MENINOS DA CASA / MENINOS DA RUA: NARRATIVAS DE MENINOS DE
UMA CASA ABRIGO ACERCA DE SI, DA CASA E DA ESCOLA
BALDISSERA, Maria Janete Soligo – UFRGS – [email protected]
Eixo:EDUCAÇÃO BÁSICA / nº 03
Agência Financiadora: Sem Financiamento
MENINOS DA CASA / MENINOS DA RUA: NARRATIVAS DE MENINOS
DE UMA CASA ABRIGO ACERCA DE SI, DA CASA E DA ESCOLA
Maria Janete Soligo Baldissera1
A realidade assume muitas formas, tantas quantas nossos discursos sobre ela
forem capazes de compor. Quando alguém ou algo é descrito, explicado em
uma narrativa ou discurso, temos a linguagem produzindo uma ‘realidade’.
Embora tenhamos preferências, não existe parâmetro que nos permita julgar
o valor de verdade de um discurso. (Costa, 2002, p.152).
Tomando por epígrafe essa fala de Marisa Vorraber Costa, interesso-me por
entender o que significa narrar determinado grupo de jovens, numa escola, como
Meninos da Casa. Essa narrativa, tão naturalizada, em meu ambiente de trabalho, levoume a buscar quem seriam eles; como foram constituindo-se e, se a partir do ponto de
vista do território da escola, alguns jovens eram narrados como os Meninos da Casa2,
como o seriam, a partir de seu próprio ponto de vista em relação a si, à Casa (Abrigo)
onde moram e à escola que freqüentam?
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Mestranda no PPGEDU/FACED/UFRGS, com orientação da Profª Drª Clarice Salete Traversini.
A expressão Meninos da Casa, possivelmente, tenha origem no surgimento da Casa Abrigo, localizada
em um dos bairros periféricos de Novo Hamburgo/RS, já que primeiramente, recebeu o nome Casa dos
Meninos, com o objetivo de atender meninos de rua que decidiam dar um novo rumo a suas vidas.
Encontrei essa definição no livro “Os bairros de Novo Hamburgo/RS”, (Schütz, 2001).
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A partir dessas considerações propus um projeto de pesquisa a ser desenvolvido
no Curso de Mestrado em Educação, com o seguinte objetivo: Entender e analisar as
narrativas produzidas pelos Meninos da Casa acerca de si e das instituições (Casa
Abrigo e escola) que os capturam para normalizá-los. Para tanto, procuro realizar uma
pesquisa de cunho etnográfico pela incursão na Casa Abrigo e na escola, realizando
observações e provocando narrativas, semanalmente, cujos registros vão compondo meu
diário de campo. Tal proposta justifica-se pela intenção de melhor entender as políticas
de inclusão que trouxeram esse grupo para a escola: os anormais a serem normalizados,
os indivíduos a serem corrigidos para serem “devolvidos” à sociedade. Interessa-me
saber sobre as identidades que assumem, os projetos de vida que têm, as perspectivas
que colocam sobre a Casa, mas, principalmente, sobre a escola e sobre a continuidade
de estudos com vistas a completar a Educação Básica, cujas propostas pedagógicas
deveriam ser pensadas, considerando sua presença e narrativas. Procuro entender as
práticas de normalização que a escola lhes impõe, bem como as mudanças que ela
poderá estar provocando em suas vidas e como essa mesma escola, estará sendo
transformada, modificada para viabilizar sua inclusão. Nesse percurso, transito pelo
campo dos Estudos Culturais, procurando trilhar caminhos investigativos, tendo em
vista a perspectiva pós-estruturalista.
Afrouxar as amarras da ilusão de se chegar a uma resposta ou verdade única gera
o sofrimento da desconstrução, e é desse lugar que, hoje, falo. Falamos, observamos,
escrevemos, a partir de lugares móveis e instáveis. Isso também me permite construir
determinados tipos de problemas que, talvez, antes do contato com os Estudos
Culturais, não me eram visíveis ou reconhecidos como problemas. Assim, descrevo
algumas cenas que me instigaram a produzir essa pesquisa. Possivelmente, meu
discurso estará atravessado pelo modo como vejo os fatos, modo este constituído a
partir de vivências e experiências que me foram tornando a pessoa que sou, com as
tantas identidades que me fazem professora, mulher, aluna... Ocupo um lugar, a partir
do qual tenho uma visão dos fatos, a qual proponho pôr em discussão. Apresento
fragmentos deles, narrando algumas cenas.
Casa Abrigo / Escola - delimitando o cenário da pesquisa e dos Meninos da Casa
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Março de dois mil e cinco. Escola Estadual – bairro periférico - Novo Hamburgo/RS.
Ensino fundamental, na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) , organizado
por Totalidades (1, 2, 3, 4, 5 e 6)3 , no período da noite. Neste cenário, passo a ocupar a
função de coordenadora pedagógica. Em média, vinte alunos compõem cada turma. São
nove os professores que circulam por este espaço, atendendo as turmas.
