UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGESA A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA THIAGO DA SILVA ALMEIDA JOÃO PESSOA MARÇO DE 2013 THIAGO DA SILVA ALMEIDA A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista JOÃO PESSOA MARÇO DE 2013 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal da Paraíba. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Almeida, Thiago da Silva. A dualidade da consciência em Augusto dos Anjos: uma abordagem semiótica. / Thiago da Silva Almeida. - João Pessoa, 2013. 31f. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista 1. Teoria Semiótica. 2. Discurso. 3. Anjos, Augusto dos - Sonetos. I. Título. BSE-CCHLA CDU 81’22 A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. Data de aprovação: ____/____/____ Banca examinadora Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, DLCV, UFPB Orientadora Prof.º Dr. Hermano de França Rodrigues, DLCV, UFPB Examinador Prof.ª Dr.ª Carmen Sevilha Gonçalves dos Santos, CE, UFPB Examinador AGRADECIMENTOS A Deus, Pai de infinita bondade, que me proporcionou o dom da inteligência. Aos meus pais, José Soares de Almeida Filho e Vera Lúcia Pinheiro da Silva Almeida, por terem me apoiado quando optei abandonar o trabalho para estudar. À minha irmã, Talisse Silva de Almeida, por ter sempre acreditado em mim. À minha namorada Daniella Íris de Oliveira Silva, que esteve sempre comigo em diversas decisões, me apoiando e aconselhando. Ao meu amigo Flaviano Batista do Nascimento, que me impulsionou a estudar poesia. Seu exemplo de superação é, para mim, um motivo de inspiração para estudar ainda mais. AGRADECIMENTO ESPECIAL À minha orientadora Prof.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, pela oportunidade de estar na Iniciação Científica, pela exigência, pelo comprometimento e por ter compartilhado do seu saber para a realização deste trabalho. Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência? Karl Marx SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 08 2 TEORIA SEMIÓTICA............................................................................................ 10 2.1 Origem............................................................................................................... 10 2.2 Conceito............................................................................................................. 11 2.3 Níveis de abordagem......................................................................................... 11 2.3.1 Nível fundamental............................................................................ 11 2.3.2 Nível narrativo.............................................. ................................... 12 2.3.3 Nível discursivo............................................................................... 15 3 ANÁLISE SEMIOTICA DO SONETO IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA...................................................... 19 4 ANÁLISE SEMIOTICA DO SONETO O MORCEGO......................................... 23 5 CONCLUSÕES....................................................................................................... 27 6 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 29 7 ANEXOS................................................................................................................. 31 7.1. 7.2. Anexo 1........................................................................................................ 31 Anexo 2........................................................................................................ 32 8 1. INTRODUÇÃO O presente Trabalho de Conclusão de Curso teve por objetivo analisar, do ponto de vista da semiótica de linha francesa ou greimasiana, dois sonetos do poeta paraibano Augusto dos Anjos, enfatizando os aspectos da constituição da consciência que se encontra subjacente à temática central dos poemas, utilizados como corpus. Para tanto, recorreu-se a considerações do filósofo alemão Martin Heidegger sobre os aspectos da consciência. O percurso metodológico utilizado para o desenvolvimento das análises foi composto de leituras teóricas sobre a semiótica do discurso, tendo como principais expoentes: GREIMAS, COURTÉS, PAIS e FONTANILLE, entre outros. A importância do referencial teórico escolhido reside no fato de que se trata de uma teoria que se preocupa com o estudo da significação, prevista e manifestada em discurso e, portanto, que considera a posição do sujeito em relação à enunciação e ao enunciado que produz. Inicialmente, descreveu-se toda a teoria semiótica escolhida com base nos estudos dos autores antes citados, descrevendo as três estruturas ou percursos que a significação faz desde o momento que sai da mente do enunciador até sua expressão em discurso. Em seguida, analisaram-se os dois sonetos, do ponto de vista semiótico, a fim de obter a ideologia subjacente aos discursos. Na discursivização, houve a necessidade de colocar alguns momentos dos escritos filosóficos de Martin Heidegger sobre a consciência que, para o filósofo alemão, pode ser “boa” ou “má”, tentando responder ao questionamento que os dois textos levantam sobre o tema. Diante disto, trabalha-se com a hipótese de que, como o poeta Augusto aborda o tema do pessimismo na maior parte de suas poesias, a consciência teria um aspecto negativo na percepção do eu-lírico. Incluíram-se, antes das análises, alguns elementos sobre a vida do autor e a publicação dos textos em análise, com o intuito de elucidar alguns fatos que ajudem as análises. O corpus se constituiu dos sonetos O morcego e Idealização da Humanidade Futura, extraídos da obra Eu, o único livro escrito e publicado por Augusto dos Anjos. A escolha dos textos reflete os propósitos estabelecidos neste trabalho: cada um caracteriza, ou melhor, figurativiza a consciência distintamente e, nesta ocasião, a importância de trabalhá-los reside na possibilidade de estabelecer determinadas relações que possam, eventualmente, convergir para alguma semelhança. Como no corpus em estudo há toda uma preocupação com a constituição do ser, a relevância desta pesquisa se funda na possibilidade de estudar este ente que se instaura também pelas suas ações no discurso. Logo, a linha de pesquisa semiótica escolhida aborda 