A HISTÓRIA DE SAN BENEDETTO Maria Nazareth Ferreira Nos primeiros tempos do Cristianismo, um acontecimento veio dar a Subiaco a posição de destaque que mantém até a atualidade: a vinda, no final do séc. V, do jovem Benedetto da Norcia. Fugindo da vida mundana de Roma, Benedetto encontrou numa gruta situada no Monte Taleo, em Subiaco, um refúgio isolado onde passaria três anos em profunda meditação1. Após aquele período em completa solidão, foi encontrado por pastores e, então, chamado para a vida monástica. Sua vida de severa penitência deu-lhe em breve, fama de santidade, chamando a atenção dos monges dos conventos vizinhos e os jovens romanos atraídos pelo seu exemplo. Sua irmã gêmea, Scolastica o encorajou a fundar o primeiro mosteiro, aquele que leva seu nome, pois também ela foi santificada. A criação do Mosteiro de Santa Scolastica provocou uma grande revolução na vida religiosa, transformando San Benedetto no baluarte da civilização moral2. Depois de algum tempo, começou a elaborar a Regola beneditina. Na região de Subiaco, Benedetto fundou treze monastérios, incluindo o Mosteiro de Santa Scolastica, que se situa próximo ao Santo Speco3. Segundo alguns entrevistados, o Renascimento só foi possível porque os beneditinos reuniram nos seus monastérios e traduziram para línguas modernas todos os documentos clássicos que sobreviveram aos bárbaros4. Alguns anos depois, Benedetto abandonou Subiaco, transferido-se para Monte Cassino, no sul do país. Ali, no ano de 529, com cerca de 50 anos de idade, iniciou uma grande revolução monástica, sedimentando finalmente a Regola da sua ordem, baseada no empenho do entendimento da palavra de Deus, na fadiga do trabalho e na solidariedade entre os homens. Nos termos do Ora et labora, está a síntese do ser humano e do cristianismo, o que transformou o Abade Benedetto num grande legislador5. 1 Feste, sagre e mercatini nel Lazio, p. 41. Lazio d'Oro, Op. cit., p. 317. 3 Idem, ibidem, p. 318. 4 Entrevistas concedidas a Maria Nazareth Ferreira em 21/03/98, Subiaco. 5 Fiaccola Benedettina Pro Europa Una: perché, storia, percorsi. Cassino, 1998. 2 2 Nos mosteiros beneditinos prevalecia o princípio da auto-suficiência, levando todos os monges à prática de sua máxima: ora et labora. Sua Regola só foi sedimentada a partir do séc. XIII. Entretanto, o exemplo do trabalho dos beneditinos foi frutífero. Pregavam a importância do amor ao trabalho, que se expressava em toda sua forma: o estudo, as artes em geral, o trabalho com a terra; a arquitetura, enquanto expressão artística, mas ligada à exigência moral de um ambiente belo e sadio. Fundaram escolas de arte e de artesãos, dando grande impulso ao estilo gótico dos sécs. XII e XIII; construíram belas catedrais, onde "... vere dimore dello spirito, nelle qualli nessuna creatura umana è estraniera" 6. Segundo um entrevistado, San Benedetto pode ser considerado o fundador da Europa moderna: "Através da lei de Cristo, da cultura e do trabalho, os monges beneditinos criaram uma nova civilização, promovendo valores humanos e aquela espiritualidade que nas condições históricas possibilita ainda os grandes projetos de justiça e de paz" 7. Porque a Fiaccola Em 24 de outubro de 1964, o Papa Paulo VI, ao inaugurar a reconstrução da Abazzia de Monte Cassino destruída pela guerra, em 1944, declarou “San Benedetto patrono principale dell'inteira Europa" (...) "Mensaggero di pace, realizzatore di unione, maestro di civiltà e, soprattutto, araldo della religione di Cristo e fondatore della vita monastica in Occidente... Al crollare dell'Impero Romano, ormai esausto, mentre alcune regioni d'Europa sembravano cadere nelle tenebre ed altre erano ancora prive di civiltà e di valori spirituali, fu San Benedetto con costante ed assiduo impegno a far nascere in questo nostro continente l'aurora di una nuova era" 8. Desde então, ganhou força a Fiaccola (tocha) de San Benedetto, um símbolo que as cidades de Norcia, Subiaco e Monte Cassino revivem, ano após ano, para recordar a mensagem do Santo. Segundo seus organizadores, 6 Lazio d'Oro, Op.cit., p. 318. Entrevistas concedidas a Maria Nazareth Ferreira em Subiaco, no dia 21/03/98. 8 Fiaccola Benedettina Pro Europa Una: perché, storia, percorsi. Cassino, 1998, p. 1. 7 3 "la Fiaccola benedettina va tracciando di anno in anno una singolare rete di itinerari che conducono, attraverso il continente europeo, alla culla della famiglia e della spiritualità benedettina, uno dei pilastri portanti della cultura europea" 9. No discurso do Papa Giovanni Paolo II de 18 de março de 1995, foi ressaltado o significado e a lenta expansão da Fiaccola Benedettina "Pro Europa Una": tendo surgido há muitos anos entre as cidades de Norcia e Arquata del Tronto, a Fiaccola, passou a adquirir âmbito nacional ao compreender as cidades beneditinas de Cassino e Subiaco. Posteriormente, foi ampliada para toda a Europa, envolvendo nas suas últimas edições, uma por ano, capitais como Praga, Londres, Budapeste, Madri, Varsóvia, Bruxelas e Lisboa. Neste ano de 1998, a cidade contemplada foi Viena. Norcia, Subiaco e Monte Cassino comemoram a festa de San Benedetto em 21 de março, data de sua morte. Geralmente, a festa compreende uma semana de celebrações religiosas, que culminam no dia 21 com missa, procissão e condução da tocha, com acompanhamento musical de representação trazida pela cidade que irá recepcioná-la. No caso deste ano, a procissão ocorreu ao som de uma banda austríaca. A festa de San Benedetto em Subiaco, a transformação da Fiaccola em um evento europeu é uma formidável tentativa de despertar a região para o turismo, inclusive o turismo internacional, tendo em vista que a cidade, além de oferecer atrativos religiosos e culturais (estes representados pela presença de vários mosteiros contendo um grande tesouro artístico e apresentando uma particular beleza arquitetônica), está situada no Vale do Aniene, onde é possível desfrutar da natureza e se localizam as estações de esportes de inverno mais próximas de Roma. Nesse sentido, a Azienda Autonoma Soggiorno e Turismo di Subiaco vem desenvolvendo um intenso trabalho visando a incentivar o turismo na região, através de propaganda, folhetos ilustrados etc. Os agentes oficiais e a população são unânimes em acreditar que o turismo será benéfico para a cidade, que, vale destacar, é desprovida de indústrias e inadequada para a agricultura, por situar-se numa região montanhosa e seca. Do ponto de vista da observação direta, no entanto, excetuando a visita aos mosteiros, não foi verificada a presença maciça de turistas, nem mesmo durante o acontecimento mais significativo, a condução da Fiaccola, no final da tarde. Por outro 9 Idem, ibidem. 4 lado, durante a Grande Feira realizada no período matutino, era significativa a participação de visitantes no público total. Como as iniciativas com vistas ao incremento do turismo são apenas recentes, provavelmente está faltando ainda uma melhor organização do evento, envolvendo, talvez, uma fusão das várias etapas da festa, que se apresentaram bastante separadas. 5 OS FAONI DI SAN GIUSEPPE EM SERMONETA Maria Nazareth Ferreira Introdução O fogo é sempre um componente essencial nas diferentes maneiras do homem realizar o seu culto religioso; não importa o tipo de religião, o fogo está sempre presente. O culto ao fogo vem de um período ancestral, muito anterior ao nascimento do cristianismo. Faz parte daqueles antigos rituais “pagãos” que, na Europa primitiva, se realizavam principalmente no início da primavera até o final do outono. Tinha a função purificadora de eliminar as influências malignas, além de imitar, na terra, a grande fonte de calor e vida: o Sol10. Na antiga tradição romana, as vestais do Templo de Vesta tinham obrigação de manter acesa a chama durante todo o ano, a qual deveria apagar-se no final de março. Nessa época, através de uma solene cerimônia se procedia à sua renovação. Fazia parte da cerimônia a distribuição de um tipo de doce feito em óleo; é possível que esta prática fizesse parte de um ritual de iniciação da primavera, pois aquele doce (fritella) tem o formato de um sol. Na época romana, o costume de oferecer fritelle foi consagrado à figura de Sileno, o pai de Bacco, que é apresentado pela iconografia clássica como um ancião que tem no braço uma criança11. É provável que o uso deste rito tão presente nas festas de São José tenha sido criado porque este santo é venerado no dia 19 de março, início da primavera no Hemisfério Norte. Em muitas localidades da Itália, festeja-se esta data com grandes fogueiras (os faoni), farta distribuição de comida e bebida, além de danças. Possivelmente, com o advento do cristianismo, a figura de Sileno tenha sido transferida ao pai adotivo de Jesus, atravessando o tempo numa extraordinária persistência. O fato é que não há outra explicação para a festa dos faoni de San Guiseppe, uma festa católica em que o elemento principal é o fogo. É bem verdade que a Igreja do séc. VIII tentou abolir o fogo do ritual cristão, mas não conseguiu12. Assim, utilizou sua capacidade de 10 Annamaria Rivera. Il mago, il santo, la morte, la festa (forme religiose nella cultura popolare). Torino, Dedalo, 1988, p. 177-78. 11 Feste sagre e mercati nel Lazio, p.38. 12 Annamaria Rivera, Op.cit., p.177. 6 sincretismo, recuperando e revitalizando este uso primitivo, difícil de ser removido do imaginário popular13. Os Faoni de Sermoneta Dentre as várias festas de São José realizadas na Itália, a escolhida foi a de Sermoneta, cidade a 80 quilômetros de Roma, com 6.413 habitantes, devido à beleza dessa pequena cidade medieval, à riqueza de sua história e à originalidade desta festa, celebrada com rituais de fogo. Sermoneta (...) está a 80 quilômetros de Roma. Foi construída no topo de uma grande rocha, em torno a um imenso castelo, como é normal em todas as cidades medievais. Mas Sermoneta é considerada umas das cidades-arte da Itália: sua beleza intocada de estilo, a pureza de suas formas, suas cores e sua situação geográfica privilegiada são complementadas por seu rico passado. Há indícios de que Sermoneta tenha sido habitada desde o século VI a.C., com o nome de Sulmo: "É l'antica Sulmo dei romani. É nata quindi nell'época pagana: nel tempio trasformato poi in tempio cristiano” 14 . É provável que esta Sulmo, seja aquela antiga Sulmo, citada por Virgilio na Eneida (Livro 10, 769)15. Depois de estar abandonada no último período do Império Romano, a cidade, com este nome aparece nos documentos do séc. IX, passando a se chamar Sermoneta a partir do século XIII, sob o domínio da família Annibaldi. Foram os Annibaldi que construíram o castelo medieval, que é o ponto mais significativo da cidade: é o mais perfeito modelo da clássica fortaleza medieval. Em 1297, o Papa Bonifácio VIII compra Sermoneta e outras cidades vizinhas e a dá como feudo à família Caetani (ou seja, à sua própria família, pois Bonifácio VIII era um Caetani). A partir daí, Sermoneta passa da condição de "senhorio fundiário" à de "senhorio territorial", com imunidade de direitos, não vinculada ao poder público, isto é, ao soberano. Esta autonomia dá a Sermoneta a condição de, no séc. XIII, editar a sua própria lei: a lex sermonetaria, a qual é bastante avançada para a época: já previa castigo para quem causasse danos físicos à mulher, além de outras medidas "democráticas" com 13 Franco Onorati. Mito, folclore e liturgia nella festa romana di San Giovanni. Lazio Ieri ed'Oggi, v. XXVIII(11) nov. l992, p. 252. 14 Sostenio Camilaccio. “Sermoneta” em Lazio d'Oro: scenni storici intorno ai comuni del Lazio. Roma, Nostra Italia, l956, p.471. 7 relação à vassalagem. A família Caetani permanece senhora do castelo de Sermoneta até o ano de 1978, quando este é transformado em museu. A partir da sua autonomia, Sermoneta apresenta uma história de grandes vitórias e derrotas. A família Caetani ora luta contra o Papado, apoiando Francisco I, da França, ora luta ao lado do Papa e de Carlos V, da Espanha, contra os franceses. O certo é que Sermoneta foi palco de violentas batalhas, nas quais até suas mulheres participavam. Sermoneta está situada em meio à ligação entre Roma e Napole: uma posição estratégica, graças ao fato de estar sobre uma rocha natural. Toda a contenda entre Carlos V e Francisco I foi acompanhada de perto pela população sermonetana. Na cidade, há uma casa que se tornou famosa por ter hospedado Carlos V. No séc. XVI, Semoneta passa ao poder do Papa Alessandro VI Borgia, que faz da cidade um ponto de destaque da defesa de Roma, graças ao fato de estar situada em lugar inacessível. Ainda no séc. XVI (1571) Sermoneta participa da Liga Cristã contra os turcos. Esta luta coloca como aliados dois inimigos históricos: Marcantonio Colonna e Onorato Caetani; este último esteve como capitão da infantaria pontifícia, diretamente subordinado a Colonna. Esta guerra, que terminou com a Vitoria de Lepanto, é atualmente comemorada como a maior festa de Sermoneta: a festa de Nossa Senhora da Vitória, em outubro. Em Sermoneta é possível encontrar os traços daquelas que foram as primeiras regras dos mosteiros que reconstruíram a Europa depois dos primeiros séculos da Alta Idade Média e da desagregação romana: é o Mosteiro de San Francesco, belo monumento arquitetônico que foi a antiga sede dos Cavaleiros Templários, desde 1116, até a extinção da ordem, em 131116. Na história de Sermoneta, estão presentes os principais fatos da história da Europa, como a antiga história dos Papas - com destaque para a cisão do Papado, com Clemente VII, o anti-papa - das lutas contra impérios e Papado (Regnum x Sacerdotium), das Cruzadas, da passagem de Napoleão Bonaparte, do Romantismo do Ottocento e da luta do homem contra a malária dos pântanos pontinos17. 15 Cassandra Annibale. Sermoneta: il paese della mole Annibaldi-Caetani. Lazio Ieri e Oggi, v.XXV (5) mai. l989, p. 123; também citado por Eleonora Porcai. Sermoneta medieval. Lazio Iere e Oggi, v. XIII (11), nov. l977, p. 268. 16 Sostenio Camilaccio, Op.cit., p. 472. 17 Associazione Pro-Loco di Sermoneta. L'itinerario della città di Sermoneta. Sermoneta, Amministrazione Comunale, l996. 8 Atualmente Sermoneta é uma realidade econômica e social de primeira grandeza, possuindo atividades agrícolas e produtoras de vanguarda, como por exemplo, a indústria do óleo de oliva. O padrão técnico de sua agroindústria é um dos mais avançados da Itália, graças à sua Università Agraria18. Mas o principal aspecto é a valorização de seu patrimônio cultural, seus monumentos e sua riqueza ambiental, que são os pilares de seu desenvolvimento econômico. Os cidadãos de Sermoneta têm um projeto para transformar sua cidade na Città d'arte e d'Europa para o ano 2000. 18 Idem, ibidem, p. 473.