Junho de dois mil e cinco. Casa Abrigo4 - bairro periférico - Novo Hamburgo/RS. Os
jovens que compõem este cenário, durante o dia, cumprem algumas tarefas na referida
instituição. À noite, alguns deles freqüentam a Escola Estadual, antes referida, que fica
a 100m da Casa.. Os professores dos mesmos fazem-lhes uma visita. Duas professoras
não acompanham o grupo: uma delas se diz temerosa por freqüentar tal ambiente, pois
acha que os rapazes representam perigo à sociedade, conseqüentemente, à escola, sendo
melhor mantê-los fora dela; a outra não se manifesta.
Opto por descrever tais cenários porque eles me inquietam e fazem parte de
minha experiência profissional, na Educação Básica. E, se falar de experiência possui
um significado a partir do lugar em que estou, descrevo minha experiência como
coordenadora pedagógica da EJA, da escola já referida, entendendo que “a experiência é
o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece” (Larrosa, 2002, p.21). Viver esta experiência não é somente
estar aberta ao que se passa, mas perceber o que disto me passa, perpassa, atravessa.
Significa ter um olhar atento às identidades circundantes por este espaço e provocar
reflexões acerca dos dispositivos de que nos utilizamos para produzi-las. A partir de
FISCHER (2002, p.58), isso implica em “(...) deixarmos para trás o lago sereno das
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Totalidade é o termo usado, nessa escola, para designar as etapas que compõem o ensino fundamental
na modalidade EJA: Totalidade 1 – alfabetização; Totalidade 2 – 3ª e 4ª séries; Totalidade 3 – 5ª série;
Totalidade 4 – 6ª série; Totalidade 5 – 7ª série; Totalidade 6 – 8ª série.
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Usarei a expressão Casa Abrigo, ou, simplesmente Casa, para me referir a uma Casa de Reeducação,
localizada na periferia de Novo Hamburgo/RS, que abriga jovens em situação de risco e/ou em
recuperação da dependência química e/ou em conflito com a lei em razão de cometimento de ato
infracional.
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certezas e mergulhar naqueles autores e teorizações nos quais encontremos fontes
consistentes, ferramentas produtivas para a formulação de nosso problema de pesquisa”.
É possível que minhas observações sejam produzidas sob o ângulo de que olho
os fatos e, pela imersão na Casa, em contato com os jovens que lá residem, vou
colhendo pistas da dimensão de sua realidade e vou produzindo um diário, resultado de
observações e interações, em que os corpos, as vozes, os cheiros, o lugar causam-me
sensações que, possivelmente, não me permitem despir de alguma subjetividade. Ao
mover-me por esse espaço, inspiro-me a mesclar as identidades ali circulantes (inclusive
as minhas), em que a leitura que faço de suas falas, códigos, vestimentas, posturas...
mostra-me como os sujeitos são produzidos, culturalmente. Assim, longe dos métodos
que nos conduziam, com certa segurança, a algumas verdades, aproximo-me da
perspectiva pós-estruturalista e vejo-me trabalhando com interpretações provisórias que,
até podem dar efeitos de verdade, mas que não o são, já que as verdades são tantas e
incontáveis. Suspeito da concepção partilhada entre a escola e a comunidade quando
narram os jovens da Casa Abrigo como Meninos da Casa, inferindo a identidade como
algo a fixar-se, a partir do território que ocupam, já que autorizar-se a decifrar o outro é
negar que somos sujeitos de tantos pertencimentos e que a identidade é algo em
movimento. Assim, passo a recear o determinismo de como são decifrados, passando a
problematizar o que, aparentemente, está normalizado.
Os Meninos da Casa e a diversidade cambiante de culturas e identidades
Em minhas incursões pela Casa e pela escola (mais efetivamente, a partir de
março/2007), as observações e registros feitos induzem a perceber que os Meninos da
Casa são narrados a partir do lugar onde residem, neste caso, a Casa Abrigo, um espaço
bem demarcado no bairro. Como análise parcial dos dados já coletados, entendo que ter
cometido um ou mais atos de infração e/ou ter sido (ou ser) dependente químico os situa
num espaço de normalização, marcadamente, representativo para eles e para toda a
comunidade. Narrá-los como os Meninos da Casa, colabora para uma política de
localização, em que se faz explícita a idéia de que estão inscritos numa ordem que os
posiciona como anormais e que estão na Casa e na escola para serem normalizados,
corrigidos em nome de um convívio social harmonioso.
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As observações permitem-me apontar algumas considerações, dentre elas, que
esses jovens, na escola, têm dificuldades de atender regras, de seguir normas, de
começar e concluir o ensino em uma Totalidade, de fixar-se a um objetivo e lutar por
ele. Freqüentemente, burlam combinações, pois suas incursões pela vida lhes ensinaram
a viver sob suas próprias regras: as de sobrevivência. Essa é a sua forma de resistir a um
poder que os deseja normais e, segundo FOUCAULT (2003, p.232) “... as relações de
poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a possibilidade de
resistência, e é porque há possibilidade de resistência e resistência real ...”. O poder
prevê resistências e esse processo está presente nas relações sociais, visto que não há
harmonia na imposição de algumas vozes e sim embates.
Para a construção de um mundo ordeiro e civilizado, foi projetada uma escola
que primasse pela organização, formação moral dos sujeitos, socialização das pessoas.