9 aspectos da constituição do sujeito enquanto ser investidos de valores modais. Tal estudo se torna ainda oportuno pela necessidade de aplicação de uma teoria a um dado corpus, procedimento muito importante para o estudioso em Letras. Vejamos, agora, o lugar da amostragem escolhida para análise no âmbito da obra do autor, cuja poética é bastante complexa, devido ao uso de termos e expressões que estão na base da biologia, da metafísica e da química. Esse vocabulário científico reveste sua poesia de um tom pessimista, angustiante e voltada para a deterioração da condição humana como argumenta Órris Soares (1963,44): “O Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protesto, sofre as dores que dilaceram o homem e aquelas do cosmos”. À maneira de Euclides da Cunha, na prosa, de “Os Sertões”, o autor fundiu o saber científico com o saber poético, criando uma obra de grande singularidade. Tal característica causou embate com os padrões poéticos vigentes da época, o que impossibilitou o autor de filiar-se a uma escola literária. É possível, entretanto, encontrar em sua obra características simbolistas, com influências em Cruz e Sousa, Antero de Quental, Cesário Verde e outros; do formalismo parnasiano, do pessimismo romântico, da filosofia alemã com Schopenhauer, do selecionismo de Darwin e do negativismo de Haëckel. Por fim, foi um poeta de um livro à semelhança de Charles Baudelaire com as suas Flores do Mal. 10 2. TEORIA SEMIÓTICA 2.1.Origem Os estudos semióticos tiveram origem na Antiguidade com Platão (427-347), passando pelo seu discípulo Aristóteles (384-322) e outros. Platão concebeu o signo de forma triádica com os seguintes componentes: onoma (nome), eidos (noção ou ideia) e pragma (a coisa referente). Uma das principais indagações do filósofo era se a relação entre o nome, às ideias e às coisas se dava de forma natural ou arbitrariamente. Uma de suas conclusões foi que as palavras não refletem aquilo que as coisas realmente são. Enquanto Aristóteles entendeu o signo no domínio da lógica e da retórica, considerando como uma “premissa que leva a uma conclusão” (apud. BATISTA, 2001: 133). Ainda na Antiguidade, no século II da era cristã, Galeno, médico e filósofo romano, nomeou o estudo dos signos de Semêiósis e concebeu-a como a interpretação dos sintomas médicos. No final da Idade Antiga e influenciando grandemente o pensamento medieval, Santo Agostinho (354 – 430) ampliou o estudo dos signos aos elementos não-verbais, criando uma pan-semiótica, isto é, um mundo semioticamente construído. Propôs a distinção entre signos naturais e signos convencionais, da qual os primeiros “são aqueles produzidos sem a intenção de uso como signo, mas nem por isso conduzem à cognição de outra coisa” (Winfried, 1995: 32). Enquanto os segundos Na Idade Moderna, especificamente em 1960, John Locke, filósofo inglês, postula em seu Essay on a human understand uma “doutrina dos signos”, nomeando o estudo em questão de Semiotikê, que é aplicado aos signos verbais, não-verbais e sincréticos. No fim do século XIX, Charles Sanders Peirce retoma a relação triádica do signo, vendo-o como constituído de: representamen, o elemento perceptível ao receptor, ou o significante da teoria saussureana; o objeto que é o referente, a coisa material ou mental que o representamen reprensenta e o interpretante, que é a significação do signo, melhor, dizendo, o efeito do signo na mente do intérprete. (BATISTA, 1999: 15). A seguir, Saussure (CLG, 1967: 80) concebe um signo como dois elementos: o significante, que é a imagem acústica e o significado que é o conceito. Ele chamou significação a junção do significado com o significante. 11 Hjelmslev (1961:63) interpretou o pensamento saussuriano e considerou o significante como expressão e o significado como conteúdo. Ambos, conteúdo e expressão, possuem, no dizer do autor, uma substância, que é paradigmática e uma forma que é sintagmática, criando uma nova dicotomia dentro da linguística. Ele considerou que a língua não é um sistema de signos, mas de figuras. O estudo da figura pode ser aplicado não só aos elementos verbais, como aos não-verbais. A partir dos estudos hjelmslevianos, Greimas e os semioticistas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, elaboraram a teoria que hoje se chama Semiótica de Linha Francesa e que se opõe à Semiótica Americana iniciada por Peirce (1978) e à Russa, que é uma proposta de Lotman (1971). Como, neste trabalho, escolhemos a teoria de Linha Francesa, a ela dedicaremos maior empenho nos itens seguintes. 2.2.Conceito A teoria semiótica de linha francesa ou greimasiana é a ciência que se ocupa com o estudo da significação. Esta se define como a relação de dependência entre o plano do conteúdo e o plano da expressão no interior do texto. Segundo BATISTA (2009:1), “a significação é concebida como função semiótica e definida no interior dos signos verbais, não verbais e complexos ou sincréticos”. Greimas entendeu a significação como um percurso gerativo que dá investimento semântico às ações dos sujeitos e, para tanto, trabalha com três níveis de análise. Estes vão do mais superficial ao mais profundo e que são denominados: Estrutura Fundamental, Estruturas Narrativas e Estruturas Discursivas. Os dois primeiros níveis dispõem de dois componentes: um sintático e outro semântico, que são categorizadas em sintaxe narrativa, semântica narrativa, sintaxe discursiva e semântica discursiva. 