Dando nome aos bovídeos
ANÁLISE
GNU e Linux, uma
questão de renome
As justificativas para se denominar o sistema somente “Linux”
resumem-se a apenas uma: “Sempre fizemos assim”.
por Alexandre Oliva
E
m 1983, Richard Stallman
lançou o projeto GNU [1]
a fim de construir um corpo
de software suficiente para utilizar
computadores em liberdade. Em
1991, ainda lhe faltava um núcleo
(kernel). Foi quando Linus Tor­
valds publicou o seu, projetado
para funcionar junto ao GNU. Ou­
tro primata (sem ofensa) o batizou
Linux. Outros ainda começaram
a chamar também a combinação
dos dois de Linux, o que continua
dando confusão até hoje.
Sempre fizemos assim?
Diz o folclore científico que colo­
caram alguns primatas numa jaula
com um cacho de bananas no alto.
Toda vez que algum deles tentava
subir para apanhar as bananas, leva­
vam todos um banho de água gela­
da. Aprenderam. Trocaram um dos
primatas, que logo viu as bananas e
se animou. Logo apanhou. Não as
bananas, mas dos outros, que não
queriam o banho gelado. Trocaram
outro, que apanhou do mesmo jeito,
e assim continuou, mesmo depois que
todos tinham sido trocados e nenhum
deles sequer sabia do banho gelado
que nem levariam mais. “Todos sem­
pre fizemos assim!”, responderiam
primatas falantes ao questionamento
48
de uma tradição arraigada, como se o
comportamento anterior, justificado
ou não, fosse justificativa suficiente.
O curioso de usarem esse argumen­
to como justificativa para chamar
GNU+Linux só de Linux é que, na
verdade, nem sempre fizemos assim.
Linus queria chamar de Freax esse
núcleo que escreveu, mas acabou
aceitando Linux [2]. Apresentavao como um kernel semelhante ao
do Minix e ao do Unix. Ainda que
tomasse como equivalentes kernel e
sistema operacional, não deixava de
lembrar o papel essencial do “gran­
de e profissional” GNU, sem o qual
“não se chega a lugar algum”, pois
dele vinha “a maioria das ferramen­
tas usadas com o Linux”, ainda que
“não façam parte da distribuição”
do Linux. Note, ele escreveu “usa­
das com”, não “no” Linux, e o que
ele chamava de distribuição era só
o núcleo, os arquivos linux-X.Y*.
tar.* que ele publica até hoje. Mas
não tardou para que surgissem dis­
tribuições executáveis combinando
GNU e Linux.
Contando na história
Dos duzentos programas executá­
veis incluídos na versão mais antiga
ainda disponível da primeira distri­
buição [3], MCC Interim 0.97p2-12
[4] (agosto de 1992), pelo menos 115
eram tomados diretamente do pro­
jeto GNU, sem contar as porções
mais significativas da Libc, empres­
tadas do projeto GNU, e outras bi­
bliotecas menos evidentes, ligadas
estaticamente. Com essa proporção
de 115 para 1, não faria nem sentido
chamá-la Linux, como de fato não
se fazia naquele tempo.
Slackware, a mais antiga distribui­
ção ainda viva, também não carrega
Linux no nome. A partir da lista de
programas [5] de uma versão do iní­
cio de 1994, pode-se ver que de seus
53 MiB de pacotes binários, mais de
16 MiB provinham diretamente do
projeto GNU (o maior contribuidor),
seguido por X, TeX e outros compo­
nentes que já haviam sido portados
para o sistema operacional GNU
somando pouco mais de 11 MiB,
e Linux, lá atrás, com duas cópias
(para discos IDE e SCSI), totalizan­
do 621 KiB. Com 30% diretamente
do projeto GNU, contra 1.1% Linux,
nem faria sentido chamar a combi­
nação de Linux.
Embora Linus tenha anuncia­
do seu kernel Linux como “free”
(gratuito), esse programa se tornou
“Free” (livre) somente em março
de 1992, após consulta pública so­
bre relicenciamento sob a então
http://www.linuxmagazine.com.br
GNU + Linux | ANÁLISE
recém-lançada GNU GPL versão
2, no anúncio do Linux 0.12 [6]. Já
em outubro do mesmo ano, Richard
Stallman convidava [7] voluntários
a preparar distribuições do GNU ba­
seadas em Linux, e assim nasceram,
com apoio da FSF, o projeto Debian
[8] e a distribuição Debian GNU/
Linux, predominantemente basea­
da no GNU, como qualquer outra.
Removidas da licença original do
Linux as restrições à venda, não tardou
para que surgissem distribuições co­
merciais. A primeira, lançada no final
de 1992, se chamava Yggdrasil Linux/
GNU/X [9], carregando no nome seus
três principais componentes.
A união faz a força
Essa combinação do GNU com
Linux, e depois com a interface
gráfica X11, foi um imenso sucesso
nas comunidades de Software Livre.
Desenvolvedores do projeto GNU
passaram a contribuir também para
o Linux, e desenvolvedores do Linux
passaram a contribuir também para
o projeto GNU, ainda que muitas
vezes por meio de forks temporá­
rios. Muito mais significativo foi que
a combinação atraiu muitíssimos
novos colaboradores, e passaram
não só a contribuir aos projetos já
existentes, mas também a criar no­
vos projetos destinados a funcionar
nessa combinação.
Além dos voluntários, mais em­
presas começaram a se dedicar a
essa união, criando distribuições e
oferecendo-as comercialmente. De­
pois da Yggdrasil, SuSE e Red Hat
se uniram ao conjunto de empresas
contribuindo para o desenvolvimen­
to do Linux, do GNU e de outros
programas que funcionavam nesse
ambiente, enquanto vendiam cópias
aos entusiastas. Começaram a sur­
gir cada vez mais aplicativos ditos
para Linux, embora funcionassem
igualmente em outras variantes do
sistema GNU. Como não usam as
interfaces do Linux, e sim as da GNU
Linux Magazine #56 | Julho de 2009
Libc, é possível substituir o núcleo
Linux por outro sem necessidade de
alterar as aplicações, nem mesmo
recompilá-las.
A desunião
se faz à força
Mas enquanto a comunidade GNU
se preocupava em mencionar os dois
componentes mais importantes da
combinação e temia uma fragmen­
tação da comunidade, desenvolve­
dores do Linux tentavam esconder a
relevância do GNU, fazendo parecer
que o mérito por todo aquele corpo de
software era exclusivamente do Linux.
Tão bem sucedida foi a campanha
de descrédito que hoje muita gente
crê e afirma (corretamente) que Li­
nus escreveu o Linux, mas entende
(erroneamente) que se trata de fração
majoritária, ou mesmo significativa,
do corpo de software que integra a
combinação de GNU, Linux e com­
panhia. Ainda hoje, embora os dois
projetos tenham crescido muito, em
grande parte graças ao sucesso que
alcançaram juntos, o Linux continua
quase uma ordem de grandeza me­
nor que o GNU, e o GNU continua
sendo o maior componente [10] de
qualquer distribuição de GNU com
Linux [11].
Ainda que seja normal, ao dar
crédito a um contribuidor menor de
uma obra, dar pelo menos o mesmo
crédito a um contribuidor maior,
diversos desenvolvedores iniciais do
Linux defendem com unhas e dentes
o uso do nome de seu programa para
a combinação toda. Argumentam
que foram eles que completaram o
sistema, ao qual faltava apenas essa
peça, e por isso exigem o renome
exclusivo, como se houvesse mérito
maior em chegar por último. Imagine
como seriam diferentes os domingos
de Fórmula 1 com o Tema da Vitória
fazendo fundo para berros vibran­
tes como “Rrrrubens, Rrrrubens,
Rrrruuubens Barrichello do Brasil,
num final dramááático, receeebe a
bandeirada na úúúltima posição!”.
De volta ao
planeta dos macacos
Com um lado buscando a união pela
cooperação, enquanto o outro enca­
rava a situação como uma batalha,
uma competição destrutiva em que se
fazia o primeiro parecer irrelevante,
prevaleceu o descrédito e a agressão.
E como “desde os primórdios até hoje
em dia, o homem ainda faz o que
o macaco fazia” continua-se propa­
gando essa injustiça, e uma porção
de primatas acha normal e natural
agredir quem denuncia a injustiça
tentando corrigi-la, pois “sempre
fizemos assim!”.
Mas não vejo nesse resultado uma
batalha perdida, até porque estou
entre os que não encaram a questão
como batalha, mas como campanha
de conscientização social. Se fosse
só pelo crédito [12], seria tão fútil e
mesquinha quanto a campanha de
descrédito ao GNU.
Porém, a confusão gerada pela su­
posição de que Linus deu origem a
todo o sistema, desconsiderando toda
a influência e todo o esforço levado
a cabo pelo movimento do Software
Livre e pelo projeto GNU, empresta
legitimidade indevida à (não) ideo­
logia de Linus, fazendo parecer que
foi ela quem deu origem ao sistema
e fomentou seu sucesso. Mas é uma
ideologia tão diferente da que deu
origem à maior parte desse sistema,
majoritariamente GNU, que acei­
tou até que o Linux voltasse a ser
não-livre [13].
A confusão entre Linux e GNU+
Linux se realimenta, pois o sucesso
foi fomentado pela combinação, pela
união dos apoiadores de ambas filosofias
e muitos outros, não exclusivamente
por uma ou outra. Ao negar o reno­
me ao GNU e à sua filosofia, nega-se
também, à maioria dos usuários do
sistema GNU [14], credibilidade e
49
ANÁLISE | GNU + Linux
exposição à filosofia que norteou a
criação do sistema que Linus julgou
essencial para que o Linux fosse uti­
lizável desde o início de sua história.
Ao negar essa realidade, dificultase mediante engano a campanha de
conscientização que embasa o movi­
mento do Software Livre. Certamen­
te há quem tenha interesse, quase
sempre mesquinho, em induzir a
esse engano (mentira), em impedir
a conscientização sobre os males do
Software não-Livre (manipulação),
em preservar essa injustiça à fonte
da qual mamou (ingratidão).
Nada justifica negar a nature­
za predominantemente GNU da
combinação de GNU, Linux e com­
panhia, para afirmar somente sua
porção Linux. Independentemente
da ideologia, dar a entender que a
combinação é mais Linux que GNU
é uma mentira.
Farpas e falácias
Ainda assim, inventam as desculpas
mais estapafúrdias para tentar justi­
ficar o destaque exagerado ao Linux
no nome da combinação, em detri­
mento do GNU. Em quase todos
os casos, o argumento para negar o
reconhecimento ao GNU justificaria
com ainda mais força a exclusão da
menção ao Linux, por isso se trata da
falácia “dois pesos, duas medidas”.
Se nenhum dos componentes me­
nores que o GNU fosse mencionado,
não haveria injustiça ao GNU em
excluí-lo também.
Vale lembrar que referir-se ao
Linux por seu próprio nome [15]
não é problema. Esse núcleo não é
um programa GNU e ninguém está
tentando obter crédito indevido por
ele. O que se busca é apenas corri­
gir a injustiça que se instaurou ao se
renomear a combinação de GNU,
Linux e companhia a Linux.
Outras falácias, como a lógica cir­
cular (a confusão realimentada, logo
acima) e o apelo às massas (“todos
sempre fizemos assim”, no início),
são também usadas para justificar
o injusto e injustificável erro. Vá lá,
errar é humano, mas aprender tam­
bém. Assumir o erro, nem tanto, mas
insistir no erro... há quem faça, com
teimosia típica asinina.
Mais informações
[1]Lançamento do projeto GNU: http://www.
gnu.org/gnu/initial-announcement.html
[2]Linus Torvalds e David Diamond, “Just for Fun”:
http://en.wikipedia.org/wiki/Just_for_Fun
[3]Breve história das distribuições (GNU) Linux:
http://lwn.net/Articles/91371/
[4]MCC Interim 0.97p2-12:
http://www.manlug.org/content/view/180/65/
[5]Arquivos contidos no Slackware 1.1.2:
http://www.ibiblio.org/pub/historic-linux/
distributions/slackware/1.1.2/FILE_LIST
50
Injustamente, a
humanidade é
desumana
Primatas pensantes, com aguçado
senso de justiça, moral e ética e ca­
pacidade de aprender, não mais des­
mereceriam o bo(vi)níssimo GNU
só porque “sempre fizeram assim”
primatas tradicionalistas, equinos
teimosos, canídeos infiéis, suínos
chauvinistas, preguiças acomodados,
outros ingratos mamíferos da fonte
do GNU e até ab(ez)errações pin­
guíneas, certo? Certo?! n
Nota de licenciamento
Copyright 2009 Alexandre Oliva.
Cópia literal, distribuição e publicação da
íntegra deste artigo são permitidas em
qualquer meio, em todo o mundo, desde
que sejam preservadas a nota de copy­
right, a URL oficial do documento e esta
nota de permissão.
http://www.fsfla.org/svnwiki/blogs/lxo/
pub/gnu-linux-renome
[8]Richard Stallman, “Free as in Freedom”:
http://oreilly.com/openbook/freedom/ch10.html
[9]Yggdrasil Linux/GNU/X: http://en.wikipedia.
org/wiki/Yggdrasil_Linux/GNU/X
[10]Componentes do Fedora Core 7: http://
fsfla.org/blogs/lxo/2007-05-21-gnu+linux
[11]GNU com Linux:
http://www.gnu.org/gnu/linux-and-gnu.html
[12]Richard Stallman, “Por que GNU/Linux?”:
http://www.gnu.org/gnu/why-gnu-linux.html
[13]Alexandre Oliva, “Linux-libre e o dilema dos
prisioneiros”: http://lnm.com.br/article/2756
[6]Anúncio do Linux 0.12:
http://www.kernel.org/pub/linux/kernel/
Historic/old-versions/RELNOTES-0.12
[14]Usuários GNU não conhecem o
GNU: http://www.gnu.org/gnu/gnuusers-never-heard-of-gnu.html
[7]Convite de Richard Stallman:
http://groups.google.com/group/gnu.
misc.discuss/msg/83aa082de3e58e13
[15]Stallman corrige o entrevistador:
http://br-linux.org/2008/fato-raro-ementrevista-com-richard-stallman/
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GNU e Linux, uma questão de renome