Há, entretanto, segundo VEIGA-NETO (2003), os que resistem à sua proposta e, à
espera destes, estão o manicômio, a prisão, o quartel. No contexto da pós-modernidade,
essas análises contribuem para percebermos um descompasso entre a escola (e ao que se
propunha) e o mundo atual (da globalização, da rapidez dos acontecimentos, da nova
compreensão de espaços e tempos...). Na dualidade destes contextos, a escola parece
estar vivendo uma crise. As políticas de inclusão trouxeram os Meninos da Casa para
dentro da escola e, talvez, pesquisas nessa área sejam produtivas no sentido dela
perceber possibilidades de uma revisão em seus métodos que implique em construir um
novo contexto, pressupondo novos tempos, novos espaços, novas metodologias, no
sentido de viabilizar atendimento a essa demanda.
A Casa Abrigo é visualizada como, além de um território (lugar) que os Meninos
da Casa ocupam, um espaço que serve para civilizar. Lá, moram jovens em conflito
com a lei, que, ao cometerem alguns atos infracionais (roubos, assaltos, assassinatos...)
precisam, à luz da nossa cultura, ser civilizados. A condição social a eles atribuída é a
de ser o outro no bairro, alguém a ser tolerado. Segundo VEIGA-NETO (2007), não
falamos de “lugar nenhum”, visto que nossos pensamentos estão comprometidos com o
lugar que ocupamos, assim, pensamos, falamos, conhecemos a partir de valores,
interesses, forças sociais que demarcam o espaço que ocupamos.
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BAUMAN (2005. p.39), nos diz que “não é a diferença entre produtos úteis e
refugo5 que demarca a divisa. Muito pelo contrário, é a divisa que prediz – literalmente,
invoca – a diferença entre eles: a diferença entre o admitido e o rejeitado, o incluído e o
excluído”. O espaço, demarcado pela Casa Abrigo, seria determinante no conceito do
grupo que nela reside, produzindo um sujeito com identidade própria, ou seja, à margem
da sociedade, à parte do restante dos alunos, o refugo, para além de minha pessoa, o
Outro, o diferente na escola e no bairro. Sua identidade estaria em “relação primordial
com a política de localização” (Hall, 2000, p. 105). Porém, num cenário de
transformações (sociais, políticas, econômicas, culturais...), a escola, constituída na
Modernidade, com desejos de homogeneização, padronização, segregação, estabilização
está em crise; não seria o momento de ela viabilizar abertura à expressão das várias
culturas, das várias identidades circulantes na sociedade?
Ao analisar dados já coletados para minha pesquisa, percebo que poucos dos
jovens com quem tenho contatado, na escola e na Casa, são os mesmos, desde março de
2007. Vejo que não se fixam em lugar nenhum e que esta escola e esta Casa
representam apenas mais um dos lugares por onde têm passado. Há um descompasso
entre o desejo de fixar identidades (presente na estrutura da escola) e a vida
contemporânea, que aponta para uma diversidade cambiante de culturas e identidades.
Segundo SILVA (2000. p.84), “O processo de produção da identidade oscila entre dois
movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a
identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la
Definir os jovens como Meninos da Casa, estaria possibilitando uma tentativa de
fixar sua identidade, demarcando fronteiras, fazendo distinção, preferencialmente, entre
os que seguem a norma (normais) e os que agem fora da norma (anormais). “Eles”
representariam alguém que precisa ser tolerado, numa referência explícita a um
essencialismo cultural, estabelecendo uma relação binária, em que se pressupõe que
uma cultura possa ser melhor que outra. Não defendo, aqui, que sua condição de infrator
deva ser legitimada como algo natural, aceitável, comum. Mas sim, que deva ser
problematizada, considerando também, seu ponto de vista.
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Bauman (2005) usa a palavra refugo para se referir a uma categoria de sujeitos excluídos,
marginalizados, os fora dos limites, que representam um mal para o progresso da sociedade, a quem se
reserva o lugar de despejo.
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Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer
pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Verdades em suspenso: Foucalut e os perigos a
enfrentar. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos II: outros
modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FOUCAULT, Michel.. Poder e saber. In: Ditos e Escritos IV – Michel Foucault –
Estratégia, Poder e Saber. 1 ed. Editora Forense Universitária, 2003.
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LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.
Revista Brasileira de Educação. N 19. Jan/Fev/Mar/Abr – p. 20 – 28; 2002.
SCHÜTZ, Liene M. Martins. Os bairros de Novo Hamburgo. Novo Hamburgo:
Gráfica Sinodal, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ___
Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. 6ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.
VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura e Natureza; cultura e civilização: precauções quasemetodológicas. In: SOMMER, Luiz Henrique; BUJES, Maria Isabel (org.). Educação e
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paisagens. Canoas: ULBRA, 2007.
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VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares... In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos
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DP&A, 2002.
VEIGA-NETO, Alfredo. Pensar a escola como uma instituição que pelo menos garanta
a manutenção das conquistas fundamentais da Modernidade. In: COSTA, Marisa
Vorraber (Org.). A escola tem futuro? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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