2.3. Níveis de abordagem 2.3.1. Nível fundamental A estrutura profunda ou nível fundamental elenca as categorias semânticas subjacentes à construção textual que estão dispostas em oposição, mas que compartilhem um traço semântico comum. Nesse sentido, é lúcido contrapor, por exemplo, os lexemas /vida/ vs /morte/, pois ambos estão inseridos dentro de um mesmo campo semântico. É preciso 12 apontar, ainda, que, dependendo das intenções que o texto pretende, tais categorias sofrem o processo de timização, categorizado a partir de dois componentes: euforia e disforia. A primeira diz respeito aos elementos tomados de força ou importância positiva para um dado sujeito e a segunda de caráter negativo para este sujeito ou outros envolvidos na narrativa. A organização fundamental é representada, espacialmente, através de um octógono semiótico onde são definidas as relações de contrariedade, de contraditoriedade e de implicação do texto. Vejam-se o octógono seguinte, a fim de que estas relações sejam compreendidas: : relação entre contrários : relação entre contraditórios : relação de implicação : tensões dialéticas As categorias sêmicas da dêixis positiva superior deixam antever que /vida/ é o contrário de /morte/. Aplicando-se a partícula de negação a cada um deles obtém-se os contraditórios /não-morte/ e /não-vida/. E, por fim, a implicação consiste na correlação sistematizada dessas categorias, na qual /vida/ implica /não-morte/ e /morte/ implica /nãovida/. Essas considerações estão enraizadas em A.J. Greimas (1975:127) e compõem o Jogo das Restrições Semióticas nas quais o autor conceitua as estruturas profundas como sendo aquelas que “definem a maneira de ser fundamental de um indivíduo ou de uma sociedade e que determinam as condições de existência dos objetos semióticos”. 2.3.2. Nível narrativo As estruturas narrativas ou nível intermediário, segundo Batista (2001:150), são também chamadas pelo nome singular de “narrativização”, e compreende uma sintaxe e uma 13 semântica narrativa. A sintaxe narrativa compreende “o desempenho de um Sujeito que realiza um percurso em busca de seu Objeto de valor, sendo instigado por um Destinador que é o idealizador da narrativa e ajudado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente.” (id. ibidem). Entende-se que o sujeito é o actante sintático cuja existência semiótica é pressuposta pela presença ou existência de outro actante, que é seu objeto de valor. O destinador é o actante narrativo que exerce um fazer sobre o sujeito, modificando-o, isto é, é ele que, qualificando o sujeito para a ação e com ele estabelecendo um contrato, é responsável transmissão e circulação dos valores modais. Ou, ainda, nos termos de COURTÉS (1979:32), o destinador “exerce um fazer visando provocar o fazer do sujeito”. A partir dessa definição, infere-se que o destinador tem a função de manipulador do sujeito, exercendo um fazer persuasivo. O destinador pode, inclusive, manifestar-se a partir de um ente que se encontra no próprio sujeito e, neste caso, manifestando-se uma auto-destinação. O destinatário é o actante narrativo que recebe a competência para fazer, ou seja, nele são investidas todas as qualificações propiciadas pelo destinador. A princípio existe uma equivalência entre sujeito e destinatário, porém a existência desta categoria é pressuposta pela presença do destinador, e não do objeto. O destinatário exerce o papel de manipulado e, consequentemente, opera um fazer interpretativo, podendo aceitar ou recusar a relação contratual e ainda ser sancionado positivamente ou negativamente pelo destinador. O adjuvante é o actante narrativo que tem o papel de ajudar, auxiliar o sujeito, facilitando sua busca. De modo contrário, o oponente, também denominado oponente-traidor por Greimas, tanto pode ser ele mesmo um incômodo como gerar obstáculos para o sujeito, impedindo-o de realizar seu objetivo. Opondo-se ao sujeito, tem-se o antissujeito que é o actante sintático que disputa com o sujeito o mesmo objeto de valor ou cujo objeto-valor se opõe ao do sujeito. Este actante, da mesma forma que o seu oposto, permite acionar mais dois outros actantes: o antidestinador, que é seu destinador e o antidestinatário, que estabelece uma relação contratual com o antidestinador. O sujeito e o objeto se apresentam numa relação transitiva, que pode ser de natureza conjuntiva ou disjuntiva. Estas, por sua vez, estão inseridas num esquema categórico cujo no eixo possui a categoria da junção enquanto nível superordenado. A partir disso, diferenciamse os enunciados conjuntivos (sujeito tem posse do objeto) dos enunciados disjuntivos (sujeito não obtém o valor desejado), que também são generalizados sob um eixo categorial denominado enunciado de estado que vão assinalar se o sujeito está conjunto (representado 14 graficamente pelo esquema S∩O) ou disjunto (representado graficamente pelo esquema S∪O) de seu objeto de valor. Há ainda os enunciados ditos de fazer que dizem respeito às transformações ocorridas na narrativa e operadas pelo sujeito do fazer. Este fazer transformador é o resultado das ações que o sujeito executa e que o põe em conjunção ou em disjunção com o objeto almejado. Conclui-se, então, que os enunciados de fazer são enunciados que regem um enunciado de estado (Cf. Courtés, 1979:19), que graficamente se representa: F [S∩O (S∪O)] que se lê: fazer transformador em que o sujeito conjunto com se objeto de valor passa a sujeito disjunto do seu objeto de valor. A semântica do nível narrativo é o estudo das modalizações que estão na construção dos valores disseminados na narrativa. Nas palavras de BATISTA (2009:3) a semântica narrativa “determina a modalidade assumida pelo sujeito no seu percurso em busca do valor”. Significa que, para realizar algo, o sujeito precisa querer ou dever fazer algo Estas modalidades mostram também a importância que tem o objeto para esse sujeito. Segundo Fontanille (2012:169): As modalidades são predicados que atuam sobre outros predicados e, portanto, eles são predicados que modificam o estatuto de outros predicados. Ademais, eles asseguram uma mediação entre os actantes e seu predicado de base no interior de uma cena predicativa. São, portanto, cinco os tipos de predicados modais: querer, dever, saber, poder e crer. Estes, como citado acima, regem os dois outros predicados de base que são o ser e o fazer. Da combinação dos predicados modais com os predicados de base resulta na formação de predicados complexos: querer dever fazer crer saber Ser querer-ser dever-ser fazer-ser crer-fazer saber-ser fazer querer-fazer dever-fazer fazer-fazer crer-fazer saber-fazer poder poder-ser poder-fazer 15 Pelo exposto, vê-se que existem dois tipos de modalização: uma do ser e outra do fazer. A primeira diz respeito ao predicado do ser que é chamada modalização do ser ou modalização veridictória, pois permite verificar se a relação do sujeito com o objeto ou até mesmo com os outros actantes é dita verdadeira, falsa, secreta ou mentirosa. Esta incide nos enunciados conjuntivos e nos enunciados disjuntivos, modificando, assim, as relações do sujeito com o objeto de valor. A outra modalização está vinculada ao predicado do fazer e incide sobre a ação do sujeito que transforma o mundo. A competência é a fase em que são atribuídos valores modais ao sujeito da ação. Neste sentido, a competência do o sujeito realizador é constituída de um poder e/ou um saber. Esta fase pressupõe a o seguinte, a performance, que é a fase em que ocorre a transformação essencial da narrativa mediada por um fazer. É aqui que o sujeito entra em conjunto ou disjunto do seu objeto de valor. Se a desempenho se realizou, então se tem a última fase do percurso, a sanção, que compreende as punições e recompensas destinadas aos atores envolvidos na narrativa. O percurso narrativo do sujeito é composto de uma estrutura complexa compreendida de quatro fases conhecidas como manipulação, competência, performance e sanção. Cada um dos actantes explanados acima é passível de se manifestar nestes estágios e sua ausência é inteiramente justificável. No estudo das modalidades, Pais (1993) classifica os discursos em manipulatórios, o do fazer-fazer, sedutor, o do fazer-crer e ainda persuasivo, quando entram as modalidades do fazer-querer e fazer-dever. Segundo Fiorin (2011:30), a fase da manipulação caracteriza-se pela persuasão entre sujeitos em que um leva o outro a querer ou dever fazer alguma coisa. É aqui que se estabelecem as relações entre sujeito-manipulador e sujeito-manipulado, mediadas pelos seguintes tipos de manipulação: a) tentação: constroi-se uma visão positiva do destinador e este recompensando o destinatário; b) intimidação: o destinador passa uma visão negativa dele ao destinatário que pode ser sancionado negativamente; c) sedução: forma-se uma imagem positiva do destinador e do destinatário; d) provocação: destinador constroi uma imagem negativa do destinatário. 2.3.3. Nível discursivo 16 A discursivização tem a característica de ser o patamar mais superficial em relação aos outros níveis de significação, pois as relações são manifestadas na superfície do texto. Aqui, o sujeito do discurso adquire voz e, por meio do discurso-enunciado, escolhe os temas, as figuras, os atores, o tempo e o espaço discursivos. Portanto, o discurso é a unidade máxima onde se manifestam, no plano do conteúdo, categorias temporais, espaciais, argumentativas, temáticas e figurativas. O nível discursivo, Courtés (1979) pensou como constituído de dois componentes: sintaxe discursiva e semântica discursiva. Cabe à sintaxe do nível discursivo analisar as relações intersubjetivas entre enunciador e enunciatário, os efeitos de realidade ou referente e os efeitos de proximidade e distanciamento produzidos pela enunciação. Esta é a instância que instaura as categorias de pessoa, de tempo e espaço discursivos, fazendo da narrativa um acontecimento real como se os sujeitos nela envolvidos fossem de carne e osso. Nas relações intersubjetivas, ocorridas entre enunciador e enunciatário, o enunciador executa um fazer persuasivo, levando-o ao enunciatário, que executa um fazer interpretativo, do que está sendo dito. Neste fazer persuasivo, o enunciador utiliza dois procedimentos para tentar manipular o enunciatário: os efeitos de realidade e os de proximidade e distanciamento. No entender de BARROS (1999:61), os procedimentos de referência à realidade são: a) actorialização, que é a constituição das pessoas do discurso; b) a espacialização, a constituição do espaço e c) a temporalização, constituição do tempo. A actorialização é o processo em que se dá a escolha do ator, que é uma entidade discursiva que cumpre papéis actanciais. Quando assume tais papéis, o ator se encontra na superfície narrativa, e quando assume um papel temático, encontra-se na superfície discursiva. O papel temático é a função social desempenhada pelo ator. A espacialização se refere ao lugar propriamente dito e a percepção que os Sujeitos têm desse espaço. Deve-se levar em consideração o contexto sociocultural e o espaço discursivo que o emissor e o receptor vivem. A temporalização diz respeito à percepção que os Sujeitos têm em relação ao tempo cronológico, englobando o tempo histórico, o momento de duração do discurso e o próprio tempo textual produzido pelo discurso. No interior do enunciado, para FIORIN (2011:56), são manifestadas duas categorias principais de sujeitos: o eu e o tu que, ao se relacionarem, totalizam quatro instâncias: a) eu pressuposto, enunciador; b) tu pressuposto, enunciatário c) eu projetado, narrador. d) tu projetado, narratário. 17 Sobre a produção da subjetividade na enunciação, assim se expressa Benveniste (1989: 84-85): “(...) a emergência dos índices de pessoa (a relação eu-tu) que não se produz senão na e pela enunciação: o termo eu denotando o indivíduo que profere a enunciação, e o termo tu, o indivíduo que aí está presente como alocutário”. A enunciação também cria efeitos de proximidade e de distanciamento, que estão vinculados às operações de debreagem. Segundo Greimas & Courtés (2011: 112) existem dois tipos de debreagem: a enunciva que se manifesta em terceira pessoa e projeta um discurso de caráter objetivo e enunciativa, em primeira pessoa, a partir da qual se projeta um discurso mais subjetivo. Batista (1999: 55), com base em Rastier (1974:93-94) classificou os sujeitos em enunciador/enunciatário-ator quando o discurso acontece em primeira pessoa, e enunciadornarrador/enunciatário-narratário, quando o discurso acontece em terceira pessoa. A semântica do nível discursivo compreende os percursos temáticos e figurativos do enunciado, também chamados de procedimentos de tematização e figurativização. A tematização ocorre a partir do momento em que os valores narrativos assumidos pelo sujeito são formulados abstratamente e organizados em percursos que são constituídos de traços semânticos. Os temas são de natureza abstrata e estabelecem uma interpretação de todos os fatos que ocorrem no mundo. A figurativização é o procedimento semântico através do qual os percursos temáticos são revestidos pelas figuras, que são conteúdos concretos do mundo natural e, como os temas, selecionam componentes do léxico da língua. A figura, por ter caráter concreto, cria a ilusão de realidade. Segundo BATISTA (2001: 3-4) “A figurativização consiste em transformar em figuras de superfície as figuras do plano do conteúdo, utilizando-se a nomenclatura proposta por Hjelmslev (...). A tematização inicia-se pela identificação dos traços semânticos pertinentes ao discurso e neles reiterados, podendo-se colocá-las em sequência pela ordem em que aparecem no texto”. A figurativização recai sobre a recorrência de figuras de expressão – que diferem da noção de significante saussuriana – que vão se relacionar a outras figuras por isotopia semântica, resultando num conteúdo semântico o qual engendrará a(s) significação (ões) dos valores assumidos pelo sujeito da narrativa. A tematização é o procedimento pelo qual o sujeito da narrativa dissemina, sob a forma de temas, os valores inerentes a si mesmo quanto os que foram obtidos. A tematização pode ainda incidir na figura do sujeito a partir do seu papel temático, que é a sua função social 18 no discurso. Quando um determinado agente, seja ele humano ou antropomorfizado, desempenhando um papel actancial no discurso e, ao mesmo tempo, possuindo uma dada função social, este indivíduo é reconhecido, em semântica discursiva, como um Ator. 19 3. ANÁLISE SEMIÓTICA DO SONETO IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA 3.1.Estruturas narrativas Na análise da sintaxe narrativa deste soneto, há a presença de três sujeitos semióticos, S1 e S2 discursivizado pelo eu e S3, pela humanidade, figurativizada pelos homens ou pela multidão. S1 tem por objeto de valor encontrar a luz na multidão. Luz significa sabedoria, pureza, caráter, racionalidade. Porém, esses atributos ele deseja encontrar na humanidade. S1 age destinado pela sua própria consciência que estava perturbada (Rugia nos meus centros cerebrais / A multidão dos séculos futuros) que o impulsionava a agir, Foi esta perturbação que impulsionou S1 ir em busca de seu objeto de valor, porém ele termina disjunto pois afirma ter encontrado moléculas de lama e a mosca alegre da putrefação, ou seja, tratava-se de uma humanidade desonesta, impura e sobretudo desumana e, portanto, sem luz. Não se manifesta o adjuvante, porém o oponente de S1 está manifestado pela própria humanidade. S2, figurativizado pelo eu, tem como valor buscar o saber/o conhecimento sobre a humanidade nos livros (Não sei que livro, em letras garrafais / Meus olhos liam). Portanto, o livro foi o destinador do seu saber. E ele atinge o poder-saber sobre o homem e descobre que a humanidade possuía ímpetos impuros, fazia ações escusas, sua consciência era constituída de moléculas de lama, etc. O sujeito, portanto, termina conjunto com seu objeto de valor, podendo-lhe ser atribuído o esquema narrativo seguinte: S∩O. S1 e S2 são figurativizados pelo mesmo ator – o eu que se encontra em conflito dentro de si mesmo, o que se configura como subjetividade semiótica. O eu quer a luz e, ao mesmo tempo, quer obter um saber sobre o homem. Ele não encontra a luz no saber sobre o homem, somente a putrefação. S3, a Humanidade, possui como objeto de valor a irracionalidade, ou seja, S1 não respeita mais as diferenças e por isso cabe-lhe o estatuto de um sujeito desumano. Aquilo que o impulsionou a atingir esse valor foi o seu destinador, identificado como a herança dotada de ímpetos impuros. Foi ela que transmitiu esses valores negativos que fizeram de S3 um sujeito insensato, inconsequente. S3 termina seu percurso conjunto com seu objeto de valor. Todas as impurezas herdadas fazem parte dessa essência sancionada negativamente. Na componente semântica do nível narrativo, S1 se instaura por um quererachar/possuir a luz para si e para a humanidade. Ele fica disjunto e, portanto, não atinge o 20 poder-ser/fazer. O S2 se instaura por um querer-saber: penetrar na consciência da multidão, a fim de buscar o conhecimento. Na organização modal de sua competência, S2 obtém um saber sobre os homens, aprendido dos livros que leu. Ele atingiu o seu objeto de valor e, portanto, o poder-saber e o poder-fazer/penetrar na consciência dos homens e descobri toda a negatividade que lá existe. S3 se instaura na narrativa por um querer-ser-desumano, devido à herança que recebeu dos antepassados, o que alterou seu estado racional, tornando-o um sujeito insensato. Como S3 age conforme seus próprios ímpetos e ainda impuros. Portanto, o saber que ele lhe foi herdado é o de ser individualista, egoísta, egocêntrico, e todos esses atributos é o que vai constituir sua competência modalizada segundo um saber-ser-isso. 3.2.Estruturas discursivas Na componente sintática do nível discursivo do soneto, é evidente o discurso em primeira pessoa, identificada por um eu enunciador. Este sente uma perturbação exercida por uma multidão que é reconhecida como a própria humanidade. Pode-se observar uma relação do individual para o coletivo, ou seja, um sujeito uno em relação a toda uma genealogia. Sendo que a constituição da consciência desta humanidade se deu por uma ação corruptível sofrida por ela, tal corrupção teve sua origem na relação com as diferenças raciais. O homem, concebido na sua pluralidade, mesmo vivendo em sociedade e uma vez se relacionando com o outro pelas diferenças, tende a não respeitar essas diferenças por estar pensando em si mesmo, resultando na irracionalidade étnica proposta no soneto. Vivendo de maneira individual, esse homem abdica da coletividade, resultando num indivíduo com menos consciência de si. Aqui a humanidade é idealizada, ou seja, uma ironia presente no título do soneto que funciona mais como uma crítica à raça humana, pois o enunciador quer mostrar que o homem é egoísta e insensato por natureza, daí a ideia de algo que foi herdado. E ainda, um ser que, por querer devorar outros homens, não evolui (protozoários, seres primitivos) e por essa razão possui esse comportamento animalesco (rugia). Por essa razão, o homem que vive de tal maneira, constitui-se ou constitui sua consciência de forma degradante. A partir disso, verificam-se algumas considerações que o filósofo Heidegger (1997: 79) aponta: “A vivência da consciência” surge após o ato realizado ou omitido. A citação exprime bem o propósito do verbo tornara, pois a formação de uma consciência degradante aconteceu depois de realizada algum tipo de ação, seja ela instigada por parte do próprio 21 homem ou por algum fator externo. Neste caso, não se pode afirmar, segundo o filósofo, se essa consciência é caracterizada como “boa” ou como “má”, pois a primeira, censura e a segunda, adverte. Já o eu lírico demonstra-se um ser consciente e sua função é fazer o julgamento final, uma constatação e, por essa razão sua consciência se enquadra na “má” consciência, justamente por esse aspecto de criticar, de reprovar, de censurar. Para ele, a consciência deveria ser a luz que os céus inflama, isto é, uma consciência nem boa nem má, mas uma consciência limpa ou pura. As relações intersubjetivas mostram uma debreagem actancial marcada por um enunciador debreado no espaço do aqui e no tempo do agora ou presente. Relata os fatos em terceira pessoa, mas depois, no primeiro terceto, se impõe no discurso em primeira pessoa, mas mesmo assim continua debreado. O eu, instância do enunciador, fala a respeito de um ele, que não participa do processo comunicativo, pois se trata de uma não-pessoa. Na debreagem temporal, o tempo discursivo é construído pela predominância de verbos no pretérito imperfeito ou do infectum: rugia, tornara, liam, realizavam, meti, achei que mostram um processo inconcluso ou contínuo. Denotam um recuo no tempo atentando para as origens de um povo, mas continua em processo na atualidade. A ação de tornar é anterior à ação de rugir; esta por sua vez, é concomitante à ação de ler e realizar e posterior à ação de meter e achar. Pode-se, através dessas relações temporais, recuperar os diferentes momentos em que as ações se sucederam. Na debreagem espacial, a percepção que o enunciador tem do espaço – no húmus dos monturos, na consciência – é de que se trata um lugar de decomposição, de caos, onde a sociedade se desenvolve e se torna corrupta. Tem-se aqui A multidão enquanto ator discursivo debreado do tempo e do espaço do enunciador, pois como o tempo verbal se situa no momento passado e, ao mesmo tempo, se configura sob um aspecto inacabado, significa dizer que tal ação era recorrente na mente do enunciador que, por sua vez, se encontra em outro tempo. Mas este ator se encontra ainda embreado com seu próprio tempo pelo fato de sua instauração ocorrer em plena relação com o passado. O enunciador já projeta uma visão negativa sobre essa humanidade, identificando um comportamento animalesco da humanidade reforçada pelo verbo rugir. Na Semântica discursiva, a recorrência de termos como multidão, homens, etnicamente, genealogias, animais, escolhidos pelo sujeito da enunciação permitem organizar o tema humanidade. Os lexemas impuro, húmus, monturos, obscuros, protozoários, lama, mosca, putrefação revestem o tema da corrupção, pois permitem constatar que a humanidade 22 foi corrompida etnicamente e, onde havia um estado inicial de racionalidade, passa-se para um estado final de irracionalidade. A figura protozoário remete para seres humanos que se comportavam primitivamente e que não conseguiram evoluir. A figura da mosca indica o aspecto de materialidade se contraposta à figura da luz que sugere a espiritualidade. 3.3.Estrutura fundamental No texto, há uma estrutura fundamental que põe o lexema humanidade enquanto eixo semântico e os lexemas /racional/ vs /irracional/ na relação entre os contrários, pois são categorias aferidas a partir de um momento /anterior/ e /posterior/ de transformação na essência humana. A categoria /racional/ implica, pela negação, a categoria /não-irracional/ que, na tensão dialética resulta em /sabedoria/, ou seja, negando-se o estado de irracionalidade étnica obtém-se o objeto de valor de S1 que é encontrar a luz que os céus inflama. Do mesmo modo, a categoria /irracional/ implica a categoria /não-racional/ que, na tensão dialética obtém-se /ignorância/, que é justamente o que S2 encontrou: moléculas de lama e a mosca da putrefação. Por fim, a tensão dialética entre não-racional e não-irracional resulta em /animalidade/. 23 4. ANÁLISE SEMIÓTICA DO SONETO O MORCEGO 4.1. Estruturas narrativas Neste soneto, que descreve também aspectos da consciência, há a presença de três sujeitos semióticos que se encontram figurativizados pelo eu discursivo. São diferentes vozes que se encontram dentro do próprio eu. O S1 tem como objeto de valor é a tranquilidade (para relaxar e dormir). Tal Objetovalor representa o afastamento de toda a visão desagradável que lhe prejudica o sossego e, portanto, tem como oponente o morcego, que é a sua própria consciência. Esta lhe provoca dor que lhe fere o mais profundo de alma, atingindo o físico, conforme aponta o verso: Morde-me a goela ígneo e escaldante molho Existe uma auto-destinação, uma vez que o valor partiu da necessidade do próprio sujeito. O fato de ele querer um objeto de valor que se contrapõe ao da consciência faz dela o antissujeito de S1. Ele utiliza vários recursos para tentar livrar-se de sua inquietação: pegar de um pau, fechar o ferrolho, concentrar-se, e até pensar em levantar outra parede para esconder-se. São todas estas figuras que representam o movimento mental, o esforço para afastar a intranquilidade (o morcego), configurando-se como adjuvante nesta narrativa. Por mais que S1 tente fugir desse sentimento que o atormenta, ele não consegue e, apesar das tentativas para livrar-se da dor mortal que lhe provoca a consciência, termina seu programa narrativo privado ou disjunto do seu objeto de valor, sancionado, então, negativamente. E olho o teto. E vejo-o, ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede!” S2 é figurativizado pela consciência e tem como objeto de valor tirar a tranquilidade do S1, feri-lo, deixá-lo abalado, provocar-lhe dor mental e física (situada na garganta). O S1 é o antissujeito do S2 porque ambos têm valores opostos. A própria consciência é o destinador da ação, configurando-se com uma auto-destinação. Seu adjuvante é o mal que foi cometido pelo sujeito da consciência (S1). O oponente são as atitudes tomadas pelo S1 para afugentar a dor da consciência. S3 é figurativizado pelo enunciatário textual, não identificado como ator e constituído por mais de uma pessoa, o que é confirmado pelo uso da segunda pessoa do plural (vede). O S3 nada mais é do que o outro eu, o alter-ego, na opinião de Eward Lopes (apud. BATISTA, 24 2012:3). Ele tem por objeto de valor escutar o outro, ouvi-lo, descarregar o seu sofrimento. Se o S1, ao comunicar-se com o S3, quis chamar-lhe a atenção, o S3 é, então o sujeito sobre o qual recai o apelo. Na semântica do nível narrativo, S1 se instaura por um querer-ter tranquilidade, que se encontra na ordem do ser. Na medida em que ele tenta afastar a consciência/morcego de si, ele executa um fazer constituído das várias ações já apresentadas. Esse fazer do sujeito significa não apenas o afastamento dessa visão desagradável que o atormenta, mas a obtenção da possibilidade de momentos de tranquilidade para si. S1 não atinge o poder-fazer porque não consegue alterar a relação conflituosa com a sua própria consciência e, portanto, acaba disjunto do seu objeto de valor, como ele mesmo afirma: Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto. S2 se instaura por um dever-fazer, isto é, julgar ação do outro, apontando-lhe o erro. E o S3, também na instância do dever, precisa escutar o desabafo do S1. 4.2. Estruturas discursivas Na sintaxe discursiva, há a presença de um enunciador que constrói a consciência humana a partir dos atributos e ações de um morcego. Não há evidências, neste soneto, de que se trata de uma voz masculina ou feminina, mas de um eu discursivo que fala consigo mesmo e repudia sua própria consciência. Na verdade, tem-se um único ator para discursivizar três sujeitos semióticos, com valores distintos: a tranquilidade, a negação dessa tranquilidade e a neutralidade entre essas duas ações. Todos os enunciados são parte de um fluxo de consciência que revela as ações dentro de um mesmo sujeito que ora é, ou possui as qualidades, ora movimenta-se no texto em busca de criar ações que destroem a sua consciência negativa, ora consegue se desculpar para si mesmo. Na sua caracterização, fica evidente o aspecto de inquietude e perturbação (a culpa) por ter cometido alguma violação grave que ocasionou um abalo em sua estrutura psíquica e física. A consciência fala sempre com relação a um determinado ato realizado ou desejado, aponta Heidegger (1997: 78). É perceptível que a consciência é caracteriza como algo que incomoda e, por essa razão, o indivíduo é levado a construir barreiras para afastá-la de si, pois ela está relacionada ao ato de punição. Se esse sujeito sente-se angustiado por ter cometido 25 alguma transgressão, é inegável o sentimento de culpa por ele assumido. A respeito disso, Heidegger (1997: 79) afirma A consciência é primordialmente “má”. Com isso se diz que toda a experiência da consciência faz, em primeiro lugar, a experiência de “culpa”. Neste soneto, as relações são construídas na individualidade, o que justifica todo o seu caráter introspectivo. Portanto, na fala consigo mesmo, manifesta-se um conflito interior onde o único obstáculo desse sujeito é ele próprio. Este conflito interior é o que se chama subjetividade semiótica. As relações intersubjetivas mostram uma embreagem actancial marcada por um enunciador embreado no espaço do aqui e no tempo do agora ou presente, e se expressa em primeira pessoa. O enunciador instaura um tu implícito, que é o seu enunciatário por meio do pronome vós conduzido pela forma verbal vede. Ao institui-lo, o enunciador convida-o a compartilhar da imagem desagradável que ele presencia e, assim, desabafa e justifica-se perante si mesmo: “E agora vede:”. A coerência do discurso em primeira pessoa é reforçada pela presença de elementos que estão na zona identitária do eu, conforme se encontra em Rastier, (2010: 23). Os determinantes em destaque nos sintagmas “meu quarto”, minha rede, “este morcego”, são elementos dêiticos que situam seus respectivos determinados em torno do enunciador, contribuindo para tornar o discurso real pela proximidade que se estabelece. Na embreagem temporal, o tempo discursivo é construído pela predominância de verbos no presente do indicativo e na primeira pessoa: recolho, morde, ergo, olho, faço, vejo, pego, concentra, o que torna o discurso tanto real quanto atualizado, como se os fatos estivessem ocorrendo em concomitância com o tempo do leitor e no momento do agora. Na embreagem espacial, a percepção que o enunciador tem do espaço – seu quarto, na rede – é de que se trata de um lugar de repouso, onde a mente deveria estar em descanso, porém é nesse momento que a consciência vem desfazer o estado de calmaria, tornando o espaço um local de perturbação do espírito. A ilusão de veracidade da qual se obtém, comparando a consciência humana a um morcego, é criada a partir dos atributos e ações que mostram o modo ser deste animal. O eu discursivo, ao afirmar que a consciência sempre retorna no estado de repouso da mente, retoma toda uma simbologia sobre a qual o morcego foi considerado símbolo de imortalidade. Além disso, o enunciador faz a alusão à figura do vampiro – Morde-me a goela – para designar o quão atormentado este sujeito estava a ponto de perder seus princípios vitais. Outro artifício que o enunciador utiliza para tornar o discurso real é descrever ações de proximidade com seu oponente: “Morde-me a goela”, “Chego a tocá-lo”, “Que ventre produziu tão feio 26 parto”. Cada uma dessas ações mostra o quão próximo o enunciador está do morcego que é a sua própria consciência e este conflito nunca acabará, porque se estabelece dentro dele mesmo, não tendo com ele se desvencilhar dele mesmo. 4.3. Estrutura fundamental Pensando nesse sujeito discursivo que é múltiplo e, portanto, encontra-se num conflito consigo mesmo e com sua consciência, partimos do termo base tranquilidade para estabelecer os demais termos do octógono semiótico. O contrário de tranquilidade é perturbação. A tranquilidade implica em não-perturbação e a perturbação implica em não-tranquilidade. Nãotranquilidade e não-perturbação são os contraditórios de tranquilidade e perturbação, respectivamente. A /consciência/ é o resultado da tensão dialética estabelecida entre /tranquilidade/ e /perturbação/. Quando se encontra, na tensão, tranquilidade e nãoperturbação, tem-se a /neutralidade/ do sujeito. Entre /perturbação/ e /não-tranquilidade/ resulta no /repouso/ do sujeito e, por fim, reunindo a /não-perturbação/ com a /nãotranquilidade/ surge o estado de /inconsciência/. 27 5. CONCLUSÕES As análises dos textos mostraram algumas semelhanças no que diz respeito à narrativização dos sujeitos: ambos marcaram a presença de três sujeitos semióticos. No primeiro texto analisado, configurou-se a presença de um ator para discursivizar dois sujeitos semióticos, cada um instaurando-se por uma modalidade complexa diferente: O primeiro sujeito se instaurou por um querer-achar/possuir, mas termina disjunto com o objeto de valor; já o segundo sujeito se instaurou por um querer-saber, terminando conjunto com o objeto de valor. O terceiro sujeito semiótico, figurativizado pela humanidade, se instaurou por um querer-ser desumano, terminando conjunto com o objeto de valor que é a irracionalidade. No segundo texto, houve a presença de um ator discursivizando três sujeitos semióticos, cada um modalizado distintamente: S1, sujeito do querer-ter/possuir, acaba em estado de disjunção; S2 se instaura por um dever-fazer/ouvir, visto que possui a função de amparar o sujeito na narrativa, terminado conjunto do objeto de valor e S3 se instaurando por um dever-fazer, terminam em estado conjuntivo com o objeto de valor. Ambos os textos manifestaram o aspecto da subjetividade semiótica, isto é, vários sujeitos discursivizados por um mesmo ator discursivo, resultando daí uma relação conflituosa no interior deles próprios, isto é, intrassubjetiva. Retomando os aspectos da consciência, as pesquisas indicaram que, nos textos analisados, ela é vista tanto de forma negativa como positiva e, portanto, nem sempre corrobora com a hipótese segundo a qual o pensamento, na poesia de Augusto dos Anjos, tendia para um viés pessimista. Considerando o conceito de consciência proposto por Heidegger, verificou-se que ela ora é punitiva, levando o sujeito a um estado de culpa, ora é reflexiva, levando o sujeito a repensar seus atos. No primeiro texto analisado, os dois sujeitos, demostrando-se conscientes de seus atos, julgam negativamente a humanidade por tudo o que ela tem feito e, portanto, nestes dois sujeitos, “a consciência possui uma função crítica” nas palavras do filósofo alemão. No segundo texto analisado, a consciência dos sujeitos “fala sempre com relação a um determinado ato realizado ou desejado” e, neste caso, tem-se uma “boa” consciência porque adverte o sujeito, levando-o a conscientização de suas atitudes e instruindo-o a não realizar atos errados. Um aspecto que demarca bem a diferença entre os textos analisados é a questão tempo e do espaço discursivo. No soneto Idealização da Humanidade Futura têm-se ações que mostram o quão egoísta se torna o homem a ponto de não querer mudar, além de apontar um aspecto de objetividade em relação aos acontecimentos. A voz discursiva se encontra num 28 espaço desconhecido, porém como há marcas de subjetividade no soneto, é possível um espaço marcado pelo próprio íntimo do sujeito. Já no soneto O Morcego, tem-se um tempo quando o sujeito expõe todo o seu desconforto consigo mesmo, tornando o ambiente estritamente subjetivo. O espaço, aqui, é marcado: o próprio quarto do sujeito, que também está relacionado à sua própria intimidade. A pesquisa foi além daquilo que foi proposto, pelo fato de se ter descoberto, nos textos analisados, como se processam aspectos referentes à subjetividade semiótica e, além de ampliar o universo das análises, constituiu-se de uma fonte científica para próximos estudos nesta linha semiótica. 29 6. REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria Margarida de. Redação científica: elaboração do TCC passo a passo. São Paulo: Factash, 2007. ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. BATISTA, M. F. B. M. A enunciação: do fazer persuasivo ao interpretativo. In: XIX Jornada Nacional de Estudos Linguísticos, 2002, Fortaleza. Programa & Resumos - XIX Jornada Nacional de Estudos Linguísticos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. v. 1. p. 72-72. BATISTA, M.F.B.M. O discurso Semiótico. In: ALVES, Eliane F.et al. Linguagem em foco. João Pessoa: Editora Universitária/Ideia, 2001. BATISTA, M. F. B. M. O percurso gerativo da significação. Revista do GELNE (UFC), Fortaleza, v. 3, 2001. BATISTA, M. F. B. M. O Romanceiro Tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica. (tese de doutorado). São Paulo, 1999. BATISTA, M. F. B. M. Semiótica e cultura: valores em circulação na literatura popular. Manaus: Anais da 61ª Reunião Anual da SBPC, 2009. COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Tradução de Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2012. GREIMAS, A.J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Tradução de Ana Cristina Cruz Cezar [e outros]. Petrópolis: Vozes, 1975. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 5ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. 30 HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. 2ªed. São Paulo: Perspectiva. LOTMAN, Iúri et al. Ensaios de semiótica soviética (trad. Victória Navas e Salvato Teles de Menezes). Lisboa: Horizonte, 1981). In: MACHADO, Irene (Org). Semiótica e semiosfera. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007. PAIS, Cidmar Teodoro. Texto, discurso e universo de discurso. In: Revista Brasileira de linguística, Plêiade, v.8, n.1, ano 8, São Paulo: 1995. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix. SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos, Eu: poesias completas. Rio de Janeiro: São José, 1963. 31 7. ANEXOS 7.1. Anexo 1 Idealização da Humanidade Futura Rugia nos meus centros cerebrais A multidão dos séculos futuros – Homens que a herança de ímpeto impuros Tornara etnicamente irracionais! – Não sei que livro, em letras garrafais, Meus olhos liam! No húmus dos monturos, Realizavam-se os partos mais obscuros, Dentre as genealogias animais! Como quem esmigalha protozoários Meti todos os dedos mercenários Na consciência daquela multidão... E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, Somente achei moléculas de lama E a mosca alegre da putrefação! 32 7.2. Anexo 2 O Morcego Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. “Vou mandar levantar outra parede” – Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede! Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo. Minh’alma se concentra. Que ventre produziu tão feio parto?! A Consciência Humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto!