padrões da cultura patriarcal capitalista, evidencia-se a existência de uma identidade atribuída às mulheres, indicando a subalternidade feminina na agricultura familiar, sendo esse um dos aspectos que conformam o modo de vida naquele contexto, já que perpassa desde a divisão sexual do trabalho, a divisão das responsabilidades na propriedade e na vida familiar e a divisão das tarefas; responsabilidades e funções na vida pública e social das localidades rurais. Como conseqüência, há uma interferência direta nas formas de sociabilidade e na própria subjetividade das mulheres camponesas. Assim, pode-se notar na identidade (atribuída) das mulheres camponesas a existência de uma tripla subalternidade: ser mulher, ser trabalhadora rural, ser invisível na sociedade de forma geral. Julga-se imprescindível compreender e reconhecer a existência desta realidade no cotidiano rural - se bem que não ocorra somente neste espaço da sociedade - para posteriormente compreender quem são as mulheres que compõem o grupo social tomado como objeto de investigação: o Movimento de Mulheres Camponesas. Entender esse processo possibilitará notar que suas identidades individuais e também aquela coletiva já superaram vários aspectos dessa identidade subalterna atribuída e é essa ocorrência que acaba construindo, inclusive, a 170 identidade do movimento na atualidade. Ao afirmar isso, considera-se que as identidades são permanências, mas também são transformações, visto que esse é o movimento dialético que as constitui. Entretanto, para poder decifrar essa questão é importante apreender algumas idéias presentes nos estudos sobre as ‘relações de gênero’, desenvolvidos no Brasil de modo mais amplo a partir da década de 198037. Para elucidar a questão, toma-se como referência o artigo da historiadora Joan Scott (1995), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, cujo debate sobre gênero é considerado um marco na história dos recentes estudos de gênero, por realizar uma análise histórica sobre os estudos em relação à mulher, ao feminismo e ao surgimento da categoria gênero. Inicialmente, o termo gênero era utilizado para referir-se aos traços sexuais e à identificação gramatical dos objetos ‘masculinos e femininos’; recentemente, o uso da categoria passou a enfatizar o caráter social das distinções entre homens e mulheres. Portanto, gênero como categoria analítica, somente emergiu na segunda metade do século XX, abrindo um novo campo teórico, uma categoria analítica e marcando o vácuo, a lacuna entre as teorias até então existentes, aproximando-as de forma a eliminar as incapacidades das mesmas de oferecerem, conjuntamente, explicações às relações sociais entre homens e mulheres (SCOTT, 1995). Para Scott (1995), repensar a mulher na história significa criar uma ‘nova história’ de mulheres e homens, ou seja, implica em transformar paradigmas científicos e disciplinares, já que a utilização do termo “gênero” torna-se especialmente útil para contextualizar e compreender as construções acerca dos significados culturais sobre ser homem e ser mulher, nos diferentes contextos históricos (temporais) culturais. 37 As reflexões que se passa a apresentar têm como fundamentação a principal corrente teórica dos estudos de gênero, utilizada pelos movimentos sociais, inclusive os movimentos feministas no Brasil, embora numa perspectiva crítica esta corrente utiliza noções do estruturalismo europeu para poder avançar na perspectiva histórico-dialética das relações sociais. Seu marco teórico advém das contribuições da historiadora francesa ‘Joan Scott’ (1941), cujo artigo mais célebre - Gênero: uma categoria útil de análise histórica (original em 1986) - inaugurou uma nova compreensão contemporânea sobre as relações sociais entre mulheres e homens. 171 Fica expresso no artigo em referência, que não existe um único poder nas relações sociais, e que as relações de gênero passam a “ser constituídas dentro de campos de força sociais”. Conseqüentemente, a definição de gênero para Scott (1995, p.86) “tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter-relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados”. O núcleo central da sua concepção é que o gênero seria constitutivo das relações sociais entre os sexos, e seria também uma forma primária de dar significado às ‘relações de poder’38. Entretanto, vinculado a este núcleo central da concepção, deve-se estar atento, nos estudos que utilizam gênero como categoria de análise, aos símbolos que definem feminino e masculino nas diferentes culturas, aos conceitos normativos, à concepção política e às referências a instituições e à organização social, bem como à identidade dos sujeitos. Por fim, Scott (1995) vem questionar - a partir da relevância que ela mesma dá para as relações de poder - as transformações dentro do cenário social já estabelecido. Em sua resposta, a autora ressalta que o processo histórico social também é composto por processos políticos, os quais assumem diferentes significados conforme lhes forem atribuídos pelos sujeitos e instituições sociais. Logo, a análise, estudo, exploração e difusão dessas novas questões acerca das relações de gênero, possibilitará o surgimento de novas perspectivas sobre velhas questões, fazendo com que surja uma ‘nova história’, redefinindo e reestruturando, a partir de uma visão de igualdade, as relações entre homens e mulheres na sua diversidade, levando também em consideração a raça e a classe social. Portanto, parte-se do pressuposto de que as transformações na contemporaneidade vêm acontecendo de forma intensa, nos mais diversos setores da sociedade, contextos e conjunturas, bem como nas mais diversas áreas do conhecimento. As questões de gênero inserem-se dentro deste conjunto de transformações, tanto de ordem prática, através de mudanças nas relações sociais entre os indivíduos homens e mulheres, quanto de ordem teórica, através dos estudos nas diversas áreas de conhecimento, inclusive de forma inter e transdisciplinar. Ao mesmo tempo, seguindo o ritmo intenso das transformações, são 38 Conceito originário do pensamento Foucaultiano, também referenciado na nota n.27. 172 percebidas mudanças no contexto rural do Brasil, que ocasionam o surgimento de novos paradigmas de ruralidade. Neste contexto de transformações, no que tange especificamente ao contexto rural da agricultura familiar, constatou-se - conforme já mencionado - que permanece uma situação de desigualdade nas relações de gênero, fazendo com que as mulheres daquela realidade vivam a ‘ausência da autonomia e emancipação’. Ora, se por um lado, isto alerta para a existência de uma situação ‘não desejada’, por outro, aponta para a possibilidade (dada à necessidade) de desencadear, através das próprias mulheres, processos voltados para a construção da autonomia e da emancipação. Entretanto, para isso acontecer, é necessário reconhecer que a divisão sexual do trabalho é ainda bastante explícita na agricultura familiar. Essa divisão é notória na cotidianidade e comprovada por investigações de caráter científico39. Assim, inclusive nos dias atuais, cabem ao homem as tarefas destinadas à geração de renda, tais como o cultivo dos campos, inclusive no corte, na preservação das matas, a construção de cercas, as relações comerciais de venda de produtos, compra de insumos, maquinários, a aquisição de bens ou financiamentos etc. Já para a mulher, cabem as tarefas relativas ao âmbito doméstico, que se estende aos arredores da casa. Logo, sua responsabilidade tange às tarefas destinadas à reprodução familiar, como os cuidados com a casa, com a comida e a educação dos filhos, o cultivo da horta e cuidados com o jardim, as pequenas criações de gado, aves e suínos etc. Isto foi confirmado também por outras pesquisadoras, como Boni (2005) e Paulilo (2003), as quais aferem que a desigual divisão sexual dos papéis, nas pequenas propriedades agrícolas, associa-se à dominação que permeia desde as relações familiares internas - aquelas do âmbito privado - até as relações familiares externas - âmbito público -, como por exemplo, as relações de herança e propriedade, os arranjos matrimoniais etc. Essas questões são intrínsecas à vida da mulher no campo e fundamentais para que se possa propiciar o debate proposto neste estudo. 39 Para maior aprofundamento, consultar Lusa (2008) e Bauermann (2009). 173 Enfim, a superação desta situação de subalternidade das camponesas, adentra na imprescindibilidade da modificação das relações de gênero. Tal transformação deve ser tomada como um processo social gradual, que pode ser potencializado através de ações emancipatórias, as quais somente são possíveis a partir da construção de uma consciência crítica, politizada e histórica, que considere todos os elementos da cotidianidade, reconhecendo neles o meio e os instrumentos de mudança. 3.1.3 Avançando o olhar para ‘as identidades’ presentes no Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil - os aportes teóricos para a reflexão Nesse item do estudo, enfrenta-se o trecho mais desafiador desta caminhada: a reflexão sobre a realidade levantada, a partir do diálogo com Heller, Lukács e Marx. Na tarefa, como se pode notar pelo título do item, as discussões terão um olhar, tanto para as identidades particulares das mulheres que compõem o movimento, quanto para a identidade coletiva do movimento, uma vez que se compreende que ambas se inter-relacionam, constituindo uma unidade na diversidade - embora seja um olhar dedicado principalmente para o último. As reflexões pessoais, agregadas às contribuições dos grandes pensadores, aparecerão aqui preponderantemente em forma de seqüência - Marx, Heller e Lukács -, embora em alguns momentos poder-se-á estabelecer contrapontos entre eles. Opta-se por este modo de trabalhar, pois, dado o desafio já considerado, deseja-se aprofundar o olhar específico de cada autor. Além disso, resgata-se neles, as contribuições específicas que ora se destacam em um, ora em outro. Enfim, procurar-se-á proceder desta forma sem esquecer que para a existência de um debate profícuo é imprescindível que os contrapontos se interseccionem, se inter-relacionem para que sejam evidenciados. A primeira contribuição que saltou aos olhos desta ‘investigadora de gênero e do rural’ vem de Marx & Engels. Na obra, ‘A ideologia Alemã’, escrita entre 174 1845 e 184640, sutilmente figura uma observação acerca do rural e do urbano que, no ver desta investigadora, fornece o norte pelo qual se deve guiar o olhar para a questão. Nesta obra, os autores tratam da divisão do trabalho e aquela entre o campo e a cidade, confirmando que todas as atividades humanas - e o próprio homem em si - encontra-se a serviço dos interesses não dos próprios homens, mas sim da nação e, subentenda-se aqui, a serviço do capital, de sua reprodução e acumulação nas mãos de uns poucos. O que aconteceria, é que, a partir da divisão do trabalho, divide-se também o mundo em duas partes. Uma destinada a ‘se oferecer’ sempre em subserviência à outra; e a outra, colocando-se no posto de quem dita as regras, domina, subjuga o lado oposto. Observe-se a expressão: lado oposto. A Referência aqui é para o ‘campo’, no primeiro exemplo, e para a ‘cidade’, no segundo, os quais, a partir do surgimento da ‘divisão do trabalho’ passam a serem tratados como dois lados, duas dimensões opostas da vida em sociedade. Segundo os dois pensadores, a divisão do trabalho no seio de uma nação começa por provocar a separação do trabalho industrial e comercial daquele agrícola e, com ela, a separação entre cidade e campo e a oposição de interesses entre ambos (MARX & ENGELS, 1984). Esta constatação leva a reconhecer que, historicamente, as ideologias hegemônicas nas sociedades - principalmente a capitalista - incutiram a ‘subalternidade’ do campo em relação à ‘cidade’, o que traz determinantes diretos para a identidade dos sujeitos destes espaços. Esse reconhecimento é um passo fundamental. Ora, quando se afirmou em parágrafos anteriores sobre a tripla ‘subalternidade’ que caracteriza a mulher rural (de forma geral, isto é, sem especificar como isto acontece ou não em alguns grupos), uma delas referia-se à ‘identidade ligada ao campo’. Já lá, estava-se tratando da subalternidade gerada neste processo de divisão social do trabalho, a qual traz consigo fortes elementos de subserviência e de dominação. Assim, é impreterível que no começo das reflexões teóricas, seja considerado este elemento que, sutilmente, na história das sociedades, vai 40 A edição acessada data de 1984, da Editora Moraes. Ver referência completa ao final do estudo. 175 conformando a identidade das mulheres camponesas, assim como de todos os demais indivíduos rurais. Portanto, uma das possibilidades pelas quais a agricultura de subsistência é tão combatida pelo capitalismo, guarda nexo com uma das afirmações de Marx & Engels sobre o quanto a ‘divisão do trabalho’ determina as demais relações sociais dos indivíduos. Conforme esses pensadores, [...] As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho, são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho (MARX & ENGELS, 1984, p.17) Assim, a agricultura familiar quanto mais se aproxima da ‘subsistência’, isto é, da própria autonomia, mais se opõe aos interesses do capital, e, portanto, produz enfrentamentos enquanto forma alternativa de produção, reprodução e organização da vida social. Outro elemento que merece destaque nas reflexões de Marx & Engels (1984), remete as suas observações sobre ‘as premissas da concepção materialista da história’. Ora, é importante salientar que esta concepção é fortemente considerada neste estudo, dado que ao se apropriar da perspectiva crítica do materialismo histórico para a reflexão, esta consideração torna-se condição sine qua non para as análises e compreensões decorrentes. A própria explicitação das premissas já fala por si, ao afirmar a imprescindibilidade da existência de indivíduos reais e da observação de suas condições materiais de vida, para poder compreender a dinâmica e dialética das sociedades. Neste sentido, não se atingiria o objetivo deste estudo caso não se trabalhasse diretamente com as ’mulheres’, com base nas condições materiais de vida existentes no ‘cotidiano rural’. Enfim, a tônica do debate que se assume neste estudo, confirma o pensamento dos dois autores de que as ‘premissas da concepção materialista da história’ remetem à imprescindibilidade de indivíduos reais, indivíduos humanos vivos; de suas ações; e de suas condições materiais de vida (MARX & ENGELS, 1984). A partir destas premissas podem ser notadas - criticamente - as identidades que caracterizam os indivíduos e os contextos rurais. 176 Destarte, é importante ter clareza que a organização física desta categoria e a relação com o restante da natureza são elementos que condicionam a forma de produzir os seus meios de vida. E é isto que, na concepção materialista da história e na perspectiva de análise aqui adotada, os distingue dos demais animais, já que isto faz com que eles produzam indiretamente a sua própria vida material. Enfim, é isto que passa a exprimir o seu ‘modo de vida’. Assim, aquilo que os homens são, coincide com a sua produção: o que produzem e como o fazem são elementos que retratam seu modo de vida e de organização social. Ora, é a partir da expressão do modo de vida destes sujeitos em sua cotidianidade, que se constroem suas bases identitárias e no caso específico do Movimento de Mulheres Camponesas, o modo de vida camponês é elemento fundamental no reconhecimento da identidade das integrantes e do próprio Movimento. Ainda discutindo sobre a consciência, Marx & Engels (1984) dizem que ela nasce como linguagem ou expressão da necessidade e da carência física no intercâmbio com outros homens. Portanto, “o homem também tem consciência”. Já em nota marginal, Marx afirma que “[...] os homens têm história porque têm de produzir a sua vida para além de determinado modo de produção econômica, assim a vida é produzida tanto pela sua organização física, tal como o é pela sua consciência.” (MARX & ENGELS, 1984, p.33, grifos no original). A consciência é, pois, logo de começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens. A consciência, naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível imediato e, portanto, é uma consciência da conexão limitada com as outras pessoas e coisas fora do indivíduo, que aos poucos vai se tornando consciente de si. Por outro lado, ela é - ao mesmo tempo - consciência da natureza, a qual em princípio se opõe aos homens como um poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se deixam amedrontar como animais. Portanto, essa seria uma consciência puramente animal da natureza, tal como algumas religiões que têm suas crenças nos fenômenos naturais (MARX & ENGELS, 1984). 177 É importante observar como a consciência vai sendo construída, para se compreender posteriormente de onde surgem as idéias dominantes. Este segundo entendimento, por sua vez, só é possível ao se relacionar classe dominante com consciência dominante. É neste sentido que Marx & Engels (1984) afirmam que as idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. Destarte, na ‘A Ideologia Alemã’, os pensadores finalizam o debate sobre a consciência de forma próxima ao modo pelo qual iniciaram. Segundo eles, “os indivíduos partiram sempre de si e partem sempre de si. As suas relações são relações do seu processo real de vida. A que se deve que as suas relações se autonomizem contra eles? Que os poderes da sua própria vida se tornem opressores contra eles?” (MARX & ENGELS, 1984, p.105). Portanto, ficam expressas as indagações, cujas respostas levam obrigatoriamente a tratar de um ‘modelo cerceador do indivíduo’ e ‘autonomizador do mercado’. Infelizmente, é nesse sistema opulento que as mulheres camponesas estão inseridas. Assim, a reflexão alerta que a consciência identitária e a autonomia dos sujeitos da presente investigação não podem ser analisadas de forma descolada de seus processos de vida e, muito menos, do modelo que determina o cotidiano da sociedade. Apesar disso, há que se relevar - com tamanha intensidade - que é possível a liberdade de consciência, esta mesma que dá origem às percepções críticas acerca da vida e de seus processos, porém, essa mesma consciência só pode ser construída a partir do real da vida cotidiana. O seguinte aspecto que se pretende tomar emprestado de Marx & Engels (1984) para as reflexões desse estudo, trata sobre a ‘consciência’. Essa concepção é muito importante, pois a partir dela pode-se discutir sobre o próprio reconhecimento da identidade, além de outros aspectos presentes nas próximas reflexões. Sobre essa questão, o ponto de partida encontrado no estudo sobre ‘A ideologia Alemã’, diz que A Produção das idéias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. [...] A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. [...] Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou 178 se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para aí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também os seus reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. (MARX & ENGELS, 1984, p.22) Logo, reconhece-se nessa afirmação dos pensadores, que é o ’chão cotidiano’ que fornece os fundamentos para a existência da consciência. É a partir da cotidianidade e ‘na cotidianidade’ que os indivíduos vão construindo a ‘consciência de si’ e dos processos em que estão envolvidos. Portanto, a elaboração da consciência é elemento imprescindível para o reconhecimento da identidade dos indivíduos, homens e mulheres. Parece importante considerar que “[...] os homens, ao mudarem a sua realidade, ao desenvolverem a sua produção material e o seu intercâmbio, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência (MARX & ENGELS, 1984, p.23). Por conseguinte, é impossível falar de consciência, sem tomar ‘a vida’ como seu fundamento ontológico. Essa é a confirmação de que da cotidianidade emerge a consciência, a qual possibilitará a construção das identidades sociais de homens e mulheres, indivíduos históricos das sociedades. Já numa reflexão posterior, Marx & Engels (1984) vão tratar das relações sociais como força produtiva. Neste sentido, coloca-se uma indagação em relação à organização e mobilização de movimentos camponeses de mulheres, especificamente o MMC no Brasil. Seria possível reconhecê-lo, a partir da perspectiva de Marx & Engels, como ‘força produtiva’ na sociedade brasileira? Conforme os autores (MARX & ENGELS, 1984, p.32), A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um lado como relação natural, por outro como relação social - social no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos seja em que circunstância for e não importa de que modo e com que fim. A compreensão construída a partir deste estudo, assim como a passagem pelo pensamento dos autores, permite afirmar ‘sim’ que o Movimento de Mulheres Camponesas é uma força produtiva na sociedade. Esse - assim como outros movimentos sociais - não geram de forma direta e freqüente produção de riquezas para o mercado; no entanto, são produtores de processos sociais, os quais geram produtos nas várias dimensões da vida, algumas delas incidindo inclusive na 179 produção material da vida, como é o caso do MMC ao levantar como uma de suas bandeiras de luta a defesa de um ‘Projeto de Agricultura Familiar Sustentável’. E, decorrente disto, a produção ecológica, a utilização de sementes crioulas, entre outras lutas que incidem diretamente no mercado e se contextualizam, por isso, como embates com o modo de produção dominante, portanto, frente ao capital. Continuando a discussão, tendo como fundamento o materialismodialético, sente-se necessidade de tratar uma questão ainda não abordada com a profundidade necessária. Trata-se da identificação do homem (humanidade) enquanto ser social particular, ou seja, em sua dimensão singular, individual, e enquanto ser humano-genérico, isto é, integrado em uma coletividade que é apenas possível para os animais do gênero humano. Para pontuar teoricamente esta reflexão, reporta-se às contribuições de Agnes Heller, tomando como ponto de partida a afirmação de que Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente (HELLER, 1989, p.17). Percebem-se nesta afirmação dois elementos importantes para a reflexão. Um deles trata da relação entre a vivência da cotidianidade, na especificidade da vida de cada indivíduo, e a direta ligação desta dimensão da vida com a construção do ser humano-genérico existente em todos os sujeitos. Ora, o que chama atenção na afirmação da autora, em relação à reflexão proposta, é que na cotidianidade das mulheres camponesas vai se construindo uma identidade que comporta em si especificidades, mas que se eleva na condição do reconhecimento social de sua existência no universo do ‘gênero’ feminino e também do gênero humano. É nesse trânsito entre o particular - que se constrói no cotidiano - e o geral - que, embora abarque outras dimensões mais amplas, carrega aspectos desse mesmo cotidiano - que a identidade vai sendo forjada. O segundo elemento refere-se à intensidade que representa a dimensão cotidiana na conformação da vida dos indivíduos. Neste sentido, ela é a base que dá sustentação para o seu desenvolvimento. A partir dela, mulheres e homens vão se descobrindo e se construindo enquanto sujeitos sociais. Destarte, Heller (1989, p.18, grifos no original) considera que “[...] o homem já nasce inserido em sua 180 cotidianidade. Seu amadurecimento significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana [...]. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade”. Entretanto, a filósofa ressalta que para atingir a maturidade o homem deve aprender primeiramente a manipulação das coisas e aprendendo isto significa que já assimilou também as próprias relações sociais. O mesmo acontece com a “assimilação imediata das formas de intercâmbio ou comunicação social”. Essas assimilações não acontecem para o indivíduo quando está isolado, mas sim começam sempre nos grupos, identificados por Heller (1989, p.19, grifos no original) como “[...] grupos face-to-face, [os quais] estabelecem uma mediação entre o indivíduo e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores”, ou seja, “[...] quando é capaz de se manter autonomamente no mundo das integrações maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e de mover por sua vez nesse mesmo ambiente”. Nota-se que há uma relação explícita entre a sociabilidade dos indivíduos e a cotidianidade. Outrossim, a sociabilidade do homem, enquanto necessidade ontológica, vai sendo suprida na cotidianidade através da inserção de mulheres e homens em grupos, desde o nível primário representado, inicialmente pela família sem referência desta como modelo -, até o nível societário mais amplo, como a classe social. Portanto, constata-se que é no grupo - em seus vários níveis - que os elementos da cotidianidade são apreendidos pelos indivíduos. Outro elemento a ser levado em conta, é que o indivíduo é sempre, ao mesmo tempo, um ser particular e um ser genérico. É particular, não somente no sentido de um ser ‘isolado’, mas no sentido de que todos detêm uma individualidade. É neste âmbito de sua particularidade social que se manifestam suas necessidades e suas expressões para, depois, serem levadas à coletividade. Como diz Heller (1989, p.20), “a unicidade e irrepetibilidade são, nesse ponto, fatos ontológicos fundamentais”. Também Lukács (1997) trata a questão, afirmando que a individualidade já aparece como uma categoria do ser natural, assim como sua genericidade. Para ele, esses dois pólos do ser orgânico podem se elevar à pessoa humana e a gênero 181 humano no ser social - tão somente de modo simultâneo no processo que torna a sociedade cada vez mais social. Neste sentido, o filósofo assevera [...] Assim, o homem é simultaneamente produtor e produto da sociedade, realiza em seu ser-homem algo mais elevado que ser simplesmente exemplar de um gênero abstrato, que o gênero não é mais uma mera generalização à qual os vários exemplares se liguem “mudamente”; é mostrar que esses, ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si (LUKÁCS, 1997, p.35). Note-se que o autor tece uma relação direta entre a individualidade, o gênero - genericidade - e a consciência de si. Tudo isto como passagem, num processo de transição vivido contemporaneamente e de modo dinâmico, que confere ao indivíduo aquilo que Heller (1989) caracteriza - conforme já ressaltado nos parágrafos anteriores - como sua particularidade social, unicidade e irrepetibilidade Ora, chega-se então ao momento de discutir sobre as necessidades e expressões particulares, já que são eles dois importantes elementos da singularidade, que quando agregados no conjunto dos grupos sociais, conferem efeito de coletividade aos mesmos. Isto fica evidente na afirmação de que “as necessidades humanas tornam-se conscientes no indivíduo, sempre sob a forma de necessidades do Eu. [...] A dinâmica básica da particularidade individual humana é a satisfação dessas necessidades do “Eu”. (HELLER, 1989, p.20, grifos no original). Por outro lado, Heller (1989, p.21) também afirma que “também o genérico está ‘contido’ em todo homem e, mais precisamente, em toda atividade que tenha caráter genérico, embora seus motivos sejam particulares”. E ainda complementa a perspectiva histórica dizendo que “para o homem de uma dada época, o humano-genérico é sempre representado pela comunidade ‘através’ da qual passa o percurso, a história da humanidade”. Foi através da relação consciente com a comunidade que se formou a consciência de nós e “configurou-se também sua própria consciência do Eu”. Portanto, é notória a relação dialética existente entre o particular-singular e o genérico-coletivo na constituição da humanidade. Nesta concepção, é fundamental a compreensão do processo de sociabilidade do indivíduo, enquanto condição sine qua non para sua existência. É isto que permite afirmar que o homem 182 é um ser genérico “[...] já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração” (HELLER, 1989, p.21). A dialética entre particularidade e genericidade da humanidade é vivida na cotidianidade em forma de unidade, que não atinge diretamente o nível de consciência, mas que vai ocorrendo e sendo significada pelos sujeitos, na medida em que estes assumem e exercem funções na vida cotidiana. No entanto, esta dialética não ocorre - preponderantemente - de forma harmoniosa. É tensionada, como diz Heller (1989), “mudamente”. Segundo ela, com esta tensão “aumentam as possibilidades da particularidade submeter a si o humano-genérico e de colocar as necessidades e interesses da integração social a serviço dos afetos, desejos e do egoísmo do indivíduo. Isso suscitou a ética como uma necessidade da comunidade social”. (HELLER, 1989, p.23) Esta ética suscitada como necessidade para a integração coletiva, construída a partir de exigências e normas a fim de que o indivíduo submeta sua particularidade ao genérico da comunidade, aos poucos vai introduzindo uma motivação interior, que passa a ser adotada livremente pelos indivíduos diante da vida, da sociedade e dos homens. A esta última denomina-se moral, sendo uma de suas funções a inibição, o veto. Nas palavras da filósofa, “[...] por mais intenso que seja o esforço transformador e culturalizador da moral, não se supera sua função inibidora e essa se impõe na medida em que a estrutura da vida cotidiana está caracterizada basicamente pela muda coexistência de particularidade e genericidade.” (HELLER, 1989, p.23). Conseqüentemente, o que ocorre é a elaboração de padrões, de cunho cerceador, que determinam como devem ser ações, atitudes, posições, pensamentos e outras formas de expressão dos indivíduos. Esta padronização, embora esteja presente na cotidianidade, é considerada como algo exterior a ela, uma vez que aparece como uma determinação decorrente de uma moralidade não construída, mas atribuída aos indivíduos, não sendo passível de decisão. Por isto, “[...] quanto maior for a importância da moralidade, do compromisso pessoal, da individualidade e do risco na decisão acerca de uma alternativa dada, tanto mais 183 facilmente essa decisão eleva-se acima da cotidianidade e tanto menos se pode falar de uma decisão coletiva” (HELLER, 1989, p.24). Nota-se nesse ponto, a pertinência entre o pensamento de Heller (1989), as afirmações encontradas nos estudos de gênero e as constatações apresentadas no item anterior, as quais possibilitam perceber que a reprodução dos ‘papéis de gênero’ acontecem sob forma espontânea, quando tomadas como padrões onde a impregnação da moralidade é forte. Ora, quando assim ocorre, significa que as relações já foram abstraídas do nível de questionamentos e liberdade de construções das relações que fariam parte da cotidianidade, encontrando-se num patamar que não possibilita autonomia para o indivíduo, mas que lhe são determinadas pelos padrões construídos por outrem. Heller (1989, p.25) também traz em suas discussões a ‘possibilidade de escolhas’, porém, ‘escolhas compreendidas no contexto de ideologias’. Daí advém a importância de se refletir sobre a escolha como instrumento ou meio de construção do caminho do comportamento humano. Neste sentido, observa-se Heller dizer que “[...] o caminho desse comportamento é a escolha (decisão), a concentração de todas as nossas forças na execução da escolha e a vinculação consciente com a situação escolhida e, sobretudo, com suas conseqüências”. Entretanto, reportando-se ao cotidiano das mulheres camponesas, sem fazer alusão a sua participação ou não junto ao Movimento de Mulheres Camponesas, o quadro encontrado de modo predominante no contexto rural, não permite afirmar que as escolhas são feitas de modo consciente e baseadas em possibilidades. Pelo contrário, parecem sobressair decisões determinadas pelos ‘moralismos’ tratados pela autora. De certo modo, Heller diz que nem sempre serão possíveis decisões com base em escolhas conscientes, já que na cotidianidade, não é possível concentrar todas as energias em cada decisão. Neste sentido, Heller denomina que existiriam decisões contextualizadas no âmbito do cotidiano e do não-cotidiano, as quais seriam baseadas nos tipos de comportamentos: aqueles que apenas reproduzem, segundo automatismos, ou aqueles conscientes. Mesmo considerando isto, a autora reconhece que é difícil definir exatamente até onde vai o comportamento cotidiano do não-cotidiano, pois ‘esta dialética é isenta de automatismos’. 184 A partir deste pensamento, Heller (1989, p.25, grifos no original) afirma que “[...] o meio para essa superação dialética parcial ou total da particularidade, para sua decolagem da cotidianidade e sua elevação ao humano-genérico, é a homogeneização”. Mas, sendo a vida cotidiana heterogênea, a pergunta decorrente é: o que significa, então, essa homogeneização? Para desvendar a questão, Heller (1989, p.27) aponta três fatores para discussão. O primeiro refere-se ao fato de que a vida cotidiana requer o desenvolvimento de várias habilidades em diversas direções e que nenhuma é solicitada com intensidade especial. Neste sentido, remete à expressão de Lukács de que “é o homem inteiro que intervém na cotidianidade”. O segundo refere-se ao fato de que mesmo quando o homem concentra-se numa única questão, ele apenas suspende temporariamente as outras, dedicando-se com afinco para o que está em pauta. Da mesma forma, Heller remete a Lukács lembrando que o indivíduo se transforma neste sentido em um “homem inteiramente”, ou seja, dedicado com sua “inteira individualidade humana41”. O terceiro fator é que este processo não acontece de forma arbitrária, mas “[...] de modo tal que nossa particularidade individual se dissipe na atividade humano-genérica que escolhemos conscientemente e autonomamente, isto é, enquanto indivíduos. Ao se discutir aqui a estrutura básica da cotidianidade do indivíduo, aponta-se para a necessidade do debate sobre a alienação, um passo posterior nesta investigação. Embora não seja possível esmiuçar esta categoria de análise neste capítulo, é imprescindível considerar que a questão da ‘alienação do homem’ de suas próprias ações, decisões e, por conseqüência, de seu próprio cotidiano, traz reflexos diretos para a construção da identidade. É esta alienação do cotidiano o elemento fundamental que possibilita que identidades sejam atribuídas e não mais construídas. Retomando a questão, para Heller (1989), somente quando estes três fatores acontecem contemporaneamente é que se pode falar da passagem da cotidianidade para penetrar na esfera do humano-genérico. É exatamente neste ponto que se verifica a existência de relação com a construção de identidades coletivas, a partir do compartilhamento de cotidianidades particulares, elevadas pelo 41 Expressão com o destaque da própria Heller. 185 indivíduo no patamar de genericidade, pois se considera que identidades coletivas são sempre identidades partilhadas. É nesta dinâmica que se percebe a espontaneidade presente na vida cotidiana, como característica dominante. É neste sentido, que Heller (1989, p.29) afirma: “[...] é evidente que nem toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo nível, assim como tampouco uma mesma atividade apresenta-se como identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos estágios de aprendizado.” Ora, esta espontaneidade não deve ser confundida com os ‘automatismos’ aferidos anteriormente. No entanto, ela é característica dominante na vida cotidiana. Isto quer dizer que a vida cotidiana não acontece de forma calculada, mas nela são agregados também fatos e elementos inusitados, que conformam a própria característica do ser humano, sem com isto retirar o nível de consciência. Pelo contrário, reafirma esta presença quando mulher e homem são incitados a agirem segundo a criatividade na elaboração e/ou percepção de possibilidades de direcionarem seus pensamentos, atitudes e ações. Estas são características da vida cotidiana. Segundo a autora (1989, p.30), Na vida cotidiana, o homem atua sobre a base da probabilidade, da possibilidade: entre suas atividades e as conseqüências delas, existe uma relação objetiva de probabilidade. Jamais é possível, na vida cotidiana, calcular com segurança científica a conseqüência possível de uma ação. Por conseguinte, passa-se a compreender que “[...] o pensamento cotidiano orienta-se para a realização de atividades cotidianas e, nessa medida, é possível falar de unidade imediata entre pensamento e ação na cotidianidade” (HELLER, 1989, p.31). É neste ponto que se começa a tratar de outro elemento da cotidianidade, que nos interessa na construção da identidade do movimento de mulheres camponesas em questão: a elaboração de juízos e pensamentos correspondentes diretamente às exigências cotidianas da classe ou grupo em questão. Para tratar deste elemento, parte-se da afirmação de Heller de que “[...] a unidade imediata de pensamento e ação implica na inexistência da diferença entre ‘correto’ e ‘verdadeiro’ na cotidianidade; o correto é também verdadeiro”. Esclarecendo esta questão, Heller (1989) diz que o pensamento cotidiano apresenta-se repleto de fragmentos, de material cognoscitivo, mas também de juízos 186 que não dizem respeito à manipulação das coisas ou às objetivações, mas se referem exclusivamente à orientação social. Assim, os pensamentos e os juízos podem ser mais ou menos verdadeiros e podem resultar mais ou menos corretos conforme as exigências cotidianas do grupo social em que se está inserido. Neste sentido, entram em cena para o debate a questão das ‘crenças’, da ‘fé e da confiança’, da construção de valores que se convertem em ideologias, os quais assumem relativa independência na cotidianidade dos indivíduos, mas que são assimilados e, portanto, defendidos, pelos mesmos em seus pensamentos, falas, gestos e ações. Dito isto, quer-se trazer duas realidades para a reflexão. Uma delas remete à realidade predominante no tocante às relações de gênero no contexto rural. Nela observa-se que a subalternidade da mulher camponesa é compreendida de forma geral, tanto pelos homens quanto pelas mulheres, como algo natural, que simplesmente é assim e da mesma forma deve continuar. Dito de outra forma, criase uma espécie de mito no que tange às relações entre homem e mulher, o qual é perpassado no cotidiano como uma ‘espécie’ de crença, a qual baliza que se algo ‘fugir’ deste padrão mitologizado, deverá ser considerado como disfunção, patologia, anormalidade; e, portanto, banido tanto o comportamento, quanto -muitas vezes - o próprio indivíduo. Nesta realidade, ainda não houve avanços significativos quanto à compreensão das relações sociais igualitárias - não somente aquelas de gênero que possibilitassem progressos em relação à construção de outras crenças voltadas para a realização humana, num âmbito coletivo (mulheres e homens) e não parcial (homens). Já a outra realidade referida, remete ao próprio Movimento de Mulheres Camponesas que, ao construir princípios e objetivos coletivos, deposita-os como uma espécie de ‘crença’ (fé ou confiança) que deve ser perseguida na individualidade de cada militante e na coletividade das lutas do Movimento. Neste contexto, a relação que se põe é a da construção de um horizonte utópico coletivo, que motiva e direciona a coletividade imprimindo-lhe identidade ideológica, identidade que configura seu espaço e lugar na cotidianidade e a partir dessa configuração seu direcionamento de lutas. Assim, afirma Heller (1989, p.33, grifos no original), 187 É indiscutível que uma ação correspondente aos interesses de uma classe ou camada pode se elevar ao plano da práxis, mas nesses casos superará o da cotidianidade; a teoria da cotidianidade, nesses casos, converte-se em ideologia, a qual assume certa independência relativa diante da práxis cotidiana, ganha vida própria e, conseqüentemente, coloca-se em relação primordial não com a atividade cotidiana, mas com a práxis. Note-se, aí, que já se está tratando de ações, que dizem respeito à transformação, ações imbuídas de significados políticos para a vida e cotidianidade dos indivíduos e, por isso mesmo, podem ser consideradas como ‘práxis’. Note-se também que na primeira referência esta dimensão não está presente; porém, na segunda, ela é contextualizada como elemento propulsor do movimento, nas palavras do próprio MMC, Na trajetória de luta e organização das mulheres camponesas foi sendo construída uma mística feminina, feminista e libertadora, cujo conteúdo se expressa no Projeto Popular que o Movimento está comprometido, que articula a transformação das relações sociais de classe com a mudança nas relações com a natureza e a construção de novas relações sociais de gênero (MMC, 2009, s/p) Mas, atenção! Se por um lado, as crenças podem ser elevadas a ideologias e estas à práxis, por outro lado, Heller (1989, p.35, grifos no original) também alerta que “os juízos provisórios que se enraízam na particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou preconceitos”. Complementando esta observação, a mesma autora afirma que “o juízo provisório pode se cristalizar em preconceito e pode ocorrer que já não prestemos atenção a nenhum fato posterior que contradiga abertamente nosso juízo provisório; aí podemos nos submeter à força de nossas próprias tipificações, de nossos preconceitos”. Desse modo, segundo o pensamento da autora, o juízo provisório analógico é inevitável no conhecimento cotidiano dos homens, mas está exposto ao perigo da cristalização e é aí que reside o fundamento para os preconceitos e, conseqüentemente, para os determinismos, dentre os quais os que fundam as desigualdades de gênero. Heller (1989, p.37) também discute outros fatores constituintes do cotidiano dos indivíduos, que considera como “momentos característicos do comportamento e de pensamento cotidianos”. Para ela, estes momentos Formam uma conexão necessária. [...] Todos têm em comum o fato de serem necessários para que o homem seja capaz de viver na cotidianidade. Não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo, economicismo, 188 andologia, precedentes, juízo provisório, ultra generalização, mimese e entonação (HELLER, 1989, p.37, grifos no original). Conforme a autora, tais elementos não devem paralisar as ações e o comportamento dos indivíduos, mas devem dar margem de mobilização. Entretanto, caso se “absolutizem”, o que ocorrerá é a alienação da vida cotidiana. Destarte, tratando-se da questão da alienação, deve-se salientar, antes de qualquer coisa, que A alienação é sempre alienação em face de alguma coisa e, mais precisamente, em face das possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade. [...] A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à alienação. Por causa da coexistência “muda“, em-si, de particularidade e genericidade, a atividade cotidiana pode ser atividade humano-genérica não consciente, embora suas motivações sejam efêmeras e particulares (HELLER, 1989, p.37, grifos no original). Concomitantemente, também ocorre que a estrutura da vida cotidiana, embora esteja sempre sujeita à alienação, não pode ser tomada necessariamente como uma estrutura alienada. Por ser constituída de diversos elementos e dimensões, não se pode atribuir uma total alienação e nem mesmo o contrário, a privação total dela. Entretanto, diante do contexto das sociedades, principalmente as capitalistas - embora também ocorra em outras sociedades - cuja esfera econômica produz várias implicâncias para a cotidianidade, há de se ter presente que “[...] quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma dada sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais esferas. (HELLER, 1989, p.38) Em relação à questão da alienação, é imprescindível compreender sob quais aspectos a filósofa Heller a compreende. Assim, ressalta-se que numa primeira consideração a alienação existiria quando da ocorrência de um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico conquistado de fato e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos particulares. Fica explícita a alusão à apropriação do desenvolvimento genérico-coletivo feito indevidamente por alguns indivíduos, em detrimento da possibilidade de alcance por parte de outros indivíduos. Neste sentido, a própria autora é imperiosa na afirmação de que a alienação residiria no abismo “entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção” (HELLER, 1989, p.38) 189 Logo, em relação à vida cotidiana, não é possível atribuir a ela objetivamente a alienação como se fosse conseqüência direta de sua estrutura. Mas deve-se reconhecer que a alienação ‘pode’ ocorrer na vida cotidiana, sendo determinantes para isto, as circunstâncias sociais que estiverem em vigência (HELLER, 1989). Ao transferir esta reflexão para a discussão proposta, novamente há possibilidade de refletir segundo a realidade das mulheres camponesas militantes do MMC e a realidade observada na pesquisa citada em páginas anteriores. Segundo o pensamento de Heller (1989), em circunstâncias sociais de ausência de uma ideologia coletiva crítica, onde o indivíduo particular encontra-se isolado em seu cotidiano, vivendo apenas na e para a reprodução de padrões - automatismos - são maiores as possibilidades de existência de alienação. Enquanto que, em circunstâncias sociais onde há compreensão sobre os avanços para o desenvolvimento produzidos pelo homem e, em decorrência há incidência de uma dinâmica que reclama a distribuição igualitária destes avanços, é menor a probabilidade de alienação. Portanto, diante do objeto deste estudo, reconhece-se que o Movimento de Mulheres Camponesas orienta-se na direção de provocar que as mulheres trabalhadoras do campo avancem do primeiro patamar para o segundo, liberando-as da alienação da vida cotidiana, sem, contudo, retirá-las da própria cotidianidade. Este acaba sendo um dos aspectos da identidade do Movimento: a formação política e crítica oferecida às integrantes. A formação política acontece desde o nível local, nos encontros dos grupos de bases, através do estudo das cartilhas desenvolvidas pelo próprio movimento, mas também no estudo de outros materiais disponíveis no âmbito dos movimentos sociais e da sociedade em geral. Além disso, são promovidos espaços específicos de formação, como cursos, encontros, congressos e semanas de estudo, os quais ocorrem em diversos níveis organizativos do movimento, sem deixar de considerar a formação política que acontece quando da organização, preparação e efetivação de manifestações sociais. Como exemplo, podemos citar a ‘Jornada de Lutas das Mulheres Camponesas - 2009’, ocorrida em todo o Brasil, com organização de atividades diferenciadas em cada Estado da Federação, ou a 190 ocupação da Aracruz Celulose, ocorrida em março de 2009, no estado do Espírito Santo (evento que compôs o cronograma de atividades da já citada ‘Jornada de Lutas’, o qual foi veiculado pela imprensa nacional como vandalismo do MMC do Brasil). O aspecto da formação política e crítica do MMC, enquanto elemento que imprime identidade ao Movimento, também acaba propiciando situação favorável para o surgimento de outros aspectos identitários, como a sua ’autonomia’ enquanto movimento social. E isso, não casualmente, guarda nexos com a promoção da autonomia de cada mulher camponesa integrante do Movimento. Portanto, o que ocorre é que essa característica do próprio movimento colabora na construção das identidades particulares dos indivíduos que compõem a sua coletividade. Embora não se possa afirmar que isso ocorra para todos os aspectos da identidade do MMC, há que se dizer que pode ser observado em vários deles42. Retomando a discussão sobre a alienação e não-alienação na vida cotidiana, compreende-se que a segunda é possível. Entretanto, isso ocorre quando da existência concreta de relações sociais baseadas na liberdade e quando há compreensão acerca do lugar que os indivíduos particulares e coletivos ocupam na sociedade. Como a própria Heller (1989, p.41) vem confirmar “[...] a condução da vida não pode se converter em possibilidade social universal, a não ser quando for abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução da vida mesmo quando as condições gerais econômico-sociais ainda favorecem a alienação”. Nesse sentido, nota-se que o Movimento de Mulheres Camponesas é um exemplo de que este empenho voltado para a ‘não-alienação’ pode propiciar resultados efetivos no cotidiano rural. Tendo avançado nesta questão, retorna-se para a discussão sobre a ‘consciência’, já iniciada a partir de Marx e Engels (1984), e aqui retomada a partir das contribuições do grande filósofo Lukács. Seu ponto de partida é dado pela afirmação de que “[...] quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre 42 A questão da implicação entre identidades particulares e identidade coletiva também requer maior discussão que poderá ser desenvolvida numa investigação posterior. Desde já, reconhece-se a existência de indicativos de que o debate sobre o ‘particular-genérico’ é uma das vias para seu enfrentamento. Entretanto, a questão que requer rigoroso cuidado teórico. 191 essa base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não que ela é carente de força” (LÚKÁCS, 1997, p.12). Ora, note-se que esta assertiva é completa de significados e que nem uma pesquisa dedicada somente a ela poderia exaurir as possibilidades de desvendamento da ‘consciência’ e sua relação direta com a realidade. Então, mesmo que, timidamente, afirma-se como possível apresentar alguns nexos encontrados em relação ao objeto de estudo - no que tangencia ‘consciência e realidade’ -, que poderão oferecer indicativos para posterior aprofundamento. Ao afirmar que a consciência reflete a realidade, Lukács chama a atenção para a importância da realidade na vida do indivíduo particular, bem como para o ser humano genérico. Conseqüentemente, o indicativo é de que a realidade rural tem significado fundamental na construção - apropriação - da consciência dos sujeitos deste estudo, uma vez que seu ‘chão cotidiano’ é este mundo rural. Entretanto, ao considerar a importância do real, deve-se atentar para o fato de que não se trata de uma realidade aparente, momentânea e efêmera. O real de que se trata tem raízes históricas, é fruto de processos sociais vividos por um grupo de indivíduos particulares e genéricos - e, sendo processo, também guarda nexos entre o ‘real passado, presente e futuro’. É, portanto, um processo num jogo de relações de forças que transformam a realidade, a partir da própria ‘realidade refletida pela consciência’. Esta, por sua vez, possibilita a vida presente, numa relação dialética com a passada e a futura e que, muito embora esta última não possa ser determinada, pode sim ser visualizada pela própria consciência, a partir da capacidade teleológica humana. Ao se colocar a reflexão nesta ótica, resgata-se a questão chave da visão de Lukács, que é, sem dúvida, a da ‘ontologia do ser social’. Note-se que todas as contribuições que esse filósofo oferece têm como pano de fundo o debate e aprofundamento sobre a ‘ontologia do ser social numa perspectiva materialista dialética’. Destarte, sua estratégia para discutir a questão parte da própria ontologia da atividade humana, ou melhor, do seu trabalho. Entretanto, na tessitura de suas discussões, o filósofo vai explicitando que, para realizar a atividade-trabalho, é 192 necessário ao homem pensar, produzir indagações e respostas para que possa chegar ao trabalho e ao produto do seu trabalho. Logo, o que Lukács oferece é o indicativo para retornar à discussão sobre a consciência, demonstrando como ela guarda nexos diretos com a origem da humanidade, embora sempre afirme que é o trabalho a base fundante na ontologia do ser social. Além disto, fica evidente no pensamento do autor, que é a existência da ‘consciência’ que diferencia o homem dos demais animais. Embora a ‘ontologia do ser social’ se dê pelo trabalho, para executar este processo o homem necessita desenvolver sua consciência e é esse o fator que o diferencia dos demais seres da natureza, tornando-o ser social. Isso é confirmado quando ele diz: Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem através do trabalho como um ser que dá respostas. [...] Todavia, o núcleo da questão se perderia caso se tomasse aqui como pressuposto uma relação imediata. Ao contrário, o homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações, freqüentemente bastante articuladas. De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é produto imediato da consciência que guia a atividade [...] (LUKÁCS1997, p.16). É a partir deste pressuposto que Lukács vai discutir o que, dentro da concepção materialista histórica, se denomina de ‘teleologia’ - já introduzida sutilmente em alguns parágrafos anteriores -, que de forma objetiva significa a ‘visualização, através do pensamento, do produto do trabalho - ação humana - antes mesmo que ele tenha sua existência real’. Portanto, já está presente aí a consciência humana, o que possibilita afirmar que “o trabalho é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em funcionamento séries causais”. Lukács ainda complementa dizendo que “todo ato social, surge de uma decisão acerca de posições teleológicas futuras” (LUKÁCS, 1997, p.18-19). É possível perceber nessas reflexões que a consciência é algo próprio da humanidade e que é ela que confere a genericidade do ser social. Assim, seguindo o pensamento proposto pelo filósofo Lukács, afirma-se que a consciência é componente essencial na constituição das mulheres camponesas, que as torna ser 193 social e sujeitos no mundo, tanto quanto os homens camponeses ou às mulheres e homens urbanos. Então, a questão a ser desvendada é: quais elementos da consciência conferem identidade às mulheres camponesas - enquanto indivíduos sociais -, tanto na dimensão particular, quanto na coletiva? E ainda, como acontece a passagem da consciência de ser social particular (individual) para aquela genérica (coletiva)? Seria através da interação social? Essas são indagações surgidas a partir do presente estudo e se tem claro de que suas possíveis respostas não serão encontradas nesta mesma reflexão, dada a brevidade desta e a complexidade daquelas. Entretanto, reconhece-se o indicativo de que tanto a consciência acerca do real - o mundo rural -, quanto a existência de uma visualização de uma realidade - desejada - antes que ela venha a se concretizar, são duas características que compõem a identidade do Movimento de Mulheres Camponesas. Ora, se por um lado, a primeira referência versa sobre o reconhecimento, através da consciência, de aspectos da realidade camponesa, enquanto aspectos constituintes desta identidade, por outro, a segunda referência reconhece na própria ‘mística’ do Movimento os aspectos de uma ‘teleologia que é elevada ao nível da coletividade’, impulsionando neste mesmo âmbito as suas lutas. Nesta última referência, especificamente, deparou-se com a questão da possibilidade de se afirmar a existência de uma ‘teleologia coletiva’. Embora se reconheça a necessidade de maiores aprofundamentos sobre a questão, encontrouse no próprio Lukács uma pista para a resposta. Segundo ele, “foi-nos possível, neste local, mencionar apenas a base sócio-ontológica. [...] Todo evento social decorre de posições teleológicas individuais; mas, em si, é de caráter puramente causal. A gênese teleológica, todavia, tem naturalmente importância em todos os processos sociais” (LUKÁCS, 1997, p.28). Esta pista que parece afirmativa à indagação feita acima, é colocada em suspenso quando o filósofo diz que quanto mais amplos forem os processos sociais - processos globais, como ele os denomina - menores são as possibilidades de que o pensamento teleológico venha se tornar real (LUKÁCS, 1997). Ele ainda complementa: 194 O processo global da sociedade é um processo causal, que possui suas próprias normatividades, mas não é jamais objetivamente dirigido para a realização de finalidades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido. [...] Essa discrepância interior entre as posições teleológicas e os seus efeitos causais aumenta com o crescimento das sociedades, com a intensificação da participação sócio-humana em tais sociedades (LUKÁCS, 1997, p.29). Mesmo considerando esta afirmação de Lukács, continua-se defendendo a existência de uma teleologia coletiva do Movimento de Mulheres Camponesas, a qual carrega, em si, os traços de uma identidade coletiva construída com base no processo de reconhecimento (construção de consciência) de seus traços comuns, sendo os principais o ‘ser-mulher’ e ‘ser-camponesa’, subentendido neste último o reconhecimento de ‘ser-trabalhadora-camponesa’. Essa teleologia - na compreensão elaborada até o momento - está representada nos princípios do movimento, em seus objetivos e bandeiras de lutas, mas principalmente na sua “mística revolucionária”, assumida e defendida pelas integrantes como elemento forte para a identidade coletiva e para a renovação cotidiana dos esforços empreendidos para atingir o ‘horizonte utópico’. Afirmando isto não se está desconsiderando os processos de organização, mobilização e atuação do MMC e a incidência de fatos e elementos gerais que compõem o cenário social, econômico, político e cultural mais amplo da sociedade. Pelo contrário, entende-se que eles são constituintes do próprio processo social em que o MMC está envolvido, ou seja, são elementos do contexto conjuntural da sociedade, que devem ser observados para que seja possível uma compreensão mais próxima da dinâmica de qualquer movimento social. E o Movimento de Mulheres Camponesas, como já foi reconhecido e afirmado em parágrafos anteriores, vive com forte imbricamento a relação entre consciência e realidade, fazendo disso uma de suas ‘molas propulsoras’ nas mobilizações sociais. Lukács colabora para esta reflexão ao falar que É verdade que a diferença entre finalidade e seus efeitos se expressa como preponderância de fato dos elementos e tendências materiais no processo de reprodução da sociedade. [...] Todavia, o fator subjetivo, resultante da reação humana a tais tendências de desenvolvimento, conserva-se sempre, em muitos campos, como um fator por vezes modificador e, por vezes, até mesmo decisivo (LUKÁCS, 1997, p.29). 195 Ora, esta reflexão do filósofo parece confirmar a importância da ‘mística’ assumida pelo MMC, enquanto um horizonte revolucionário que se pretende atingir, mas que já começa a ser real através da teleologia que move suas reflexões, discussões e ações coletivas. Esta mística - denominada pelo movimento de ‘mística revolucionária - existe enquanto subjetividade compartilhada e se associa aos processos reais de lutas, protestos e negociações, na direção de conquistar a concretude dos direitos sociais no campo. Para finalizar as contribuições trazidas do pensamento de Lukács para este estudo, relembra-se sua afirmação de que É a consciência da melhor parte dos homens, daqueles que, no processo da autêntica humanização, colocam-se em condição de dar um passo à frente com relação à maioria de seus contemporâneos; e é essa consciência que, a despeito de todo problema prático, empresta às manifestações desses homens uma tal durabilidade (LUKÁCS, 1997, p.35). Percebe-se, nesta afirmação, a importância da existência de Movimentos Sociais e outras formas de manifestação coletiva que tenham no horizonte a transformação societária, ou seja, que estejam orientados para o processo de autêntica humanização. Reside nisso a importância da atuação do MMC, tendo como horizonte consciente a luta na direção do socialismo, o que é expresso em seus princípios e objetivos. Dos fios ‘das identidades’, tecendo as tramas finais: amarrando as reflexões apresentadas à guisa de encerramento do capítulo Procurou-se, no último capítulo deste estudo, algumas reflexões sobre os processos de construção de identidades, a partir de dois pensadores marxianos (Heller e Luckács) e de uma das obras de Marx & Engels (A Ideologia Alemã) - em se tratando dos aportes teórico-analíticos para o objetivo proposto. Evidenciando que o olhar estava voltado integralmente para as mulheres camponesas e para o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil - MMC, pode-se afirmar que, apesar do desafio, foi possível perceber várias ligações entre os aportes teóricos e a identidade do MMC. 196 Dado que as reflexões teóricas foram permeadas pelas características percebidas no MMC como constituintes da identidade do movimento, não caberá neste item repeti-las, mas sim, reforçar os nexos já evidenciados no quarto item deste estudo. É através desses nexos e de seus elementos que se acredita ser possível desvendar o processo de construção da identidade coletiva do movimento social em questão. Ao encerrar a discussão, salienta-se que desde que se decidiu abordar a temática, tinha-se como pano de fundo para a análise da ‘matriz identitária’ do MMC a categoria ‘cotidiano’ de Agnes Heller (1989). Entretanto, após uma orientação com a Professora Maria Lúcia Martinelli - especialista no assunto - notou-se a necessidade de incluir outros pensadores e outras categorias de análise. Foi assim que se incluiu Marx & Engels e também Lukács. Acompanhando-os, vieram novas categorias como ‘consciência’, ‘teleologia’, ‘ser particular e ser humano-genérico’, ‘realidade’, ‘alienação’, entre outras. Foram elas que possibilitaram estabelecer os nexos entre os fios da identidade do Movimento, reconhecidos nos objetivos, princípios, valores, bandeiras de luta e na própria mística declarada publicamente pelo MMC, em seus materiais e no seu site na Internet43. Assim, pode-se assegurar de que se reconhece a existência de uma identidade construída pelo próprio MMC, onde figuram como elementos centrais a mobilização e a manifestação em torno de datas significativas para as mulheres e para o mundo rural; o reconhecimento e a valorização da profissão; as falas denunciantes da realidade rural excludente; as lutas reivindicatórias de direitos sociais. A esses elementos agrega-se o fato de o MMC assumir-se como ‘movimento autônomo, democrático, popular e classista’ - já que é composto por trabalhadoras do campo - além de ser portador de uma mística revolucionária, que o sustenta nas lutas travadas no cotidiano de cada integrante e também naquelas assumidas coletivamente, através das manifestações organizadas pelo Movimento. Segundo os dados institucionais, “nossa causa maior é a transformação da 43 Como fonte principal destas informações, acessou-se o site do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, cujo endereço eletrônico consta nas referências. 197 sociedade na perspectiva socialista” (MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS, 2009). Destarte, é notória a existência de uma consciência acerca da realidade destas mulheres, que as baliza fundamentalmente no mundo camponês, enquanto mulheres e também enquanto trabalhadoras. Desta consciência decorre a noção de que o movimento coletivo se faz através das várias singularidades presentes em cada camponesa que faz parte do movimento. Esta mesma consciência permite a elas imprimir maior criticidade e politização as suas falas, reflexões, atitudes, decisões e à própria organização, afastando, com isto, as probabilidades de alienação de seu cotidiano. Além disto, numa perspectiva teleológica, estas mulheres animam, alimentam e reforçam suas lutas coletivas e também o dia-a-dia de cada integrante, ao renovar constantemente sua mística, a qual se fundamenta - basicamente - em seus princípios e valores. Desta forma, integradas a partir da sociabilidade humana e de suas necessidades, vão se consolidando enquanto um dos Movimentos Sociais do Campo e de Gênero mais expressivos das últimas décadas. E, sem esquecer-se da categoria que primeiro provocou este estudo, é imprescindível dizer que isto tudo acontece no chão do cotidiano destas mulheres. É neste cotidiano que a história de cada uma dessas mulheres e também de toda a sociedade vai sendo construída: individualmente, coletivamente, conscientemente, cotidianamente. Portanto, ao sintetizar as principais ligações entre os fios que compõem as tramas da identidade do MMC, observou-se que é plenamente possível construir um processo de desvendamento da identidade dos Movimentos Sociais a partir da perspectiva do materialismo dialético e das categorias analíticas estabelecidas por Marx & Engels e pelos marxianos Heller e Lukács, embora se reconheça que o que se fez neste estudo foi o início das primeiras aproximações e que a questão demanda maior investigação. Resta agora o desafio de aprofundar algumas das reflexões aqui introduzidas – numa perspectiva teórica -, bem como de procurar mais elementos que possibilitem construir respostas sobre o tema para as indagações que ainda permanecem em aberto. E, da mesma forma como se iniciou este capítulo da 198 dissertação, falando dos desafios que se propunha superar na caminhada investigativa, finaliza-se afirmando que muitos deles realmente foram superados, outros tantos ainda requerem um olhar cuidadoso, e, outros mais surgiram na trajetória percorrida. Portanto, cumpre aceitá-los e, a partir disso, procurar criticamente descobrir novos caminhos a construir. Dito isto, eis então que se parte para o quarto e último capítulo da dissertação, no qual acontecerão vários encontros. Alguns deles acontecerão entre os sujeitos da investigação com a própria pesquisa, outros ocorrerão entre os sujeitos e a investigadora e outros ainda entre os próprios sujeitos da pesquisa. Neles procurar-se-á reconhecer o caráter das lutas do Movimento de Mulheres Camponesas, as vivências e objetivos que estão por trás de suas reivindicações, a forma como acontecem os processos de transformação de mulheres camponesas em militantes e, até mesmo, em atrizes do cenário político, e, por fim, o significado das conquistas na vida das mulheres e para o cotidiano das famílias camponesas. 199 QUARTO CAPÍTULO O CAMPO, OS MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES E O MMC NA VOZ DAS MULHERES CAMPONESAS Mulher Agricultora, heroína da terra, Herói sem medalha que luta sem guerra. Mulher agricultora cultiva o chão, Produz alimentos para o povo da nação. É uma mistura de muita fé e coragem, Carregando na bagagem muita fibra e canção. Quebrando correntes, derrubando a opressão, Mulher agricultora, força nobre da nação. Passagem do Hino do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina Letra e música de Salete Fornaro 200 Sobre o caminho e os caminhantes da última parte dessa empreitada! Nesse capítulo, será realizada a discussão dos elementos que compuseram os três capítulos que o antecedem na estrutura geral do presente trabalho, sejam eles: o rural; os movimentos sociais; e a identidade construída a partir do cotidiano: trabalho, família e comunidade, os quais, através de seus princípios e valores, compõem as relações sociais camponesas. Tais elementos agora passam a ser debatidos à luz dos fundamentos teóricos, dos materiais documentais do Movimento de Mulheres Camponesas - MMC e dos enriquecedores diálogos realizados com as militantes do MMC/SC em Terras Catarinas. A discussão de cunho analítico parte agora das ‘falas das entrevistadas’. Logo, será utilizada no presente capítulo a linguagem própria das três militantes, com quem se estabelece um diálogo, a fim de que se possa ‘dar voz aos sujeitos da investigação’, permitindo-lhes falar e expressar sobre suas trajetórias, cotidiano e lutas. Esta discussão está organizada em cinco importantes eixos decorrentes das indagações que estiveram presentes em todo processo investigativo, marcando, inclusive, o roteiro que orientou a realização das entrevistas44. Feitas essas considerações, poder-se-ia perguntar: como se pretende chegar às respostas das indagações que sempre perseguiram a investigadora em seu percurso de pesquisa e que, freqüentemente, não lhe ofereciam possibilidades de solucioná-las? Ora, a grande questão é que um elemento inédito é acrescentado, neste momento, ao percurso da investigação. Embora ele estivesse previsto desde o início do planejamento da pesquisa, somente objetivou-se na parte ‘quase final’ do percurso da caminhada e foi assim definido: a voz das mulheres camponesas do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, no Estado de Santa Catarina45. Foi partir das falas das protagonistas dessa história que se procurou dar visibilidade ao cotidiano de vida, às lutas, às conquistas e às perspectivas das mulheres camponesas do MMC, militantes e dirigentes do Movimento em terras catarinenses. 44 Apêndice I: Roteiro de orientação para entrevista. 45 Apêndice II: Termo de livre consentimento para entrevista. 201 Entretanto antes de iniciar a análise das falas das entrevistadas, torna-se necessário conhecê-las! Logo, passa-se a evidenciar quem são as camponesas com quem se dialogou durante o período da pesquisa em que se procedeu ao recolhimento dos dados de campo. Essa identificação torna-se indispensável a partir deste momento, pois será por meio das falas destas mulheres que se começará a tratar, especificamente, do objeto desta investigação: o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC, em sua organização e atuação no estado de Santa Catarina. Além disso, é importante localizar temporalmente as falas das entrevistadas, bem como o âmbito de suas participações, já que não será possível interpretar os discursos dos sujeitos, sem localizá-los também na trajetória histórica do Movimento (MMC/SC). Destarte, a primeira a ser identificada é Noeli, uma mulher camponesa em seus 29 anos de idade, cujo início da militância remonta o ano de 2003. Rapidamente essa jovem camponesa avança da participação em seu grupo de base do Movimento - localizado numa comunidade rural do município de Tunápolis - para a militância como dirigente regional e estadual do MMC/SC, onde é responsável atualmente pela ‘Direção Estadual de Lutas’. Noeli, enquanto militante do Movimento, mas também como dirigente estadual, atua diretamente em âmbito regional e estadual, além de participar de várias atividades em âmbito nacional. Sua experiência no Movimento retrata, inclusive, informações de nível internacional, já que representou o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil em atividades fora do país. Como exemplo, no ano de 2008 foi à Alemanha participar do ‘Encontro sobre o Protocolo de Cartagena’ e da ‘Conferência das Partes’, as quais trataram da diversidade biológica. É com base na participação nestes diversos âmbitos, que sua fala expressa um olhar que percorre desde o nível de base do MMC, avançando para os níveis regional, estadual, nacional e internacional. Apesar de Noeli ser a militante mais jovem do grupo das camponesas entrevistadas – tanto por seus vinte e nove anos de vida, quanto pelos seus seis anos e meio de militância -, sua fala demonstra a compreensão da trajetória histórica do movimento, conquistada através da partilha de experiências realizada com outras militantes do Movimento, cujas participações remontam desde a década de 1980. 202 Portanto, embora o diálogo com ela traga como marca o contexto contemporâneo da organização e mobilização do MMC/SC, em vários momentos sua reflexão remete aos períodos que marcaram a história do Movimento nas duas décadas anteriores: 1980 e 1990. A segunda militante a ser identificada é Justina Inês Cima, uma mulher trabalhadora do campo, com 53 anos de vida, que participa do MMC desde o seu surgimento em 1983. Justina também deve ser considerada como uma das militantes do Movimento que teve intensa atuação na esfera política da região oeste catarinense, onde mora. Foi vereadora pelo Partido dos Trabalhadores e candidata à vice-prefeita no município de Formosa do Sul na década de 1990, além de candidata a Deputada Estadual por este mesmo partido. Atualmente Justina mora no município de Quilombo, ainda na região oeste de Santa Catarina. É dirigente do MMC em nível estadual, tarefa assumida desde o ano de 1992 e também dirigente em nível nacional, cuja responsabilidade assumiu desde o ano de 1995. Além disso, é importante registrar que Justina marca sua participação no Movimento desde o grupo de base em sua comunidade, chegando a ser sua representante junto à Articulação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Brasil – ANMTR, à Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo – CLOC e à Via Campesina, em nível mundial. Por conseguinte, sua fala é fortemente marcada por uma análise crítica da sociedade em sua totalidade, abarcando reflexões que remetem desde a cotidianidade de vida dos indivíduos sociais – inclusive aqueles urbanos – até o âmbito geral de organização da sociedade capitalista ocidental. Já a terceira militante a ser identificada é Luci Teresinha Choinaki, uma mulher camponesa de 55 anos, cuja participação em mobilizações e lutas sociais remonta ainda o final da década de 1970, no contexto das Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s da Diocese de Chapecó (SC). Luci participou ativamente do processo que originou o Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA, como foi inicialmente denominado em Terras Catarinas. Configura-se como uma figura política de destaque na história do Movimento, pois foi a militante que assumiu junto ao Movimento a tarefa de atuação direta na esfera Legislativa, com intenção de 203 fazer com que as reivindicações do Movimento lograssem vez e voz nesse espaço e se tornassem direitos efetivos. Portanto, Luci é a camponesa que fez, juntamente com suas companheiras de militância social e política, a interligação entre as lutas sociais camponesas e a esfera estatal, colaborando para tornar conquistas históricas algumas de suas reivindicações. É importante ressaltar que Luci foi eleita – majoritariamente por mulheres camponesas do Movimento – Deputada Estadual no mandato de 1987 a 1990 e Deputada Federal nos mandatos de 1990 a 1994 e 1998 a 2002, sempre no âmbito político do Estado Catarinense. Antes de sua participação direta na esfera política, Luci havia sido dirigente, pelo MMC/SC - nas esferas municipal, regional e estadual - trabalhando em vários setores de direção, dentre os quais destacou, durante a entrevista, a atuação na direção da comissão estadual de ‘Previdência Social’. Depois de sua primeira eleição como Deputada Estadual, Luci retirou-se do quadro de dirigentes e passou a se identificar somente como militante do MMC/SC, uma vez que os cargos legislativos lhe exigiam dedicação exclusiva – dado seu compromisso ético com o eleitorado e visando uma atuação efetiva. Atualmente, vive na capital catarinense, onde ocupa o cargo de Presidente Estadual do Partido dos Trabalhadores. Assim, desde o ano de 1985 percorre todo o território catarinense, atuando tanto no âmbito estadual como nacional, tendo sua identidade fortemente marcada pelo fato de ser mulher, trabalhadora e camponesa. Foram estas as três mulheres camponesas - Justina, Luci e Noeli – que, muito gentilmente, falaram sobre ‘a expressão do campo na atual sociedade capitalista’, sobre ‘os movimentos sociais camponeses no Brasil’ e, especialmente, sobre ‘o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – MMC/Brasil’, relembrando e significando sua trajetória histórica, a construção da identidade e as lutas sociais. Foram elas também que contaram sobre ‘os direitos sociais e as políticas públicas para o campo’, destacando as conquistas, as demandas e as atuais reivindicações das mulheres camponesas organizadas nesse Movimento. Por fim, foram essas mulheres camponesas que conversaram sobre ‘a relação entre Serviço Social e espaço rural’, mesmo ponderando sobre o desafio 204 que isso significa para todas e todos os indivíduos que se encontram afastados dessa profissão. Dito isto, ainda é imprescindível expressar duas questões, antes de partir para a grande e última aventura investigativa desse ‘processo de dissertar’. A primeira é que, embora aqui se avance numa aproximação às respostas das indagações que perseguiram a pesquisadora, não se pretende esgotá-las, sendo um dos motivos o reconhecimento de que isso é tarefa impossível e o reconhecimento de que toda investigação finaliza abrindo brechas para novas indagações, portanto, para o surgimento de novas demandas investigativas. Esse é o processo. Esse é o caminho. Essa é a dialética investigativa, logo, essa também é a luta. Investigar é construir, é caminhar e é lutar, tendo como horizonte investigativo maior a singela colaboração para a transformação societária. A segunda questão que precisa ser marcada, é que se nota que as falas das protagonistas dessa história poderiam ter permeado as discussões teóricas apresentadas nos três capítulos anteriores, procedimento esse que enriqueceria o debate e tirar-lhe-ia o ‘peso’ de um discurso apenas de cunho teórico. Entretanto, isso não foi possível, dado que para conseguir dialogar – à altura do seu saber - com as mulheres camponesas de Santa Catarina, foi necessário antes adentrar nas construções teóricas sobre o campo, os movimentos sociais no Brasil, os movimentos sociais camponeses e sobre as questões do cotidiano e da identidade das mulheres camponesas. Por conseguinte, o encontro com tais protagonistas somente aconteceu no momento em que já se tinha avançado na construção teórica de um novo saber, objetivado nos três capítulos anteriores. Enfim, feitas essas considerações, parte-se para a nova empreitada! 205 PRIMEIRA SEÇÃO A expressão do campo na atual sociedade capitalista 4.1.1 “Não dá para tratar do campo como uma coisa única” Ao iniciar o diálogo com as mulheres camponesas, tinha-se como pressuposto delimitar o âmbito do que se pretendia conversar, tanto como procedimento de investigação, mas fundamentalmente como estratégia para conhecer qual é a concepção que as mulheres camponesas entrevistadas têm sobre o lugar onde vivem. Esta concepção é importante porque se entende que é ali que está a referência para suas falas. Esta foi uma das primeiras questões para estabelecer o diálogo, sendo que a curiosidade investigativa que movia a investigadora para a troca de saberes direcionava-se para a ‘concepção sobre o campo no Brasil, segundo as camponesas entrevistadas’. Essa indagação - que também esteve presente no primeiro capítulo deste estudo, em que se percorreram os fundamentos clássicos da sociologia rural – possibilitou, da parte da investigadora, ter como pressuposto para a conversa de que o ‘rural’ é constituído por uma significativa diversidade de características, dependendo do contexto sócio-histórico, das relações, da conjuntura política, cultural, econômica e social da realidade. Embora não se tenha pronunciado isso diretamente, a fim de preservar a autenticidade das respostas das entrevistadas, o pressuposto da investigadora indicava a existência da diversidade conceitual e de realidade do ‘campo’, sugerindo a necessidade de especificar sobre ‘que rural era aquele que seria objeto da conversa’. Em contrapartida aos pressupostos da investigadora, as militantes do MMC foram logo apresentando os seus, indicando suas concepções acerca do rural e, ao mesmo tempo, explicitando a necessidade de uma discussão que precede o nível conceitual. Conforme uma das entrevistadas: Em primeiro lugar, quando se fala do campo é preciso demarcar bem a agricultura camponesa e o agronegócio. Em segundo, para falar do campo, temos que falar do Brasil onde o latifúndio permanece em contraposição à 206 reforma agrária que continua com dificuldade de desenvolvimento, e isto é fundamental nesse olhar. Terceiro, é imprescindível notar que apesar do pouco incentivo, a agricultura camponesa se mantém e se mantém resistindo. [...] Veja que 70% de toda produção que é consumida no Brasil é produzida pela agricultura camponesa, com organização e mão de obra, predominantemente, familiar (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009). Ora, foi assim que as próprias militantes camponesas indicaram qual seria o primeiro elemento de análise: a distinção de classes sociais no meio rural! Isso o fizeram ao apontarem para a imprescindibilidade de demarcar que o ‘campo’ brasileiro é constituído de contradições e desigualdades, as quais demarcam a pequena e a grande produção; a existência do latifúndio e do ‘não acesso - de fato à propriedade da terra; a incipiente reforma agrária; e a inexistência de investimentos públicos para a agricultura camponesa, em contraposição à ‘teimosia dos pequenos camponeses’ que resistem em suas atividades laborais e em seu modo de vida, mesmo diante da conhecida falta de incentivo. Note-se que o elemento central das contradições apontadas acima – como já expresso anteriormente - reside na ‘questão de classe’. Destarte, aponta-se que não é verdadeiro o argumento de alguns estudiosos do Serviço Social, que fundamentados em releituras marxistas, não reconhecem no ‘campo’ a presença das categorias analíticas marxistas e, por isso, não visualizam como trabalhar com as expressões das lutas de classe nesse contexto. Com isto, justificam que tal espaço e seus sujeitos passaram a demandar pouca atenção, esforço investigativo e interventivo da profissão, a partir do momento em que a categoria rompeu com a matriz conservadora e passou a adotar a matriz crítica do materialismo dialético marxista como perspectiva teórica. Logo, reconhecendo que para as entrevistadas o elemento fundamental a ser considerado na identificação do ‘meio rural’, possui como questão central a distinção de ‘classe social’, afirma-se a necessidade de que seja atribuída relevância e visibilidade a essa dimensão contraditória do capitalismo. Somente a partir do reconhecimento desse pressuposto é que se pode intentar a discussão sobre a realidade do campo no atual estágio histórico da sociedade capitalista brasileira. Observe-se que tal pressuposto também é confirmado por outra militante do MMC, quando essa afirma de forma semelhante que Em primeiro lugar, no campo você precisa distinguir as classes sociais, porque não dá para tratar do campo como uma coisa única. Temos o campo 207 do agronegócio, das grandes fazendas, dos latifundiários e o campo dos camponeses, das trabalhadoras e trabalhadores do campo, dos assentamentos do Brasil que têm diferenças neste olhar para o campo (LUCI, Florianópolis, setembro de 2009). Deste modo, há que se salientar que a necessidade de delimitação do campo não foi novidade, pois isso já se fazia presente nas discussões elaboradas a partir dos referenciais teóricos discutidos anteriormente. Entretanto, a grande marca deixada no diálogo com as entrevistadas foi a intensidade com que as mulheres camponesas significam a distinção de classes sociais no campo, como requisito sine qua non para discutir sua realidade. Percebe-se que, com o aprofundamento do capitalismo – ora no estágio do ‘capital fetiche’46, sob o comando do capital financeiro e das políticas neoliberais , cada vez mais crescem as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, tornando-se gritantes as diferenças de classe e acirrando de forma espantosa as expressões da Questão Social, que ocorrem tanto no meio urbano, quanto no rural. Por conseguinte, ao discutir sobre o ‘campo’ – ou espaço rural, como se prefira – também se torna imprescindível delimitar o modo de produção vigente e seu estágio de aprofundamento na sociedade, já que se compreende o ‘campo’ como espaço de produção constitutivo do conjunto da sociedade. Somente a partir dessa contextualização é possível pensar nas desigualdades produzidas e na decorrente luta de classes, as quais imprimem reflexos nos modos e condições de vida dos indivíduos sociais camponeses. Neste sentido, as militantes do MMC indicam que contextualizam sua organização, estratégias de lutas e reivindicações, no modo de produção capitalista, o qual não se constitui como modelo de produção e de vida em sociedade que possibilite o desenvolvimento da autonomia e da emancipação dos indivíduos sociais, especialmente das mulheres camponesas, no caso dos objetivos do Movimento. Por este motivo, assumem como ideário – ou horizonte utópico, na expressão do movimento – a luta pela transformação societária na perspectiva socialista. Tal conjetura é expressa por uma das militantes, ao dizer que 46 Categoria de análise marxista, discutida pelo Serviço Social na atualidade por diversos autores, dentre os quais se destaca Iamamoto (2008). Referência completa ao final do estudo. 208 O que nos orienta é uma análise que o modelo capitalista, que se coloca nos últimos tempos como o ideal de organização da sociedade, não vem dando conta de si e vem criando várias crises para ele mesmo. [...] Por isso, indicamos que o grande desafio, que também é representado pela luta de classe e de gênero, diz respeito à questão estrutural da sociedade que é a superação do modelo capitalista (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009). As reflexões acima permitem afirmar que o rural é também o espaço do contraditório, das lutas de classe e de gênero, das disputas e dilemas ideológicos e, dadas tais condições, é também o espaço onde é possível o movimento dialético de transformação, uma vez que são as contradições do sistema que alimentam sua transformação. Logo, o rural torna-se um espaço pleno de potencialidades de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, que se direcionam para a construção de ‘outra ordem’, em contraposição à ordem capitalista. 4.1.2 “O dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados como cidadãos de primeira classe” Dadas as análises anteriores, passa-se a considerar outras dimensões do modo de vida e de produção camponesas. Para tanto, o novo ponto de partida é o reconhecimento de que ele é constituído por trabalhadores e trabalhadoras rurais, que organizam seu modo de vida e de trabalho a partir da agricultura familiar. Esse tipo de agricultura é desenvolvido no espaço das pequenas propriedades rurais, mas também em terras arrendadas, em propriedades rurais onde encontram trabalho remunerado – seja temporário ou permanente -, ou até mesmo em terras ocupadas. Nelas, a mão-de-obra que produz a subsistência é predominantemente familiar, sendo importantes as relações sociais, familiares e comunitárias, as quais fornecem os referenciais de segurança social, propiciados através do compartilhamento do trabalho e também dos princípios e valores de vida. Conforme indica Justina, [...] A agricultura camponesa exige viver um ‘modo de vida em comunidade’. Então você não vai desenvolver a agricultura camponesa individualmente, ela tem relações de entre-ajuda, de solidariedade, logo, é uma vida de comunidade, [...] onde quem trabalha e produz é o núcleo familiar, que convive e compartilha das mesmas relações de comunidade, relações familiares e relações de trabalho. [...] Portanto, nós do MMC estamos falando do campo da agricultura camponesa, que produz 70% de toda 209 produção que é consumida no Brasil, com organização e mão de obra, predominantemente, familiar, numa esfera em que se defende uma produção equilibrada entre a produção de alimentos e a preservação do ambiente, onde nossa grande meta, nosso maior sonho é chegar a uma agricultura ecológica (Chapecó, setembro de 2009). Essa é a expressão do ‘campo’ para o Movimento de Mulheres Camponesas, sendo que tal característica também imprime, inclusive, os traços da identidade das mulheres camponesas, dos movimentos sociais do campo e, por fim, do próprio MMC. Há que se problematizar que, nessa expressão do campo, há elementos como ‘solidariedade’ e ‘comunidade’ que, de forma geral, se reportam à perspectiva conservadora e funcionalista. Tal referência imprime a idéia de organicidade funcional e sistemática, sendo esses alguns dos traços que levam estudiosos a afirmarem que o meio rural é o lugar do conservadorismo e do tradicionalismo; e, portanto, a negarem a este lugar a possibilidade de ser um espaço de transformação e, conseqüentemente, de ação profissional. Neste sentido, não se pode deixar de comentar que as características destacadas acima conformam, sim, o perfil da vida no campo. Entretanto, elas não fazem deste modo de vida algo fixado no passado, enrijecido em valores e princípios que não se transformam. Outrossim, essas características remetem ao fato de que no campo, tanto os indivíduos quanto as relações sociais continuam num plano bastante pessoal e encontram, neste mesmo âmbito, visibilidade no contexto social, contrapondo-se à impessoalidade do espaço urbano. Nele a massificação encontra menos ancoradouros para se firmar e reproduzir e, muito embora, os modelos e padrões culturais da sociedade sejam incorporados, eles encontram dificuldade para se desenvolver. Por esse mesmo motivo, o campo continua sendo um espaço profícuo para organizações sociais e políticas, enquanto no contexto urbano essa questão já se tornou mais difícil de ser efetivada, uma vez que a competitividade, a individualismo, a falta de segurança social, entre outras características, fazem com que a organização social e política encontre terreno menos profícuo para se desenvolver. 210 Assim, nota-se nexo direto entre tais características, o perfil acerca do ‘rural’ levantado no primeiro capítulo47 e a fala das militantes do MMC, quando afirmam que ‘o campo é visto pela sociedade como o lugar do atraso’. Note-se que todas as militantes referem-se ao ‘desmerecimento’ que o campo sofre, o qual é difundido pelos meios de comunicação, mas também pelas instituições da sociedade e pelos cidadãos urbanos. Para Justina, ‘o atraso’ refere-se principalmente à questão do progresso tecnológico, o qual é defendido pela sociedade capitalista a qualquer custo, independente dos meios empregados e das conseqüências ambientais e de saúde que podem ser acarretadas, uma vez que é esse mesmo progresso tecnológico que possibilita firmar e fortaleceer o capitalismo no contexto contemporâneo. Agora, quando você pergunta como ele é visto, infelizmente, para a maioria da sociedade o campo da agricultura camponesa e familiar é visto como o atraso, como ignorante, já que o moderno é plantar transgênico, é fazer as roças extensivas com insumos, com venenos, com herbicidas etc. logo esse rural camponês ainda é visto como um lugar de atraso (Chapecó, setembro de 2009). Veja que para ela a defesa de ‘outra forma sustentável de produzir’ está ligada ao bom-senso e à sensibilidade de perceber e se relacionar com o meio ambiente, de forma a garantir condições de vida para as gerações futuras. Além do que pode significar, fundamentalmente, a luta contra-hegemônica ao capitalismo tecnológico e financeiro, pois significa um modo de produção alternativo à dependência produzida pelo mercado capitalista. Luci também faz sua reflexão de forma semelhante, ressaltando que a agricultura camponesa é desconsiderada no âmbito da produção econômica. Para ela Pode-se dizer que ainda hoje não se percebe como os pequenos camponeses são importantes economicamente, logo, não se valoriza eles. Olha-se para os camponeses como ‘alguém pobre do campo’, que não se deu bem, que não tem cultura, que não progrediu e não virou grande fazendeiro ou um pecuarista porque não teve sucesso. Então, a sociedade – na minha opinião –, a mídia e o próprio pensamento brasileiro colonizador ainda permanecem com esse olhar para os pequenos camponeses, tanto que são tratados como ‘menos inteligentes’. Isso é uma ofensa à realidade social, econômica e inclusive cultural, porque não há respeito, 47 Apesar de que a maioria das referências dos estudos clássicos de sociologia rural, utilizados para fundamentar o primeiro capítulo, remete a essa caracterização, sugere-se dar atenção especial às considerações de Henri Lefebvre e de Aldo Solari, apresentadas nos itens 2.1 e 2.2 do referido capítulo. 211 reconhecimento a sua forma de vida, de cultura, de produção. [...] Penso que o dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados como cidadãos de primeira classe. Pois, se hoje alguém consegue ter uma alimentação melhor na cidade, ou seja, uma alimentação mais saudável, é porque estes cidadãos de primeira classe lá do interior, geralmente vistos como menos capazes, conseguem produzir uma alimentação mais equilibrada, sem deixar de se responsabilizarem pela preservação da natureza (Florianópolis, setembro de 2009). Já para Noeli, o ‘atraso’ conferido ao camponês e ao seu modo de vida e de produção tem nexo direto com a questão da educação, no que tange à possibilidade de acesso e, posteriormente, o nível de instrução, o qual teria como conseqüência a conquista de um trabalho urbano. Conforme a militante A gente tem que reconhecer, sim, que a sociedade faz diferença entre os homens e mulheres do campo e os homens e mulheres da cidade. Porque é bastante visível que para a maioria das pessoas o indivíduo do campo é aquele atrasado, que não conseguiu oportunidades para estudar e trabalhar na cidade. Isso é devido, em partes, porque na cidade para você conseguir um emprego, predominantemente, você precisa ter nível de instrução superior e na agricultura esse grau de escolaridade não é exigido e isso faz com que muitos setores da sociedade pensem que o pessoal que está na roça é burro, é aquele que não sabe nada, que está lá porque não tem outra opção. Essa questão é bastante notória quando nós, do Movimento, vamos em algum espaço da sociedade fazer alguma fala, participar de palestras ou debates, fazer algum trabalho enquanto movimento de mulheres. Desde o início a gente se apresenta como agricultora e no final, dependendo da fala e do trabalho que se realiza, as pessoas perguntam: mas como que você sabe isso se você mora no campo? Logo, parece mesmo que quem mora no campo, de fato, não teria competência ou possibilidade de compreensão da própria sociedade. Ora, fica premente que, tanto em nível teórico, quanto no nível do cotidiano da sociedade, o campo continua sendo considerado como o âmbito das relações tradicionais; do modo de vida que conserva o passado, o espaço em que podem viver e conviver os indivíduos que não alcançaram o progresso e os avanços da sociedade capitalista. Um lugar envolto no passado e reservado para aqueles que não conseguem, ou optam por não acompanhar o progresso proporcionado à sociedade pelo modo de produção capitalista. Estas, dentre outras, são atribuições de desvalorização direcionadas para o campo e para os indivíduos sociais camponeses no contexto capitalista neoliberal. Para esse cenário e para os sujeitos que nele vivem não haveria necessidade de dedicar olhares, atenção e, nem mesmo, ações, pois eles se configurariam como um quadro à parte da sociedade capitalista, embora paradoxalmente essa mesma sociedade se sirva do camponês, de seu trabalho e de seu modo de vida para subsistir enquanto modo de produção hegemônico. 212 Diante de todo esse enredo, é possível assegurar que as desconsiderações econômica, cultural, social e política, expressas nas falas das três militantes, têm como conseqüência o não reconhecimento dos direitos dos cidadãos camponeses, excluindo-os do rol de demandatários e público-alvo das políticas públicas e, consequentemente, destituindo-os de sua cidadania – ou, pelo menos, atribuindo-lhes uma cidadania desigual em relação aos indivíduos urbanos. Neste sentido, chama-se a atenção para as indagações que marcaram, desde o início, esse estudo: qual é o olhar que o Serviço Social dedica ao meio rural? Qual é o olhar que esse meio e os indivíduos camponeses demandam para a profissão? Além destas, acrescenta-se o questionamento: como o Serviço Social corrobora para a construção desse quadro inaceitável de atribuição de uma cidadania desigual para os sujeitos rurais? E ainda: o que seria necessário para que seu trabalho incorporasse o olhar para o ‘campo’, permitindo reconhecer nele as demandas que requisitam sua atuação profissional? Portanto, mesmo sem respostas para essas perguntas, reconhece-se que a circunstância de exclusão do camponês da atual sociedade torna-se muito favorável tanto para o Estado, em seu processo de negação das responsabilidades públicas na execução das políticas sociais e na garantia dos direitos, quanto para o próprio mercado, o qual explora – mesmo que invisivelmente – o campo, retirandolhe as riquezas socialmente produzidas e responsabilizando-o de encontrar alternativas para sua subsistência em tempos nos quais a natureza já se encontra praticamente exaurida de recursos. Respeitando seus compromissos ético-políticos no sentido de garantir direitos, e no horizonte da transformação societária, cabe, ao Serviço Social – extensivo a todas demais profissões de caráter social e político - incorporar em sua bandeira de luta o reconhecimento e a valorização do campo enquanto modo de vida e produção; das mulheres e homens camponeses como indivíduos sociais portadores de especificidades, mas também de direitos. E, finalmente, o reconhecimento e a valorização dos movimentos e organizações sociais que se dedicam à luta contra-hegemônica ao capitalismo. 213 SEGUNDA SEÇÃO Os movimentos sociais camponeses na construção sócio-histórica do Brasil 4.2.1 “Olha, se não fossem os movimentos camponeses de resistência histórica nesse país, nada estaria como hoje” No segundo capítulo do presente estudo, a partir das bases teóricas, foram discutidos diversos aspectos que tocam a existência dos movimentos sociais no Brasil. Ainda naquele debate, tornou-se evidente a importância dos movimentos sociais na trajetória histórica do país, principalmente no que se refere aos avanços na esfera da conquista de direitos e da democracia política. Reconhecendo e afirmando esse valor, discutiu-se com as militantes do MMC sobre o significado histórico dos movimentos sociais no Brasil, já que para além das concepções dos estudiosos do tema, a intenção era compreender tal significado através da contextualização das próprias militantes, uma vez que uma das estratégias perseguidas para dar visibilidade às lutas dos movimentos sociais é a de ‘dar voz e vez aos sujeitos’. Nesse sentido, ao passo em que o diálogo era situado, de imediato começou-se ouvir as militantes fazerem registros objetivos sobre grandes marcos de mobilização e resistência popular na história brasileira. Uma das militantes demonstrou não ter dúvidas sobre essa participação, dizendo “olha, se não fossem os movimentos camponeses de resistência histórica nesse país, nada estaria como hoje. Desde os índios, porque eles também resistiram” (LUCI, Florianópolis, 2009). Para ela, um dos elementos mais fortes na imagem e significado das lutas sociais e populares é a ‘resistência social’. Este elemento conforma a correlação de forças entre dominantes e subalternos, estabelecendo a dialética que move a sociedade historicamente e lhe imprime as características tais como se apresenta na atualidade. Suas afirmações indicam que, 214 Não só no Brasil, mas em toda a humanidade, sempre quando uns dominam os outros, sempre há resistência, sempre há organização, porque o povo nunca foi assim tão passivo. [...] No Brasil existiram resistências mais localizadas, não tivemos aqui muitas lutas unificadas em vista de mudanças estruturais e da alteração do poder [econômico], mas sempre teve resistência, desde o início da colonização houve sempre resistências. [...] Assim como nos anos 1980, no período pós-ditadura militar, se não fossem as Comunidades Eclesiais de Base, que funcionavam como um ponto de articulação e de resistência contra a ditadura militar, não seria possível o surgimento de movimentos sociais extraordinários, como em Santa Catarina, por exemplo: o Movimento de Mulheres Agricultoras, o Movimento de Atingidos por Barragens, o Movimento Sem-Terra, a ‘oposição aos sindicatos pelegos’. Portanto, houve uma construção de resistência, mas junto com isso houve uma mobilização para pautar questões que não estavam colocadas como importantes, como a questão da terra, da própria organização dos agricultores, as questões envolvendo as mulheres, como o direito à previdência, do direito à saúde que anteriormente estava longe da vida dos agricultores e agricultoras (LUCI, Florianópolis, setembro de 2009). Ora, nota-se nessa fala a presença de várias questões que compõem o perfil sócio-histórico do povo brasileiro. Encontram-se imbricados a resistência, a não passividade, a luta social, a articulação e mobilização popular, o estabelecimento de pautas reivindicatórias e a conquista de direitos na construção de uma identidade, cujo traço fundamental é a ‘resistência’ ao poder desigual, excludente e explorador. Não obstante a resistência e a mobilização marcarem a história do país, a militante não deixa de manifestar sua crítica ao dizer que não houveram lutas unificadas que propiciassem a transformação estrutural das relações de poder. Ao dizer isto, evidencia-se, junto com a crítica, sua perspectiva de que ainda é possível esta transformação. Neste sentido, tal crítica vem confirmar um dos traços identitários do movimento que é a afirmação de um horizonte societário cuja transformação passa do capitalismo para o socialismo. Essa mesma análise é confirmada por outra militante, que também afirma a importância dos movimentos sociais na construção sócio-histórica do país, dizendo É importante registrar que desde o período da colonização, o Brasil sempre teve grandes lutas por parte de quem vivia no campo. Então é importante trazer presente toda a luta histórica dos indígenas. [...] É preciso ter presente essa marca na história do país. Existiram grandes lutas nesse sentido e que continuam existindo até hoje. Então é só você considerar os povos indígenas que resistem até hoje, com grandes lutas como a da Reserva “Raposa Serra do Sol” em Roraima. [...] Também é importante trazer aqui a grande luta de resistência que houve e continua existindo por parte dos povos negros. Então se a gente for ver desde o período da escravidão aqui no Brasil e da organização dos negros em quilombos, essa luta foi ocorrendo e continua perpassando a história. [...] Portanto, todas 215 estas questões que são importantes para esse olhar histórico das lutas (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009). Feitos esses registros, nota-se que tanto Luci quanto Justina, resgatam na história do país a ocorrência de várias lutas sociais, conferindo visibilidade aos grupos, movimentos e organizações populares e prestando-lhes reconhecimento de valor na construção social e política da nação brasileira. Por fim, as militantes do MMC fazem uma releitura da história oficial do país, registrando nela categorias de análise que frequentemente lhe são subtraídas. Portanto, uma das colaborações da presente investigação é evidenciá-las nestas páginas para que sejam rememoradas como questões constitutivas da identidade do país. Opressão, submissão, rebeldia, resistência, organização, lutas, conquistas e direitos passam a fazer parte da trajetória sócio-histórica do Brasil, a partir da voz das militantes do MMC em Santa Catarina. 4.2.2 “Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses tiveram junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição Federal de 1988’” O reconhecimento da existência de desigualdades econômicas, sociais e políticas, em contraponto ao não reconhecimento de direitos, a exploração do trabalho e o não acesso à propriedade da terra e aos bens necessário para produzir no campo, são alguns dos diversos elementos que fizeram com que, desde muito cedo na história do Brasil, existisse mobilização social no campo. Todas as lutas de resistência já citadas pelas militantes do MMC têm como pano de fundo ‘o campo’. Embora algumas delas não figurem nos quadros que retratam os modelos hegemônicos do ‘rural’, todas estão ligadas ao contexto ‘não urbano’ e ao modo de vida cuja organização social e o trabalho estão arranjados em torno das relações familiares, grupais e comunitárias, numa produção para subsistência coletiva. Não obstante as culturas diferentes de cada grupo social, nota-se essa ocorrência nas comunidades indígenas, quilombolas e campesinas. Destarte, da mesma forma como vários estudiosos dos movimentos sociais no Brasil 216 atestam, também as militantes do MMC registram que a resistência, a rebeldia, a organização e a luta social e política no campo sempre estiveram presentes e marcaram a história do Brasil, desde o período de sua colonização. Assim aconteceram as lutas sociais no campo, segundo os cenários e conjunturas sociais e políticas de cada período e contexto regional. Algumas delas já ganharam reconhecimento histórico, tal como a Guerra do Contestado, entretanto, outras ainda se encontram bastante invisibilizadas, tais como as ‘Ligas Camponesas’ e a luta pela reforma agrária, intensificada nas últimas décadas pelos movimentos camponeses e, principalmente, pelo ‘Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST’. É impreterível, então, afirmar o valor histórico dos movimentos e lutas sociais camponesas, os quais desempenharam um papel inigualável na trajetória histórica do país. Isso é o que faz Justina ao dizer que [...] É preciso, sim, ter presente as lutas históricas no campo como aquela do Contestado ou de Canudos, mas também a importância das Ligas Camponesas, no sentido da organização dos camponeses para resistirem como ‘agricultura camponesa’, de lutarem para terem direito à terra, para poderem enfrentar os coronéis, de não serem oprimidos e submissos, mas de se rebelarem de forma organizada contra isso (Chapecó, setembro de 2009). Novamente é destacada a dinâmica das relações de poder que marca as mobilizações camponesas. Esse movimento dialético vai produzindo a história, ora com avanços na conquista de direitos, ora com momentos de aparente estagnação, nos quais - bem no fundo – eram preparadas as novas mobilizações e lutas. O importante é reconhecer e registrar que a trajetória histórica da nação – considerada sua diversidade territorial - não se faz sem a presença dos grupos e movimentos camponeses. Isso é o que afirma Justina, ao situar o surgimento dos movimentos campesinos no Sul do Brasil. Segundo ela [...] Há de se dizer que os movimentos sociais aqui no sul do país surgem – de forma marcada - a partir do período pós-ditadura militar. Mesmo considerando a Guerra do Contestado e outros mais que aconteceram em outras épocas, os novos movimentos surgem, se colocam e seguem a trajetória com diferentes formas, em diferentes momentos, mas são movimentos que continuam lutando contra o latifúndio, pelo direito à terra, pelo direito de produzir, de plantar, de colher, de ter direito à casa, à moradia, à dignidade. [...] Portanto, em relação aos movimentos sociais do campo – ligados à agricultura camponesa - na história do Brasil, é importante marcar que foram organizadas grandes lutas, que movimentaram a nação (Chapecó, setembro de 2009). 217 Partindo para uma análise da participação dos movimentos campesinos na esfera política da sociedade, dando atenção para a participação que desempenham nas lutas e conquistas para a garantia de direitos, percebe-se a presença significativa de organização, mobilização e envolvimento dos movimentos, tanto no âmbito específico do campo, quanto no âmbito das lutas gerais da sociedade. Essas últimas experiências assumiram significado histórico ainda maior, na medida em que congregaram rebeldia, esforços e resistências de toda classe trabalhadora brasileira na direção das lutas políticas, as quais são retratadas em momentos históricos substanciosos como aquele da luta pela abertura democrática e pela conquista dos direitos sociais na Constituição Federal de 1988. Essa análise figura na fala de Noeli quando diz que Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses tiveram junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição Federal de 1988’ e continuam tendo na questão da conquista de direitos. [...] Faz parte desse contexto de conquistas, a eleição de várias pessoas que moram no campo e que também conseguiram ter acesso a vários espaços para concretizar essas lutas (Chapecó, setembro de 2009). Observa-se que Noeli adentra num outro âmbito da discussão que remete à participação política propriamente dita nos espaços de poder. Nesse sentido, a militante situa como conquistas da esfera política não apenas os direitos, mas a própria dimensão da participação política, das camponesas e camponeses, nos espaços de deliberação da sociedade. Essa participação torna-se estratégica para novas conquistas, bem como para concretizar as lutas dos movimentos. Logo, para além da ocupação de espaços, a participação política assume o significado de estratégia de luta e de conquista de autonomia, tanto por parte dos sujeitos individuais, quanto por parte do próprio movimento enquanto sujeito coletivo. Para o Movimento de Mulheres Camponesas, De modo geral, é frágil a inserção das mulheres trabalhadoras nos espaços de poder institucional: partidos políticos, instituições financeiras e de segurança pública, nas direções de movimentos sociais e sindicais, de comunidades, associações, cooperativas e outros. [...] Entretanto, a participação política da mulher na sociedade é muito mais que participar ou estar presente. Quando falamos em participação política nos referimos à partilha do poder, que na maioria das vezes não acontece nos espaços institucionais. [...] Por isso, a participação política da mulher na sociedade, é uma necessidade para a emancipação e um desafio a assumir (Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, s.d. - folder institucional). 218 Fica explícita nessa manifestação do MMC-SC que o poder institucional é ainda bastante institucionalizado no Brasil, concentrando-se nas mãos de poucos indivíduos e grupos, os quais majoritariamente representam os interesses do capital, da burguesia e dos latifundiários. Além disso, a figura central no exercício do poder continua sendo a do homem, tendo em vista que a cultura, patriarcal e machista, enraizada na sociedade brasileira, ainda permanece hegemônica apesar das conquistas e avanços das mulheres. Nesse contexto, a mobilização dos movimentos sociais, voltada para a participação política direta nos espaços institucionais se transforma na expressão da estratégia fundamental de luta. Essa estratégia é retratada por Luci, quando afirma que Os movimentos sociais camponeses participam na esfera política, entretanto, nós temos pouca representação política, ou seja, é ainda insuficiente nossa representação, pois há ainda aquela cultura do camponês de que lá no campo a gente não pensava, de que havia alguém que pensava por nós e ainda hoje muitas vezes permanece a dúvida: será que eu voto num camponês ou não voto? [...] Nesse sentido é importante reconhecer que há um processo em andamento, de que não importa onde você mora, onde você vive e o modo pelo qual vive. Qualquer lugar é lugar e você precisa ter respeito. [...] Reconheço que há ainda dificuldade de participação política com mais força, com maior reconhecimento do seu poder (Florianópolis, setembro de 2009). Não obstante o desafio que é para os movimentos sociais – sejam eles campesinos ou feministas – e para as próprias mulheres camponesas a participação direta nos espaços de poder e de deliberação institucional, o MMC desde a década de 1980 já visualizava a participação política da mulher como estratégia de conquista de espaço, de direitos e de efetivação das pautas de luta. Embora longa, a passagem, citada abaixo, da entrevista com a militante Luci, demonstra com riqueza de dados históricos como foi o processo de descoberta dessa estratégia de luta pelo MMC. Segundo ela [...] Então a gente ia buscar respostas para esta realidade e os porquês dessa realidade. Aí refletimos que o que tínhamos a fazer era fortalecer o movimento, começar a nos sindicalizar, a nos organizar inclusive politicamente. Tanto surgiu essa consciência, que nós fizemos o primeiro ‘Ato Público’ em Xanxerê, que ocorreu no dia 12 de agosto de 1986, reunindo em torno de 30.000 pessoas, das quais a maior parte eram mulheres, mas também alguns homens que foram ver o que iria acontecer. Como resultado da pauta daquele dia, tiramos a decisão de organizar um ônibus em forma de caravana e assim fomos para Brasília já tendo na pauta de lutas a aposentadoria e o salário maternidade. [...] Entretanto, ao final da mobilização em Brasília, foi esse processo que começou a educar as 219 mulheres, que era necessário erguer as bandeiras, se organizar e também participar do processo político. Foi nesse contexto de 1986 que surgiu a reflexão de que o movimento tinha que ter uma mulher candidata a Deputada Estadual; entretanto, nenhuma de nós queria ser. Imagina naquela época, em 1986, há mais de 25 anos, a gente que trabalhava na roça, cuidava de filhos, cuidava de casa e ia para algumas reuniões, então, nesse meio, como sair candidata? [...] Foi assim que começamos a discutir dentro do movimento quem iria para essa esfera de participação e foi um empurra, empurra dizendo “eu não vou, vai você, vai você...” e no fim as mulheres disseram “então vai a Luci, porque ela já fala um pouco mais do que nós”. [...] Já nessas primeiras eleições aconteceu que fui a primeira mulher agricultora eleita no Brasil, a primeira mulher eleita pelo Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina e a primeira deputada eleita por este partido. E as mulheres tiveram um papel extraordinário na época. [...] E assim começamos um novo tempo no processo político (Florianópolis, setembro de 2009). A fala de Luci demonstra objetivamente como foi o processo de participação política das mulheres camponesas militantes do MMC e a própria conquista de espaço no cenário público no Estado de Santa Catarina. Note que a militante relata sobre o contexto de meados de 1986, em que se vivia o auge da luta pela reabertura democrática, da campanha pelas ‘Diretas Já’ e pela elaboração da ‘Constituição Cidadã’. A partir de seu relato, é possível perceber a significativa contribuição do Movimento de Mulheres Camponesas para o aprofundamento da participação popular e para a nova configuração da esfera política, agora sob o cunho da mobilização, participação e cidadania, tendo em vista a conquista de direitos. Assim sendo, tanto a contribuição para o aprofundamento da democracia e do exercício da cidadania, como aquela na construção da trajetória sócio-histórica da nação, são elementos imanentes ao processo de mobilização, organização e luta dos movimentos sociais camponeses no Brasil. Esse reconhecimento é ainda uma dívida da sociedade para com tais movimentos, cabendo também à academia dar passos para que seja saldada. 4.2.3 “Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações” Não há movimento social sem organização, articulação e mobilização social. Isso é fato quando se trata dos movimentos sociais camponeses, caso que 220 figura como objeto desta parte do presente estudo. Entretanto, o que é interessante discutir neste item é a forma pela qual os movimentos sociais do campo articulam-se e organizam-se, a fim de congregar forças na luta pelos seus direitos. Nesse sentido, em relação aos movimentos sociais camponeses48, de forma geral, é possível notar a existência de articulação entre os mesmos, tanto no sentido de fortalecerem as pautas específicas de cada movimento, mas também na defesa de pautas comuns, o que ocorre devido ao fato de que a maioria deles vive em contextos semelhantes, sente demandas e propõe objetivos de luta que se aproximam. A isso se pode atribuir o status de ‘reivindicações históricas e coletivas’, tal como o é a luta pela terra. Por outro lado, falando das dificuldades das lutas sociais, é importante se considerar que as conquistas camponesas sempre foram desafiadoras, o que, por inúmeras vezes, levou à morte de militantes. Mesmo sabendo da forte repressão por parte do Estado, camponeses e camponesas empenhavam-se na luta para que fossem reconhecidos direitos e implementadas políticas que já existiam no contexto urbano, mas que eram negados a todos aqueles trabalhadores cujas atividades laborais eram desenvolvidas no meio rural. Movimentos sindicais de oposição, movimentos sociais como o Movimento de Atingidos por Barragens - MAB e o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, grupos resultantes da mobilização em torno da Teologia da Libertação, os quais existiam tanto na Igreja Católica, quanto na Luterana, além das Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s e dos Partidos Políticos de oposição aos governos, constituíam, juntamente com o Movimento de Mulheres Agricultoras MMA, um contingente de militantes congregados na luta pela melhoria das condições de vida e de trabalho no campo e, principalmente, na luta pela transformação societária. Uma das militantes, ao falar das pautas gerais do próprio MMA, demonstra o grau de dificuldades que estiveram presentes nas lutas sociais no campo, as quais eram sentidas por todos os movimentos. Isso lhes imbuía de um sentimento de compartilhamento de causas e desafios e de amplitude dos efeitos de suas mobilizações, seja no sentido da conquista de direitos para todos camponeses, 48 Um apontamento específico sobre o MMC/SC será realizado na terceira parte do presente capítulo 221 seja no que se refere à repercussão de suas mobilizações e manifestações, as quais, freqüentemente assumiam o caráter de lutas coletivas. Com suas palavras, a militante revela que Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações. Assim foi o processo da Constituição Federal de 1988, na luta pelas ‘Diretas Já’ e também foi, para nós mulheres camponesas, na luta pela conquista dos direitos previdenciários, que são direitos muito recentes, porque nós camponesas, não tínhamos nenhum direito até meados de 1992. [...] A pensão para os viúvos e para as viúvas e assim, por diante, foram conquistas que ocorreram somente através da luta das mulheres, as quais não lutaram para si somente, mas encamparam a luta pelos direitos de todas as pessoas que viviam e vivem da agricultura camponesa e também de outros segmentos, como por exemplo, englobar os direitos previdenciários para os pescadores e pescadoras artesanais, que também foram regulamentados como segurados especiais (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009). Fica expresso na fala da militante, que a maioria dos direitos hoje existentes foram resultantes das mobilizações e lutas recentes, as quais partiam das necessidades sentidas no cotidiano de vida de mulheres e homens, mas que somente tinham efeito quando atingiam o nível de lutas coletivas, ou seja, aquelas mais amplas na sociedade. Para isso, muitas vezes era preciso romper com as fronteiras do modo de vida camponês e adentrar em outras realidades, a fim de que as pautas e conquistas não lhes fossem exclusivas, mas se configurassem como direitos de cidadania, universais e inclusivos. Justina ainda complementa ao afirmar que [...] Portanto, foram grandes mobilizações, grandes lutas, a organização das mulheres, o estudo e conhecimento da realidade, a capacidade de elaboração, de argumentação e de convencimento, que garantiram outras lutas e conquistas como é o caso do crédito e do seguro agrícola para o camponês, da reforma agrária, da conquista da terra (Chapecó, setembro de 2009). O caráter amplo das lutas, no ver desta investigadora, contém traços de alteridade, coletividade, partilha, encorajamento, compromisso e responsabilidade coletiva – ou comunitária, como preferirem – sempre presentes no modo de vida rural e que conformam, de forma mais ou menos marcante, a identidade de mulheres e homens camponeses. A partir de tais traços impressos às lutas coletivas dos movimentos sociais camponeses, tornaram-se possíveis conquistas posteriores. Isso demonstra que a estratégia das lutas coletivas possibilita a construção de um terreno 222 reivindicatório em que o reconhecimento político das mobilizações produz elementos favoráveis às conquistas. Portanto, fica expresso, através dos diálogos estabelecidos com as militantes do MMC, que as conquistas de direitos dos cidadãos – sejam camponeses ou citadinos, agricultores ou pescadores – devem partir das experiências de vida cotidianas, porém, sobretudo, devem atingir as lutas coletivas. Eles indicam também que há por parte dos movimentos sociais camponeses a compreensão de totalidade da sociedade. É pensando nas totalidades social, econômica e política que se descobre a também necessária ‘totalidade – no sentido de congregação - das mobilizações e lutas sociais’ para que seja possível a transformação societária. 4.2.4 “Não há mudança, não há processo de transformação, caso os ‘de baixo não tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e [...] não fizerem ‘o movimento da sociedade’” Como último item desta seção do capítulo em que se trata do significado histórico dos movimentos sociais camponeses na sociedade brasileira, almeja-se refletir sobre como o processo de mobilização e participação social, por um lado, propicia a aquisição da consciência crítica e, por outro, se torna força propulsora de transformação social. Não obstante, salienta-se – para que não haja equívocos de interpretação -, que se considera que os efeitos da mobilização e participação social encontram-se imbricados no mesmo processo. Na experiência dos movimentos sociais camponeses, o trabalho de base assume grau de importância tão elevado quanto à mobilização coletiva. Isso acontece porque, para tais movimentos, a concepção de participação e mobilização adquire caráter de processualidade. Neste sentido, a força que gera as lutas sociais deve partir do nível da vida cotidiana para o nível da coletividade. Entretanto, para que isso aconteça, torna-se imprescindível despertar para a construção de uma consciência que possibilite fazer uma leitura que, aos poucos, vai superando o nível do senso comum, tornando-se crítica. A partir dela ficam evidenciadas as diversas desigualdades, o não reconhecimento de direitos, o não atendimento das 223 necessidades dos cidadãos e várias outras questões que se configuram como elementos geradores de mobilização social. Logo, propulsores de transformações que ocorrem desde o âmbito da vida cotidiana até aquele da sociedade ampla. Essa é a concepção de movimento social que têm as militantes do MMC. É algo processual, dialético, que conforma e é conformado num jogo de forças sociais, que transforma e é transformado a partir dos indivíduos sociais e de seus cotidianos, porém, atinge também a amplitude da sociedade, no sentido da transformação coletiva. Reforçando as palavras que abriram esse subtítulo, salienta-se, através da fala de Luci, que “[...] não há mudança, não há processo de transformação, caso os ‘de baixo não tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e não buscarem a sua efetivação, ou seja, não fizerem ‘o movimento da sociedade’. Essa é a importância dos movimentos sociais” (Florianópolis, setembro de 2009). Portanto, nessa concepção de movimentos sociais residem os elementos que justificam a atenção que se deposita no trabalho de base, nas experiências de vida dos militantes e no reconhecimento da cotidianidade do povo. TERCEIRA SEÇÃO O Movimento de Mulheres Camponesas num olhar que parte das Terras Catarinas! Inicia-se a terceira seção do capítulo, no qual se continuará direcionando o ‘olhar analítico’ sobre o Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina – MMC/SC, segundo as ‘falas’ de três mulheres trabalhadoras camponesas, militantes e dirigentes do Movimento em ‘Terras Catarinas’. Entretanto, antes de iniciar a empreitada dessa ‘terceira seção’ do capítulo, é necessário considerar três aspectos fundamentais que estão ligados à própria trajetória do MMC/SC. 224 Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que as militantes do MMC/SC, ao serem provocadas na entrevista a se expressarem em relação ao Movimento, o foram segundo a territorialidade referente ao Estado de Santa Catarina. Não obstante essa delimitação estabelecida para o diálogo, em alguns momentos as entrevistadas ampliaram suas falas para o contexto brasileiro, o que leva a compreender que para elas a territorialidade nacional se fazia necessária para explicar os fatos no contexto catarinense. Diante desta questão, coloca-se como desafio reconhecer os momentos em que as militantes transitam seus olhares entre o contexto estadual e o nacional, bem como os motivos pelos quais o fazem. Além disso, salienta-se que a própria dinâmica de desenvolvimento da trajetória histórica do movimento já propicia as informações necessárias para que seja possível compreender a territorialidade em seus diversos níveis: local, regional, estadual, nacional ou, até mesmo, internacional. Em segundo lugar, alerta-se para dois tipos de identificações do movimento social em questão, presentes nas falas das entrevistadas. Um deles refere-se à denominação de Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA e o outro à denominação de Movimento de Mulheres Camponesas – MMC. O primeiro está relacionado ao contexto do seu surgimento no Oeste do Estado Catarinense, demarcando desde o ano de 1983 até 2004; e, o outro, está relacionado com o período mais recente da trajetória do movimento: desde 2004, já que a partir deste ano, como resultado de uma assembléia nacional de mulheres camponesas, o Movimento delibera a mudança de seu nome para Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – MMC do Brasil, a fim de abarcar mais efetivamente a diversidade de expressões de mulheres trabalhadoras camponesas presentes no território nacional. Dizendo isso, deseja-se destacar que não se estará tratando de dois distintos movimentos sociais de mulheres do campo, mas de um único movimento social que tem uma trajetória de 26 anos em terras catarinenses. Portanto, muitas vezes, poder-se-á encontrar a denominação de MMA e n’outras tantas a denominação de MMC, já que serão respeitados os termos expressos nas falas das entrevistadas. 225 Em terceiro lugar, indica-se a necessidade de que a interpretação das ‘falas e expressões’ das militantes do MMC/SC entrevistadas, seja feita a partir do âmbito de atuação de cada uma delas no movimento. Assim, mais uma vez se faz menção à localização territorial das falas das entrevistadas, afirmando que o diálogo com Justina remeterá, para além de sua participação no grupo de base de sua comunidade e município, também sua militância como dirigente nacional e representante do Movimento em nível de América Latina (Coordenação Latino Americana de Organizações do Campo – CLOC) e também mundial (Via Campesina Mundial). Já o diálogo com Luci remeterá, fundamentalmente, a sua atuação direta na esfera política da sociedade catarinense, o que a leva a desempenhar atividades e funções em nível nacional – nesta mesma esfera da sociedade, forma e nível de atuação política que ocorreram desde meados do ano de 1985, quando concorre ao primeiro pleito nas eleições estaduais, elegendo-se como deputada estadual. Desde, então, Luci não se retira do cenário político legislativo e partidário. Sem descontextualizar sua militância em nível local – grupos de base do MMC/SC -, através da participação de atividades locais nas diversas comunidades rurais e municípios que visita e desenvolve atividades, este é o marco situacional de sua fala: a atuação política direta em Santa Catarina e no Brasil. Por fim, a fala de Noeli remete às considerações de uma militante de grupo de base e dirigente estadual do Movimento. Logo, abarca o contexto de vida e de atuação das mulheres camponesas militantes do MMC em todo Estado de Santa Catarina. Mesmo sendo este o marco situacional de sua fala, muitas vezes Noeli transpõe suas reflexões para o âmbito de atuação nacional e mundial, como reflexo de sua participação em várias atividades do movimento nestes níveis. É principalmente nas considerações de Noeli que aparecem os elementos mais significativos do cotidiano de vida das mulheres camponesas. Enfim, feitas essas considerações, inicia-se a próxima tarefa! 226 4.3.1 “O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência, através da participação em todo esse processo de reabertura democrática” A primeira questão compartilhada pelas entrevistadas tratou do surgimento do Movimento. Assim, para iniciar as reflexões, é importante considerar que o MMC é tomado como resultado de um processo de participação popular, através da construção da consciência crítica das mulheres sobre sua subalternidade na sociedade patriarcal capitalista. Note-se que o componente da teia sobre o MMC que primeiro se faz presente é a questão da ‘construção de uma consciência crítica’ sobre a realidade e o contexto de vida das mulheres. Esta mesma questão já apareceu no terceiro capítulo do presente trabalho, através dos estudos principalmente de Lukács (1997) e Heller (1989), mas também de Marx & Engels (1984) e de Martinelli (2008). Para tanto, é necessário avançar o olhar para a realidade, saindo das percepções sobre o senso comum e elaborando um pensamento que, aos poucos, vai se tornando crítico, através do reconhecimento dos elementos de dominação e subalternidade que compõem a cotidianidade, neste caso, das mulheres trabalhadoras camponesas. Este processo de elaboração de uma consciência crítica se explicita na fala de Justina quando diz que [...] O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência, através da participação em todo esse processo de reabertura democrática e de conquista de espaços de participação. Foi nele, que as mulheres foram percebendo, primeiro, que não era possível serem sócias do sindicato, e depois, que não tinham direito de fazer parte da diretoria, entre outros elementos do sindicalismo. [...] As mulheres foram tomando a consciência de que não possuíam determinados direitos como possuíam as mulheres da cidade de ter a carteira de trabalho assinada, o salário maternidade, que na roça não tinha nada disso (Chapecó, Setembro de 2009). Na alocução da militante fica claro o reconhecimento dos espaços de participação que não estavam sendo permitidos às mulheres camponesas, bem como os direitos sociais trabalhistas a que as trabalhadoras camponesas não podiam acessar, quando se tomava como referência a situação das trabalhadoras urbanas. Tal processo de construção da consciência é contextualizado em sua fala num momento de fortalecimento político das lutas populares no país, que passam a 227 ter forte caráter social e político, marcando o período da reabertura democrática no Brasil. Também Luci expressa a mesma questão com maiores detalhes, relacionando o processo de elaboração de uma consciência crítica, a partir da perspectiva da Teologia da Libertação e do contexto de participação nas Comunidades Eclesiais de Base. Para ela, um dos grandes colaboradores para o surgimento do Movimento foi o Bispo da Diocese de Chapecó naquela época, Dom José Gomes. Sua fala, rica de detalhes históricos, retrata que Quando nós começamos o Movimento, ele iniciou sem uma estrutura ou organização determinada e definida, mas partiu das Comunidades Eclesiais de Base. [...] A partir das CEB’s, dos movimentos sindicais, do movimento de oposição e de outros movimentos sociais como o Movimento de Atingidos por Barragens que foram surgindo no período, foi acontecendo também a organização e participação das mulheres, pois foram esses movimentos de lutas que serviram como incentivadores, isso porque nós mulheres começamos a participar de uma forma ou de outra na oposição sindical. Aí ele [o Bispo Dom José] começou a perceber que as mulheres participavam, mas não podiam decidir, não podiam participar da direção do sindicato, não podiam votar, não eram sindicalizadas e todas outras questões decorrentes dessas. De fato, as mulheres não tinham participação, apenas eram pessoas que ajudavam a fazer as coisas. Aí Dom José começou a incentivar que as mulheres precisavam se organizar. Com isso, a gente já ia para alguns encontros de mulheres, mesmo porque tinham grupos de mulheres em São Paulo, com os quais nós nos reuníamos para discutir os direitos das mulheres, porém ainda não havia organicidade, os encontros eram ainda esporádicos. Foi a partir dessa situação que a gente começou a sentar e conversar. Foi através da Diocese de Chapecó que começamos a reunir algumas lideranças de algumas regiões para começar a discutir a organização das mulheres e o que fazer (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Na passagem da fala de Luci, fica registrada a forte presença da Igreja no contexto da organização, articulação e mobilização das lutas sociais que foram surgindo no período final da década de 1970 e início de 1980. Esta presença deve ser contextualizada como uma significativa contribuição da Igreja - tanto luterana, mas principalmente católica – no processo de construção de consciência crítica acerca da conjuntura política, social e econômica do país, a qual colaborou para desencadear um processo de mobilização popular que, entre outras decorrências, cooperou para a reabertura democrática. É notória a contribuição da Teologia da Libertação para a mobilização das mulheres camponesas e para a organização de vários movimentos populares e sociais que surgiram naquele período, dentre os quais o Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA. Isto é confirmado por Justina, ao dizer que “[...] essas mulheres 228 agricultoras catarinenses iniciam uma trajetória, muito impulsionadas pela própria Teologia da Libertação que tinha uma influência muito forte naquele período tanto na Igreja Católica quanto na Luterana” (Chapecó, Setembro de 2009). Outro elemento presente na trajetória inicial de mobilização das mulheres camponesas é o forte traço cultural de subordinação da mulher à esfera privada da vida. Por isso, elas deviam superar também a territorialidade ‘privada’, que as colocava como protagonistas apenas do âmbito doméstico, onde eram responsáveis pelos cuidados com a família, com a casa e com a produção de diversos produtos para o consumo – subsistência – familiar. Produtos tais como o leite, as verduras e hortaliças, os ovos, entre vários outros, que na produção agrícola são considerados como ‘miudezas’49, uma vez que não são produzidos em quantidade significativa para gerar sua comercialização constante e, portanto, a geração de renda permanente. Este quadro é característico da cultura patriarcal, que continua perpassando ainda hoje as relações sociais e que encontrou no campo um espaço profícuo para se enraizar. Tal quadro é contextualizado por Luci como um quadro que gerava dificuldades para a participação da mulher, demandando estratégias que possibilitassem romper com a ‘dependência’, a fim de que pudessem iniciar um processo de mobilização e organização social. Nesse sentido, a militante relembra [...] Mas aí não tínhamos estrutura e então começamos a montar uma estratégia de organização com muita dificuldade, mesmo porque tinha toda a questão da dependência ‘normal’ para a época em relação aos homens, sejam maridos, filhos, ou outros da comunidade, o que desafiava a organização (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Por outro lado, foi neste difícil processo que as mulheres foram, sutilmente, desenvolvendo a capacidade de percepção crítica em relação à realidade cotidiana, as suas necessidades e perspectivas; mas também em relação à caminhada necessária para romper com a dependência, a subordinação, e a falta de participação, principalmente no espaço público da sociedade. Destarte, “no desenrolar da luta, algumas mulheres foram percebendo que ‘lutar’, menos que uma 49 Essa questão foi abordada em trabalhos anteriores, dentre os quais se indica recorrer à LUSA (2008). Referência completa no final do estudo. 229 batalha, é um modo de vida, onde se sucedem novas reivindicações. A luta é, portanto, histórica. Constrói-se. É processo” (KROTH, 1999, p.88)50. Este era o cenário do surgimento do MMA: mobilização social e política provocada pela elaboração de ‘consciência crítica’, o que propiciou que grande parcela da população brasileira, tanto do campo quanto da cidade, conseguisse reconhecer elementos de sua realidade e, nela, as demandas e os direitos elevados à condição de necessidades humanas. Enfim, a construção de uma consciência crítica, a partir dos elementos da cotidianidade das mulheres, de fato, foi o elemento central do processo de organização social e política do Movimento. Luci novamente traz a tona essa questão, ao relatar as primeiras reivindicações que caracterizaram o MMA [...] E assim nós fizemos as primeiras atividades de base e depois uma geral onde tiramos nossas bandeiras de nossa organização e luta, que eram: a participação no sindicato; a reivindicação de direitos sociais da previdência, a aposentadoria, o salário maternidade, o reconhecimento dos direitos todos da previdência que eram somente para os cidadãos urbanos enquanto nós não tínhamos nenhum na época; e a participação política. A participação política, por exemplo, surgiu junto com todas essas necessidades. Foi um processo que resultou das próprias perguntas que a gente estava se fazendo: qual era a realidade que a gente estava vivendo? O que determinava ela? ...Então a gente ia buscar respostas para esta realidade e os porquês dessa realidade. [...] Aí refletimos que o que tínhamos a fazer era fortalecer o movimento, começar a nos sindicalizar, a nos organizar inclusive politicamente (Florianópolis, Setembro de 2009). Esse mesmo elemento também é expresso pelo MMC em um de seus mais recentes materiais que registra a história do Movimento, quando afirma: Em diversos municípios as mulheres camponesas sentem a necessidade de serem ouvidas e valorizadas. Reúnem-se e trocam idéias sobre a possibilidade de construir uma organização própria para enfrentar e superar as dificuldades. No dia 01 de maio de 1983, em Nova Itaberaba, na época Distrito de Chapecó, algumas mulheres passam a dar organicidade a um grupo. A principal motivação era a participação na oposição sindical. Mas, elas também traziam presente, questões referentes ao seu cotidiano de discriminação, exploração do trabalho, endividamento, preços baixos dos produtos, êxodo rural, entre outros. Todo este envolvimento dá origem aos primeiros alicerces de uma organização específica e autônoma de mulheres camponesas (MMC, 2008, p.09). Portanto, eis o marco de surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras em Terras Catarinas. Construção de consciência crítica, cotidianidade, mobilização, articulação e participação política tornam-se elementos intrínsecos ao 50 Em nota de rodapé, Kroth (1999) sugere recorrer ao “Diálogo de Thompson com Giambattista Vico, a respeito de ‘A História como processo’. In: THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria, Capítulo XI”. 230 processo e, portanto, compõem esse marco histórico de surgimento e organização do MMA. 4.3.2 “Os políticos que estavam no Congresso Nacional não entendiam nada, não sabiam da vida na roça, muito menos sobre a vida das mulheres” As conquistas resultantes do processo de participação e de reconhecimento da realidade marcam toda a trajetória do Movimento. Entretanto, o processo de elaboração consciente sobre a realidade não foi imediato; pelo contrário, fez parte de um movimento de correlação de forças que foi se desenvolvendo gradualmente, com a ocorrência de fatos que significaram avanços incontestáveis em relação as suas estratégias de lutas. Isto é retratado tanto por Luci quanto por Justina, quando rememoram um dos processos que mais marcaram a trajetória histórica do movimento, já que, através do reconhecimento da conjuntura política desfavorável às mulheres agricultoras na época, deliberou-se pela ‘participação direta na esfera legislativa’ como estratégia de luta pela conquista de direitos. Relatando este momento, seqüencialmente Luci e Justina dizem que Tanto surgiu essa consciência, que nós fizemos o primeiro ‘Ato Público’ em Xanxerê, que ocorreu no dia 12 de agosto de 1986, reunindo em torno de 30.000 pessoas, das quais a maior parte eram mulheres, mas também alguns homens que foram ver o que iria acontecer. Como resultado da pauta daquele dia, tiramos a decisão de organizar um ônibus, em forma de caravana, e assim fomos para Brasília já tendo na pauta de lutas a aposentadoria e o salário maternidade. [...] Entretanto, ao final, foi esse processo que começou a educar as mulheres de que era necessário erguer as bandeiras, se organizar e também participar do processo político. Foi nesse contexto de 1986 que surgiu a reflexão de que o movimento tinha que ter uma mulher candidata a Deputada Estadual (Florianópolis, Setembro de 2009). Em 1986 aconteceu inclusive uma ‘ida’ em caravana à Brasília, com um ônibus lotado com as companheiras lideranças do Movimento nas várias cidades catarinenses, que tinham como objetivo levar à Câmara Federal e ao Congresso a proposta da aposentadoria para as mulheres trabalhadoras rurais. Ao retornarem, trabalharam nos grupos existentes sobre a importância da luta e fizeram isto convictas de que os políticos que estavam no Congresso Nacional não entendiam nada, não sabiam da vida na roça, muito menos sobre a vida das mulheres agricultoras e que nós precisaríamos eleger alguma representante nossa, para que se pudesse de fato levar para aquele espaço os nossos anseios (Chapecó, Setembro de 2009). 231 Ora, note-se que a estratégia de luta do movimento perpassou indiscutivelmente pela esfera da participação política direta nos espaços de decisão da sociedade. Desse modo, as mulheres camponesas começaram a romper as barreiras que as limitavam ao mundo privado da família, da pequena propriedade rural e, quando muito, da participação da vida na comunidade rural, para avançar na direção da participação política. Esse processo significou a ruptura com os padrões patriarcais de desigualdade de gênero – tal como já se afirmou em parágrafos anteriores - e ocorreu tanto nos espaços familiares, através de uma maior distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, como também nos espaços de deliberação das comunidades, dos sindicatos, associações e organizações sociais e, por fim, nos espaços de participação política direta. Entretanto, para que o Movimento conseguisse efetivar tal estratégia, foi necessário congregar forças e organizar-se entre o ‘coletivo de mulheres camponesas’. É notório que o momento de reabertura política e de participação popular colaborou para que as mulheres camponesas lograssem êxito em sua estratégia; porém, há que se reconhecer que o MMA – em suas militantes e dirigentes – soube aproveitar todo o contexto de contradições políticas revelado a partir da construção da consciência crítica sobre a realidade. Isso aparece na fala de uma das militantes quando relata como foi a organização e participação no primeiro pleito eleitoral assumido pelo MMA em Santa Catarina. E as mulheres tiveram um papel extraordinário na época. Até é interessante porque havia uma cultura, que ainda não modificou totalmente, que as mulheres votavam no candidato que o homem – seu parceiro - mandava votar. Por isso, nós montamos uma estratégia que era assim: ‘você pega o santinho que o seu marido manda votar, já que é um tipo de obrigação, mas leva também o teu número para votar’. Foi assim que a maioria das mulheres levava para a urna o candidato do marido, mas na hora de escrever o nome e número do seu candidato votava na Luci. Portanto, a nossa vitória se deu pela consciência que uma grande parte das mulheres tiveram. Claro que houve votos de homens, mas uma parcela fundamental dos votos que me elegeram, vieram da tomada de consciência das próprias mulheres do movimento de que podiam fazer o processo político (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). É importante observar que as próprias instituições sociais e políticas foram percebendo a importância estratégica da participação das mulheres do MMA, uma vez que elas estavam despontando em muitos espaços de visibilidade da sociedade, como forças sociais e agentes políticos fundamentais no movimento 232 dialético de transformação da sociedade naquele período. Em relação a isso, Luci aponta: Bom, também teve outra questão interessante, porque daí o partido queria que nós fôssemos candidata, porque como nós fizemos aquele ‘Ato’ em Xanxerê, que ficou marcado na história como a coisa mais importante da época, seria interessante para o próprio partido. Pense que ninguém imaginava naquele período que as mulheres agricultoras fossem capazes de ‘puxar’ um Ato, todos tinham dúvidas dessa capacidade e se iria dar certo ou não. Foi assim que o partido começou a discutir se era bom ter uma mulher candidata, ou não, para representar esse movimento (Florianópolis, Setembro de 2009). As falas acima mostram o quadro social e político no qual o MMA se insere como ator político coletivo, ao identificar tal inserção como estratégia para concretizar suas lutas e, portanto, lograr êxito em suas reivindicações. Assim, o MMA passa a eleger em vários municípios algumas de suas militantes para funções legislativas e também executivas, como foi o caso da militante Justina de Cima, eleita vereadora no município de Formosa do Sul, onde residia. Além disso, o Movimento avança para a representação nas esferas estadual e nacional, a partir de 1986, quando elege a militante Luci Choinaki para Deputada Estadual, a qual se tornou “a primeira mulher agricultora eleita no Brasil, a primeira mulher eleita pelo Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina e a primeira deputada eleita por este partido” (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). 4.3.3 “E assim começamos um novo tempo no processo político” – Os anos de 1980 para o MMA É eminente a contribuição que o Movimento de Mulheres Agricultoras teve para o aprofundamento democrático do país e para o início do processo de superação das desigualdades de gênero ainda nos anos de 1980. Pouco a pouco, através de seus trabalhos de base, as mulheres camponesas iam ‘minando’ as estruturas de dominação cultural, social e política que alicerçavam as relações sociais. Famílias, comunidades camponesas, municípios, estados e a própria nação foram sutilmente incorporando algumas pequenas, mas significativas transformações nos padrões de gênero e societários do capitalismo. 233 Para Kroth (1999, p.108) Na perspectiva de luta das agricultoras do oeste de Santa Catarina, podemos dizer que a década de 80 pode ser caracterizada sob três aspectos importantes. O primeiro diz respeito à redemocratização do País, cujas marcas expressam mobilizações intensas, lutas específicas e fortalecimento de vários movimentos populares [...]. O segundo aspecto diz respeito à participação das mulheres não só nas lutas mais gerais dos trabalhadores, mas também na construção efetiva de suas lutas específicas [...]. A terceira questão colocada nesse período pelas agricultoras diz respeito à autonomia de sua organização. Destarte, a década de 1980 passou a ser reconhecida como o período de efervescência social e política, muito embora seja considerada como ‘década perdida’ na esfera econômica do país. Já a partir desse contexto, o MMA foi estabelecendo redes de atuação coletiva, junto com outros movimentos sociais e partidos políticos, tanto em nível local, como nacional e internacional. Como resultado desta interlocução, o povo brasileiro conquista um novo referencial para exercício da cidadania, calcado na questão da participação social, da democracia e da luta por direitos. Merece, ainda, destaque a colaboração que o MMA – enquanto movimento social feminista, de classe e do campo – teve na construção de uma nova esfera política, em cuja cultura de participação social adquiriu status de ‘direito e dever da coletividade’. Essa colaboração é expressa por Luci, ao avaliar que Nós tivemos uma participação importante nesse cenário, pois se conseguimos fazer o maior evento político da história daquele período, é sinal que as mulheres desempenharam um papel fundamental e uma participação significativa, embora, muitas vezes isto não tenha acontecido de forma tão consciente daquilo que estávamos fazendo. Agora, a repercussão foi muito boa e isso incentivou muitas mulheres, inclusive de outros movimentos sociais a ter coragem de adentrar nesse campo e a olhar com um pouco menos de preconceito essa esfera da participação política e social na sociedade (Florianópolis, Setembro de 2009). Também o próprio movimento afirma em um de seus documentos que resgatam sua história que, desde a década de 1980, trabalhavam para a articulação de pautas coletivas junto com outros movimentos sociais feministas e do campo. Segundo o documento, as mulheres camponesas do MMA, “articuladas com outros movimentos e entidades assumiram a luta por preço justo dos produtos, seguro agrícola, saúde, reforma agrária, direito dos povos indígenas, resistência contra as barragens e outros” (MMC, 2008, p.10). 234 Além disso, naquela década, o MMA começa a participar de uma articulação de mulheres trabalhadoras rurais da região Sul do país e passa a colaborar na elaboração conjunta de um plano de trabalho coletivo, com a finalidade de aprofundar a organização das mulheres agricultoras, avançar na luta por direitos e aprofundar discussões sobre “saúde, sexualidade, reconhecimento da profissão, produção, reprodução, gênero e as causas da violência contra a mulher a partir da realidade do Sul do Brasil” (MMC, 2008, p.12). Portanto, enquanto âmbito investigativo ligado à academia e à construção do conhecimento, torna-se eminente reconhecer a importância da colaboração desse movimento na efetivação dos avanços para a construção de uma nova concepção de cidadania, Estado, governo e participação social e política do povo brasileiro, os quais marcaram ‘um novo tempo’ na trajetória sócio-histórica do país. 4.3.4 “Se os outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de mulheres se colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização” – Os anos 1990: conquistas e avanços Anos de intensidade política, de dedicação para o Movimento e para a luta. Anos de renúncias pessoais e de avanços coletivos. Anos de muita mobilização e, sobretudo, anos de históricas conquistas. Ora, qual foi a representação dos anos de 1990 para o Movimento de Mulheres Agricultoras em Santa Catarina? Conforme os registros do MMA/SC (2008, p.12), Na década de 90, o Movimento se caracteriza pela luta e conquista dos direitos – documentação pessoal e profissional, reconhecimento da condição de seguradas especiais, implementação da Previdência Pública Universal e Solidária. Mas também pela garantia do acesso aos benefícios – auxílio acidente de trabalho, aposentadoria aos 55 anos para as mulheres e 60 anos para homens, auxílio doença, aposentadoria por invalidez, auxílio reclusão e pensão por morte, salário maternidade – todos no valor de um salário mínimo. Além disso, o direito a titulação da terra em nome da mulher. Nota-se, já pelo elenco de conquistas, a intensidade política e social do Movimento naquele período, fato que contrasta, de certo modo, com o momento de 235 ‘crise’ dos movimentos sociais no Brasil, visão presente nas análises de diversos estudiosos do tema51. Uma das militantes do MMC/SC confirma essa diferenciação em relação à atuação dos demais movimentos socais no período. Conforme ela, Eu diria que no MMC foram vividos diferentes momentos em relação à maioria dos demais movimentos. Por isso, no nosso caso, eu acredito que não dá para falar em ‘crise nos anos 1990’. Penso que, em cada momento da história do país, foi exigido dos movimentos diferentes formas de organização. [...] Destaco que o período de 1990 a 1996 foi um período de muita mobilização e de muita organização no MMC, pois é um momento em que nós fizemos a luta pela regulamentação dos direitos que haviam sido conquistados, como muitos abaixo-assinados, muitas coletas de ‘campanha de kilo’ para poder ter o dinheiro para pagar os ônibus e manter as companheiras nos acampamentos e mobilizações. Além disso, foi um período de vários debates na esfera política direta, como no Congresso Nacional, o que era algo realmente impressionante, pois as mulheres se organizavam no sentido de preparar esses debates e os argumentos de convencimento para demonstrar que nós ainda não tínhamos legalmente esses direitos (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Diante do relato, não há dúvida sobre a intensidade de atuação do Movimento, naquele período, o que propicia um significativo amadurecimento enquanto sujeito coletivo que já conquistou certa visibilidade social e política na sociedade. Um exemplo disso, segundo o Movimento, foi o fato de que “em 1994, a conquista do salário maternidade, trouxe o reconhecimento da profissão de trabalhadora rural e provocou na sociedade o debate sobre a função social da maternidade” (MMC, 2008, p.12). Esse reconhecimento público da profissão se torna uma referência para a construção de identidades, não somente para suas militantes, mas também para diversas outras mulheres camponesas e/ou feministas, que se orientam pelos avanços conquistados, para de fato reconhecerem-se socialmente como mulheres, trabalhadoras camponesas e sujeitos sociais constituídos de direitos. Além disto, as estratégias de luta, de mobilização e as conquistas daquela década passam a lhes conferir repercussão social - inclusive nos meios de comunicação social - enquanto movimento social feminista e camponês. Esse fato está presente na fala de outra militante, que diz: Lembro, inclusive, de um artigo que o ‘Florestan Fernandes’ escreveu para o colunista semanal da ‘Folha de São Paulo’ dizendo que “O Brasil não é 51 A questão acerca da ‘crise dos movimentos sociais’ foi abordada no segundo capítulo deste trabalho. 236 mais o mesmo, a luz é outra”, no qual falava do surgimento da CUT, do Movimento dos trabalhadores Sem-Terra e do Movimento das Mulheres Agricultoras, que chegaram de chapéu e chinelo, que não pediram licença, mas foram entrando e ocupando o seu espaço que nunca existiu antes naquela casa, mas que foi conquistado através da presença da Deputada Federal Luci Choinaski, que representava essa esperança, esse sonho e as palavras vividas e expressadas pelas mulheres agricultoras naquele plenário, que não foram pedidos de mendicância, mas foram dicas de coisas que deviam ser feitas, porque eram necessárias. Então assim se constrói um novo tempo e aquele momento foi marcante, pois foi a primeira vez na história, em março de 1992, que as mulheres camponesas do Brasil estão no cenário nacional com o seu rosto, com o seu jeito, com suas propostas e sem pedir licença, porque elas já tinham conquistado o seu espaço lá dentro (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). A fala de Luci, bastante carregada de emoção, manifesta o que representou para cada mulher camponesa toda a mobilização da década de 1990: a conquista de visibilidade social e de espaços que eram seus, mas que até aquele momento lhes eram negados. E, a partir de então, elas ‘não mais precisam pedir licenças’, pois seus espaços já foram conquistados. Lá estão elas com sua identidade: como mulheres e trabalhadoras camponesas, de chapéu de palha e sonhos na cabeça, além de chinelos nos pés e a firmeza na caminhada. É a partir deste período que as mulheres camponesas do MMA – agora não somente de Santa Catarina, mas de todo o Brasil – começam a circular no cenário público nacional e nas instâncias legislativas e executivas dos diversos âmbitos de governo, fazendo propostas, exigindo o cumprimento de suas reivindicações, negociando novos avanços e a garantia dos direitos conquistados. A militante Justina, ainda compartilha sua análise sobre o período, afirmando que Esse foi um período de muita movimentação e de mobilização das mulheres, onde as próprias mulheres vinham participar do Movimento com mais facilidade, pois estava colocada a possibilidade econômica, que era a questão da aposentadoria e o significado dela para as famílias camponesas, mas que, ao mesmo tempo, exigiu muita firmeza e dedicação das mulheres militantes e das dirigentes. Nós tivemos que ocupar os Ministérios de Governo, apanhamos muito das polícias e passamos por momentos de muita tensão como quando nós ficamos com o Ministério ocupado de um dia para o outro para conseguir que o Ministro conversasse conosco. Sem contar as manifestações nas rodovias federais e estaduais, entre outras estratégias de luta. Deste modo, eu gostaria de registrar aqui que de 1985 até os anos 1990 foi um período de expansão do Movimento em nível nacional, junto com lideranças da Comissão Pastoral da Terra, dos Sindicatos Combativos, das Pastorais Sociais (Chapecó, Setembro de 2009). 237 Analisando estes relatos, nota-se que os avanços na articulação e mobilização do Movimento naquela década, caminharam na direção da ampliação da organização coletiva enquanto movimentos sociais camponeses no nível nacional, mas já em nível latino-americano. Para além do próprio significado da articulação de forças políticas e sociais, esse fato representa o amadurecimento do Movimento no sentido de reconhecer que se tornava imprescindível agregar forças e lutas, para que o horizonte de transformação societária, na perspectiva socialista, pudesse ser concretizado. A militante Justina também retrata as dimensões da organização e da participação social e política do Movimento, nos diversos espaços da sociedade. Diz ela: Também nos anos 1990, foi possível extrapolar os limites da esfera nacional e nós passamos a participar também enquanto articulação do Movimento nos Estados do Sul, numa coordenação latino-americana e caribenha das organizações do campo, chamada Coordenação Latino Americana de Organizações do Campo - CLOC, que hoje resultou na Via Campesina, que é uma organização mundial. [...] Portanto, é necessário perceber que se os outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de mulheres se colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização para a ocupação de espaços ditos como masculinos em diretorias de sindicatos, em Câmaras de Vereadores, Prefeituras, Câmaras de Deputados etc (Chapecó, Setembro de 2009). Justina apresenta em sua fala o contexto de expansão e intensificação da organização e mobilização dos movimentos feministas nos anos 1990. É neste cenário que o Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA avança em suas lutas, bem como no âmbito de sua organização e articulação internas. Diante disso tudo não restam dúvidas sobre os acúmulos que o MMA conquistou na década de 1990. É a partir deste cenário que ele parte para novas discussões no período seguinte, aproximando-se mais das lutas e da organização que o identifica atualmente. 4.3.5 “Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do Brasil” 238 Depois de adentrar na trajetória histórica do Movimento de Mulheres Camponesas, é importante dedicar o olhar analítico também para a atual organização do MMC, a fim de que se possa reconhecer nela as lutas atuais e as perspectivas futuras para o Movimento. Para desenvolver tal tarefa, a primeira militante entrevistada é Noeli. Segundo ela, A organização do MMC é composta a partir dos grupos de base, das direções municipais, das direções regionais e das direções em cada Estado e depois, por último, das direções em nível nacional. É claro que têm estados que se organizam e trabalham um pouco diferente conforme a realidade, mas de forma geral, sempre se parte dos grupos de base, sendo que as instâncias seguintes – que são as de maiores níveis de organização - são formadas pelas representações das instâncias menores (Chapecó, Setembro de 2009). Observa-se a presença de, pelo menos, dois elementos significativos na atual organização do Movimento. O primeiro refere-se à importância atribuída aos grupos de base – a qual é marca não somente desse movimento, mas também de outros movimentos sociais brasileiros. O segundo tangencia a questão da autonomia que cada Estado - onde existe o Movimento - possui para se organizar. Partindo desses dois elementos, pode-se perceber o movimento dialético que existe entre o processo de tomada de decisões e aquele de execução, os quais acontecem em todos os espaços e âmbitos do Movimento. Assim, nota-se que o processo de participação, formação, amadurecimento político e ideológico das militantes acontece desde os grupos de base, a partir dos elementos do cotidiano de vida das mulheres camponesas e de suas famílias e comunidades. É neste espaço e âmbito que elas iniciam o ‘processo de discutir para decidir e depois executar’. Logo, tornam-se responsáveis pela própria militância e pelo grupo em que participam. Decidem como se organizar, o que discutir, o que e como fazer, entre outras questões. Elegem suas representantes e indicam suas demandas de luta. Já aí vão construindo coletivamente e gradualmente seu processo de autonomia e de emancipação, num movimento em consonância com o próprio MMC, uma vez que também vão contribuindo para a construção da autonomia do mesmo. Ao avançarem em todos os níveis de representação – do grupal, municipal, regional, estadual, nacional, ao internacional – vão construindo redes de compartilhamento, onde trocam não somente as discussões e deliberações locais, 239 mas também as experiências de vida e de realidade, a visão de mundo e as perspectivas que depositam no MMC. Assim, dialeticamente, vão conformando a identidade do Movimento enquanto também constroem a sua identidade de mulher, trabalhadora, camponesa etc. Enfim, observa-se que a importância dos trabalhos e deliberações dos grupos de base e do respeito à autonomia de cada região, reflete, nada mais que o reconhecimento e respeito à diversidade de identidades e realidades, que ao final vão congregar-se em objetivos de luta e perspectivas comuns de sociedade. É esta dinâmica que as leva a sugerir mudanças, que abarcam desde as transformações que ocorrem em nível pessoal, nas relações conjugais e familiares, passando pelo nível das relações comunitárias e de trabalho, chegando ao nível das relações societárias de gênero e de classe. É na totalidade deste movimento que reconhecem a necessidade de transformação da sociedade capitalista e, portanto, indicam o horizonte socialista como perspectiva. Feitas estas colocações, é imprescindível chamar a atenção para a ampla abrangência do movimento, tanto na esfera nacional – que também é retratada pelas entrevistadas – quanto na esfera estadual catarinense. Note-se o que Noeli aponta. Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do Brasil e temos a articulação nacional do Movimento de Mulheres Camponesas. Aqui no Estado de Santa Catarina nós temos os grupos de base, cujos trabalhos são coordenados pelas direções municipais. Na seqüência nós temos as regionais com suas respectivas direções, que são as instâncias onde acontecem os encontros de organização, de formação, de luta, de celebração e mística e também de comemoração da caminhada, então temos vários regionais no Estado. E, por fim, nós temos uma direção estadual que é composta atualmente por 14 linhas de trabalho e para coordenar essas linhas nós temos 14 companheiras (Chapecó, Setembro de 2009). O cuidado com as diversas dimensões que compõem a integralidade da vida de cada mulher camponesa também aparece na organização do movimento. Organização, formação, ação-luta, celebração e mítica, e também comemoração, são elementos fundamentais para alimentar tanto a caminhada de cada militante, como a própria caminhada do MMC. Assim, observa-se que a abrangência do movimento - que até meados do ano de 2009 estava presente em todo o território estadual de Santa Catarina e em 22 Estados da Federação – indica que existe um significativo tecido social no campo, composto de mulheres que possuem consciência crítica acerca da realidade, 240 as quais estão imbuídas de objetivos direcionados à transformação social, política, econômica e cultural da sociedade brasileira. Este reconhecimento é fundamental para compreender a significativa contribuição do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina e do Brasil, para o campo político do país. Da mesma forma, tal reconhecimento é imprescindível para marcar a forte presença dos movimentos sociais camponeses no cenário local e também nacional. Já em relação às atuais bandeiras de luta do Movimento, a militante ressalta que Uma das principais bandeiras de luta, ou melhor, a primeira de todas é voltada para a emancipação e libertação das mulheres de todas as formas de opressão. A segunda bandeira de luta é o projeto de agricultura camponesa, [...] e a terceira é a transformação da sociedade, sendo esta a nossa missão maior, ou seja, fazer a nossa luta no sentido de transformar a sociedade (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009). As três questões de luta presentes na fala de Noeli, quais sejam, ‘a emancipação das mulheres de todas as formas de opressão’, do ‘campesinato’ e da ‘transformação societária’, são reforçadas na mensagem pública do Movimento de Mulheres Camponesas, ao comemorar seus 25 anos de organização em Terras Catarinas. Para o Movimento, “a mensagem política do MMC/SC é a emancipação das mulheres camponesas e a construção da agricultura camponesa e ecológica combinadas com a luta pela transformação da sociedade” (MMC/SC, 2008, p.37). As três questões que marcam as lutas do Movimento na atualidade se traduzem para o cotidiano através de outras lutas visíveis no dia-a-dia das mulheres camponesas. Isto é o que também relata Noeli, ao dizer que Dentro dessas linhas todas, nós temos a luta pelos direitos, que hoje se intensifica no sentido de que os direitos que já foram garantidos, permaneçam: a saúde numa perspectiva, o acesso à educação por parte de todas as companheiras e dos cidadãos brasileiros, a questão do resgate, dos cuidados e do cultivo das sementes crioulas, mas também de recuperar e valorizar a sabedoria popular e o jeito de produzir, herdados dos nossos antepassados, a questão sobre a importância da produção da alimentação saudável e de subsistência, de modo que as famílias se tornem menos dependentes do mercado e sistema capitalista; o trabalho com as plantas medicinais, que é voltado para que a gente possa utilizar sustentavelmente os bens da natureza, a fim de que também possamos ter uma saúde melhor. Além disso, temos como uma das principais bandeiras do MMC, a questão da participação política das mulheres nos diversos espaços da sociedade e a luta contra a violência praticada contra a mulher [...]. Essas são as principais bandeiras de luta atualmente, mas nós apoiamos e trabalhamos integralmente várias outras lutas que as mulheres encontram e enfrentam no dia-a-dia e trazem para os grupos de base e para o Movimento (Chapecó, Setembro de 2009). 241 Ora, fica explícito que este movimento social volta suas lutas na direção de um horizonte amplo, com objetivos que só podem ser buscados através da coletividade e de uma orientação ideológica que se localize na contra-hegemonia do capitalismo e das políticas neo-liberais. Entretanto, para que estas lutas possam se concretizar, o Movimento reconhece a necessidade de objetivá-las no cotidiano, o que perpassa a luta pela conquista, garantia e manutenção dos direitos de cidadania de mulheres e homens, do campo e da cidade, mas também luta pela transformação de padrões desiguais de gênero e classe, enraizados em modelos culturais, dentre os quais se destacam: a cultura patriarcal, burguesa e machista. Esta reflexão é demonstrada com significativa nitidez por outra militante, a qual expressa que Somado a isso, está colocada a questão da luta por uma sociedade que tenha maior igualdade de gênero, ou seja, igualdade de condições entre os homens e as mulheres, assim como maior igualdade e justiça com a distribuição de renda, com a dignidade e com a garantia de direitos. [...] Portanto, nós fazemos a leitura de que a cultura patriarcal é um suporte para o capitalismo e apesar dela ser anterior ao capitalismo, nesse momento ela se configura como um dos principais pilares desse sistema. Temos também a consciência que dentro da cultura patriarcal, o que sustenta isso tudo é a dependência econômica das mulheres, pois ao manter as mulheres dependentes torna-se mais fácil de manipulá-las. [...] Outro elemento de manipulação e dominação é o não-direito das mulheres de decidirem sobre o seu corpo, pois o corpo das mulheres vive muito em função do que determina a Igreja, o que determinam os homens, o que determina o Estado e a dificuldade das próprias mulheres poderem decidir sobre o seu corpo. E o último pilar que sustenta esse sistema de dominação é a violência praticada contra as mulheres e sobre isso é importante registrar que, pela nossa avaliação, a violência se justifica principalmente porque o sistema capitalista colocou, ou melhor, conferiu centralidade para a questão da propriedade, pois tudo gira em torno da propriedade e do lucro. [...] Essa é uma realidade muito dura de ser dita e difícil de ser assumida, mas que é indispensável colocá-la em debate, porque a mulher não pode continuar sendo usada como objeto e muito menos como propriedade dos homens. Portanto, está colocada aí uma grande questão dentro da luta feminista é que a questão do ‘direito de decidir’, de ter autonomia política, econômica, financeira e de ser respeitada com igualdade, de não ser considerada como ‘posse’ do outro. Nota-se nas falas das entrevistadas, como – ao retratarem o próprio MMC/SC - conseguem transitar entre o objetivo geral que colocam no horizonte da atuação do movimento - logo, na utopia do movimento -, sem perder de vista em suas falas, decisões e ações, a concretude do cotidiano, de onde surgem necessidades e demandas e onde este horizonte utópico é traduzido a partir da escolha das linhas prioritárias de ação, da organicidade do Movimento, de sua 242 formação política e de sua comunicação com outros movimentos sociais camponeses e urbanos e com a sociedade de forma geral. Muitas outras questões que conformam os traços do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina demandam da investigadora que sejam aqui comentados e analisados. Eis aqui um desafio, pois a trajetória histórica desse Movimento, de onde decorrem seus traços atuais, é tão rica em elementos, os quais extrapolam o olhar analítico possível para uma investigação do porte desta que se desenvolve. Destarte, reconhecendo tal limite e a fim de encerrar este item de discussão, há que se ressaltar a importância do MMC tanto em nível nacional, quanto nos níveis estaduais, regionais e locais, para a dinâmica social, política, econômica e cultural da sociedade brasileira. Através de sua organização e de sua atuação política, este movimento social feminista, de classe e do campo, contribui significativamente para instigar a transformação societária, minando as estruturas do sistema capitalista com suas lutas políticas e sociais. 4.3.6 “Nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não negar a sua história” – A construção da identidade Para o Movimento de Mulheres Camponesas, sua existência não é possível, sem a construção de ‘identidades’. Esse é um traço intrínseco ao próprio processo de constituição de um Movimento, o qual se configura como um elemento necessário para que o mesmo possa construir sua trajetória social e política. Entretanto, ao tratar da identidade, no contexto deste estudo, há indicativos de que é necessário esclarecer sobre ‘qual identidade’ se está falando: se das identidades particulares ou singulares de cada mulher camponesa militante do MMC, ou se da identidade coletiva do próprio Movimento. Neste sentido, é importante informar que aqui se tratará de ambas as identidades, uma vez que ao dialogar com as três militantes durante a pesquisa de campo, notou-se que, para elas, há um processo de entrelaçamento entre o reconhecimento das identidades 243 singulares e a construção de uma identidade coletiva, processo este que não pode ser dissociado. Antes de partir para o debate das contribuições trazidas pelas entrevistadas, é também importante relembrar algumas considerações que foram aprofundadas no capítulo anterior a este. A concepção de identidade aqui adotada, parte do pressuposto de que é uma construção sócio-histórica, elaborada no próprio movimento da vida cotidiana, através das relações e do jogo de forças no campo social, político, econômico e cultural (MARTINELI, 2008). Logo, quando se fala de ‘identidade’ ou ‘identidades’, faz-se referência a algo processual, que está em permanente elaboração a partir da cotidianidade dos sujeitos e da aquisição da consciência crítica. Marcam essa cotidianidade e, portanto, compõem a identidade dos indivíduos, as relações sociais, o trabalho – em sua presença ou ausência -, os laços familiares, os valores e princípios de vida, a cultura, enfim, as tradições vividas. Por conseguinte, toma-se a identidade como um componente fundamental na vida dos indivíduos sociais, uma vez que se compreende que contém tanto os elementos que marcam a história do indivíduo – ou grupo, no caso de identidade coletiva -, quanto as projeções de seu futuro, através do ‘devir’ presente no imaginário de cada sujeito. Enfim, as identidades são processos também políticos, de afirmação das características pessoais e grupais e das perspectivas de vida presentes no dia-a-dia dos indivíduos sociais. Logo, é a partir do cotidiano destas mulheres camponesas com quem se dialogou, que se passará a discutir o significado da ‘identidade’, tanto para elas quanto para o movimento. Já numa primeira contribuição das militantes, o elemento central que está presente remete à aquisição de uma consciência crítica sobre a realidade e sobre a própria vida. O processo de construção da identidade acontece a partir do momento em que você vai tomando consciência de você mesmo e da realidade em que você vive e atua, porque enquanto você está lá produzindo sem perceber o que você está fazendo, sem analisar como e porque você está fazendo, não acontece esse processo de reconhecimento e de construção de uma identidade (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009). 244 Note-se que, para Noeli, a construção da identidade vai ocorrendo a partir do momento em que o indivíduo age na sociedade e tem consciência de sua atuação. Portanto, a construção da identidade - que para ela também é processual faz parte de um movimento em que o indivíduo ‘se coloca’ no mundo, significando seu fazer, mas também seu ‘ser’ no espaço onde vive. Já para Luci, “a identidade é um instrumento pedagógico de mudança social, de aprendizado, é educativo. A identidade, assim, passa a ser um instrumento de transformação” (Florianópolis, Setembro de 2009). Por isso, sua construção não é um processo que pode ser vivido isoladamente. Faz parte de um processo social, o qual resulta em um reconhecimento, que primeiro se efetiva na esfera pessoal, ou seja, no reconhecimento de ‘quem eu sou’, mas que, logo, se alastra para a esfera coletiva dos grupos de sociabilidade, seja a família ou os grupos comunitários, isto é, no reconhecimento dos outros sobre ‘quem eu sou’. Neste sentido, a militante continua sua assertiva, salientando que “[...] os indivíduos precisam conhecer sempre a sua produção, a sua cultura e não sentir vergonha pelos seus valores, simplesmente porque os seus valores e o meio em que vivem é diferente” (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Observa-se na sua fala a presença da questão da ‘auto-afirmação’ como elemento de ligação entre o reconhecimento efetivado na esfera pessoal e aquele da esfera social. Assim, o outro somente pode ‘reconhecer quem sou’, caso ‘eu mesma me reconheça’ e, portanto, ‘auto-afirme minha identidade frente a ele’. Neste sentido, reconhece-se que todo processo de construção de identidade é um processo dialético que se faz a partir de trocas sociais, as quais vão constituindo o indivíduo como sujeito político, portador – inclusive – de cultura. Esta é mais uma das características que leva a afirmar que não é possível dissociar o processo de construção de identidade nos âmbitos singular e coletivo, pois uma é produto e, ao mesmo tempo, produtora da outra. Essa concepção é expressa por Noeli quando afirma que Por isso, eu ressalto a importância que tem o MMC nesse processo. Tomando meu próprio processo como exemplo, se for considerar a Noeli antes e depois de entrar no MMC, a minha concepção de identidade camponesa é bem diferente. Foi a partir dessa compreensão que veio o reconhecimento da identidade, a sua valorização e sua afirmação no dia-adia (Chapecó, Setembro de 2009). 245 Essa fala destaca a processualidade na elaboração da identidade das mulheres camponesas e a importância do Movimento nessa construção. Entretanto, deve-se estar atento, a fim de não se equivocar em compreender que a ‘identidade passa a ser outra’ depois da participação no Movimento, pois neste sentido estar-seia caracterizando a ocorrência de uma identidade atribuída pelo MMC e não identificando como um processo de construção da identidade por meio do desenvolvimento de consciência crítica, através da participação social e política, como de fato acontece. Outra militante do MMC/SC também confirma isso, ao dizer que Para o nosso Movimento, a tomada de consciência se dá no processo de formação, na organização e nas lutas. [...] É através da luta coletiva, da organização e tudo o mais, que consegue ir constituindo, construindo essa identidade de mulher camponesa. E pode-se dizer que isso vai mais além ainda, pois para nós, a construção da identidade é o reconhecimento de uma identidade camponesa, mas também feminista, que está diretamente relacionada com valorização do ser humano, da igualdade, da justiça, da garantia do território, da cultura popular e local etc. Por isso tudo, é que se diz que uma coisa é o seu reconhecimento enquanto pessoa antes da entrada no movimento e outra é depois que já se participa (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Note-se que nas palavras de Justina já está expresso o entrelaçamento entre os elementos da identidade singular das militantes e aqueles que conformam a identidade coletiva do próprio Movimento de Mulheres Camponesas. Nesta questão está a diferença entre a identidade antes da militância no MMC e depois dela, uma vez que no processo de construção das identidades – singular e coletiva reciprocamente – vão acontecendo acúmulos, trocas e transformações, as quais nunca se colocam enquanto negação, mas sim como afirmação do ser mulher, trabalhadora, camponesa, militante e protagonista política e social. Isso é o que fica expresso nas palavras de Luci, que, assim como fez Noeli anteriormente, toma seu próprio exemplo para ilustrar a questão. Segundo ela Para falar de identidade, vou te dizer que, por exemplo, eu não deixei de ser agricultora. Em todos os lugares que eu vou, eu sou presidente estadual do Partido dos Trabalhadores, já tive mandatos federais inclusive, mas eu nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não negar a sua história (Florianópolis, Setembro de 2009). Assim vão se constituindo as identidades das mulheres e do próprio Movimento. Nenhuma delas está descolada da outra. Pois, tal como a importância que o MMC/SC atribui aos grupos de base, também ele atribui importância ao 246 processo de construção de sua identidade coletiva, já que ela é fundamentalmente construída a partir da cotidianidade de vida das militantes. Apreensão semelhante, acerca do processo de reconhecimento da identidade singular e/ou de construção da identidade coletiva que acontece no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinenses, é também apontada por Kroth (1999, p.85), quando afirma que “o processo de luta das mulheres levouas a construir uma identificação com o feminino e um perfil de mulheres capazes de reunir os papéis de mãe, esposa, trabalhadora e cidadã”. Desse modo, compreendese que a chamada ‘construção da consciência’ – no caso em questão – está relacionada ao processo de retomada de uma identidade já existente que era a de mulher, acumulada ao reconhecimento de outros traços, que geralmente antes não eram afirmados: ser trabalhadora e ser cidadã. Portanto, confirmando todo o debate, a militante Luci colabora também para lhe conferir um caráter de encerramento, reafirmando aquele que foi o primeiro elemento destacado neste item, o qual se refere à construção ‘da’ e/ou ‘das identidades’: a aquisição da consciência crítica a partir dos elementos da cotidianidade da mulher camponesa, militante do MMC/SC. Para ela, “há diferença, sim, entre antes e depois da militância, no que se refere à questão da identidade camponesa. Essa diferença passa, fundamentalmente, pela consciência que as mulheres constroem” (Florianópolis, Setembro de 2009). 4.3.7 “O Protagonismo também se dá na participação política na sociedade, na participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos” – O protagonismo social e político A questão que se propõe a discutir nesse item do capítulo, novamente encontra relação direta com a participação social e política das mulheres e com os objetivos do próprio Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina. É a questão acerca do ‘protagonismo’ desempenhado pelas mulheres camponesas militantes do Movimento, a qual influencia o próprio protagonismo desenvolvido pelo 247 MMC/SC frente a outros movimentos sociais, organizações populares e partidos políticos. Para provocar a discussão, resgata-se de um dos materiais institucionais do Movimento, um dos objetivos reafirmados pelo MMC/SC em sua 10ª Assembléia Estadual, realizada no município de Quilombo, entre os dias 20 e 22 de outubro de 2007. Segundo definição em Assembléia, um dos objetivos do Movimento é “avançar na participação política da mulher na sociedade e preparar militantes para contribuir na transformação social” (MMC, 2008, p.38). A participação política da mulher na sociedade, desde o início do Movimento em Santa Catarina, configurou-se como uma das mais importantes estratégias de luta. Nela está impressa a orientação em desenvolver com as militantes atividades de formação da pessoa, de consciência social e política, através de espaços de animação, estudo, debate , avaliação e comemoração, as quais possam elevar o nível de consciência das mulheres camponesas - sóciopolítica, econômica, cultural e técnica. Com isto, pretende-se desencadear processos articulados entre projeto pessoal de vida e projeto societário, em que as mulheres avancem, tanto na perspectiva da emancipação enquanto mulheres e sujeitos sociais, construtoras de história, mas também que possam ampliar e fortalecer a organização do próprio movimento e, com ele, de suas lutas (MMC, 2008). Entretanto, esta não é uma tarefa fácil, pois a presença da cultura patriarcal e machista arraigada no modo de vida da sociedade capitalista, imprime condições que dificultam a participação da mulher em patamar de igualdade com o homem, em espaços políticos e de sociabilidade. Por isto, a luta pela participação da mulher e, por conseguinte, pelo exercício de seu protagonismo, deve iniciar desde os espaços familiares e comunitários, para que possa adentrar nos espaços sóciopolíticos da sociedade. A investigadora Sirlei Kroth, que no ano de 1999 trabalhou com o Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina, relatava que As mulheres começaram a perceber, pouco a pouco, que as principais barreiras a serem enfrentadas estavam relacionadas ao conteúdo básico de participação no sindicato. Elas, que de certa forma acumulavam práticas vividas nos grupos de reflexão, nas CEBs e na experiência concreta de luta de oposição sindical, queriam e estavam aptas a contribuir no processo de 248 pensar e ‘construir propostas sindicais’ [...]. Já não bastava a postura de apenas ouvir, estarem presentes para ampliar o número de sócios. Mesmo sem muita clareza, suas práticas conduziam-nas à busca de cidadania. Em alguns lugares, a organização das agricultoras foi sendo cada vez mais expressiva. [...] Entretanto as dificuldades e a luta pela auto-valorização das mulheres agricultoras residiam também no árduo trabalho de convencimento da importância da participação da mulher na sociedade, inúmeras vezes rejeitada e não aceita pelas próprias companheiras (KROTH, 1999, p. 75). Aos poucos o processo de conquista de autonomia e de participação social foi acontecendo, configurando-se enquanto um processo de construção do protagonismo dessas mulheres camponesas. Para as militantes, o primeiro passo e um dos mais difíceis para a mulher é o de sair do espaço privado de sua casa, para participar dos espaços públicos. Este passo significa o início de um processo de construção do protagonismo, o qual é gradual e acontece em sua totalidade, envolvendo tanto o âmbito familiar, quanto o comunitário, social e político. A militante Justina assevera que, O protagonismo acontece através do processo de participação e de formação das mulheres no Movimento. Ele se concretiza na vida das camponesas através da capacidade de organização, de intervenção, de compreensão política. Ele também acontece quando elas se colocam como indivíduos com capacidade de continuar cuidando e melhorando as sementes crioulas, de produzir alimentos saudáveis e oferecer eles para a sociedade. Ele também se dá na participação política na sociedade, na participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos e em diversos outros espaços onde elas estão colocando as suas propostas (Chapecó, Setembro de 2009). A partir dessas considerações, é possível perceber a forte ligação que as mulheres participantes do MMC/SC fazem entre a conquista da emancipação das mulheres no âmbito pessoal de suas vidas e a efetivação daquelas que são as propostas do Movimento. Logo, significando a concretização do protagonismo, notase a conquista da compreensão política – o que acontece na esfera singular dos indivíduos sociais –, mas também a intervenção na sociedade através da adoção dos princípios e objetivos do Movimento em suas vidas, o que repercute tanto no exercício de seu trabalho cotidiano, mas também na participação política – processos que geralmente acontecem no âmbito da coletividade. A construção do protagonismo – em sua característica de processualidade - não pode ser fragmentada nas dimensões pública e privada da vida. É um processo dialético composto por elementos de singularidade e de genericidade dos indivíduos sociais, os quais se encontram em constante 249 movimentação no campo das correlações de forças que acontecem nas esferas social, econômica, política e cultural. Justina exemplifica esse processo dialético de construção do protagonismo das mulheres e do próprio MMC/SC – o qual ocorre na vida pessoal das militantes e na organização / existência do Movimento –, ao relembrar de um dos projetos desenvolvidos no corrente ano de 2009. [...] Nós tivemos no mês passado a apresentação de uma peça teatral sobre a ‘agroecologia’ em vários municípios catarinenses e nós sentimos como foi importante as mulheres serem as protagonistas nos debates que aconteceram em diversas universidades onde essa peça teatral foi apresentada pelas jovens e mulheres camponesas que estão no MMC. Penso que, na verdade, foi a partir das experiências das lutas e da própria consolidação do movimento, que o cotidiano das mulheres foi sendo transformado em conteúdo, o qual foi transformado em arte e a arte foi sendo usada para fazer a reflexão e o debate para fortalecer a articulação do Movimento, o projeto de agricultura camponesa e a organização das mulheres. Portanto, o protagonismo das mulheres se dá no sentido da formação, da organização, da participação das mulheres no próprio movimento e na sua trajetória de lutas sociais (Chapecó, Setembro de 2009). Percebe-se, a partir da fala da militante, que todos os elementos pessoais de vida, de trabalho e as próprias relações sociais das mulheres que participam no Movimento, se entrelaçam com a constituição e mobilização do Movimento. É a partir dessa totalidade que o protagonismo das mulheres camponesas vai sendo trabalhado pelo movimento e, portanto, vai acontecendo na vida de cada militante. Traços dessa totalidade também são percebidos na fala de Luci, que direciona sua reflexão para o ‘significado do protagonismo do movimento’, embora não deixe de relacioná-lo com o processo que ocorre na vida das mulheres. Diz ela, Eu acredito que o protagonismo do Movimento se faz no sentido de criar o seu próprio espaço e de reconhecer que tem suas próprias bandeiras, tem sua identidade, tem seu próprio rosto e jeito, de que mantém a cultura das camponesas e nela constrói uma forma própria de fazer as coisas acontecerem, de criar suas estratégias. Portanto, mesmo estando junto com os outros, pois tem caráter social e coletivo, continua mantendo a sua forma, seus objetivos, princípios e valores originais. Esse protagonismo aparece quando as mulheres começam a criar consciência, pois até que elas não criam consciência esse protagonismo fica invisível. É impressionante. Tudo se torna visível quando você adquire consciência do que você é (Florianópolis, Setembro de 2009). Ora, a criação de espaços próprios, o reconhecimento de suas bandeiras e a elaboração de estratégias de luta, o ‘fazer acontecer’ a caminhada do Movimento, mantendo coerência com seus princípios, objetivos e valores, torna-se 250 uma das expressões de protagonismo possíveis para o próprio movimento. Entretanto, ele não se concretizará sem que as mulheres camponesas, que nele militam, possam exercer seu protagonismo pessoal e elevá-lo ao âmbito coletivo. Assim sendo, os processos de protagonismo das mulheres camponesas ganham espaço e significado no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas. Tais processos encontram-se imbricados em outros, como o da construção da identidade. Portanto, tal como ressaltou Luci, também partem da elaboração da consciência crítica acerca da realidade, das relações sociais, dos traços culturais e da conjuntura política e econômica que configuram o cotidiano. 4.3.8 “[...] Tem um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no processo de autonomia das mulheres” – A conquista da autonomia Como último item desta que se constitui a terceira Parte do presente Capítulo, assume-se o desafio de debater com as entrevistadas a questão da ‘autonomia das mulheres’ militantes do MMC/SC e seu desenvolvimento enquanto um traço que vai demarcar também a identidade do Movimento. Para tanto, o caminho a ser feito partirá do desenvolvimento da autonomia na esfera pessoal da vida das militantes, para depois adentrar na questão da autonomia do Movimento. Sempre considerando que tais âmbitos de desenvolvimento da autonomia não podem ser considerados desvencilhados um do outro, tal como se procedeu em parágrafos anteriores em relação aos processos de construção de identidade e de protagonismo. Sendo assim, a primeira contribuição que se resgata é da militante Luci. Para ela, As principais dificuldades e desafios para construir essa autonomia são as mais variadas possíveis. Entretanto, digamos que o primeiro desafio é a mulher sair de casa. A agricultura é uma atividade, uma profissão que tem um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no processo de autonomia das mulheres em relação à questão de gênero. O que se dizia, e ainda se diz, é que a mulher sai de casa porque não quer trabalhar, não quer fazer seu papel, para deixar a família, o marido, os filhos. Enfim, aquela coisa ‘ bem pequena’ na nossa compreensão, mas arraigada na cultura de dominação, simplesmente para boicotar a participação das mulheres (Florianópolis, Setembro de 2009). 251 Percebe-se que o elemento cultural é um dos aspectos mais fortes que impõem às mulheres – mas também aos homens – modos de se relacionarem e se portarem na sociedade, os quais muitas vezes lhes cerceiam a liberdade sobre suas vidas e, conseqüentemente, o exercício da autonomia no que tange à leitura da realidade, à tomada de decisões sobre o que desejam fazer, como e quando. Ou seja, a fala de Luci contém em si um dado de denúncia de que o aspecto cultural da vida no campo é pleno de um ‘ranço’ colonizador, que dificulta o alargamento da autonomia por parte das mulheres, uma vez que as coloca sob o jugo dos padrões de dominação masculina. Reconhecendo tal situação, a militante afirma que é necessário fazer algo para desconstruir tal situação e coloca a participação das mulheres no Movimento de Mulheres Camponesas como uma estratégia para que isto aconteça. Na sua fala, com conotação de denúncia e de desabafo, são nítidos os modelos culturais que perpassam a vida das mulheres camponesas, imprimindo-lhes o perfil ideal para ‘ser esposa’, ‘ser mãe’, ‘ser mulher’ e ‘ser trabalhadora no campo’. Para ela, a ruptura de tais modelos torna-se condição sine qua non para que o processo de construção da autonomia possa ser desencadeado. Nas suas palavras, Então, sempre as mulheres sofreram esse tipo de definições preconceituosas e cerceadoras. Quando você sai de casa é porque não quer ou não sabe, ou não está ‘a fim’ de cuidar dos filhos, do marido e da casa. Para enfrentar isso, exige-se um passo bastante difícil para as mulheres, para o qual tem que ter uma energia muito grande, que é o de demonstrar que a casa não é só privada da mulher, mas pode ser do marido, dos filhos, de todos aqueles que moram lá, ou seja, da própria família, portanto, não é responsabilidade única da mulher. Então, esse é o primeiro passo: de conseguir tirar o primeiro pé de casa, o segundo já sai mais fácil (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Destarte, reconhecendo que há perspectiva de que os primeiros passos voltados para que a mulher consiga sair de casa possam se concretizar e também que a participação no MMC/SC possa se configurar como uma das etapas para efetivar avanços na direção da conquista da autonomia, é imprescindível aceitar que o processo é penoso. Esse foi o processo que nós vivemos, sendo o primeiro passo o de levar a mulher para a reunião e começar a criar a consciência, para que depois ela possa chegar em casa e levar esse saber novo e conseguir colocar ele na própria família, o que geralmente lhe leva a passar por muitas dificuldades, já que o seu pronto de vista não é aceito. Portanto, esse processo é exemplo da contradição que a gente vive no processo de transformação de 252 quem está permanentemente lidando com isso (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Nota-se que os passos que constituem o processo de conquista de autonomia, para muitas pessoas, podem ser desprovidos de importância. Entretanto, como disse Luci, desde ‘o primeiro passo de sair de casa’, pela primeira vez, para participar de um espaço político e de sociabilidade, é fundamental para que se possa desencadear o processo de despertar e alargar a autonomia e emancipação das mulheres camponesas. É aqui que começam a relacionar-se a construção da autonomia das militantes com a do próprio movimento, uma vez que uma vai colaborando para o acréscimo da outra, alargando-se num processo recíproco. Conforme Kroth (1999), a participação nos espaços sociais e políticos propiciados pelo MMC/SC levam a significativos acréscimos de autonomia – poderse-ia dizer emancipação – das mulheres militantes. Neste sentido, a autora discute tanto a ‘autonomia’ propiciada pela participação em espaços coletivos e de decisões políticas, como os sindicatos e partidos políticos, mas também o despertar para a autonomia que acontece através dos reflexos econômicos na vida das camponesas, provenientes das conquistas efetivadas pelo Movimento, em relação ao acesso ao ‘salário maternidade’ e à ‘aposentadoria para a mulher agricultora’. Para ela, Muitas mulheres que nunca haviam tido seu próprio dinheiro, passaram por um novo processo de liberdade e escolha na hora de fazer suas compras, de dar um presente ao neto, de ir numa festa sem precisar depender do marido ou do filho para tomar um refrigerante. Outras agricultoras que nem sequer conheciam a cidade, tiveram que enfrentar os bancos, conheceram mais gente. Algumas despertaram para usar um batom, compraram um brinco, foram a um salão arrumar o cabelo, passaram a se vestir melhor. Foram percebendo que o caminho traçado na luta lhes apontava a história como um campo de possibilidades, cuja mudança é possível (1999, p.123. Grifos no original). Ora, é nítido na fala da investigadora, o efetivo alargamento da autonomia na vida das mulheres camponesas, o qual tem como principal aspecto a ‘possibilidade de decidirem por si mesmas em relação ao que querem fazer, como e quando fazer’. Esse alargamento é resultado não apenas da participação no Movimento, mas também do aumento da participação no âmbito familiar e da propriedade rural, bem como em outros espaços políticos e de sociabilidade existentes na comunidade. Além disto, outros elementos significativos, que são geradores do processo de aprofundamento da autonomia e emancipação, são as 253 conquistas concretizadas pelas militantes do movimento, através de suas lutas, desde a década de 1980, quando o Movimento começou a ser articulado. Notadamente, o mesmo processo, que trouxe acréscimos na autonomia das mulheres camponesas militantes do MMC/SC, provocou nelas uma dinâmica em que se passou a discutir e perceber a importância de um espaço político, no qual as participantes gozassem de certa autonomia para tomar as decisões relativas à caminhada coletiva. Em decorrência dessas discussões, desde os primeiros anos de articulação do Movimento, as militantes decidiram imprimir-lhe o mesmo caráter que desejavam para suas vidas. Assim, o MMC/SC – Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA, na época de sua criação – já nasce como um movimento social autônomo, de mulheres trabalhadoras do campo. Segundo Noeli, A principal característica que diz que o MMC é autônomo é que o movimento pensa, elabora e delibera suas próprias linhas estratégicas, o seu trabalho. [...] Não são outras pessoas ou outros movimentos que vêm e dizem para nós o que teremos que trabalhar, se é esta ou aquela questão. Pelo contrário, é o próprio MMC que pensa e faz as suas próprias linhas de atuação, ou seja, que reflete, que discute e que decide suas ações através de um trabalho coletivo que é pensado e concretizado a partir do Movimento e segundo os seus próprios objetivos. Isso é feito com base no que vem acontecendo na sociedade, através da análise da realidade. Claro que temos também algumas linhas de atuação que são trabalhadas juntamente com outros movimentos sociais, numa perspectiva coletiva mais ampla que engloba a participação, ora dos movimentos de mulheres e ora dos movimentos camponeses (Chapecó, Setembro de 2009). Fica explícita nessa fala, a importância que representa para o Movimento poder decidir sobre suas ações, estratégias, lutas e a partir delas propor ações conjuntas com outros coletivos de movimentos sociais, sejam eles ligados ao campo ou às questões de gênero. Mas, para que a autonomia possa ser reconhecida, é necessário que as militantes e dirigentes do MMC/SC estejam atentas à situação das conjunturas social, econômica e política do país, especialmente dos reflexos delas na realidade do campo, pois o processo de autonomia ocorre sempre numa relação de alteridade, em que o outro precisa reconhecer e respeitar aquele que a requer. Para tanto, é fundamental o estabelecimento de parcerias, pois de outra forma, a autonomia não terá seu necessário reflexo de alteridade. Nesse sentido, Noeli também destaca que para o MMC/SC construir “a autonomia do Movimento – e também das mulheres - significa que ele pode e deve 254 buscar parcerias para suas lutas, porém é o próprio Movimento, desde a sua base, que determina as linhas gerais daquilo que decide trabalhar” (Chapecó, Setembro de 2009). Já Justina, salienta os desafios enfrentados no processo de conquista de autonomia, dizendo que [...] Para sustentar essa autonomia, existem diversos requisitos que exigem do Movimento sua superação, que são desde as questões financeiras, as questões de estudo, de elaboração das pautas, até a própria questão da conquista de visibilidade pública e de respeito na sociedade. Portanto, esses seriam os nossos maiores desafios na organização e atuação do MMC (Chapecó, Setembro de 2009). Nas suas palavras fica marcado que esse processo de conquista de autonomia também é um processo de cultivo, de cuidado para com a caminhada política. Portanto, configura-se este cuidado como uma dinâmica permanente, que deve ser pensada e renovada por todas as militantes e dirigentes, a cada ação do MMC/SC, a fim de que lhes seja reconhecida sua importância política e sua visibilidade social. Com efeito, perfiladas tais questões, é possível continuar trabalhando na perspectiva do alargamento da autonomia de vida de cada militante, mas também de um acréscimo de autonomia extensivo às famílias e à classe trabalhadora camponesa. Com isto, poder-se-ia aproximar cada vez mais do patamar de emancipação humana, o qual representa um dos elementos componentes da transformação societária encontrada atualmente no horizonte utópico do Movimento. 255 QUARTA SEÇÃO Os direitos sociais e as políticas públicas para o campo – Conquistas, demandas e Reivindicações atuais - Eis que uma nova página se abre para discussão: o campo das conquistas, demandas e reivindicações indicadas pelo Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, através de suas militantes Justina, Luci e Noeli. Mais uma vez a página está em branco, convidando para que seja completada com palavras que expressem olhares e percepções acerca da trajetória sócio-histórica do Movimento. Neste sentido, a principal tarefa que aqui se coloca, para quem quiser percorrer o caminho, é a de desvendar as principais conquistas do MMC/SC, dando-lhes visibilidade. Entretanto, também caberá como tarefa para esta seção do percurso investigativo, levantar as políticas públicas existentes no campo, tanto aquelas que já se concretizaram na esfera política e social do país, quanto àquelas que ainda se configuram como demandas de efetivação. Destarte, é, sobretudo, acerca destas últimas, que se nota a necessidade de dedicar olhares e discussões, a fim de provocar a atuação por parte dos agentes políticos e sociais deste país, os quais são constituídos por - pelo menos - dois segmentos distintos: um, formado por grupos, organizações e movimentos populares e sociais, dentre as quais uma de suas principais funções é o tensionamento do Estado para que cumpra seu papel na garantia dos direitos conquistados. E o outro que é formado pelos próprios agentes do Estado, aqueles que o representam em suas funções executivas, exercendo ações de planejamento, gerenciamento e execução das políticas públicas em questão. Deste modo, ter-se-á a possibilidade de avançar na construção de um mapa de perspectivas de atuação do Serviço Social – profissão dessa investigadora – que pode trabalhar tanto com um, quanto com outro segmento, tendo como orientação da ação as demandas camponesas, levantadas através das lutas e enfrentamentos do Movimento de Mulheres 256 Camponesas e relatadas pelas militantes e dirigentes que vivem e atuam em Terras Catarinas. Feitas essas considerações, inicia-se a nova tarefa. 4.4.1 “Continuam as históricas bandeiras de luta [...]” Antes tudo, é importante iniciar afirmando uma das características do Movimento de Mulheres Camponesas, que não foi antes dita neste trabalho, mas que ficou subentendida em diversos momentos: seu caráter reivindicatório! Este é um Movimento Social do Campo, de cunho feminista e de classe, que já nasce no contexto da efervescência das lutas pela conquista de diversos tipos de direitos, dentre os quais também se compreendia o direito de viver sob um regime de democracia popular e de gozar de direitos sociais e políticos, mas também culturais e econômicos que, enfim, convergissem para uma nova realidade societária de participação e exercício de cidadania, de justiça social e de promoção de igualdades econômicas, políticas e sociais. Ora, caso tudo isso pareça ser um sonho, ou uma perspectiva evasiva de luta, há de se dizer que ‘não’. Realmente, esta era a perspectiva que animava as mobilizações sociais e populares em fins da década de 1970 e início de 1980 no Brasil e em muitos outros países latino-americanos. Como resultado deste caldo de mobilizações, em torno da democracia e da luta pelo modelo societário socialista, surgiram muitos movimentos sociais urbanos e campesinos que se articulavam em torno de ‘pautas reivindicatórias’, ora direcionadas para objetivos que surgiam de suas realidades – campo ou cidade – ora para objetivos comuns, tal como a luta pela reabertura política e a ‘Campanha Diretas Já’. Aqui está o Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina – MMA/SC! E na efervescência das reivindicações, eis que ele também reivindica! Não cabe, neste momento, relembrar suas primeiras pautas de luta, mesmo porque isto já foi retratado em várias páginas anteriores. É importante destacar que a trajetória histórica desse movimento social foi marcada por mobilizações, manifestações públicas, passeatas e protestos, direcionados para a 257 conquista de espaços de participação, de reconhecimento da cidadania e de garantia de direitos e de políticas públicas, principalmente aquelas de caráter social. Neste sentido, como já figurou na ‘terceira seção desse capítulo’, a década de 1990 foi um período de grande destaque em relação à luta, mas também no que tange às conquistas sociais. Nele conquistou-se, além da visibilidade pública do Movimento, o reconhecimento da profissão e da cidadania das mulheres agricultoras – referindo-se ao termo utilizado pelo Movimento naquela época - e dois dos principais direitos previdenciários: o direito à aposentadoria rural e ao salário maternidade. Conforme a militante Luci, que naquele período exerceu um mandato como Deputada Estadual e dois como Deputada Federal, pelo Estado de Santa Catarina, Uma das maiores conquistas foi a da aposentadoria rural para as mulheres aos 55 anos e para os homens aos 60 anos, com a garantia de um salário mínimo. Então, vejo que ela representa uma das formas de distribuição de renda [...]. Já a conquista do direito ao salário maternidade, significa [...] o simples reconhecimento da maternidade e de que essa função de cuidados com os filhos não é somente de responsabilidade da mulher, mas é da família e de toda a sociedade, pois se os seres humanos não nascerem mais, a sociedade logo se acaba. Então é o reconhecimento da função social da maternidade (Florianópolis, Setembro de 2009). Além destas conquistas no campo previdenciário, a militante Justina também relata outras conquistas, bastante significativas na vida cotidiana das mulheres camponesas, sendo uma delas voltada para o reconhecimento do direito à documentação e outra voltada para o acesso à educação e o avanço nos níveis de escolaridade. Eu vejo que o que marcou a trajetória do MMC, em relação às reivindicações e conquistas de direitos, foi o campo previdenciário. Por outro lado, essa mesma trajetória histórica também mostrou uma busca muito grande das mulheres na questão do acesso à escolarização, sendo possível perceber um avanço das camponesas no sentido do acréscimo do nível de escolaridade, o que se configura também como uma conquista. Outro avanço que marcou a trajetória, mas que é pouco visível, foi a questão da documentação da trabalhadora e do trabalhador rural. Nesse caso, é importante registrar que houve uma grande campanha nacional para a ‘documentação’ dos camponeses e, principalmente, das camponesas e hoje essa campanha continua e se transformou numa política de governo, através da realização de mutirões. Então esta também é uma questão que deve ser considerada como uma das conquistas realizadas a partir da luta das mulheres camponesas. Então essas são algumas das marcas deixadas na história recente da sociedade a partir da mobilização das mulheres (Chapecó, Setembro de 2009). 258 Embora longa, a fala da militante contém os elementos que imprimem o significado de tais conquistas para a vida das mulheres camponesas e de suas famílias. Veja com atenção que o sentido primeiro das mesmas é o reconhecimento da ‘existência social’ para aquelas e aqueles que eram invisíveis para a sociedade. Concretizadas estas conquistas na vida dos homens e, principalmente, das mulheres camponesas, infelizmente hoje, o Movimento de Mulheres Camponesas percebe que precisa empenhar-se na luta para que eles não sejam retirados do patamar de direitos sociais universais. É o que relata a militante Justina, ao situar a ofensiva das políticas neoliberais. [...] Também é preciso dizer que se a gente for ver a conquista da aposentadoria continua muito presente, porque não foi nem uma e nem duas tentativas, mas já foram várias as tentativas que ocorreram com o avanço das políticas neoliberais, de procurar impor uma contribuição maior, de tentar aumentar a idade para acesso a esse direito, entre outras afrontas a esse direito que já foi conquistado, o que faz com que haja necessidade de continuarmos esse debate envolvendo o direito a aposentadoria e os demais direitos sociais (Chapecó, Setembro de 2009). Não obstante este desolador e preocupante cenário de retração de novas conquistas e de ameaça dos direitos antes garantidos - tal como analisa Justina -, o Movimento de Mulheres Camponesas em sua organização nacional e no Estado de Santa Catarina continua articulando suas lutas e levantando suas pautas reivindicatórias, em torno das quais organiza suas mobilizações e manifestações. Isso é o que demonstra Justina, ao afirmar que De forma geral, o direito à terra, que para nós é uma questão mais macro, continua na nossa pauta de lutas, demarcando reivindicações como o fim do latifúndio e a demarcação do limite de propriedade da terra. A outra grande questão é a luta pela implementação do projeto de agricultura camponesa e dentro deste projeto estão colocadas as mais diferentes políticas públicas que são necessárias para a vida sustentável no campo, como a saúde pública, a educação, a seguridade social que inclui além da saúde, a previdência e a assistência social. Além disso, continuam as lutas pela efetivação de uma política que garanta subsídios para a produção agrícola, principalmente para aquela de caráter agroecológico (Chapecó, Setembro de 2009). Nota-se aqui que o Movimento de Mulheres Camponesas trabalha atualmente com três grandes áreas de lutas sociais, das quais decorrem outras mais. Para o Movimento, as três linhas de luta direcionam-se para ‘a questão da justa distribuição de terra’ para quem nela deseja viver e trabalhar; ‘a criação, implantação e execução de políticas públicas, econômicas sociais e culturais’ que possibilitem o desenvolvimento da agricultura camponesa, sustentável e 259 agroecológica; e àquela pela ‘garantia de manutenção e efetivação de direitos já conquistados anteriormente’. A partir dessas linhas de luta reeditam-se antigas frentes de luta, tais como pela saúde, previdência e assistência social. Além do que, surgem novas reivindicações, fruto de uma nova visão sobre a própria atividade e modo de vida camponês, tais como a luta pelo acesso à educação no campo, com respeito às especificidades daquela realidade, inclusive no campo cultural e de trabalho; ou a reivindicação por espaços de cultura, esporte e lazer; e, ainda, a reivindicação por formação técnica e/ou universitária voltadas para o trabalho, que contemplem as expectativas dos jovens, possibilitando-os continuar no meio rural segundo as perspectivas da agricultura camponesa e agroecológica. Nota-se, portanto, que o perfil reivindicatório do Movimento está sempre presente, alimentando sua caminhada política, na medida em que desenvolve sua capacidade crítica de leitura da realidade e se assume, inclusive, como um movimento social propositivo. Por outro lado, este perfil o conduz a denunciar as políticas de desmonte dos direitos, e a assumir uma postura cada vez mais atenta para a possibilidade de eliminação de direitos que representam conquistas históricas. Destarte, uma das militantes chama a atenção em sua entrevista, para a forma pela qual as políticas públicas em execução no campo estão funcionando. Vejo que é importante salientar, na questão das lutas pelos direitos, que houve um enorme endividamento da agricultura camponesa nas últimas décadas, porque os preços pagos pelos produtos nunca corresponderam e nem correspondem hoje aos custos dos investimentos necessários para produzir. Então as famílias camponesas possuem, sim, algumas políticas públicas voltadas para elas, mas que de fato não ajudam na sua manutenção e apenas colaboram para que este tipo de agricultura seja eliminada. Portanto, são políticas que ajudam a cada dia para que mais famílias saiam do campo (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009). Nas suas palavras, é possível notar que o modelo que orienta tais políticas é o capitalista, voltado para as intenções dos latifundiários e do grande capital e para a eliminação da agricultura camponesa através de políticas neoliberais, o que talvez ocorra por se considerar que este tipo de agricultura representa a luta contra-hegemônica ao modelo capitalista atual. Esta é uma denúncia sutil, mas contundente. Ela remete ao fato de que é urgente agir em relação à luta contra o modelo atual, denunciando os governos em 260 relação às políticas de aniquilamento e eliminação da agricultura camponesa e se colocando junto com os movimentos sociais camponeses e com a população trabalhadora do campo e da cidade para pensar estratégias de luta que possam, aos poucos, minar o sistema e desmobilizá-lo na perspectiva de uma transformação societária para outro modelo de sociedade, onde haja o reconhecimento do trabalho, mas também das demandas, necessidades e direitos daqueles que vivem no campo. Neste sentido, Justina oferece indicativos sobre o que é necessário fazer. Então, a gente tem que considerar que há uma oferta bastante grande de dinheiro, mas que aqueles que recebem da produção familiar não estão conseguindo dar o retorno para o pagamento desses financiamentos. Logo, nesse caso, a luta segue na direção de que sejam oferecidos créditos através dos quais de fato os camponeses e camponesas consigam viabilizar a produção e se manter na agricultura (Chapecó, Setembro de 2009). Partindo dos indicativos de que as militantes ensejam discutir suas atuais reivindicações, pretende-se encerrar este breve debate reconhecendo que as contribuições do MMC/SC e de outros Movimentos Sociais Camponeses para o alargamento do campo de direitos é, deveras, notável. As mulheres trabalhadoras camponesas souberam, ao longo dos anos, levantar as principais reivindicações da classe trabalhadora que vive no campo, elaborar propostas de políticas que pudessem responder às demandas camponesas e se colocar como indivíduos sociais – na qualidade de sujeitos individuais e também coletivos – que exigem participação e reconhecimento na esfera social, política, econômica e cultural da sociedade brasileira. Portanto, não é possível concordar com um sistema voltado para os interesses de uma minoria – entenda-se: latifundiários e burguesia -, que tenta de várias formas macular a imagem social e política de um movimento social de indiscutível importância no campo da conquista de direitos das mulheres, dos trabalhadores e de todas e todos aqueles que vivem na área rural: ‘o modo de vida camponês’. As análises até aqui feitas, a partir das falas das mulheres camponesas, indicam que elas percebem que a contra-tarefa à falta de reconhecimento das conquistas e à deturpação das lutas do MMC/SC deve ser assumida por todos os trabalhadores e trabalhadoras que se colocam críticos ao sistema capitalista e se propõem discutir um novo modelo de sociedade, com base na democracia social, na 261 justiça econômica e social, na participação política e no pleno exercício da cidadania, a fim de que se possam concretizar as aspirações da emancipação humana. 4.4.2 “[...] Nós sabemos que precisamos avançar constantemente” Considerando que as falas das entrevistadas estão mescladas pelos apontamentos das conquistas e as atuais reivindicações, procurar-se-á neste item, que se pretende seja breve, apontar como se encontra o campo das lutas atuais do Movimento de Mulheres Camponesas, tanto em nível nacional, quanto em nível estadual, uma vez que as contribuições das militantes entrevistadas permitem esse avanço territorial. Para isto, necessariamente se falará dos desafios postos para a caminhada do movimento na atualidade. Quem primeiro colabora com a discussão é a militante Luci, ao salientar que Nós ainda continuamos na reivindicação da saúde pública com garantia de acesso e de qualidade no atendimento. Veja que as Unidades do SUS também chegam às mulheres camponesas e, por isso tem que ter esse atendimento respeitando essa particularidade de quem mora e trabalha no campo, que é um pouco diferente do atendimento das mulheres urbanas, pela própria realidade que elas vivem (Florianópolis, Setembro de 2009). A partir dessa afirmação de Luci, pode-se perceber o nível de compreensão e de leitura da realidade social que as militantes, já num patamar de dirigentes, têm acerca da realidade social e dos sistemas de atendimento das políticas sociais. Neste caso, é possível dizer que tal capacidade de percepção e de leitura da realidade, muitas vezes, não é alcançada nem por trabalhadores sociais que freqüentaram os bancos universitários por anos e que, conseqüentemente, deveriam estar habilitados para essas leituras. Realmente, a militante traz para o debate uma questão que se configura como ‘desafio’ no campo da garantia dos direitos sociais dos cidadãos e da execução das políticas públicas, que é o direito universal de acesso ao serviço, mas também a garantia de um atendimento que respeite suas especificidades. 262 Neste sentido, alguns legisladores e planejadores das políticas sociais já previram nos textos das Políticas Nacionais que orientam e organizam os sistemas únicos de atendimento aos direitos sociais, que o executor dessas políticas deve considerar as especificidades dos usuários, principalmente segundo sua territorialidade, a fim de que a própria garantia do direito seja efetivada. Mas, fundamentalmente, que as características da realidade social, econômica e cultural dos indivíduos sejam consideradas para que o atendimento seja eficaz e eficiente segundo suas necessidades e demandas. Não obstante tal questão já tenha sido prevista pelos legisladores e contemplada nos textos legais das políticas, na prática não se concretizam. Nota-se que Unidades Locais de Saúde e de Centros de Referência em Assistência Social são praticamente inexistentes na zona rural dos municípios. O que se dirá, então, de Postos de Atendimento Previdenciário? Entretanto, a maioria dos governantes e, conseqüentemente, críticos desta análise, podem argumentar que é muito oneroso para o Estado manter unidades de atendimento em locais com pouca densidade populacional. Mesmo que se assuma o discurso da eficiência de recursos, no caso da execução de políticas sociais – e somente neste caso -, não se isenta os executores de um atendimento qualificado e voltado para o reconhecimento e respeito às especificidades dos indivíduos sociais camponeses; ou então, num outro exemplo, das mulheres trabalhadoras urbanas e rurais. Portanto, o que a militante levanta como uma luta que ainda precisa ser travada pelo movimento e que, por isso, o desafia, nada mais é do que uma denúncia sutil de que o Estado, os governos, mas também os trabalhadores do campo social estão negligenciando algo que já está determinado em Lei. Além do indicativo que fez Luci acerca de um dos desafios atuais de luta do Movimento, também outros são levantados por outra militante. E desta vez quem colabora é Justina, ao dizer que O que demarca também esse terreno das conquistas de direitos, é que permanece com o Movimento um patrimônio que se concretiza na própria emancipação de um significativo contingente de mulheres, através da participação social e política, embora eu não possa fazer essa mesma afirmação em relação à emancipação no campo econômico (Chapecó, Setembro de 2009). 263 A partir de sua fala, pretende-se chamar a atenção para as políticas públicas de âmbito econômico, que estão negligenciando o atendimento das mulheres camponesas, ou, quando parecem atendê-las, o fazem de modo a manter as mesmas relações de subordinação econômica e de manutenção dos padrões desiguais de gênero, já referenciados em parágrafos anteriores. Para exemplificar, cita-se o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, que é um programa de financiamento público, previsto na política de desenvolvimento da agricultura familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Este Programa tem uma linha de atendimento voltada para a ‘mulher camponesa’; entretanto, funciona em patamar de desigualdade para com os homens, uma vez que o valor de crédito disponibilizado às mulheres é inferior ao valor disponibilizado aos homens. Além disso, por ser um programa voltado para a família, quando um membro acessa uma linha de crédito, os demais membros ficam automaticamente excluídos da possibilidade de acessá-lo naquele mesmo período. Como conseqüência, o que se observa é que, apesar do governo prever a linha de crédito para as mulheres, elas acabam não a acessando, pois acaba não sendo conveniente para a família, de forma geral. É neste sentido que o MMC/SC indica a presença de um grande desafio no que se refere à emancipação econômica da mulher camponesa. É óbvio que aqui somente tomou-se como exemplo uma das questões que estão relacionadas à emancipação econômica das mulheres. Entretanto, a partir dela objetivou-se demonstrar como as militantes do Movimento são capazes de captar na realidade de seu dia-a-dia, os desafios para o exercício de sua cidadania e para o desenvolvimento de sua autonomia e emancipação. Destarte, Justina assevera que As conquistas, bem como os desafios continuam com o próprio Movimento, pois na verdade é como o próprio termo diz, ele é ‘movimento’, já que ele tem sua continuidade através da mesma dinâmica pela qual entram e saem permanentemente pessoas que colaboram para sua construção e para a construção de uma proposta alternativa de sociedade. Portanto, nós sabemos que precisamos avançar constantemente na direção de um projeto de sociedade que garanta essa questão da dignidade humana e do respeito ao planeta. Esse é o grande desafio que também é representado pela luta de classe e de gênero, junto com a grande questão estrutural da sociedade que é a superação do modelo capitalista. 264 Observa-se que aqui a militante enseja destacar o caráter processual e dinâmico do movimento, o qual se faz dentro de um campo de forças sociais. Nele entram e saem militantes, por isso ele está em permanente construção e isso também se configura como um desafio: a alimentação das lutas e a manutenção do movimento. É um desafio que tem de ser superado cotidianamente, pois dele resulta a possibilidade de enfrentamento dos demais desafios, dentre os quais figuram no discurso de Justina, o desafio estrutural da construção de um novo projeto de sociedade e o desafio da luta de gênero e de classe. E para finalizar, mais uma vez nas palavras da camponesa Justina, está posto o significado da luta do MMC/SC. Mesmo considerando tudo isso, [...] também afirmamos que o que nos motiva a continuar diante desse contexto, são as conquistas, aquilo que já se construiu e acumulou em todos esses anos de caminhada, o estudo, as reflexões, a formação que conseguimos concretizar mesmo hoje no Movimento e que segue nos alimentando, juntamente com uma grande mística que é cultivada no sentido de acreditar que é possível a continuidade da luta (Chapecó, Setembro de 2009). Desafios, conquistas, processo, mística, crença na possibilidade de transformação, enfim, são todos esses elementos que alimentam a continuidade da luta. São eles que compõem a trajetória de lutas do Movimento de Mulheres Camponesas. São eles que conformam a sua história. QUINTA SEÇÃO Serviço Social e espaço rural - Um olhar para essa relação, segundo as falas de quem vive no campo - Abre-se mais uma página deste estudo. A partir dela se desenvolve a análise do tema que marca a última das grandes discussões aqui assumidas: a relação entre ‘o Serviço Social e o espaço rural’. 265 Admite-se que esta não é uma tarefa fácil. E, talvez, seja bom neste ponto do percurso revelar que todas as discussões anteriores tiveram o intuito de preparar o terreno para esta discussão. Realmente, quem olha para ‘o rural’ de dentro da profissão e tendo como origem o próprio modo de vida rural – como é o caso da investigadora -, nota que emergem constantemente indagações de como a profissão faz o encontro com o ‘campo’, como ela se prepara para isto, como visualiza esta área de estudos e práticas profissionais e o que faz em relação a ela? São inúmeras as perguntas, por isto é grande o desafio e, por conseguinte, a responsabilidade da discussão. Reconhecendo tais desafios e responsabilidades e, considerando que esta é apenas uma parte da totalidade do debate desenvolvido, a qual compõe - tão significativamente como as demais seções – a investigação realizada, não se pretenderá esgotá-la. Outrossim, imaginase que é possível adentrar um pouco mais nesta área de produção de conhecimento em Serviço Social, o qual poderá contribuir com futuros estudos. E isso se fará, outra vez, a partir das falas das mulheres camponesas entrevistadas. Entretanto, antes de começar as análises dessa questão, pensa-se que é importante situar sobre o ‘desenrolar’ do diálogo estabelecido com Justina, Luci e Noeli. Explica-se essa importância pelo fato de que em momentos diferentes da fala das militantes, poder-se-á perceber que são expressos conceitos, os quais logo após são retomados sob outra perspectiva. É bom esclarecer que isso acontece devido aos elementos que a investigadora vai apresentando durante a conversa com as entrevistadas. É justamente por isso que se pode dizer que, embora muitas vezes o discurso delas pareça não estar concatenado com as falas precedentes, aos poucos, elas demonstram que vão tomando parte do tema discutido, aproximandose processualmente da profissão que ora está na ‘vez do jogo’. Antes de partir para a análise, nota-se que é importante alertar para o fato de que muitas vezes se encontrarão críticas contundentes ao Serviço Social nas considerações das entrevistadas. Elas demonstram, por um lado, o nível de criticidade das mesmas e, por outro, a realidade da atuação profissional junto ao espaço rural e aos indivíduos camponeses. Já estes indicativos oferecem os elementos para afirmar a importância da discussão, bem como a necessidade de dedicar atenção investigativa exclusiva para questão. Assim, assume-se a tarefa de 266 trabalhar com estas críticas contundentes, procurando encontrar nelas as vias para o estabelecimento, ou pelo menos, re-significação das relações entre ‘o Serviço Social e espaço rural’. 4.5.1 “[...] Aquilo que a gente vem sentindo, acredito, não corresponde ao papel do Assistente Social” A primeira questão levada para o debate versava sobre o papel correspondente ao profissional Assistente Social, na perspectiva das entrevistadas. Duas delas foram objetivas, ao dizer que não tinham clareza sobre o que o assistente social faz, por isso, alertavam que fariam apenas uma aproximação, segundo aquilo que acreditam ser o trabalho desta profissão. É o que manifesta Noeli ao dizer: “essa é uma pergunta bem desafiadora, porque aquilo que a gente vem sentindo, de fato, acredito que não corresponde ao verdadeiro papel do Assistente Social” (Chapecó, Setembro de 2009). Já a terceira militante, que exerceu três mandatos como legisladora, representando as mulheres camponesas e todos os cidadãos catarinenses, fala do lugar de quem conhece a profissão. Entretanto, por um momento apresenta elementos que relaciona com o perfil de um profissional que trabalha na área das ciências humanas e sociais, mas não necessariamente se caracteriza como Assistente Social. Mesmo considerando que essa entrevistada não esteja se equivocando com o profissional da sociologia, cabe destacar que a fala dela também não estabelece uma aproximação efetiva com a prática do Serviço Social, embora se reconheça que os elementos que apresenta compõem o cotidiano desse profissional. Nesse sentido, considerando a aproximação feita pelas três entrevistadas a esta primeira indagação, notou-se um forte indicativo de que o Assistente Social, antes de tudo, necessita conhecer a realidade, o modo de vida e os indivíduos rurais, para que depois possa atuar profissionalmente. É o que afirma Luci, Vejo que o papel primeiro desse profissional é de compreender a cultura, a vida dos indivíduos. Quem não compreende a cultura e a realidade do povo, 267 não vejo como conseguirá desempenhar, de forma efetiva, a função de Assistente Social. Então, em relação ao campo, seu primeiro papel é o de reconhecer a realidade camponesa e mesmo de quem veio do campo para as cidades, mas que ainda é camponês e que, geralmente, tem dificuldade em se acertar no contexto urbano e, muitas vezes, passa a sua vida inteira aí e não consegue se encontrar naquele espaço (Florianópolis, Setembro de 2009). Além de Luci, Noeli também afirma a necessidade de conhecer a realidade do campo e mesmo de qualquer outro contexto em que o Assistente Social irá atuar. Entretanto, ao conhecer o discurso dessa última, note que sua abordagem se diferencia – sutilmente - da abordagem de Luci, pois as duas levantam situações diferentes que justificam a necessidade de que o Assistente Social conheça a realidade do campo, dos sujeitos rurais, bem como seu modo de vida e trabalho. Conforme Noeli, [...] Penso que uma pessoa que trabalha na área social primeiramente precisa conhecer tanto o campo, quanto a cidade, já que necessita conhecer a realidade em que vai trabalhar. [...] A gente escuta reclamações de pessoas que são atendidas por esses profissionais, os quais geralmente são pessoas ‘grossas’, estúpidas, que não têm um mínimo conhecimento sobre a realidade das pessoas que estão atendendo, porque não sabem o que é trabalhar no campo, o que é a dupla ou tripla jornada de trabalho das mulheres camponesas. [...] Então, o que fica, é uma imagem de profissionais que geralmente não conhecem ‘a fundo’ a realidade do campo para poder atuar junto a ele (Chapecó, Setembro de 2009). Ora, o primeiro indicativo para discussão reside no fato de que as duas militantes chamam a atenção para a mesma necessidade: a atenção e o olhar para o campo. Entretanto, cada qual aponta um motivo pelo qual percebe essa necessidade. Enquanto Luci indica a questão da cultura como valor a ser percebido e considerado para um atendimento segundo a realidade, Noeli ressalta a premência em conhecer o âmbito do trabalho, pois esse guarda grandes diferenças com aquele exercido no contexto urbano. Parece importante levar em conta que o âmbito cultural engloba todo o modo de vida no campo, incluindo a questão do trabalho: o que é feito, como é organizado, seu processo de trabalho, as exigências para seu desenvolvimento, seu produto, além de sua legitimação na esfera da divisão social do trabalho e seu registro nos órgãos trabalhistas. Reciprocamente, é também através do trabalho que são desenvolvidas as relações sociais, econômicas e políticas dos indivíduos rurais, as quais vão aos poucos conformando sua cultura camponesa. 268 Entretanto, na fala das entrevistadas, talvez mais importante que estes dois âmbitos da vida no campo – cultural e laboral –, os quais se encontram profundamente entrelaçados, o que as camponesas militantes do MMC/SC chamam a atenção é para a questão de que é condição sine qua non conhecer o rural, em seu contexto, modo de vida e indivíduos. Tal necessidade é dada tanto para atender os indivíduos sociais que vivem no campo, quanto àqueles que migraram para as cidades - onde passam a receber atendimento através das políticas sociais – mas que ainda conservam os elementos do modo de vida e da cultura camponesa. Portanto, Luci e Noeli apresentam elementos mais que convincentes sobre a imprescindibilidade de que o Serviço Social volte seu olhar para o campo, desde os espaços de formação acadêmica de seus futuros profissionais, passando pelo âmbito da investigação e chegando naquele referente aos processos de trabalho propriamente ditos com a população. Ao responder a segunda questão as entrevistadas explicitam o que poderia se colocar como uma exigência de que se faça uma reflexão ético-política a respeito da profissão de Assistente Social e do desempenho do Serviço Social. É apontada por Noeli, quando fala que o atendimento à população rural deixa a desejar no quesito de humanização, o que, segundo ela, seria efeito do desconhecimento do cotidiano de vida dos indivíduos camponeses. Não obstante possa ser considerado como indicativo acerca da metodologia e da didática de atendimento utilizada por muitos profissionais do Serviço Social, esta afirmação não possibilita elementos concretos para uma denúncia de que o Código de Ética Profissional esteja sendo descumprido, mas adverte sobre uma situação preocupante em relação ao tipo de atendimento que está sendo efetivado por, pelo menos, parte dos profissionais da área52. Neste sentido, há que se ponderar que a forma pela qual a categoria profissional relaciona-se com a população atendida já foi e continua sendo objeto de discussão do Serviço Social. Dito isto, relembra-se da reflexão realizada por diversos autores, tais como Vicente de Paula Faleiros (2001), em seu livro “Saber 52 Embora se considere preocupante tal situação, ela deve ser considerada apenas como um indicativo acerca da prática profissional que está sendo efetivada por alguns profissionais do Serviço Social, já que a mesma surge através de comentários ouvidos de outras camponesas e, portanto, não pode ser tomada como fonte primária de informação. 269 profissional, poder institucional”, quando chama a atenção para o fato de que – muitas vezes – os Assistentes Sociais incorporam em suas práticas um ‘tipo de poder’ proveniente da função que assumem na instituição, do espaço um tanto quanto institucionalizado onde trabalham, bem como de seu saber profissional maximizado em relação ao saber da população atendida. Com efeito, minimiza-se a participação e a autonomia dos sujeitos usuários dos serviços, já que se desconsidera seu saber e seu modo de vida53. Destarte, não há dúvidas de que a revelação de Noeli reveste-se de significativa importância, pois leva a refletir sobre como a profissão, em seu cotidiano de trabalho, está agindo com relação ao respeito e à humanidade desenvolvidos no trato com a população. Logo, não cabe aqui fazer uma discussão ética sobre o exercício da profissão em sua totalidade e profundidade, mesmo porque este não é o foco do estudo e nem do presente capítulo. Entretanto, não é possível abster-se de colocar à baila das reflexões, os procedimentos e a didática de atendimento adotados pela profissão, os quais encontram-se imbricados em sua dimensão técnica-operativa. Por conseguinte, apontam-se dois Artigos do Código de Ética Profissional (RESOLUÇÃO CFESS N.º 273/93), que devem ser observados nesta discussão sobre o exercício profissional, uma vez que oferecem indicativos sobre a relação a ser estabelecida com a população no processo de seu atendimento. Note-se que no Título II que versa sobre os direitos e as responsabilidades gerais do assistente social , o Art. 3º, Alínea ‘C’, aponta que “são deveres do assistente social, [...] abster-se, no exercício da profissão, de práticas que caracterizem a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes”. Nesse caso, poder-se-ia apontar os indicativos de que muitas vezes se procede de forma a censurar os indivíduos sociais atendidos pelo Serviço Social, em relação a sua cultura, seu modo de vida e organização, seja em contextos urbanos – principalmente nas periferias -, seja em contextos rurais. Freqüentemente isso 53 Para maior aprofundamento da questão, indica-se recorrer diretamente à obra de Faleiros (2001). Referência completa ao final da dissertação. 270 ocorre sem que o profissional note a perspectiva coercitiva de sua ação, uma vez que o que o orienta é apenas seu ponto de vista pessoal, portanto etnocêntrico. Além disso, no Art. 13, Alínea ‘B’, consta que são deveres do assistente social, nas relações com entidades da categoria e demais organizações da sociedade civil, [...] Denunciar, no exercício da Profissão, às entidades de organização da categoria, às autoridades e aos órgãos competentes, casos de violação da Lei e dos Direitos Humanos, quanto a: corrupção, maus tratos, torturas, ausência de condições mínimas de sobrevivência, discriminação, preconceito, abuso de autoridade individual e institucional, qualquer forma de agressão ou falta de respeito à integridade física, social e mental do cidadão (RESOLUÇÃO CFESS N.º 273/93). Em relação a esse artigo, deseja-se chamar a atenção para o fato de que tanto o abuso de autoridade individual ou institucional, quanto a falta de respeito ao cidadão, configuram-se como atitudes a que o Assistente Social deve, principalmente, abster-se no exercício profissional, mas também denunciar situações em que perceba que isto esteja ocorrendo. Esta não é uma questão tranqüila de ser discutida e, muito menos, de ser resolvida, já que requer reflexão pessoal - de cada profissional -, mas também coletiva -. Enquanto categoria, cabe aos profissionais do Serviço Social definir as formas pelas quais se realiza o reconhecimento do indivíduo social e da realidade em que se atua e, com base nisto, estabelecer qual deve ser o relacionamento com a população atendida. Observadas estas primeiras contribuições de Noeli e Luci, nota-se que a terceira militante entrevistada, Justina, aponta para novos elementos de discussão. Segundo ela, Na verdade, eu estava justamente pensando no significado da palavra ‘assistente’, que é de ‘assistir o social’. Então, eu penso que o papel seria justamente de alguém que acompanha a vida social da comunidade, do município e que ajuda a propor alternativas, contribuindo para um contexto em que todos sejam atores para a construção de espaços coletivos e de participação. Agora o que eu vejo, na verdade, é que as Assistentes Sociais, até então, com raras exceções, elas são engolidas pelas estruturas de governo e acabam sendo instrumentos eleitoreiros nos municípios (Chapecó, Setembro de 2009). Ora, observa-se que Justina faz uma aproximação coerente com a função profissional, embora o faça através do significado que ela atribui a alguém cuja tarefa é de ‘assistir o social’, tal como afirma. Aparecem na expressão da militante 271 do MMC/SC o acompanhamento da população, as ações propositivas de alternativas, a construção de espaços coletivos de participação e o trabalho voltado para a promoção da autonomia e emancipação dos indivíduos sociais. Não obstante esta constatação, nota-se a instalação de nova polêmica, quando a militante relaciona - diretamente - os profissionais do Serviço Social com as estruturas do Estado, por ela consideradas como estruturas pesadas, burocratizadas e de dominação. Assim sendo, a militante adentra numa reflexão de caráter político profissional, uma vez que aponta para um possível atrelamento do Serviço Social em relação ao Estado e, por conseguinte, às estruturas de burocratização do atendimento. Como conseqüência, ocorreria o engessamento das ações profissionais contrariando o desenvolvimento de um trabalho democrático, participativo, de respeito à liberdade dos indivíduos, e voltado para a promoção da autonomia e da emancipação humana. Considera-se que esta é uma realidade que, de certa forma, continua perpassando a cultura institucional de significação da profissão, por – no mínimo – duas maneiras. A primeira delas reside no fato de que em algumas situações os governantes procuram atrelar as ações do Serviço Social à plataforma de ações do governo, considerando preponderantemente os interesses partidários. Quando isto ocorre, nota-se uma nítida tentativa de diminuir ou até extinguir programas e/ou projetos sociais de governos anteriores, geralmente geridos e executados pelos Assistentes Sociais, os quais supostamente possuem, enquanto base legal, as diretrizes e orientações legais para as políticas sociais, tais como a Política Nacional de Assistência Social - PNAS, aprovada na Resolução nº145/2004 do Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS. Mesmo considerando que tal realidade ainda ocorra em diversos municípios, Estados e até mesmo na esfera federal, é interessante registrar que nos últimos anos várias políticas sociais, que antes não tinham um estatuto legal para sua efetivação, passaram a tê-lo. Este fato dificultou bastante o atrelamento de ‘programas sociais’, bem como do trabalho dos ‘Assistentes Sociais’ às plataformas partidárias, embora não tenham sido extintas as tentativas dos governos de atrelar as políticas sociais às plataformas de campanha partidária. 272 Neste sentido, ainda é importante registrar que os profissionais da gestão ou execução de políticas sociais costumam se ver envolvidos nas mudanças que ocorrem com as trocas quadrienais de equipes de governos, pois implicam em mudanças também na gestão e execução das políticas implementadas. Desta forma, tal situação requer dos profissionais um forte empenho – que deve ser aportado em sua competência profissional – para garantir que tais políticas tenham embasamento legal e caráter de ‘políticas de Estado’ – ou, quando muito, ‘políticas de governo’ - e não se configurem enquanto políticas governistas e/ou partidárias. Por outro lado, a segunda maneira pela qual a idéia de ‘atrelamento aos interesses político-partidários’ pode perpassar a cultura institucional de identificação do Serviço Social, reside no fato de que são bastante freqüentes as críticas efetivadas à profissão pelos grupos de oposição política aos governos. Estes grupos geralmente afirmam que os ‘Assistentes Sociais’ têm seu trabalho constantemente atrelado aos governos, ao Estado e à burguesia e que, por isto, cumprem papel eleitoreiro em relação ao governo vigente. Logo, também a existência de críticas de oposição em relação à gestão dos governos, respinga no Serviço Social, colaborando para a reprodução da imagem ‘socialmente determinada’ da profissão. Ou seja, de que os profissionais do Serviço Social executam políticas sociais de caráter eleitoreiro e de que facilmente são cooptados pelos governantes, o que faz com que seu fazer profissional se vincule aos interesses de quem está no poder no momento. Assim, pode-se afirmar que tanto a primeira, quanto a segunda situação parecem corroborar para a reprodução de uma antiga tensão já discutida por Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008)54, identificada como caráter "socialmente determinado" em relação ao exercício profissional. Destarte, o atrelamento do campo profissional do Serviço Social às esferas e instituições de governo, parece ser algo que guarda estreita relação com a organização e a forma de gestão política da sociedade. 54 O conceito sobre ‘o socialmente determinado para a profissão’ é desenvolvido pela professora e investigadora Marilda Iamamoto em vários de seus trabalhos, sejam livros ou até mesmo artigos científicos. Para melhor aprofundamento acerca desta, indica-se recorrer principalmente à obra da autora, intitulada “Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional”, atualmente na sua 7ª edição (2007). Referência completa no final da dissertação. 273 Entretanto, percebendo este ‘caráter socialmente determinado’, a categoria profissional iniciou, desde os anos 1970, um processo de ruptura com tais práticas, o qual tem continuidade até hoje - o momento inicial desta ruptura foi conhecido como ‘Movimento de Reconceitução Teórica’ e já nos anos seguintes como ‘Movimento de Ruptura’. Portanto, pode-se afirmar que grande parte dos Assistentes Sociais lutou e continua lutando para eliminação de qualquer possível traço de atrelamento ao Estado. Logo, nota-se que muitos Assistentes Sociais, através de suas práticas profissionais, questionam a caracterização daquilo que seria ‘socialmente determinado’ como prática profissional. Ao fazerem isto, assumem um poder profissional resultante de seu saber, o qual lhes confere o caráter de autonomia no exercício da profissão. Embora não se possa negar a existência desse caráter ‘socialmente determinado para a profissão’ - tal como indica Iamamoto - deve-se considerar que, na atuação cotidiana, a categoria profissional posiciona-se de forma a romper com este determinismo e a construir processos de autonomia em relação ao exercício profissional, bem como em relação aos valores esperados pela população para sua ação. Esta reflexão é, pois, confirmada, quando Justina complementa sua crítica à profissão, ao dizer que, Vou ser bem dura, porque na maioria das vezes em vez de construir uma proposta de planejamento participativo, de construção coletiva, o que se vê é o desempenho de uma atuação que é muito mais politiqueira, no sentido de entregar uma coisa para um, ou de fazer um favor para outro e assim por diante (Chapecó, Setembro de 2009). Logo, o que ainda baliza o reconhecimento da profissão pela camponesa Justina, é seu caráter assistencialista, clientelista e promotor de ações de cunho eleitoreiro, portanto ‘politiqueira’ nas palavras da entrevistada. Diante disto, permanece o desafio para toda a categoria profissional: o que está sendo realizado para que definitivamente se possa romper com esse perfil ‘socialmente determinado’? Consideradas essas questões, ainda é preciso reconhecer que Justina trouxe muitas outras contribuições para a discussão sobre a relação entre o Serviço Social e o meio rural, dentre as quais algumas nem mesmo poderão ser discutidas, 274 dado o aprofundamento que seria necessário. Mesmo tendo isso presente, há que se ressaltar mais uma passagem de sua análise, quando afirma que E outra questão que a gente tem muita crítica a essa profissão é que ela não chega a atuar no meio rural. Por isso a gente mesmo sente um desfio muito grande que vai desde a necessidade de compreender essa profissão. As assistentes sociais, na grande maioria dos municípios, estão voltadas para o meio urbano, então é normal para nós camponesas ouvir que existe certo desconhecimento sobre essa profissão. [...] Mesmo assim, penso que o assistente social precisaria compor com outros setores profissionais e retomar com muita garra a atuação no âmbito social e político, para de fato estar engajado nas lutas sociais (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Ora, novamente aponta-se a insuficiente relação existente entre a profissão e o conhecimento sobre o contexto rural, o que resulta – segundo Justina – no próprio desconhecimento por parte do cidadão camponês acerca do que poderia dispor enquanto um atendimento e que lhe é assegurado no âmbito dos direitos sociais, tais como o direito à Assistência Social, à Saúde e à Previdência Social. Além disso, a militante do MMC/SC aponta para a necessidade de que o profissional esteja envolvido e comprometido com as lutas sociais encampadas pela população e pelos movimentos sociais, a fim de que possa compor com outros segmentos profissionais, mas também com os diversos segmentos da sociedade civil, uma luta maior que contribua para a melhoria das condições de vida, só possível a partir da transformação societária. Diante disso, Justina finaliza sua primeira contribuição para o debate afirmando, [...] Portanto, eu penso que essa profissão ainda tenha um desafio muito grande, no sentido de compreender o seu papel profissional dentro de outra proposta de sociedade que não é esta que está posta hoje. Caso essa profissão não compreenda esse desafio, ela estará destinada a ser permanentemente assistencialista, pois de fato ela não estará a serviço do social, mas permanecerá a serviço de uma estrutura, de modo a garantir sua continuidade (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Consequentemente, por considerar que a grande questão para os movimentos sociais críticos é o combate ao modo de produção capitalista, a militante aponta - a partir de sua leitura e compreensão da sociedade e também da profissão de Assistente Social - para a necessidade de que a categoria profissional se comprometa efetivamente com a luta contra-hegemônica ao capitalismo. É assim que Justina faz um convite à profissão para que articule suas lutas profissionais com as lutas populares e dos movimentos sociais. Para ela, esta é uma das formas da 275 profissão voltar sua prática para o espaço rural: a articulação com as lutas camponesas. 4.5.2 “As experiências que eu conheço são de profissionais que [...]” Já num segundo momento do diálogo com as militantes, indagou-se às entrevistadas sobre o fato de já terem sido atendidas por algum profissional de Serviço Social, em algum momento de suas vidas. Como a resposta das três entrevistadas foi negativa, confirmou-se que era necessário fazer uma aproximação - bastante atenta - das militantes em relação à profissão. Eis, então, que se apresentou um novo saber para compor o diálogo: desenvolveu-se com Justina, Luci e Noeli o conceito sobre quem é e o que faz o profissional ‘Assistente Social’, segundo as orientações do Conselho Federal de Serviço Social – CFESS. Desse modo, passou-se a dialogar com elas, tomando como referência a informação de que O Brasil tem hoje aproximadamente 80.000 profissionais que atuam, predominantemente, na formulação, planejamento e execução de políticas públicas como educação, saúde, previdência, assistência social, habitação, transporte, entre outras, movidos/as pela perspectiva de defesa e ampliação dos direitos da população brasileira. Trabalham também na esfera privada, principalmente, no âmbito do repasse de serviços, benefícios e na organização de atividades vinculadas à produção material, e atuam em processos de organização e formação política de segmentos da classe trabalhadora (CFESS [Site institucional], 2009, s/p) De posse dessa informação, as entrevistadas foram novamente convidadas a refletir sobre a presença do Serviço Social no contexto rural, agora num outro patamar de saber, uma vez que poderiam partir do conceito formalizado pelo órgão nacional da categoria. Mesmo com esse acréscimo de conhecimento, houve novamente um estranhamento de duas das entrevistadas – Justina e Noeli - quando indagadas se conheciam experiências de atendimento e/ou acompanhamento do Serviço Social junto ao espaço rural. Há que se destacar tal reação a essa pergunta, uma vez que ela significou o ‘silenciamento’ daquelas que até então tinham sido bastante solícitas e expansivas em suas manifestações. 276 Destarte, depois deste momento de silêncio, houve um cruzamento de olhares das duas entrevistadas – Justina e Noeli - que pareceram buscar na memória alguma lembrança sobre a atuação desse profissional junto à questão agrária e/ou no meio rural. Por fim, as duas balançam a cabeça numa expressão negativa, demonstrando que de fato não conheciam nenhum Assistente Social que atuasse no contexto rural e/ou com grupos de camponeses. Desse modo, indica-se que o longo silêncio - por si só - já é sugestivo dessa inexistência de atuação profissional junto ao campo, ou pelo menos do seu desconhecimento por parte das entrevistadas. O que chama ainda a atenção é que as mesmas são militantes e dirigentes de um Movimento Social camponês, o que possibilita dizer que o horizonte de onde afirmam não conhecerem a atuação desse profissional, vai para além do olhar pessoal enquanto mulheres camponesas e avança para um olhar que é coletivo,ou seja, um olhar que sintetiza a resposta de várias mulheres. Por outro lado, a terceira entrevistada aponta que conhece, sim, experiências de atuação junto ao contexto rural. Segundo ela, As experiências que eu conheço são de profissionais que têm a vinculação com o governo, mas que estão com as atividades já determinadas na direção dos movimentos sociais, principalmente nos Assentamentos da Reforma Agrária, que é onde são mais visíveis as diversas carências sociais no campo, pois lá o grupo é bem maior, então as questões se concentram, como o acesso a saúde, à benefícios, à educação, etc. A partir do seu depoimento, nota-se que a presença do Assistente Social – quando ocorre – restringe-se aos territórios em que foram feitos ‘assentamentos de reforma agrária’. Não que isso imprima alguma negatividade à atuação profissional, muito pelo contrário, nota-se a importância do trabalho que pode ser desenvolvido neste espaço ocupacional, com os indivíduos sociais que têm como identidade ‘ser classe trabalhadora e camponesa’ e como modo de vida as experiências de coletividade. Não obstante, o que se observa é que, embora o Serviço Social possa estar presente em algumas experiências de assentamentos rurais de reforma agrária no país, sua atuação não é suficiente para cobrir todas as demandas, restringindose apenas a alguns dos grupos de reforma agrária e somente durante o período inicial de acomodação e adaptação das famílias e grupos de famílias nos terrenos. 277 Outrossim, sabe-se de antemão que ainda é irrisória a política de reforma agrária, decorrendo disso a insuficiência de assentamentos frente à demanda existente. Por último, é importante considerar que a própria ideologia que perpassa a política de reforma agrária no Brasil tem como horizonte orientador os interesses da burguesia brasileira, com destaque para os interesses dos latifundiários rurais. Portanto, é urgente que a profissão aprofunde seu olhar para o contexto rural, a fim de que possa atuar diretamente com sujeitos sociais camponeses, sejam particulares e/ou coletivos. Este é um campo ocupacional bastante amplo, que oferece perspectivas de atuação voltadas para a participação popular, para o exercício da democracia e para a promoção de atividades na perspectiva da emancipação humana, mas que, infelizmente, ainda sente a ausência de profissionais Assistentes Sociais 4.5.3 “[...] Para os Assistentes Sociais tem uma sugestão central que é essa questão da participação e da articulação com os atores organizados da sociedade” A fim de que se possa adentrar na última parte do diálogo sobre a relação entre meio rural e Serviço Social, é importante ter presente o percurso percorrido até então. Apesar de imaginar que o mesmo tenha se tornado evidente, entende-se que é interessante demarcá-lo uma última vez como estratégia para melhor compreender as significativas contribuições das militantes do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina. Desse modo, registra-se que a primeira questão tratada no diálogo com Justina, Luci e Noeli foi discutir a concepção acerca do Serviço Social e se já haviam sido atendidas por um profissional dessa área. Efetuadas as conversas, tomou-se a tarefa de lhes explicar a respeito da profissão – segundo as orientações do Conselho Federal de Serviço Social - para, somente então, perguntar-lhes se conheciam profissionais Assistentes Sociais que trabalham no meio rural e/ou com indivíduos camponeses. 278 Aos poucos foi se construindo, sutil e conjuntamente, a compreensão acerca dessa profissão e sobre as diversas possibilidades de exercício profissional. E, mesmo tendo já avançado consideravelmente nesta construção do conhecimento, ainda restava uma última provocação para findar essa parte do diálogo. Neste sentido, procurou-se saber das entrevistadas suas sugestões para a atuação profissional do Serviço Social no contexto rural, junto aos camponeses e/ou junto aos movimentos sociais campesinos. Novo e profícuo debate foi estabelecido. As mulheres camponesas entrevistadas ofereceram muitas contribuições para que se possa pensar - ou repensar – a relação entre a profissão e o meio rural. Mesmo considerando a importância de todas as discussões, assume-se a responsabilidade de debater aqui somente algumas delas, dado a profundidade reflexiva exigida, o que levaria a estender ainda mais este trabalho. Ao reconhecer que não é possível efetuar tal debate ‘em profundidade’, já neste ponto final da dissertação, assume-se o compromisso de resgatá-lo em estudo posterior, a fim de que os necessários aportes à profissão não sejam dispensados. Feitas essas considerações, a primeira contribuição a ser apresentada foi indicada pela militante Justina, que asseverou Eu penso que tem uma sugestão central que é essa questão da participação e da articulação com os atores organizados da sociedade. [...] O trabalho (a missão, a função) desses profissionais é muito bonita e muito importante, mas que essa profissão permanece atrelada ao Estado, o que faz com que a articulação com os setores organizados da sociedade ainda seja inexistente e, portanto, ainda necessária (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Uma primeira consideração a ser feita é que a militante mais uma vez apresenta a idéia de atrelamento da profissão ao Estado, o que - na sua opinião tem como conseqüência certa imobilidade dos profissionais em estabelecer articulações com os ‘setores organizados da sociedade’, tais como os movimentos sociais campesinos. Nota-se que na fala de Justina fica expresso um convite para o estabelecimento de parcerias entre a profissão de assistente social e os movimentos sociais, a fim de que se possam reunir forças sociais e políticas para o tensionamento do Estado na perspectiva da ampliação do campo dos direitos e da efetivação daqueles já garantidos legalmente. 279 Além disso, nota-se uma provocação para que os profissionais se assumam como uma categoria crítica ao capitalismo e, por isso, empenhe-se nas lutas junto com os‘setores organizados da sociedade’ na direção da transformação societária. Portanto, já no comentário de Justina percebe-se a abertura de um campo de possibilidades para que a profissão trabalhe junto aos sujeitos sociais, incentivando-lhes – bem como exercendo - a participação política e o protagonismo social, desenvolvendo com eles processos de construção de autonomia e de emancipação humana, que possibilitem uma aproximação do horizonte da transformação societária que se quer. Acrescentando as suas contribuições, Justina ainda apontou outra sugestão para a profissão, dizendo que A segunda questão é que a própria profissão precisa de uma articulação e organização interna, porque dentro do grupo de profissionais existem os que pensam num projeto de sociedade e sonham - como nós sonhamos com uma sociedade mais justa, mais humanitária, mais solidária etc. Mas também existem aqueles profissionais que pensam e trabalham apenas para manter o modelo e sistema atual como está. Neste caso, a atuação efetiva em relação aos direitos e às políticas sociais, exigiria também uma articulação interna da profissão na defesa da proposta de uma nova sociedade e contra o atrelamento com o atual modelo de sociedade (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009). Novamente entra em jogo a cobrança de um posicionamento político, no sentido de que a profissão efetivamente se declare crítica ao sistema de sociedade, o que, na compreensão da entrevistada, significa se colocar contra o atrelamento ao Estado e às estruturas capitalistas. Entretanto, mais do isso, a questão fundamental que aqui está posta na mesa de debates resulta da constatação de um antagonismo entre o conceito crítico e político da profissão, defendido pelo CFESS, e a forma como a entrevistada percebe a prática profissional nos municípios em que atua como dirigente do MMC/SC. Isto só foi notado na fala de Justina, quando ela começou a fazer cobrança de uma postura efetivamente crítica ao sistema, somente depois que foi apresentado - para as entrevistadas - o conceito de profissão, indicado pelo Conselho Federal de Serviço Social. Neste sentido, no próprio diálogo com a entrevistada observou-se que ela, por várias vezes, procurou contrapor a imagem que fazia da profissão antes de ouvir 280 tal conceituação e depois dela. Logo, o que parece se ter criado é um tipo de ‘ruptura’ entre a imagem – socialmente construída - que Justina tinha antes e depois desse diálogo, o que lhe faz querer conhecer mais a profissão e, por isso, a leva a indicar a necessidade de parcerias – tal como dito anteriormente. A aparente – porém fundamental - confusão entre o que se percebe na prática e o que está posto teoricamente para a profissão, faz com que a militante entenda que não há articulação interna da profissão, uma vez que uns profissionais estariam atuando de forma atrelada ao Estado e às políticas macroeconômicas capitalistas, enquanto outros estariam se posicionando na lógica contra-hegemônica do capital e do Estado neoliberal. Fica, portanto, a sugestão de se conferir as observações de Justina, que insiste numa necessária articulação política dentro da própria profissão. Articulação que deixaria claro tanto seu posicionamento teórico e ético-político quanto sua prática profissional, na medida em que estariam fundamentados numa mesma perspectiva, seja ela crítica ou atrelada ao sistema. Logo, cabe reconhecer a necessidade de avançar nos debates políticos da profissão, respeitando a diversidade que configura essa que é uma ‘ampla’ categoria profissional, utilizando-se dessa característica para ampliar o horizonte teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo, mas tendo maturidade intelectual e profissional para assumir uma posição política que confira identidade à categoria das e dos Assistentes Sociais. Dito isso, passa-se a dar atenção para as sugestões apontadas pela companheira Luci, no que se refere à atuação do Serviço Social junto ao contexto rural e sujeitos rurais. Segundo a militante, [...] Como profissional, preciso fazer com que as pessoas se eduquem, se transformem, que sejam instrumentos e protagonistas dessa transformação social que eu desejo que aconteça na sociedade. Que elas mesmas se apropriem desse conhecimento a partir da sua realidade e baseado nela, transformem as estruturas. Essa metodologia é mobilizadora de participação, de protagonismo e de transformação. Penso que essa metodologia é fundamental para quem trabalha com o social e essa é minha sugestão para os Assistentes Sociais para trabalhar no campo (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009). Observe-se que, para ela, os processos sociais têm maiores possibilidades de reconhecimento e visibilidade social quando voltados para a perspectiva pedagógica de mobilização da participação e do protagonismo dos 281 indivíduos sociais. Neste sentido, a palavra chave para a militante passa a ser ‘educação’. Para Luci, é nesse âmbito de atuação que reside a mais significativa contribuição que o Serviço Social pode oferecer ao meio rural. Logo, fica evidente que a militante do MMC/SC visualiza que o trabalho do Serviço Social é necessário, sim, no contexto campesino. Entretanto, seus profissionais devem atuar partindo do cotidiano e da realidade das camponesas e camponesas, para – aos poucos – ir construindo junto com os grupos e/ou indivíduos sociais camponeses processos de trabalho, que correspondam às necessidades e demandas dos mesmos. Portanto, o último indicativo de ação profissional que se deseja destacar, volta-se para o desenvolvimento de processos pedagógicos emancipatórios. Enfim, a militante Noeli marca novamente sua fala na roda de diálogo apontando para a necessidade de conhecer o campo e o modo de vida camponês. Para ela, é muito importante que tenham profissionais do Serviço Social que se disponham a voltar sua atenção profissional para este tipo de atendimento. Assim, primeiramente, Noeli indica o que imagina que deva ser a primeira tarefa daqueles profissionais que quiserem dedicar seus esforços para esse campo de atuação, para em seguida apontar a importância deste tipo de trabalho. Vejo que um dos papéis fundamentais desse profissional, para ser uma boa assistente social, principalmente relacionado ao campo, é o de reconhecer a realidade camponesa. Ou seja, é necessário conhecer realmente como funciona, não é só conhecer a unidade de produção, mas conhecer e compreender todo o modelo que engloba o modo de vida no campo, a forma pela qual algumas famílias camponesas conseguem resistir ao modelo químico de produção, entre outras coisas. Portanto, penso que essa é uma das exigências primordiais para se trabalhar no meio rural e com os camponeses. [...] Então, eu só queria dizer que tenho a impressão que este é um trabalho muito importante para melhorar e, até mesmo, transformar o modo de vida no campo, mas que precisa realmente ser revisto o seu modo de atuação, para que pelo menos a gente possa ter contato com essa profissão. Além disso, também quero registrar que acho bom que ainda tenham pessoas nessa profissão que vêem a necessidade de trabalhar no campo, junto às famílias camponesas (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009). Portanto, encerra-se esta última seção do Capítulo de análise do material empírico, reafirmando que se percebeu, nas falas das entrevistadas, anseios por uma ação profissional realmente efetiva no contexto rural. Elas são representativas de que esse campo profissional é demandante de olhares e atenções por parte do Serviço Social. 282 Entretanto, para que se possa responder a tais demandas, torna-se urgente conhecer, estudar, investigar o mundo rural, a realidade atual do campo e o modo de vida camponês. Não se avançará no amadurecimento político da profissão e nem na transformação societária, caso não se confira visibilidade e reconhecimento social a esse modo de vida diferente do modo predominante na sociedade. Enfim, estão postos significativos desafios para se definir a atuação do Assistente Social no meio rural, onde estarão incluídas práticas emancipatórias que os sujeitos singulares e coletivos camponeses possam incorporar na sua luta. Tal articulação com a sociedade civil, especialmente com os Movimentos Sociais camponeses, terá o propósito de reforçar a luta pela transformação societária. Isso requer uma articulação interna da profissão em torno de um projeto ético-político, que responda coerentemente à perspectiva crítica do Serviço Social no contexto brasileiro. Algo a considerar olhando para a última parte dessa empreitada – O quarto capítulo! Novamente o caminho se fez longo e exigente. Entretanto, há que se ressaltar o significado do aprendizado! Cheiros e sabores estiveram presentes no trajeto. Certezas e incertezas quanto ao caminho a seguir, também marcaram as encruzilhadas! Aos poucos... caminhou-se! Aos poucos... desbravou-se o caminho! Aos poucos... edificou-se uma relação compartilhada entre as protagonistas - com suas falas - e a investigadora em sua tarefa de construir saberes. Nada fez sozinha, pois no caminho sempre esteve acompanhada. Dito isto, é fundamental perceber que - neste capítulo - não se trabalhou com teorias conclusas, registradas em livros de ciências humanas e sociais. Ao contrário, os saberes que pulularam nestas páginas surgiram das experiências cotidianas das mulheres camponesas que militam no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas, as quais foram agregadas ao saber que, 283 construído anteriormente, ficou registrado nas páginas dos capítulos precedentes. Eis aqui a riqueza de um conteúdo, o qual partiu de um arcabouço teórico, mas que foi construído basicamente através da cotidianidade das militantes do MMC/SC, através do diálogo estabelecido entre elas e a investigadora. Deste diálogo emergem vários mundos que expressam a totalidade do caminho percorrido. O mundo rural no olhar das camponesas e no olhar da sociedade! Os movimentos sociais camponeses na construção da história! O Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina: seu surgimento, identidade, organização, lutas e conquistas! As Políticas Públicas a partir das conquistas do MMC/SC e as demandas atuais! O Serviço Social e a vontade política de construir saberes que levem a atuação profissional no espaço rural! Resta então celebrar, assim como celebram as mulheres camponesas do MMC/SC em seus momentos de mística revolucionária, reafirmando que é preciso continuar, pois o fundamental é colocar-se a caminhar, reconhecendo que o percurso é longo e que o horizonte parece sempre se colocar para além do que antes, pois ele é um ‘horizonte utópico’, no dizer do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil. Por último, deseja-se reforçar que - já que, nesta empreitada, a caminhada foi realizada em conjunto - espera-se continuar junto também na última parte desta grande jornada, onde serão agregadas as principais considerações que resultaram dos quatro capítulos da presente dissertação. 284 APONTANDO PARA UM NOVO HORIZONTE: Definitivamente, à guisa de conclusão Cambia lo superficial Cambia también lo profundo Cambia el modo de pensar Cambia todo en este mundo Mercedes Sosa Chega-se ao final da parte da investigação que se propôs a percorrer na etapa dos estudos de pós-graduação em nível de mestrado. A tarefa foi desafiadora, extensa e exigente, entretanto, trouxe novos saberes resultantes do processo de construção do conhecimento. E como todo processo, causou mudanças. Mudanças no modo de pensar, mudanças no modo de olhar e perceber os espaços e indivíduos sociais no mundo. Mudanças que ora se colocam num patamar de novos saberes e de re-significações de outros tantos. Saberes plenos de possibilidades para aportar novas investigações e, por conseguinte, novas produções de saberes. Este é o movimento dialético. Este é o movimento da mudança. Pois, como disse Mercedes, “tudo muda neste mundo”. Assim, a investigadora também muda. Ela já não é a mesma, pois seus conhecimentos agora são outros, sendo esta dissertação parte do resultado desta transformação. Neste sentido, apropriando-se da ‘parte singular da mudança’ que apenas a ela cabe, espera – humildemente - colaborar para ‘a parte genérica da transformação’ que, imagina, possa ser vivida pela sociedade. Portanto, através de suas reflexões, esta investigadora espera ter colaborado, provocando algumas mudanças seja no modo pelo qual esta sociedade percebe os espaços rurais e os indivíduos sociais rurais singulares e coletivos; seja no modo pelo qual ela passa a significar e valorizar a participação social, política, econômica e cultural destes sujeitos rurais; e, quiçá, através destas primeiras 285 mudanças, possa-se transformar o modo pelo qual são construídas as relações com tais indivíduos rurais, no espaço da totalidade da sociedade. Diante deste cenário de possibilidades e de mudanças, a tarefa que cumpre agora é de sintetizar as considerações e análises que perpassaram os quatro capítulos desta dissertação, compondo significativamente o processo de transformação desta investigação. E, já de antemão, deve-se dizer que esta tarefa é tão desafiadora, quanto foi desafiadora a própria elaboração da dissertação, pois, ao procurar cumpri-la, eis que surgem novas e diferentes perguntas, como por exemplo: o que dizer em relação à localização do espaço rural frente à academia e também à sociedade? Ou, então: o que falar diante do protagonismo dos movimentos sociais na trajetória histórica da sociedade brasileira? O que afirmar frente ao intenso processo de articulação, lutas e conquistas das mulheres camponesas, reunidas e organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas? E ainda: como considerar a relação estabelecida - até este momento - pela profissão de assistente social com os sujeitos e espaços rurais? Embora a tarefa reservada para este momento seja desafiadora, parte-se. E, inicia-se refletindo sobre as particularidades existentes no espaço rural. Reflexão que diz respeito à diversidade de modos de vida, de produção econômica rural, de organização social e política e, enfim, de transmissão e cultivo de valores e princípios que permeiam este espaço, guardam algumas significativas distinções em relação ao espaço urbano. Pôde-se perceber, através desta investigação, que a principal fonte destas distinções está no modo de produção econômica. Este, embora seja contextualizado em sua totalidade - não pelas particularidades - reserva especificidades próprias a cada espaço, as quais terminam por caracterizar os diferentes modos de vida, neste caso: urbano e rural. Ainda no campo das discussões ‘econômicas’ sobre o rural, é necessário ressaltar que esta esfera de organização da sociedade dá origem a uma diversidade de modos de vida coexistentes no mesmo espaço rural. Isto não poderia ser diferente, dado que se vive numa sociedade de classes, o que é decorrente, inclusive, do próprio modo de produção capitalista. Neste sentido, ressalta-se que a distinção de classes sociais e, por conseguinte, o surgimento da luta de classes 286 perpassa e se reproduz na sociedade capitalista, tanto no espaço rural, quanto naquele urbano. Ora, foi a partir desta reflexão que se passou a identificar, fundamentalmente, dois grupos de indivíduos rurais, cada um dos quais produzem e reproduzem seu próprio modo de vida, embora estejam interligados no âmbito da luta de classes55. São eles: os grandes proprietários de terra, latifundiários ou ruralistas – como se queira identificar – e os camponeses, em sua identidade de trabalhadores rurais, cujo modo de vida está ligado à agricultura familiar. Estes últimos são assim identificados independente de possuírem ou não pequenas propriedades de terra, pois são caracterizados a partir da questão de que a subsistência familiar é produzida através do emprego da força de trabalho exercida no espaço rural e no âmbito da organização e produção familiar. Tal fato não impede que o produto deste mesmo trabalho possa - muitas vezes - ser comercializado, quando excedente, a fim de se obter renda para comprar outros produtos que permitam suprir necessidades não respondidas pela produção familiar. Dito isto, é imprescindível demarcar que a partir desta distinção de classes, confirmou-se o propósito inicial de que seria a classe camponesa, em seu modo de vida e produção, o foco central desta investigação. Logo, torna-se evidente que o espaço e os indivíduos sociais rurais, que figuraram nas discussões dos quatro capítulos da dissertação, são componentes do mundo rural campesino, fato exigido, inclusive, porque o objeto de estudos desta investigação – o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina – é um movimento social que se identifica como ‘organização da classe trabalhadora camponesa’. Cabe destacar, ainda, que foi necessária fazer a reflexão sobre quem é o público predominante das ações do Serviço Social, campo profissional que situa também as análises realizadas. Desse modo, partiu-se do reconhecimento de que esta profissão direciona suas ações para a classe trabalhadora, mas também – principalmente - para a classe que já não consegue alcançar o patamar de trabalhadora, pois se encontra em situação marginal ao mundo do trabalho 55 Mais uma vez identifica-se o processo e movimento dialético da sociedade capitalista, agora especificamente na questão da luta de classes. 287 oficializado pelo registro de trabalho e, portanto, marginal também à proteção social atribuída à condição de trabalhador. Além disto, foi importante o reconhecimento de que esta profissão encontra-se inserida na sociedade brasileira, cujo Estado democrático desenvolve políticas de cunho neoliberal, fazendo com que - cada vez mais - as políticas sociais sejam residuais e focalizadas, negando a universalidade de acesso a serviços, os quais deveriam ser garantidos por ele, com base legal nos direitos sociais já conquistados. Destarte, diante deste tipo de Estado e das políticas neoliberais de governo, identifica-se que o Serviço Social poderia atuar profissionalmente junto às mulheres e homens camponeses, uma vez que as políticas sociais planejadas, geridas e executadas pelos Assistentes Sociais, teriam na classe trabalhadora os sujeitos de sua ação. Tal fato aponta para a necessidade de que a profissão dedique atenções e esforços para estes sujeitos, tanto em sua formação quanto em sua prática profissional e – inclusive - na área da investigação. Dito isto, salienta-se que as particularidades do modo de vida e produção camponês guardam características que devem ser relevadas no momento de pensar e propor ações do Serviço Social junto aos indivíduos camponeses, às organizações, movimentos e mobilizações rurais camponesas. Considerando-se que a mediação fundamental do exercício profissional acontece através das Políticas Sociais, aponta-se - por exemplo – para a necessidade de pensar as especificidades do modo de vida camponês, ao planejar, implementar, executar e avaliar as políticas sociais direcionadas aos sujeitos rurais. Exemplificando, alude-se o fato de que a política pública de saúde deveria prever cuidados especiais para os camponeses, os quais são requisitados tendo em vista as próprias condições de vida dos trabalhadores camponeses. Neste caso, conhecendo e considerando-se que o exercício laboral no campo exige o constante emprego de força física e também está submetido às diferentes manifestações das adversidades da natureza - tais como o calor ou o frio intensos -, os períodos de chuva ou então de estiagem etc -, a atenção básica em saúde – no caso deste exemplo - deveria considerar a ocorrência destas adversidades, tanto no que tange às doenças que têm maior incidência neste contexto, quanto em relação à dinâmica 288 e ao tipo de atendimento que se fazem necessários frente ao cotidiano de vida e trabalho dos camponeses. Outros exemplos também poderiam ser dados no âmbito das especificidades da Política de Educação no campo; no atendimento da Política de Assistência Social; no desenvolvimento de Políticas de Geração de Trabalho e Renda; no âmbito da Política Previdenciária, entre vários outros. Portanto, essas são apenas algumas das particularidades apontadas em relação ao espaço rural e, nele, sobre o modo de vida campesino, as quais exigem dos profissionais uma atenção distinta em relação às especificidades encontradas no espaço urbano. O reconhecimento da existência destas particularidades e de outras, requer das profissões e de todos os profissionais que decidirem voltar suas atividades para o campo, conhecimento apropriado para poder desenvolvê-las, de modo que contemplem as demandas e necessidades camponesas. Para isto, é imprescindível estudar o espaço rural em sua totalidade; conhecer o cotidiano de vida e de trabalho das classes sociais do campo; identificar e compreender as formas de organização social, política, econômica e cultural destes indivíduos rurais – principalmente dos trabalhadores camponeses, e por fim, reconhecer os valores e princípios que orientam o modo de vida campesino, pois, dialeticamente, será a partir destes elementos que, também os indivíduos camponeses – singulares e coletivos – estabelecerão suas relações com estas profissões e seus respectivos profissionais, principalmente no âmbito das relações sociais e políticas. No segundo capítulo da dissertação, desenvolveu-se um estudo sobre os movimentos sociais, que partiu desde o reconhecimento em relação ao surgimento deste tipo de organização social e política, até o apontamento para os paradigmas teóricos desenvolvidos sobre o tema e as principais concepções adotadas pelos estudiosos na atualidade. Dado que um dos objetivos daquela parte da investigação, era apontar para a importância da participação dos movimentos sociais na construção sóciohistórica do Brasil, e a partir dela reconhecer a contribuição dos movimentos sociais camponeses e do próprio Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, há que se destacar nestas considerações finais que, de fato, os movimentos sociais 289 marcaram a história do país. Por muitas vezes direcionaram e/ou re-direcionaram a trajetória da nação; significaram e/ou re-significaram a participação social e política da sociedade civil; pressionaram o Estado no sentido de olhar para os interesses da classe trabalhadora; cobraram dos governantes o exercício da democracia e a valorização da participação popular, entre várias outras contribuições históricas para constituição da nação brasileira tal como se encontra na atualidade. Portanto, considerando que são inegáveis as contribuições dos movimentos sociais para a construção da história do país, reconhece-se que eles se configuram como sujeitos sociais coletivos, cuja importância é notória no campo dialético do jogo de forças da sociedade. São estes sujeitos que conferem a dinâmica necessária para que as transformações sociais, políticas, culturais, mas também econômicas sejam possíveis. Logo, devem ser reconhecidos, considerados e valorizados como ‘forças sociais’ propulsoras das necessárias mudanças da sociedade, as quais possuem características e dinâmicas particulares, que permitem, ao mesmo tempo, identificá-las, mas também compreendê-las em seus processos de organização e momentos de lutas. No espaço sócio-político da sociedade, constituído pelos Movimentos Sociais, é fundamental reconhecer a importância das manifestações e lutas assumidas pelos segmentos camponeses. E, diante dos diversos cenários que conformam as lutas sociais campesinas no Brasil, é indispensável perceber que a ‘questão da terra’ sempre se constituiu como um marco das lutas sociais e políticas camponesas. A terra significa para o trabalhador camponês a possibilidade de produzir sua subsistência, conferindo-lhe identidade, mas também lhe oferecendo maior ou menor possibilidade de autonomia em relação à classe latifundiária. Mas, não obstante o acesso e a propriedade da terra representarem a possibilidade de conquistar um nível maior de autonomia, ela - por si só – não propiciará autonomia ao camponês em relação ao mercado, uma vez que o mesmo é regulado pelo modo de produção capitalista, o qual, por conseguinte, também interfere no modo de vida e de produção dos indivíduos sociais camponeses. A partir dessa reflexão, cabe ressaltar que se reconhecem os motivos pelos quais a luta pela terra e a luta contra o modo de produção capitalista tornam290 se bandeiras tão fortes para a articulação e mobilização dos movimentos sociais campesinos. Essas lutas representam, para eles, tanto a possibilidade de aumento nos níveis de autonomia (individual e coletiva) quanto a de conquista da emancipação humana. Portanto, são assumidas como condição sine qua non para a concretização do objetivo posto em seu horizonte utópico, qual seja, a transformação societária. Neste mesmo espaço da sociedade, deve ser identificado o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC, em sua organização, objetivos, articulação, lutas e conquistas. Um movimento social que possui uma identidade construída a partir do cotidiano de vida de suas militantes, fortemente marcada pelos elementos de classe, de gênero e do espaço e modo de vida camponês. Deste modo, o cotidiano camponês e as experiências de vida das mulheres trabalhadoras rurais confluem para constituir um movimento social que se auto-identifica como movimento “camponês, autônomo, democrático, popular, feminista e de classe, na perspectiva socialista” (MMC do Brasil, 2009. Site institucional). Além disto, no decorrer da investigação ficou explícito o forte significado conferido pelo MMC/SC ao processo de construção da identidade de gênero do movimento e seu entrelaçamento com a construção da identidade singular de cada uma das mulheres camponesas que participam de seus grupos de base. Ficou evidente que o desenvolvimento de uma consciência crítica, capaz de reconhecer os elementos que configuram o modo de vida e a realidade da classe trabalhadora rural frente ao capitalismo é condição para que as mulheres camponesas possam participar do movimento e contribuir para a conquista de direitos, de políticas públicas e de espaços de participação na sociedade. Da mesma forma, é o desenvolvimento de uma consciência crítica que leva a denunciar as situações de exploração e dominação das mulheres e de todos os trabalhadores rurais, bem como denunciar a existência de desigualdades e discriminações de classe, de gênero e de espaço territorial – rural e urbano. Pôde-se perceber também que, para o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC, a construção da consciência crítica 291 possibilita o fortalecimento da identidade de mulheres trabalhadoras rurais e, a partir dela, a conquista da autonomia; o exercício do protagonismo das mulheres nos espaços sociais e políticos; os avanços em relação à emancipação feminina e humana, além da aproximação do horizonte utópico da transformação societária, na perspectiva socialista. Enfim, para o MMC/SC todos estes avanços são consequências da organização, articulação, mobilizações e lutas do movimento. Geralmente, seus efeitos não podem ser observados de imediato; entretanto, produzem também efeitos diretos na vida das mulheres camponesas e de suas famílias e, estes sim, podem ser observados através da conquista de direitos. Assim aconteceu no momento em que, após longa e desafiadora luta social e política, as mulheres trabalhadoras rurais do Brasil conquistaram a aposentadoria rural para as camponesas aos 55 anos de idade e para os camponeses aos 60 anos de idade. Portanto, o Movimento de Mulheres Camponesas – na experiência de organização e lutas observadas em Terras Catarinas – é um movimento que parte do cotidiano de vida e de trabalho de suas militantes, para chegar à conquista de direitos e políticas públicas que venham responder às necessidades e demandas das famílias, mas principalmente das mulheres trabalhadoras camponesas. Destarte, o movimento constrói e é construído através da história de vida e de lutas das diversas Justina’s, Luci’s e Noeli’s, as quais dele participam. Assim, também, o movimento constrói a história camponesa no Brasil e a própria história da Nação Brasileira. Reconhecer a participação e o protagonismo destas mulheres não é tarefa somente do Estado, quando oficializa seus registros históricos sobre a Nação. É papel de todos os cidadãos brasileiros, inclusive daqueles trabalhadores dos âmbitos social e político, a fim de que nas páginas da história também constem as marcas deste ‘Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil’, na experiência construída nas Terras Catarinas. Por último, cumpre a tarefa de tecer algumas considerações acerca da atuação do Serviço Social no espaço rural. Neste sentido, torna-se necessário fazer três apontamentos. No entanto, antes de fazê-los é importante explicitar que são frutos de conversas, discussões e reflexões com os pares profissionais, não podendo ser considerados como fatos comprovados – uma vez que não foram 292 verificados através de investigação científica – mas, sim, como indicativos, cuja relevância justamente está no fato de que apontam para possíveis e novos caminhos de investigação. O primeiro destes apontamentos se refere ao fato de que não é possível afirmar que a profissão nunca desenvolveu e nem que hoje não desenvolva atividades profissionais voltadas ao espaço rural e aos sujeitos camponeses. Outrossim, durante o período de investigação, constatou-se principalmente através das conversas com colegas, professores e estudiosos do Serviço Social, que a profissão em seu desenvolvimento histórico já dedicou olhares, atenções e fazeres para o espaço rural. Isto ocorreu principalmente em meados da década de 1950, quando se trabalhou sob a perspectiva norte-americana de ‘organização e desenvolvimento de comunidades’. Além disto, no período seguinte, o Serviço Social também orientou parte de sua atuação profissional para o espaço rural, quando trabalhou sob a perspectiva do Serviço Social de Caso, de Grupo e de Comunidade. É importante se considerar ainda que, além da perspectiva teórica que orientava o exercício da profissão naquele período, a realidade que se apresentava na maioria das cidades brasileiras indicava que a população era preponderantemente rural. Isto fazia com que o próprio Estado Brasileiro dedicasse maior atenção para o âmbito rural. É necessário ponderar, inclusive, que se vivia naquele momento o período identificado na história da nação como o ‘período desenvolvimentista’. Nele, inicia-se, com bastante intensidade, a implantação de uma política voltada para o desenvolvimento e progresso do espaço rural, que ficou conhecida como ‘Revolução Verde’, pois através da introdução de defensivos agrícolas e da mecanização do campo elevou-se a produção rural para níveis inimagináveis antes. É notório também que, naquele período, os incentivos não eram iguais para todas as famílias camponesas, ou seja, os incentivos eram dados segundo os princípios da ‘(des)igualdade capitalista’, observando o potencial de produção econômica; logo, as diferenças de classe. Sem adentrar nesta questão – embora ela seja bastante provocativa -, o que se almeja destacar é que o cenário do país naquele período possibilitava que as 293 profissões dedicassem seus olhares e suas práticas – um pouco mais – para o espaço rural e para os sujeitos que nele trabalham e vivem. O segundo apontamento refere-se ao fato de que, mesmo na atualidade, há experiências de profissionais do Serviço Social no desenvolvimento de projetos, de programas e de políticas voltados para a população camponesa. São experiências geralmente ligadas a políticas de geração de renda, ou então experiências como de alguns Centros de Referência em Assistência Social, implantadas no espaço Rural – CRAS-Rural, ou de Unidades Locais de Saúde também implantadas nesse espaço. Além delas, há que se considerar que há indicativos na Política de Reforma Agrária para que os Assentamentos Rurais sejam acompanhados, em seu período inicial, por profissionais do Serviço Social, muito embora isto nem sempre ocorra. Assim, ainda que não existam em grande quantidade, estas experiências devem ser consideradas no momento de analisar a presença da profissão no espaço rural. Como terceiro apontamento, deve-se considerar que, atualmente, em algumas Escolas de Serviço Social, se prevê a abordagem sobre o contexto e a realidade rural em algumas disciplinas, não obstante tais disciplinas sejam consideradas optativas ou eletivas e, portanto, não necessariamente freqüentadas por todos os alunos do curso. Feitos os três apontamentos, é possível agora afirmar que se notou uma tímida atuação do Serviço Social no espaço rural e com os indivíduos camponeses. Esta forma de atuação – bastante sutil – acaba por provocar um distanciamento entre os sujeitos rurais e os profissionais, fato que colabora para que a imagem profissional reproduzida naquele espaço seja aquela ‘socialmente determinada’, de um profissional burocrata e atrelado aos interesses do Estado e das classes dominantes56. Dito isto, é importante refletir sobre os fatos que levam a profissão a tal distanciamento em relação ao espaço rural. Assim, poder-se-ia sugerir que já durante a formação profissional não são conferidos aos estudantes, os elementos teórico-metodológicos e técnico-operativos que possibilitem a ele, depois de 56 Conforme reflexão já realizada na quinta parte do quarto capítulo, cujos aportes foram encontrados em Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008). 294 graduado, reconhecer as demandas e atuar com competência ética-política junto a este espaço e com os indivíduos que nele vivem. Por outro lado, poder-se-ia indicar que a profissão não reconhece – ou, pelo menos, caso reconheça, não confere importância – o espaço e os indivíduos rurais como sujeitos que demandam atenção e ações profissionais especializadas. Por conseguinte, não haveria necessidade de, durante a formação profissional, dedicar estudos para aprofundar a realidade e o cotidiano dos indivíduos que vivem naquele espaço. Poder-se-ia continuar o levantamento de diversas questões com a intenção de comprovar que, de fato, nota-se um estranhamento na relação entre Serviço Social e espaço rural. Entretanto, elas seriam apenas tentativas de encontrar a origem deste estranhamento - se na formação ou se na atuação profissional – sem, contudo, imbuírem-se de importância ao indicarem saídas para esta situação. Além das considerações acima, não cabe a esta investigação apontar responsáveis por este estranhamento ou, então, culpabilizar a própria profissão pelo fato. Parece importante reconhecer os determinantes da realidade capitalista, os quais interferem para que o Serviço Social volte-se, predominantemente, para o contexto urbano. Tais determinantes, aqui serão considerados como elementos que conferem aquilo que Iamamoto (2007) aponta como ‘relativa autonomia’ da profissão57. Dito isto, considera-se que é importante indicar nestas ‘considerações finais’, algumas possibilidades para diminuir o distanciamento há pouco mencionado, a fim de que a investigação colabore com possíveis avanços no âmbito do Serviço Social. Destarte, um dos indicativos refere-se ao fato da urgência de que a profissão dedique maiores atenções ao espaço e sujeitos rurais citados, através da inclusão de disciplinas – ou, ao menos, de conteúdos nas disciplinas já existentes – nos currículos de graduação, as quais, ao abordarem o tema, possibilitem aos estudantes uma aproximação com as questões emergentes no espaço rural. 57 A reflexão sobre a ‘relativa autonomia’, embora seja discutida com competência pela estudiosa Marilda Iamamoto, a qual se tornou referência para o debate, também pode ser encontrada nos estudos e discussões de outros autores do Serviço Social, dado que já foi bastante socializada pela profissão. 295 Outro indicativo direciona-se para o âmbito da pós-graduação e da investigação em Serviço Social, expressando a necessidade de se desenvolver mais pesquisas que possibilitem a produção de conhecimento nesta área. Para tanto, é importante disponibilizar disciplinas que desenvolvam o tema; criar grupos e núcleos de estudos e investigações voltados para o campo; realizar encontros de socialização de conhecimento nesta área; estabelecer parcerias com organizações sociais, mas também públicas, que trabalham com o tema, tais como os movimentos sociais camponeses e as agências estatais de assessoria técnica ao campo; entre outras iniciativas possíveis no âmbito dos estudos e investigações em nível de pósgraduação. Além destes indicativos, aponta-se que as escolas de Serviço Social – tanto em nível de graduação, quanto em nível de pós -, o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Serviço Social – CFESS e CRESS respectivamente -, bem como a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS podem realizar atividades de capacitação, voltadas para a atualização profissional dos Assistentes Sociais. Nelas, sugere-se a abordagem sobre as questões relativas à realidade e ao cotidiano rural; sobre as implicações do capitalismo e de suas crises para o campo; sobre as ‘expressões da Questão Social’ manifestas também naquele espaço; entre outras. Assim sendo, reconhecendo que o Serviço Social avançou, ainda, timidamente na direção de estreitar sua relação com os ‘movimentos sociais’ e com o ‘espaço e os sujeitos camponeses’, assume-se, enquanto Assistente Social e investigadora, o desafio posto através desta constatação, de que de ainda há muito para se fazer. Deste modo, ao chegar ao final da investigação, nota-se que apenas iniciou-se uma nova jornada investigativa e profissional, pois o percurso realizado até aqui simplesmente aponta para um novo horizonte investigativo, o qual também requer novos olhares e esforços para desvendá-lo. Portanto, encerra-se esta investigação com as mesmas palavras da poetiza e escritora Clarice Lispector, com as quais se iniciou: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, ... continuarei a escrever!” 296 REFERÊNCIAS ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo. O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos (Introdução). In: ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (org). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. ANTUNES, Ricardo (org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. São Paulo: Boitempo, 1998 ______. O caracol e sua concha. Ensaios sobre a nova morfologia do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS DA REGIÃO SUL DO BRASIL. Gênero, sexualidade e direitos das mulheres. Chapecó: Secretaria da AMTR-Sul, 2008. BAUERMANN, Lara. A participação das mulheres em novas formas de organização do trabalho no campo. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC/CFH, 2009. [111pp.] BONI, Valdete. Produtivo ou Reprodutivo: O trabalho das mulheres nas agroindústrias familiares - um estudo na região oeste de Santa Catarina. [Dissertação de mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas]. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Universidade Federal de Santa Catarina: 2005. [99 pp.] BRASIL. Conselho Federal de Serviço Social. Código de Ética Profissional do Assistente Social. Resolução CFESS N. 273/1993. Brasília: CFESS, 1993. CAMACHO, Daniel. Movimentos Sociais: algumas discussões conceituais. In: SCHERER-WARREN, Ilse. KRISCHKE, Paulo J (orgs.). Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 214-245. CONCÓRDIA, Prefeitura Municipal. Dados do território, estatísticas do município e perfil econômico da região. Concórdia, 2009. Disponível em: http://www.concordia.sc.gov.br/municipio.htm#. Acesso em: 08/05/09. DAGNINO, Evelina. Cultura, cidadania e democracia – A transformação dos discursos e práticas de esquerda latino-americanas. In: ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (org). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. ______. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. In: ______ (org). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Cap. I. pp. 0915. 297 DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades. In: ______ (org). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Cap. VIII. pp. 279-301. FALEIROS, Vicente de Paula. Saber profissional, poder institucional. 6.ed. São Paulo: Cortez, 2001. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da Língua Portuguesa. Coordenação de Edição Margarida dos Anjos, Marina Baird Ferreira. 4 ed. rev. Ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais. A construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 1995. ______. Movimentos Sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: ______. (org.). Movimentos Sociais no início do século XXI. Antigos e novos atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2004. ______. Teoria dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997. GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos Movimentos Sociais no campo. 3.ed. Petrópolis: Vozes, Rio de Janeiro: FASE, 1991. GUIGOU, Jacques. O sociólogo rural e a ideologia da mudança. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 135-143. GUTIÉRREZ, Fernando Calderón. Os Movimentos Sociais frente à crise. In: SCHERER-WARREN, Ilse. KRISCHKE, Paulo J (orgs.). Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 191-213. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 3.ed. Trad.: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. IAMAMOTO, Marilda Villela e CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo: Cortez/CELATS, 1982. IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e conservadorismo no Serviço Social. Ensaios Críticos. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000. ______. O serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 13 ed. São Paulo: Cortez, 2007. I______. Serviço Social em tempo de capital fetiche. Capital financeiro, trabalho e questão social. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4 ed. Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 298 KÄRNER, Hartmut. Movimentos Sociais: revolução no cotidiano. In: SCHERERWARREN, Ilse. KRISCHKE, Paulo J (orgs.). Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 19-34. LEFEBVRE, Henri. Perspectivas da Sociologia Rural. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 77-131. LUKÁCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: Cadernos do NEAM. Ontologia social, formação profissional e política. N.1. São Paulo: Núcleo de Estudos e Aprofundamento Marxista, PEPGSS-PUC-SP, 1997. LUSA, Mailiz Garibotti. Lutas e conquistas do Movimento de Mulheres Trabalhadores Camponesas - Da pauta de reivindicações à efetividade das políticas Públicas para o campo – um olhar para Brasil e Cuba. Projeto de Pesquisa de Mestrado. São Paulo: PEPGSS-PUC-SP, 2009. ______. Trabalho no contexto rural: quando a divisão sexual do trabalho conforma as tramas da identidade de mulheres e homens da agricultura familiar no Oeste Catarinense. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC/CSE/DSS, 2008. [150 pp.] ______. Trabalho no contexto rural: quando a divisão sexual do trabalho conforma as tramas da identidade de mulheres e homens da agricultura familiar no Oeste Catarinense. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC/CSE/DSS, 2008. KROTH, Sirlei Antoninha. Atalhos da luta: Trajetórias e experiências das mulheres agricultoras e do Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina 1983-1993. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PPGH-PUC-SP, 1999. MANNHEIM, Karl. O pensamento conservador. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 77-131. MARTINELLI, Maria Lúcia. A pergunta pela identidade profissional do Serviço Social: uma matriz de análise [Texto de apoio didático]. São Paulo: PUC-SP, Mimeo, 2008. MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 11-38. [Introdução] ______. A caminhada no chão da noite. Emancipação política e libertação nos movimentos sociais no campo. São Paulo: HUCITEC, 1989. ______. A militarização da Questão Agrária no Brasil. (Terra e poder: o problema da terra na crise política). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. ______. A sociedade vista do Abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2003. 299 MARTINS, José de Souza (org). Capitalismo e tradicionalismo. Estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Editora Pioneira, 1975. Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. ______. Não há terra para plantar neste verão. O cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. ______. Os camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. ______. Os camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1983. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Teses sobre Feuerbach. 1º Capítulo. São Paulo: Ed. Moraes, 1984. MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DE SANTA CATARINA. Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina. Uma história de organização, lutas e conquistas. Chapecó: MMC/SC, 2008. MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL. Dados institucionais. Disponível em: http://www.mmcbrasil.com.br. Acesso em 05/06/2009. ______. Participação Política das Mulheres. Passo Fundo: Secretaria Nacional do MMC Brasil, [s.d.]. Folder institucional. NISBET, Robert A.. As idéias-unidades da Sociologia. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 41-61. ______. Conservadorismo e sociologia. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 62-76. PARRA, Gustavo. Antimodernidad y Trabajo Social. Orígenes y Expansión del Trabajo Social Argentino. Departamento de Ciencias Sociales. Lujan: Universidad Nacional de Lujan, 1999. PAULILO, Maria Ignez e SILVA, Cristiane Bereta da. A luta das mulheres agricultoras: entrevista com Dona Adélia Schmitz. In: Estudos Feministas. 15(2). Florianópolis, maio-agosto/2007. pp.399-417. PAULILO, Maria Ignez. Movimento de Mulheres Agricultoras: terra e matrimônio. In: __________ e SCHMIDT. Agricultura e espaço rural em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003. pp.183-210. RIBEIRO, Edaléa Maria. Movimentos sociais em tempos de democracia e globalização em Santa Catarina. Os anos 90. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. 300 RIBEIRO, Marlene. O caráter pedagógico dos movimentos sociais. In: Serviço Social e Sociedade. n.58. São Paulo: Cortez, Nov/1998. pp. 41-71. SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo J (orgs.). Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In: ______ e KRISCHKE, Paulo J (orgs.). Uma revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 35-53. ______. Rede de Movimentos Sociais. Coleção Estudos Brasileiros – 1. São Paulo: Loyola, 1993. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista Educação & Realidade. V. 20, N. 2. Porto Alegre: Faculdade de Educação da UFRGS, jul/dez, 1995. p.71-99. SILVA, José Graziano da. Tecnologia e agricultura familiar. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. SILVA, Maria Lúcia Carvalho da. Movimentos sociais: gênese e principais enfoques conceituais. In: Revista Kairós: Gerontologia. Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento. Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia, PUC-SP. Ano 1, n.1 (1998). São Paulo: EDUC, 1998. SLATER, David. Repensando as espacialidades dos movimentos sociais – Questões de fronteiras, cultura e política em tempos globais. In: ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (org). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. SOLARI, Aldo E.. Sociologia Rural Latinoamericana. Editorial Paidos, Buenos Aires, 1971. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1986. [Fragmento da Introdução]. p. 23-28. STROPASOLAS, Valmir Luiz. O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. 301 APÊNDICES 302 Apêndice II PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS DE PESQUISA ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO PARA ORIENTAÇÃO DE ENTREVISTAS MESTRANDA: Mailiz Garibotti Lusa ORIENTADORA: Dra. Maria Carmelita Yazbek EIXO 1: Sobre como o campo figura na atual sociedade capitalista Ao ser questionado sobre como compreende o mundo rural na atualidade, um pesquisador afirma: [...] Concebo um universo que interage, nas mais diversas dimensões, como o conjunto da sociedade brasileira e mantêm estas relações que se estabelecem no cenário global. Não visualizo, assim, um espaço rural autônomo em relação ao conjunto da sociedade, que se caracterizaria por uma lógica própria e independente de reprodução social. Importa salientar, entretanto, que este mundo rural mantém particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas, que o recortam como uma realidade própria, da qual fazem parte, inclusive, as próprias formas de inserção na sociedade que o engloba (Stropasolas, 2006, p.33). 1.1 Para você, como os diversos segmentos da Sociedade (instituições, políticos, mídia, população em geral) vê o cotidiano e a realidade da vida no campo em seus apectos sociais, econômicos, políticos e culturais? 1.2 Para você, como esses mesmos segmentos da sociedade apontados acima, visualizam o “homem campones” e à “mulher camponesa”? Há diferença em relação aos “homens e mulheres urbanos”? EIXO 2: Sobre os movimentos sociais camponeses no Brasil Na história do Brasil nota-se a ocorrência de muitas lutas sociais. A guerra de Canudos e do Contestado são exemplos, assim como a luta pela reabertura política e pela redemocratização no início da década de 1980 e pela conquista de direitos sociais na Constituição Federal de 1988. Uma referência significativa, por exigência da Constituição Brasileira de 1988, vem sendo a participação da população nas estruturas de conselhos e colegiados, em geral, fruto de políticas específicas. A saber, da mulher, da criança e do adolescente, dos idosos, da saúde, da educação, etc.. Contudo, a experiência mais bem-sucedida nesse aspecto é a participação popular na elaboração dos orçamentos municipais [...] (SILVA, 2001, p.33). 2.1 Qual o papel desempenhado pelos movimentos camponeses na trajetória histórica do país? 2.2 Como você avalia a participação dos movimentos campesinos na esfera política da sociedade, ou seja, qual o grau de participação que desempenham nas lutas e conquistas para a garantia dos seus direitos? 303 EIXO 3: Sobre o Movimento de Mulheres Camponesas Diversos pesquisadores reconhecem a importância dos movimentos de mulheres no cenário público – social e político, principalmente - do Brasil nas últimas três décadas. Veja o que diz uma estudiosa dos movimentos sociais brasileiros: É indispensável assinalar que os movimentos sociais, no Brasil como na América Latina, trouxeram à cena política, de forma majoritária, a participação das mulheres, especialmente como demandatárias de reivindicações populares por melhorias e serviços coletivos. Elas estão mudando com sua participação, forte e decidida, muitos valores e comportamentos entre os sexos na cultura popular brasileira(SILVA, 2001, p.33). No site institucional do MMC encontramos a seguinte afirmação sobre a identidade do movimento Somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóiasfrias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem-terra, assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade (MMC, 2009). 3.1 O surgimento: o que levou a constituição do MMA? 3.2 Trajetória dos anos 1980: era o período de reabertura política e de conquistas de direitos. Como foi a participação do MMA? 3.3 Trajetória dos anos 1990: fala-se em crise dos movimentos sociais. Como estava o MMA naquele momento? 3.4 Como está a organização do MMC hoje? Quais são suas bandeiras e suas estratégias de luta ? 3.5 Qual a sua concepção sobre “identidade camponesa”? Há diferença na ‘identidade da mulher camponesa’antes e depois dela iniciar sua militância no MMC? 3.6 Na sua opinião, em que consiste o “protagonismo” do MMC ? A partir de que elementos pode-se afirmar que o protagonismo se concretiza no MMC ? 3.7 Como define a autonomia do MMC ? Quais as características do MMC que permitem identificá-lo como autônomo? Quais os principais desafios enfrentados no processo de conquista da autonomia? 304 EIXO 4: Sobre os direitos sociais e as políticas públicas Nota-se na fala de uma dirigente do MMC, Dona Adélia, numa entrevista no ano de 2007, que o campo dos direitos sociais são muito importantes para o movimento. Segundo ela, Somos um movimento classista, das mulheres trabalhadoras do campo que compõem a classe trabalhadora. [...] Nossa causa é a transformação da sociedade. Por isso nós lutamos por direitos sociais [Entrevista de D. Adélia Schmitz para a Revista Estudos Feministas] (PAULILO e SILVA, 2007 [15(2)], p.399-417). 4.1 Quais direitos sociais e políticas públicas voltados para as camponesas e camponeses existem atualmente no Brasil? 4.2 Poderia dizer quais foram as principais reivindicações do MMC ao longo dos seus 25 anos? 4.3 Quais destas reivindicações foram conquistadas? 4.4 Qual é a atual pauta de luta? EIXO 5: Sobre a relação entre Serviço Social e Meio Rural Conforme site institucional do Conselho Federal de Serviço Social: O Brasil tem hoje aproximadamente 80.000 profissionais que atuam, predominantemente, na formulação, planejamento e execução de políticas públicas como educação, saúde, previdência, assistência social, habitação, transporte, entre outras, movidos/as pela perspectiva de defesa e ampliação dos direitos da população brasileira. Trabalham também na esfera privada, principalmente, no âmbito do repasse de serviços, benefícios e na organização de atividades vinculadas à produção material, e atuam em processos de organização e formação política de segmentos da classe trabalhadora (CFESS, 2009). 5.1 Para você o que corresponde ao papel de um (a) Assitente Social? 5.2 Já foi atendida por um profissional? Caso afirmativo: como foi o atendimento? (Somente depois destas primeiras perguntas, explicar o que faz o Assistente Social. Pode-se utilizar as informações acima) 5.3 Conhece alguma Assistente Social que trabalha com a questão agrária, ou seja, no campo ? 5.4 Se fosse para sugerir, que tipo de trabalho uma (um) Assistente Social poderia realizar junto aos camponeses ou junto ao MMC, qual seria sua sugestão ? 305 Apêndice II PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS DE PESQUISA ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO PARA ORIENTAÇÃO DE ENTREVISTAS MESTRANDA: Mailiz Garibotti Lusa ORIENTADORA: Dra. Maria Carmelita Yazbek TERMO DE CONSENTIMENTO Local ............................................., Data........./........../......... Eu, _____________________________________________, RG ________________ Declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha fala (entrevista ou depoimento) do (s) dia (s) ____/____/____, para a Assistente Social Mailiz Garibotti Lusa, mestranda em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, para usá-la integralmente ou em partes, sem restrições de prazos e citações, respeitando apenas a privacidade do meu nome, desde a presente data. Da mesma forma, autorizo o uso de terceiros que podem ouvi-la e usar o texto final que está sob a guarda de Mailiz Garibotti Lusa. Abdicando direitos meus e de meus descendentes, subescrevo o presente com minha assinatura. _______________________________________ 306 Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo