CHIQUINHA GONZAGA: TRANSGRESSÃO, SUCESSO E MEMÓRIA. A RELAÇÃO ENTRE A COMPOSITORA E A TEORIA SOCIAL DO ESCÂNDALO.1 Maristela Rocha Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ Graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela UFJF [email protected] Palavras-chave: Chiquinha Gonzaga. Escândalo. Mídia. Rio de Janeiro. Gênero. Tomando, especialmente, como referencial a obra Media Scandals: Morality and Desire in the Popular Culture Marketplace, editada por James Lull e Stephen Hinerman, defendemos que é o conjunto da atuação de Chiquinha Gonzaga, compositora, maestrina e pianista (1847-1935), pioneira em vários aspectos, que a fez chegar ao século XXI, não só como excelente compositora, mas também por sua personalidade ousada e contestadora, muito a frente da maior parte das mulheres de seu tempo. Propomos, nesse sentido, uma articulação entre as características teóricas essenciais enunciadas por Thompson no ensaio Scandal and Social Theory (In: LULL e HINERMAN, 1997) e a trajetória da compositora, evidenciando, a partir desse estudo de caso, que os escândalos midiáticos, que atingiram o apogeu no século XX, iniciaram-se no século XIX. A política, a sociedade e a religiosidade do tempo de Chiquinha Gonzaga aparecem como fatores determinantes para a identificação da compositora como uma personalidade escandalosa, evidenciando a relação entre os artistas e as esferas de poder. Sensível às causas do seu tempo, Chiquinha acaba por se tornar uma das pioneiras na atuação, como mulher e artista, em causas políticas e sociais. Por isso ela é uma personalidade relevante; não somente para a academia musical, mas para a história cultural do Brasil. Convencidos de que a ocorrência do escândalo envolve a transgressão de certos valores, normas ou códigos morais, conforme ressalta John B. Thompson, em Media Scandals (In: LULL e HINERMAN, 1997), lembramos que a compositora, realmente, transgrediu os valores da sociedade da segunda metade do século XIX. Outubro de 1847, Rio de Janeiro. São este tempo e espaço o ponto de partida para o desenvolvimento da trajetória de Chiquinha Gonzaga. A boa conduta, a obediência ao pai e, posteriormente, a submissão ao marido, a religiosidade, as boas maneiras nas requinta1 II Colóquio Internacional de História da Arte e da Cultura (CIHAC) – “O artista e a sociedade” – UFJF, 2012. Publicado nos anais do congresso. das festas sociais eram os valores essenciais, sobretudo na camada social à qual a menina Francisca Edwiges obliquamente pertencia, apenas por mérito do pai, o militar Basileu. Ressaltando o patriarcalismo da sociedade brasileira, Gylberto Freire, em Casa-Grande & Senzala, explica que: Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre o conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido. Não convém, entretanto, esquecer-se do sadismo da mulher, quando grande senhora, sobre os escravos, principalmente as mulatas; com relação a estas, por ciúme ou inveja sexual (FREYRE, 1992, p. 51). O nascimento de Chiquinha Gonzaga já poderia ser considerado uma transgressão para aquela época, já que era filha bastarda de mulher pobre, mestiça e solteira, mas que acaba sendo registrada pelo pai, o militar, branco, Basileu; batizada na Igreja de Santana e iniciada na formação católica, seguindo os costumes morais do Império. Chiquinha estava, dessa forma, adotada legitimamente pela sociedade escravista. Os pais, então, cuidariam de dar à menina Francisca uma educação esmerada, como exigiam as normas sociais da corte. Basileu possuía o curso completo na Escola Militar, era bacharel em matemática e ciências físicas e conhecia inglês, latim e francês. Obviamente, não descuidou da educação da menina Francisca e contratou, então, o professor cônego Trindade para lhe ensinar a leitura, a escrita, o cálculo, o catecismo e idiomas. O pai cuidou também da educação musical, que ficou a cargo do maestro Lobo. iAs possibilidades de acesso à vida social da corte de D. Pedro II ficavam-lhe garantidas porque José Basileu mantinha relações de parentesco e amizade com pessoas de alta posição social como Duque de Caxias, herói do Exército Imperial (DINIZ, 1991, p. 5). O público feminino aderia, naquele período, à leitura das novelas românticas, assim como aos bordados, às receitas, às confidências entre as amigas, às lições de piano para brilharem perante as visitas. Mas esse domínio público (a sala de visitas) e o privado (o quarto) da casa não serviam mais a Francisca Edwiges. Esse mascaramento social causavalhe repugnância. O domínio público que Francisca Edwiges aspirava era a rua, os saraus, o Alcazar Lírico, onde a sua musicalidade pudesse fluir, ao contrário do que estaria fadada a ser, caso não abandonasse a vida familiar: uma pianista do lar. O casamento foi-lhe imposto aos 16 anos, mas, na verdade, a vida íntima de Francisca começava a ser rodeada por pequenos segredos como visitas, na ausência do marido, aos amigos músicos, considerados boêmios; a esmerada dedicação ao piano, arriscando as primeiras tentativas de composições, também a contragosto do Sr. Jacinto Ribeiro do Amaral; o desejo ardente pelo seu verdadeiro amor, o engenheiro João Batista de Carvalho. Segredos que começavam a perturbar a vida conjugal e que, brevemente, se tornariam escândalo na rua. Aos vinte e nove anos já se fizera, pela transgressão, uma mulher livre para ter os relacionamentos amorosos que quisesse. Após o nascimento do terceiro filho, Francisca detonaria uma crise familiar, decidindo abandonar o marido e levar consigo apenas o filho mais velho João Gualberto. A filha Maria ficaria sob a guarda do coronel Basileu, e o filho menor, Hilário, sob a responsabilidade do pai, Jacinto. A jovem senhora Francisca Edwiges rompia, então, com uma tradição familiar, passando a frequentar a boemia carioca ao lado de artistas. Francisca é expulsa da família sob a ira do pai, mas é bem recebida no ambiente musical boêmio, em especial pelo flautista e compositor Antônio Callado que, apaixonado, a homenagearia, posteriormente, com a polca Querida por todos. Mas o coração de Chiquinha já tinha mesmo dono: o engenheiro de estradas de ferro João Batista de Carvalho, o sensual J.B. ou Carvalhinho. E o novo amor, certamente, não a livraria de hostilidades na vida social. Com o fim do relacionamento, Chiquinha deixaria com J.B. a filha Alice e partiria, novamente, apenas com João Gualberto. Quanto ao aspecto musical no Rio de Janeiro do século XIX, podemos dizer, informalmente, que era possível encontrar música por todos os cantos, no cenário urbano, nos saraus, nos concertos, nas festas da corte e, também, a música popular nascente, contagiante, envolvente, como a dos eufóricos e sensuais afro-brasileiros. Espetáculos líricos, bandas militares, música religiosa; as valsas e as polcas nas reuniões familiares e nos salões, o lundu nas rodas de danças dos escravos. Iniciavam-se as parcerias na música popular, diferentemente do que acontecia até o fim do Primeiro Reinado, quando as modinhas e os lundus se dividiam entre os compostos por músicos de escola para edição em partituras de piano. Já o choro, inicialmente apenas a denominação de um conjunto instrumental, foi, aos poucos, ganhando um jeito “abrasileirado” de interpretar a música europeia daquela época. A introdução da flauta, propiciando um caráter plangente, choroso à melodia, acabava por dar à canção executada o nome de “choro” e aos músicos, a denominação de “chorões”. Os grupos de choro, em geral, também animavam festas e bailes populares, principalmente antes do advento do disco no Brasil. Toda a excentricidade desse gênero levou a pianista Chiquinha Gonzaga ao seu primeiro sucesso, Atraente, composta durante uma sessão de “choro” realizado na casa do compositor Henrique Alves de Mesquita. O pianista de choro deveria ter desenvoltura, ginga, ou seja, talento para a improvisação e, por isso (em especial), eram chamados de pianeiros; e Chiquinha Gonzaga soube, realmente, trabalhar essa ideia, antes mesmo de Ernesto Nazareth, um dos maiores nomes da música brasileira, que apareceu no cenário musical como um autêntico pianeiro, como eram chamados os pianistas que tocavam em salas de cinema, cafés, bailes. Posteriormente, Chiquinha passaria a integrar o famoso Choro do Callado, o que foi importantíssimo para a sua profissionalização. Chiquinha Gonzaga passava, então, a dedicar-se profissionalmente à música para sua manutenção econômica e teve que conhecer, de perto, esse “novo” domínio público. Soube, entretanto, driblar as situações mais inusitadas, pois tinha pela frente um grande objetivo, o de se tornar uma grande compositora. D. Francisca, agora Chiquinha Gonzaga, transformara o piano de mero ornamento em um meio de trabalho e desce na escala social, como comenta a biógrafa Edinha Diniz: De dama a mulher livre, do sobrado a casa de porta e janela, sua reputação e posição social induzia uma mulher facilmente à prostituição. Em geral desaparelhada para o exercício de uma profissão, a recusa à carreira doméstica fazia com que se enquadrasse na outra única via possível de subsistência (DINIZ, 1991, p.91). A popularização da marcha Ó abre alas, inicialmente utilizada na peça Não Venhas!, de Batista Coelho, consagra o nome da compositora como pioneira na música para carnaval de rua. E Chiquinha Gonzaga tinha ainda como meta o teatro musicado. Com Forrobodó (1912) - de Carlos Bittencourt e Luiz Peixoto - e seus tipos populares e caricaturados, além do sensual maxixe, Chiquinha se firma nesse gênero. É interessante ressaltar que, anteriormente, Chiquinha tentara musicar Viagem ao Parnaso, de Arthur Azevedo, mas teve que interromper o trabalho porque o empresário queria que ela usasse um nome masculino. A sua oportunidade só aconteceria depois, com A corte na Roça, de Palhares Ribeiro, já que Chiquinha não aceitaria um pseudônimo masculino para ceder às exigências daquela época. Conforme ressalta Michelle Zimbalist Rosaldo Onde as atividades masculinas são justificadas e racionalizadas por uma classificação social, por um sistema de normas aprovando suas diversas atividades, as mulheres são classificadas em conjunto e seus objetivos específicos são ignorados. Do ponto de vista de um sistema social amplo, elas são vistas como desviadoras ou manipuladoras porque os sistemas de classificação social raramente concedem um lugar para seus interesses; elas não são publicamente compreendidas (ROSALDO, 1979, p.48). Chiquinha Gonzaga era uma mulher muito bem informada, engajada com as causas do seu tempo. Envolveu-se nos episódios da Revolta do Vintém, ocorrida em 1880, quando a população se mobilizou contra o governo por causa de uma taxa sobre o transporte urbano repassada ao usuário. Durante a Revolta do Vintém, populares destruíram bondes no centro da cidade. Os jornais abolicionistas apoiaram a Revolta e a população mostrou, assim, que podia se manifestar e ser mais atuante. Consequentemente, o interesse de Chiquinha pela política e pela sociedade influenciariam sua obra e podemos destacar algumas delas, como o Hino à Redentora – peça para coro e piano, em homenagem a abolição dos escravos – 1888; A revista Abolimdemrepcochindego de Valentim Magalhães e Filinto de Almeida – 1889 – que se referia à abolição da escravatura, à indenização pretendida pelos senhores de escravos, à campanha republicana, ao ministério Cotegipe, à visita dos chineses ao Rio de Janeiro e à chegada à cidade do meteorito Bendegó. Além daquelas, a marcha para banda O Século, dedicada à campanha beneficente a favor de crianças vitimadas por um terremoto em Ribatejo. A ativa participação de Chiquinha nos meios artísticos, boêmios, políticos e até policiais, numa cidade que não ultrapassava 400.000 habitantes, fazia dela uma figura pública exposta a toda espécie de comentários: de elogios na imprensa às fofocas cochichadas na rua do Ouvidor, sussurradas pelas famílias e difundidas pelos pasquins. As difamações tinham uma importante função moralizadora: que o seu comportamento não servisse de exemplo para outras mulheres. Constatamos, novamente, os enunciados de Thompson na trajetória de Chiquinha: outra característica essencial para o escândalo é o conhecimento público do fato transgressor da norma, a denúncia propriamente dita. Dessa forma, ele envolve o grau do conhecimento público de ações ou eventos, que deveriam ser secretos, privados. Cabendo, então, ao público não participante o processo de tornar visível o fato. A confirmação do escândalo requer, ainda, a investigação da veracidade dos fatos. Isto porque ele não pressupõe somente o conhecimento público do fato, mas a insatisfação pública diante do acontecido. Isto quer dizer que as pessoas têm que desaprovar a ação, se sentirem chocadas, agredidas pelo evento. Ainda segundo Thompson, o desagrado público não é o suficiente para o desenvolvimento do escândalo. É preciso que a insatisfação seja manifestada, expressa de alguma forma. O próprio postulado acerca do escândalo é constituído por dois aspectos: os atos da transgressão e a resposta pública através de diversas formas de expressão. Sem respos- tas não há escândalo. Em conformidade com o postulado, Chiquinha Gonzaga foi, muitas vezes, ridicularizada através da chamada imprensa libertina com paródias e quadrinhas anônimas que circulavam oralmente pelas ruas. Atestando essas observações, usamos o registro da biógrafa Edinha Diniz: “No Rio de Janeiro de 1877 o nome de Chiquinha Gonzaga foi cantarolado em maldosas quadrinhas satíricas pelas ruas. Este era o preço que ela pagava por romper as normas sociais e perturbar o funcionamento da ordem social” (DINIZ, 2000, p. 104). Isso nos faz retornar à questão do escândalo, observando com Thompson que, quando a condenação destas ações compromete a reputação dos envolvidos, ele fica ainda mais caracterizado. Não existe, neste caso, a menor dúvida sobre o peso das condenações sociais na vida de Chiquinha Gonzaga, que teve o desprezo da família e sofreu constrangimentos de todo tipo por causa de sua conduta. A Francisca Edwiges, que frequentava as festas da corte, transformara-se em Chiquinha Gonzaga e, depois, em Chica Polca, um percurso nítido de decadência escandalosa. Além dos postulados de Thompson, encontramos considerações elucidativas sobre como o poder é amplamente regulado pelo controle ideológico e pelos mecanismos de representação na obra de Harvey (1989). O autor articula essa ideia no capítulo A experiência do espaço do tempo, evidenciando que: as ordenações simbólicas do espaço e do tempo fornecem uma estrutura para a experiência mediante a qual aprendemos quem ou o que somos na sociedade. A noção comum de que há um tempo e um lugar para tudo ainda tem peso, e as expectativas sociais estão voltadas para o local e o momento em que as ações ocorrem (HARVEY, 1989, p.198). Ainda em Condição Pós-Moderna, Harvey analisa as abordagens sóciopsicológicas através de vários autores. Pode-se concluir que a fixação de esquemas sociais em categorias hierárquicas e opositivas sempre fortaleceram o poder institucionalizado do patriarcado, tanto no conhecimento quanto no campo da sociedade e da política. Bordieu explica que "as expectativas sociais estão voltadas para o local e para o momento em que as ações ocorrem. A razão pela qual a submissão aos ritmos coletivos é exigida com tanto rigor". Segundo Hängerstrand, as "biografias individuais podem ser tomadas como trilhas de vida no tempo-espaço". E, ainda na referida obra, Lefebvre afirma que O domínio do espaço reflete o modo como indivíduos ou grupos poderosos dominam a organização e a produção do espaço mediante recursos legais ou extralegais, a fim de exercerem um maior grau de controle quer sobre a fricção da distância ou sobre a forma pela qual o espaço é apropriado por eles mesmos ou por outros (In: HARVEY, 1989, p. 202). Outra barreira rompida pela transgressora Chiquinha Gonzaga pode ser registrada pela repercussão do seu tango Corta-Jaca no Catete, executado pela irreverente Nair de Teffé, também contestadora da submissão feminina. Durante uma recepção oferecida ao corpo diplomático no Palácio do Catete, onde deveria prevalecer a música erudita, Nair de Teffé, esposa do Presidente da República Marechal Hermes da Fonseca, interpretou a música Corta-Jaca. Além de expressar o gosto musical, Nair de Teffé teve, também, o intuito contestador a favor do maxixe, devido a repercussão negativa do gênero na sociedade de então. Além disso, o violão era considerado um instrumento para músicos do sexo masculino. E o contagiante maxixe desencadeou mesmo muita polêmica. Segundo a biógrafa Dalva Lazaroni, a Igreja fazia apelos contra a dança e os ministros aproveitavam os sermões e as aulas de catecismo para alertar sobre os “perigos do maxixe”: “- O maxixe não é uma dança de família. Ao contrário, deve ser evitada pelas meninas e meninos que querem crescer sadios e sem problemas mentais para o futuro. É uma dança que perverte” (In: LAZARONI, 1999, p. 446).ii Além da repercussão nacional, o maxixe foi o primeiro ritmo brasileiro a alcançar sucesso na Europa, em especial pelo trabalho dos dançarinos Gaby e Antonio Lopes de Almeida Dinis, o “Duque”. Dalva Lazaroni explica que, antes da reação negativa das bases eclesiásticas, o então Ministro da Guerra, Marechal Hermes da Fonseca, declarara o maxixe indigno de ser tocado pelas bandas militares de todo o Brasil e proibia que fosse executado em solenidades oficiais. A interpretação do maxixe na Itália causou indignação no clero e até no Papa. Lazaroni registra que a Igreja romana publicou uma bula papal, condenando o maxixe ao inferno e amaldiçoando seus criadores: Demônio, capeta, maxixe, mulher diabo, eram palavras que, quando ditas, vinham acompanhadas de sinais da cruz e mãos postas e erguidas aos céus. O pobre coitado do cardeal Arcoverde, do Rio de Janeiro, foi convocado às pressas para dar maiores detalhes sobre o assunto que comprometia a família européia e colocava em risco a honra e os bons costumes mundiais. De todas essas manifestações do clero, depois de longos debates, chegou-se a uma conclusão: o maxixe era maldito, devia ser excomungado (LAZARONI, 1999, p.452).iii Segundo a museóloga e memorialista Cleusa de Souza Millan, na obra A memória social de Chiquinha Gonzaga, a compositora sofreu a ação da censura, em sua longa trajetória musical, de uma forma direta e de uma forma indireta. Na época da Revolta da Armada, por exemplo, quando a cidade do Rio de Janeiro foi bombardeada por navios revoltosos, ocasionando o estado de sítio, Chiquinha sofreu uma censura de forma direta. A cançoneta Aperte o botão, considerada ousada pelo governo Floriano Peixoto, foi apreendida, a edição inutilizada e a autora recebeu ordem de prisão. Entretanto, devido ao seu parentesco com pessoas ilustres, nada sofreu (MILLAN, 2000, p.16). Além disso, Chiquinha foi censurada indiretamente ao longo do final da década de 1910 e no início de 1920, quando a 2ª Delegacia Auxiliar da Polícia do Distrito Federal e a Comissão de Censura do Conservatório Musical de São Paulo censuraram parte dos textos de peças teatrais musicadas pela maestrina. A memorialista ressalta que, como as músicas se relacionavam, em cada cena, com os diálogos dos personagens censurados, é evidente que também as músicas foram censuradas, sendo incorporadas mais tarde ao acervo do DIP, durante o Estado Novo: Constam as seguintes peças teatrais musicadas por Chiquinha Gonzaga: Juriti, de Viriato Corrêa; Estrela d’Alva, de Mário Monteiro, e Conspiração do amor, de Avelino Andrade. Na Seção de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional identificou-se mais uma peça musicada por Chiquinha Gonzaga, com texto censurado: Nu e cru, de Antonio Quintilianoiv (MILLAN, 2000, p. 128). Perante as censuras e críticas sociais ao “desvio moral da filha”, os pais de Chiquinha sentiram-se muito humilhados; além disso, a filha de Francisca, Maria, teve seu noivado rompido porque o noivo não queria mais se envolver com a sua família difamada. Além das brigas do filho em defesa da mãe, que era alvo de mexericos populares, a afronta maior foi para o seu pai, o severo militar Basileu, que assim se referiu à filha: Esta moça para mim está morta! Morta para todos nós da família Neves Gonzaga! Seu nome está proibido de ser pronunciado, sob qualquer hipótese, por qualquer membro de nossa família. Quem quiser ser meu inimigo é só mencionar o nome daquela... daquela... (DINIZ, 1991, p.256). Os comentários maledicentes aumentavam na mesma proporção que o sucesso da compositora, e isto era considerado normal para a época porque, normalmente, “essas quadrinhas e a caricatura revelavam a contribuição do humor às questões públicas”, afirma Edinha Diniz (1991, p.72), e: “O cidadão anônimo a enviava aos jornais, a enunciava pu- blicamente, às vezes ganhava música e se divulgava mais, ou simplesmente a utilizava diretamente sobre o fato condenável, quando se tratava de um serviço público deficiente.” Além da publicação de quadras nos jornais, no tempo dos assobios, as cartas anônimas agrediam, como os antigos pasquins. A “Chica Polca” foi vítima, várias vezes, dessas maledicentes formas de comunicação. Afinal, a fama, a irreverência e a produção musical de Chiquinha serviam de repúdio a muitas pessoas. Por isso, a independente compositora começou a receber cartas anônimas com ameaças à sua integridade física. Uma das muitas cartas, que foram deixadas por baixo da porta de sua casa, terminava assim, segundo Dalva Lazaroni: “...A senhora representa o que há de mais nocivo na sociedade brasileira. É um perigo não só para as outras mulheres, mas também para todas as famílias de bem... um mau exemplo. E o que lhe é mais suave é a morte” (LAZARONI, 1999, p.262). Tantas intrigas foram acirrando o repúdio da família com relação à transgressora Chiquinha. O pai não a perdoou nem nos últimos momentos de vida. Por ocasião da sua morte, Chiquinha Gonzaga teve que acompanhar o cortejo à distância, esperando o sepultamento do pai do lado de fora do cemitério. Ela sentia, mais uma vez, o peso de suas atitudes irreverentes perante os costumes em voga. A própria família, indiretamente, deu um exemplo de condenação pública, mandando queimar as partituras da compositora e prender os moleques apregoadores. A partir dos anos 1880, durante as campanhas abolicionistas e republicanas, surge uma imprensa mais sólida, associada a uma tipografia mais aparelhada, ao início da organização empresarial e ao trabalho assalariado. Chiquinha Gonzaga esteve presente nos meios jornalísticos, acompanhando toda essa trajetória. A pioneira Chiquinha Gonzaga assustou-se com o sucesso da sétima arte e sua concorrência com o teatro. Afinal, a popularização dos discos já obrigava o teatro a empreender mudanças. Modificações que estavam angustiando a maestrina no final de sua trajetória de vida. Outro motivo de angústia era a questão dos direitos autorais. A obra de Chiquinha popularizava-se tão rapidamente que, muitas vezes, era reelaborada por outro autor que a considerava patrimônio coletivo, anônima ou folclórica. Além disso, em Berlim encontrou partituras editadas sem a sua autorização. No caso de Forrobodó, cinco anos após a sua estreia, a peça tinha gerado para a empresa Paschoal Segreto 97 mil contos de réis, 600 mil réis a cada um dos autores e essa quantia havia sido negada a Chiquinha. Em 1917, Chiquinha Gonzaga passava a integrar o grupo que formaria a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Só em 1891, com a Primeira Constituição Republicana, foram editadas normas de Direito Autoral. Considerada falha em vários aspectos como, por exemplo, conferir sua proteção apenas por 50 anos contados da primeira publicação, esta lei vigorou até o advento do Código Civil, de janeiro de 1917, cuja lei nº 3.071 dispunha sobre a propriedade literária e artística. Por isso Chiquinha convocou os autores teatrais e jornalistas como Raul Pederneiras e Viriato Corrêa para uma reunião sobre a importância da união dos artistas em prol da garantia de pagamento dos direitos autorais. Muitos outros artistas foram, então, convidados para uma nova reunião, que aconteceu em sala cedida pela Associação Brasileira de Imprensa. Enfim, pelo Decreto nº 4.092, de 4 de Agosto de 1920, ficaria, posteriormente, reconhecida a “Sociedade Brasileira de Autores Theatraes” como entidade pública, com sede no Rio de Janeiro. Atualmente localizada à rua Almirante Barroso, nº 97, continua servindo aos autores. Na sede, encontra-se um busto da maestrina em tamanho natural (réplica do que está no Passeio Público da cidade)v, fotos comemorativas na galeria dos grandes autores nacionais e a cadeira de sócia nº 1 com o seu nome. No que se refere à sua carreira musical, a respeitabilidade da obra da compositora vem mesmo pelo teatro, em especial pelo gênero teatro de costumes regionais; do ponto de vista social, a respeitabilidade de Chiquinha acontece apenas nos últimos 20 anos de vida, coincidentemente quando a maestrina apresentava comportamento mais adequado aos padrões vigentes: mais recatada e sempre acompanhada do pretenso “filho” Joãozinho. Encontramos, então, uma importante contradição na trajetória de vida da irreverente e transgressora maestrina. Pela primeira vez, ela cedia às regras sociais e preferia não tornar pública a sua vida íntima com um rapaz 36 anos mais jovem que ela. Chiquinha, certamente, já sabia do peso da condenação social dessa união. Entretanto, a compositora soube preservar sua privacidade com Joãozinho, com quem viveu até o fim da vida, às 18 horas do dia 28 de fevereiro de 1935. O que acabamos de afirmar também é bem explicado por Thompson, observandose que as consequências do escândalo envolvem a reafirmação do status quo, ou seja, são rituais de absolvição coletiva: momentos em que a sociedade se confronta com as transgressões dos indivíduos e, trabalhando através de processos, denúncias e “desforras”, acaba por reforçar as normas, convenções e instituições que constituem a ordem social. Foi justamente o que aconteceu com Chiquinha Gonzaga. Talvez ela estivesse exausta de seus próprios envolvimentos em episódios transgressores, mas o fato é que ela não se desvencilhou de seu relacionamento com Joãozinho, mas teve o recato de não evidenciá-lo perante a sociedade. Pela primeira vez, ela parecia ceder às imposições sociais. Chiquinha Gonzaga escreveu cerca de 2000 músicas. Não podemos indicar o número preciso, porque nem todas foram catalogadas. Mais de 70 peças são destinadas ao teatro, entre burletas, operetas, comédias musicais e revistas, obras relevantes para a história desses gêneros no país. Os músicos dessa fase pioneira, como Chiquinha e Costa Júnior, tentaram adaptar sua formação semierudita ao gosto das camadas mais amplas da cidade. Desde a morte de Chiquinha, muitos projetos musicais, espetáculos teatrais, programas radiofônicos e televisivos, gravações em CD, muitas reportagens, homenagens, bem como as biografias, além de minissérie televisiva, vêm contribuindo para a divulgação da vida e da obra da compositora. Entretanto, há muito ainda a se falar sobre Chiquinha Gonzaga. Apesar de toda a celebração ocorrida na imprensa, a memória de Chiquinha Gonzaga não ocupa ainda um lugar adequado na memória coletiva do povo brasileiro. Todos os trabalhos publicados acabam por reforçar a força psicológica da compositora que rompeu com as normas fundadas no preconceito e na injustiça social, revelando, justamente, uma sociedade que justifica as atitudes masculinas e confirma a submissão das femininas. Por isso, as mulheres que não acatavam as determinações sociais eram causadoras de escândalo. Eram diminuídas perante a grandeza, a superioridade masculina. No caso de Chiquinha, a história teve um cálculo diferente. O escândalo, aliado a uma importante obra, teve como resultado a repercussão da vida e da obra da maestrina. Referências bibliográficas: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e Ordem Privada no Império In: História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. vol. 02. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.11 - 94. ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 45-77. BARTHES, Roland. 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Por sinal, foi esse tio quem apresentou, como surpresa à família, no Natal de 1858, a primeira composição da menina Chiquinha, então com 11 anos, com letra do irmão Juca, de 9 anos, a loa Canção dos Pastores. ii Referimo-nos a um estilo de dança brasileira que utiliza o ritmo binário da polca e do tango, ou seja, no maxixe há uma predominância da dança, da coreografia sobre a música. É caracterizado pelo caráter lascivo da dança, pela sincopação, pela vivacidade rítmica da música, pela influência dos elementos do batuque e pela utilização da gíria carioca, quando cantado. Apenas no final do século XIX as casas editoriais o consideraram um gênero musical, imprimindo as músicas com essa qualificação. iii A mulher a que se refere a citação é a própria Chiquinha Gonzaga. iv Após a desativação do DIP, o acervo de peças censuradas fez parte do Ministério da Indústria e Comércio (MIC) que, então, doou-o ao Arquivo Nacional, onde está arrolado nas pastas SDA 021 (Peças Teatrais- Índice); SDA 022 (Peças Teatrais. 1) e SDA 022 A. (Peças Teatrais. 2.). v O Passeio foi construído em 1783 e foi o grande ponto de encontro da população carioca nos séculos XVIII e XIX. Em seu interior, os habitantes do Rio de Janeiro, bem como os turistas, podiam contemplar, além de variadas espécies da flora nacional, obras de arte, como chafarizes e esculturas, confeccionadas por Mestre Valentim. No início do século XX, o Passeio passou a ser ornamentado por bustos de personalidades brasileiras, esculpidos por variados artistas. O busto de Chiquinha foi esculpido em 1942.