SINTAXE DE UMA CASA-ÁTRIO MODERNA Frederico de Holanda RESUMO Esta Comunicação propõe uma leitura dos elementos constitutivos do código espacial doméstico, e compara uma residência unifamiliar, projetada pelo autor para uso próprio, com outras discutidas na literatura, projetadas por arquitetos ou não. Comenta o sistema de acessibilidades internas e externas da casa, assim como a natureza das fronteiras que definem os vários elementos espaciais: sua eventual mobilidade, transparência, dimensão relativa em face do espaço aberto etc. Tal descrição da casa, é o ponto de partida para o estabelecimento de hipóteses quanto às suas implicações para o convívio que se dá em seus espaços. Afirma-se que a casa oferece uma dupla possibilidade de: a) intensificação da convivialidade em seu interior, obtida por meio de grande transparência no miolo do edifício, e b) possibilidade de reclusão em segmentos mais segregados da configuração. Essa dupla dimensão de integração/segregação, com a maximização da integração mútua dos elementos centrais do projeto, é talvez o elemento que mais chama a atenção no primeiro contato que se tem com a casa, e a existência de um átrio central contribui de maneira essencial para tanto.1 Introdução Este texto trata da análise configuracional de uma residência unifamiliar, na cidade de Sobradinho, Distrito Federal, Brasil.2 Esta análise tem um objetivo específico: visa compreender o desempenho do edifício do ponto de vista de suas implicações em face das interfaces sociais que nele se dão. Como Hanson sugeriu, “toda casa configura um modo de vida, por meio da construção de interfaces sociais entre homens e mulheres, mais jovens e mais velhos, anfitriões e convidados, proprietários e empregados." (Hanson, 1998, p. 267) Talvez haja um caráter excessivamente "determinista" nesta frase, mas a idéia é a de que há uma relação, digamos, natural, entre determinada configuração e determinado modo de convívio. Em outras palavras, a configuração espacial de um edifício tem um desempenho como variável independente, que a faz mais congruente com determinados estilos de rela1 Texto baseado em Comunicação preparada para o III Seminário Docomomo Brasil, realizado em São Paulo, 8-11 de dezembro de 1999. 2 Agradeço as críticas e sugestões feitas por Claudia Loureiro a uma versão preliminar deste trabalho, que contribuíram significativamente para a feitura da versão final. 2 cionamento, do que com outros. Isto não quer dizer que estamos condenados a obedecer a tal conteúdo intrínseco à configuração, como sugeri noutra oportunidade (Holanda, 1997), mas quer dizer, sim, que pagaremos um custo adicional se quisermos utilizar o espaço de outra maneira que não aquela mais naturalmente suportada pelo sistema de acessibilidades internas e externas da casa, assim como pela natureza das fronteiras que definem os vários elementos espaciais: sua eventual mobilidade, transparência, dimensão relativa em face do espaço aberto etc. Afinal, a configuração de uma casa, como de qualquer edifício, cria um conjunto de possibilidades - permeabilidades, proximidades, visibilidades - e de restrições - portas, barreiras, opacidades - que inevitavelmente se relacionam ao uso que fazemos de seus espaços. Contribuir para o entendimento deste relacionamento, é o objetivo desta comunicação. Os aspectos aqui tratados têm constituído o eixo de atenção de vários autores - como Markus (1993) ou Evans (1997) - e principalmente da teoria da sintaxe espacial, como proposta por Hillier e outros desde os anos 1970 (Hillier & Hanson, 1984). Aqui, entretanto, o leitor encontrará referências mais detalhadas aos estudos relatados por Hanson em seu recente livro já citado (Hanson, 1998). O estudo desta casa tem um duplo caráter: primeiro, pretende-se constituir num roteiro didático para o estudo sintático do espaço doméstico, e, segundo, pretende ser mais uma instância de teste em face das proposições interpretativas resultantes de outros estudos já realizados. Antes de iniciar a análise sintática propriamente dita, valem algumas observações gerais. O contexto é um condomínio, a 19km do centro do Plano Piloto de Brasília, próximo à saída norte da cidade. Localiza-se na parte mais alta de um divisor de águas, numa situação de mirante, entre uma área de preservação ambiental (Cafuringa) e o Ribeirão Sobradinho. É local muito ventilado, cuja temperatura é cerca de dois graus centígrados abaixo daquela encontrada no Plano Piloto. O lote é retangular, mede 20m por 60m, portanto 1200m2 de área, de esquina, e sua orientação é quase rigorosamente norte-sul, na dimensão mais longa. As duas ruas estão a leste e sul. O lote apresenta declividade de cerca de 5%. A casa apresenta-se em três níveis: se considerarmos a garagem e a lavanderia como nível 0,00m, os quartos e escritório estão a 1,15, e os demais espaços a 2,30m. A edificação, com 408,22m2 de área construída, ocupa praticamente a metade sul do terreno, a outra sendo utilizada como quintal (Fig. 1). 3 (a) (b) Fig. 1: Plantas baixas (a: nível 0,00m; b: níveis 1,15m e 2,30m). Integração / segregação A medida de integração de um edifício, carro-chefe da sintaxe espacial, revela a distância relativa de um espaço em face de todos os outros do sistema. Entretanto, essa "distância" é de natureza antes topológica do que geométrica, ou seja, é obtida em função de quantos espaços temos minimamente de percorrer, para ir de uma dada posição a outra, dentro do edifício, e não em função dos metros lineares de percurso que separam essas posições. Todo edifício tem, naturalmente, espaços mas acessíveis (ou integrados, ou rasos - esses 4 termos são sinônimos, em sintaxe espacial), em média, a partir de todos os outros do sistema, e espaços menos acessíveis (ou segregados, ou profundos). A integração média dá a medida em que o edifício, como um todo, é mais ou menos acessível entre todas as suas partes. Neste caso, a integração média é de 0,8407 (Para explicações técnicas mais detalhadas desta medida, ver Hanson (1988), particularmente a "introdução"; na Tabela 1, quanto maior o valor, mais integrado é o espaço em questão) Há que esclarecer também o que são estas unidades de "espaços" aqui consideradas. Tratase da decomposição analítica do edifício a partir da "técnica de convexidade", pela qual o sistema espacial, em planta, é formado por unidades de duas dimensões, circunscritas por polígonos convexos, ou seja, polígonos que não podem ser cruzados por segmentos de retas em mais de dois pontos. O perímetro de um quarto retangular coincide com um desses espaços, mas uma sala em "L" conterá pelo menos dois. A Fig. 2 indica como a plantabaixa da casa foi decomposta em "espaços convexos"; estes são representados por um círculo, e as relações diretas de permeabilidade entre eles são representadas por um linha. Na Fig. 3, abstraem-se apenas as unidades de espaços convexos - representadas novamente por círculos - e suas respectivas conexões - representadas por linhas. Da parte inferior para a parte superior do grafo encontram-se os espaços e suas respectivas profundidades sintáticas a partir do exterior. Os números identificam os espaços, como consta da Tabela 1. Em face da evidência disponível na literatura, esta casa é bem integrada. Tomando como exemplo alguns estudos relatados por Hanson (1998), como mostra a Tabela 2, apenas em dois casos a integração média é maior, sendo uma delas o exemplo paradigmático do plan libre, a casa Shroeder, de Rietveld, edifício emblemático do Movimento Moderno. Mesmo assim, a medida citada diz respeito apenas ao primeiro pavimento, que é o mais permeável, e com as divisórias abertas. Certamente, a existência e a configuração do átrio, em torno do qual se tem um anel de permeabilidade, e ele próprio constituindo uma interseção entre outros dois anéis, contribui para tanto, assim como a pequena profundidade dos ramos que eventualmente partem deste anel. (Um "anel de permeabilidade" significa que, partindo de um determinado espaço, podemos atravessar uma série de outros espaços e chegarmos novamente à origem da seqüência, mas por outro lado. Ver, por exemplo, o anel formado pela seqüência vestíbulo, escada 1, circulação 1, circulação 5, escada 2, circulação 6, copacozinha, sala, circulação 7, vestíbulo (Fig. 2)) 5 Fig. 2. Planta de convexidade, mostrando as permeabilidades entre espaços. É interessante notar, pelos exemplos de projetos de Loos (Casa Muller), Botta (casa em Pregassona), Hejduk (Casa Diamond A), Meyer (Casa Giovannitti) e Rietveld (Casa Shroeder), oferecidos por Hanson, que a integração varia bastante, de edifício para edifício, não se podendo caracterizar um determinado valor como um atributo tipicamente moderno. Em outras palavras, e se aceitamos a hipótese pela qual diferentes níveis de integração estão relacionadas a diferentes modos de convívio, estas diferentes casas parecem oferecer suportes físicos que respondem melhor a tipos de expectativas bastante diferenciados. Vários estudos empíricos têm sugerido que um edifício bem integrado favorece um sistema de interfaces intenso e informal, enquanto edifícios mais segregados correspondem a status mais fortes e relações constituídas de maneira mais hierarquizada. Veremos adiante, quando examinarmos relações mais específicas dos espaços entre si, em qual categoria se encaixa melhor o caso da presente análise. 6 Fig. 3. Grafo "justificado" de permeabilidades a partir do exterior. Uma outra medida do caráter geral do sistema é a entropia, ou "fator de diferenciação", que indica a medida em que o sistema apresenta variações significativas entre suas diversas partes. Esta medida é uma adaptação da medida "H" de Shanon, desenvolvida para uma teoria matemática da comunicação (Shanon & Weaver, 1948). Variando entre 0 e 1, quanto maior este fator, maior a entropia, ou seja, menos diferenciado é o sistema. Nesta casa, ele é de 0,85, indicando que sua configuração não estabelece grandes diferenciações sintáticas entre os lugares para cada uma das funções. Relacionada à alta integração, antes comentada, a alta entropia sugere que temos, além de um edifício bem integrado em média, um edifício onde não existem, simultaneamente, espaços extremamente integrados, e espaços extremamente segregados. Integração dos espaços de per-si O núcleo integrador, ou seja, o conjunto de espaços mais integrados do sistema, confirma a importância do eixo norte-sul que atravessa completamente a casa, e que também poderia ser descrito como o eixo quintal - varanda - sala - circulação - vestíbulo - escada - circulação - escritório - jardim externo. Dos oito espaços mais acessíveis do sistema, quatro são atravessados por este eixo, e quatro estão apenas a um passo dele, aqui incluindo-se o átrio e o exterior. 7 Vale notar que os cinco primeiros espaços mais integrados são de circulação (pela ordem de integração, circulação 1, escada 1, vestíbulo, circulação 5 e circulação 2), e não de atividades. Isto poderia implicar maior privacidade dos habitantes, em seus respectivos lugares de permanência, em detrimento de uma maior convivialidade, quando os espaços mais integrados correspondem aos lugares de reunião - como a sala, a copa-cozinha, ou o átrio, por exemplo, nesta casa. Aqui parece estarmos diante de uma interessante ambigüidade. Em primeiro lugar, porque, de fato, o átrio, pretendido coração da casa, elemento-chave do partido, é ainda um espaço bastante integrado (8o lugar), e o escritório 1, onde o tempo de permanência é bastante alto, para trabalho assim como para lazer, ocupa apenas o sexto lugar em integração, vindo imediatamente após as unidades de espaços de circulação referidos. Mas, em segundo lugar, porque, como veremos melhor adiante, a transparência em todo o miolo da casa relaciona fortemente, de maneira visual, tanto o átrio, como a sala e a copa-cozinha, ao núcleo integrador. A sincronia auditiva e visual é, em todo este miolo, muito alta. Os quartos estão todos abaixo da linha média de integração; os quartos 1, 2 e 3, da família dos proprietários, apresentam integração praticamente igual. Curiosamente, entretanto, este "setor íntimo" é mais integrado do que partes do "setor social", como a varanda e o lavabo. O quarto 4 (o de serviço) é marcadamente mais segregado, mas sua posição o privilegia em face do anel que incorpora vários espaços do núcleo integrador da casa (voltarei a este ponto posteriormente). O exterior (integração = 0,9744) é muito integrado: comparado aos espaços internos de permanência da casa, perde apenas para o escritório 1, sendo 15% mais integrado do que a integração média da casa, o que a coloca, curiosamente, entre dois códigos espaciais domésticos relatados por Hanson, relativos à classe trabalhadora e classe média inglesas. Na primeira, a interface com o âmbito público é bem maior, e isto se revela pelo fato de que o exterior é mais integrado em 38% em relação à média da casa; na segunda, o núcleo integrador é direcionado muito mais para o interior da casa, e o exterior para a ser segregado em mais 69% do que a integração média, invertendo fortemente o papel do exterior, de um código para o outro (Hanson, 1998, p. 129). Resta investigar mais sistematicamente se isto se verifica no caso brasileiro, mas sabemos, por observação empírica, que, nos assentamentos populares, a integração interior/exterior é tradicionalmente muito maior do que nos bairros de classe média. Nesta casa, a relação visual com o exterior é semelhante àquela 8 encontrada em outros exemplos no mesmo contexto de classe média em Brasília, ou seja, não é utilizada maior transparência entre o dentro e o fora (em contraste com o caso da classe média inglesa, como relatado por Hanson). A solução volumétrica externa, assim como a pequena proporção das aberturas em face dos cheios, sugerem uma solução fortemente introspectiva, mas a relação de acessibilidade, traduzida pela medida de integração, favorece a interface entre habitante e visitante bem mais do que aquela encontrada em outros exemplos de contextos semelhantes de classe média em Brasília (Figs. 4 e 5). Novamente, porém, para que isso seja melhor verificado, são necessários estudos mais sistemáticos. Fig. 4: Fachada Leste Fig. 5. Vista sudeste. 9 Comparada aos estudos de quatro casas das “estrelas arquitetônicas” realizados por Hanson (1998, cap. 9), esta casa assemelha-se a uma casa de Meyer, em sendo integrada e anelar. Como pode ser verificado pela Tabela 2, esta ainda é 16% mais integrada do que a mais integrada daquelas quatro (a de Meyer). No que diz respeito à ordem de integração dos principais espaços, a semelhança se confirma: exterior > sala > copa/cozinha > quarto principal, portanto investindo forte, em primeiro lugar, na interface com o âmbito público e, em segundo lugar, no principal ambiente de estar. Distributividade e simetria Apoiada em Hillier (1996), Hanson propôs duas outras variáveis ao longo das quais certos atributos de um edifício podem ser quantitativamente caracterizados: as medidas de distributividade e simetria. Para tanto, parte-se de uma classificação das unidades espaciais encontradas no edifício, em termos de suas relações de permeabilidade. São quatro tipos (Fig. 6): 1) espaços tipo "a", com uma única ligação, que podem ser chamados de "terminais"; 2) espaços tipo "b", com duas ligações, mas que formam parte de um sub-complexo "em árvore", ou seja, estão no caminho de, ou para, pelo menos um espaço terminal; 3) espaços tipo "c", que fazem parte de um complexo que não contém espaços tipo a nem tipo b, e cujo número de ligações é exatamente o mesmo do número de espaços (em outras palavras, pertencem a um "anel" simples) ; 4) finalmente, espaços tipo "d", que se ligam pelo menos a três outros espaços, e pertencem, pelo menos, a dois anéis. Fig. 6. Grafo ilustrando os tipos de espaços em função de suas conexões (cf. Hillier, 1996, p. 318) 10 Hanson chamou os espaços tipo "a" e "b" de não-distributivos, e os tipos "c" e "d" de distributivos. Daí, a relação (c+d)/(a+b) dá a medida de distributividade do sistema. Sociologicamente, a hipótese é de que maior distributividade num edifício significa que este não constrói, como um todo, barreiras fortes entre as várias pessoas e/ou práticas que usam os seus espaços. (A Tabela 1 mostra também a classificação dos espaços segundo estas variáveis) De fato, a estrutura anelar desta casa permite, no uso cotidiano, uma grande variedade de rotas, possibilitando como que uma "sintonia fina" de percursos, em função dos objetivos dos movimentos, e minimizando o esforço para o encontro entre pessoas que estão em lugares diferentes. Por outro lado, como Hillier demonstrou (1996, p. 319), espaços tipo "a" e "d" contribuem para uma maior integração do sistema como um todo, enquanto espaços tipo "b" e "c" contribuem para uma maior segregação. Daí, a relação (a+d)/(b+c) foi chamada de medida de simetria, e indica o grau em que o edifício classifica, mais ou menos fortemente, as pessoas e/ou práticas que organiza. Nesta casa, a simetria de 1,29 sugere que a casa classifica fracamente os vários papéis e status que organiza; em outras palavras, grandes diferenciações de status não são naturalmente suportadas pela configuração. Isto confirma a indicação obtida pela alta medida de entropia. Espaços de atividades / espaços de circulação A decomposição do espaço da casa em unidades convexas mostra que é muito alto o índice espaço de atividade / espaço de circulação. Chamarei este índice de "economia de circulações", que será referido, daqui por diante, por "a/c". De fato, muitos espaços de permanência, particularmente no miolo da casa, são atravessados por rotas cotidianas, como a sala, varanda, átrio, copa-cozinha, escritório 1 e roupeiro, o que resulta em a/c = 1,72. É curioso notar que, no estudo relatado por Hanson sobre casas londrinas projetadas por arquitetos para uso próprio, o número de espaços de transição é bem maior, chegando em 72% dos casos a superar o número de espaços para atividades, sendo que o valor médio é a/c = 0,786, muito inferior, portanto, ao encontrado nesta casa (Hanson, 1998, cap. 8). Comparando com residências produzidas por incorporadores para o mercado imobiliário, onde a/c = 1,462, Hanson mostrou como, no caso dos arquitetos, o sistema espacial investe forte em elementos de circulação, o que pode ser interpretado como estratégia para fortalecer a identidade das categorias de usuários em espaços de permanência, pelo relativo isolamento 11 entre eles. Nesta casa, o índice "a/c" é 17% maior do que nas residências produzidas para o mercado inglês, e 118% maior do que nas residências londrinas de arquitetos, o que a caracteriza como pertencente a um genótipo radicalmente distinto de ambos os casos. Este indicador, na medida em que implica uma maior aproximação relativa entre os espaços de permanência (ou seja, investe-se pouco em transições entre eles), soma-se àquele que registra a alta distributividade do sistema. Ou seja, a configuração da casa implica pouca importância das barreiras entre as várias categorias de usuários da casa. Por outro lado, a relativamente pequena ocorrência de espaços de transição em face do número total de espaços da casa, minimiza o fato de que os espaços mais integrados são deste tipo: como já vimos, os espaços principais de permanência, quando não estão no próprio núcleo integrador (como o escritório), são contíguos a ele, e não estão separados entre si por cadeias de elementos de circulação (por exemplo, varanda/sala, sala/átrio, sala/copa-cozinha, copa-cozinha/átrio, estão diretamente conectados entre si). Espaços fechados / espaços convexos A casa apresenta um total de 38 espaços convexos, mais o exterior. O número de cômodos fechados, no interior da casa, é de apenas 11. Poderíamos chamar a relação entre os espaços fechados da casa, e os espaços convexos internos, de "índice de fechamento", que, neste caso, é de 0,40. Esse índice é inferior aquele comentado por Hanson, tanto para as casas de arquitetos (0,42) como para as casas do mercado imobiliário (0,77), ou seja, temos aqui muito poucos espaços definidos e separados entre si por paredes e portas. Hanson sugeriu que o baixo índice de fechamento no caso das casas dos arquitetos é devido a uma maior elaboração dos espaços: "nas casas dos arquitetos, a maioria dos cômodos é constituída por domínios espaciais mais complexos, feitos de uma mistura de espaços funcionais e transições, e é isto que confere às casas dos arquitetos um grau de peculiaridade que tanto contrasta com a configuração estereotipada e 'em caixas' de muitas casas modernas da especulação". (Hanson, 1998, p. 230, minha tradução) Entretanto, as razões para o baixo índice encontrado, no caso aqui analisado, parecem diferentes. A solução espacial para os vários espaços funcionais (sala, copa-cozinha, escritório etc.) não é elaborada em termos de muitas unidades de espaços convexos para cada ambiente, o que corresponderia àquela "peculiaridade" das casas dos arquitetos. Ao contrário, o 12 minimalismo encontrado na volumetria externa, reproduz-se na estrutura interna do espaço. Neste caso, o baixo índice de fechamento não é fruto da super-elaboração da convexidade, mas da minimização do fechamento dos espaços. Como vimos, a economia de elementos de circulações é grande, sendo muitas delas incorporadas aos diversos cômodos, e identificadas apenas pela colocação do mobiliário e posicionamento dos acessos, e não por proliferação de espaços convexos em cada cômodo. O importante é que o miolo da casa, incluindo sala, vestíbulo, copa-cozinha, átrio, escritório, mezanino, e, além deste, a lavanderia e garagem, constitui um sistema totalmente permeável. Essa é uma casa "moderna" também neste sentido: por um lado, a exploração do plan libre, por outro lado, a parcimônia no uso dos elementos de linguagem, constituídos por unidades geometricamente simples, nos dois níveis - elementos massivos e elementos espaciais. A identidade destes elementos, assim como a diversidade entre eles, é obtida por meio da manipulação de outras variáveis, como intensidade da luz, cor, textura, pé-direito, nível, inflexão de percursos etc., e não por fechamento. Talvez esta continuidade seja um dos atributos que mais caracterizem a identidade desta casa. Diferenciação categórica / posição relativa Este par de variáveis lida com aspectos que são menos morfológicos, e mais relacionados à maneira pela qual lugares adquirem uma particular identidade social (Hanson, 1998, p. 126). Em outra oportunidade, chamei este aspecto de dimensão semântica do fenômeno arquitetônico (Holanda, 1997). A diferenciação categórica, especificamente, lida com a maneira pela qual funções particulares correspondem, sem ambigüidade, a determinados lugares. Esta casa dificilmente poderia ser menos diferenciada categoricamente: a sala abriga refeições, música e estar; o mezanino abriga hóspedes e lazer; o escritório 1 abriga trabalho e lazer; o quarto 3 abriga descanso, trabalho e lazer; o escritório 2 abriga hóspedes, trabalho e lazer; o átrio abriga lazer, lanches e refeições; e assim por diante. O espaço tende, assim, a ser "homogeneizado", visto como "continente neutro para toda e qualquer atividade", os cômodos "multifuncionais" (Hanson, 1998, p. 127). Quanto à posição relativa, teríamos de dispor de uma pesquisa mais sistemática dos códigos domésticos brasilienses, para verificar se existe aqui uma recorrência do posicionamento relativo dos ambientes, em face de outros exemplos do contexto. Impressionisticamente, esta casa parece distinguir-se do genótipo tradicional, na medida em que, por 13 exemplo, estabelece uma relação de permeabilidade direta entre sala e cozinha, sem espaços de circulação intervenientes, ou mesmo uma relação visual direta entre vestíbulo e cozinha, assim como entre átrio e entrada das suites, no setor íntimo. Já vimos como os padrões espaciais da casa são altamente distributivos, significando frágeis fronteiras entre as categorias sociológicas que "habitam" cada um dos ambientes. A pequena diferenciação categórica e um posicionamento relativo que rompe tradicionais hierarquias, parece confirmar e reforçar aquelas frágeis fronteiras, sugerindo uma realidade socio-espacial onde os papéis são continuamente renegociados, quintessência de urbanidade. Construção de interfaces sociais Referindo-se à construção de interfaces sociais no espaço doméstico, Hanson observou ainda que a manipulação da forma espacial pode enriquecer a experiência da arquitetura, ao “conformar uma socialização multifacetada, ou empobrecê-la, articulando um ponto de vista de determinado ator, ou de ninguém em particular.” (1998, p. 267) “Socialização”, no caso da teoria da sintaxe espacial, tem um sentido muito preciso: trata-se da co-presença, ou da co-ciência, entre os que se encontram nos espaços em questão, por meio respectivamente da acessibilidade física ou da visibilidade, proporcionadas pela natureza das fronteiras que definem estes espaços - mais ou menos permeáveis à passagem, mais ou menos transparentes à vista. Mas uma casa constitui, obviamente, apenas uma potencialidade de utilização, qualificada naturalmente pela configuração, como já observado: o uso efetivo que se dará de seus espaços será função do estilo de vida dos moradores. Interessa saber a medida em que a configuração constitui um entrave a tal estilo, impondo custos para sua realização, ou o suporta adequadamente. Muitas observações sobre as interfaces que ocorrem nesta casa já foram feitas ao longo das seções anteriores, quando outros aspectos foram considerados. No que se segue, indico alguns pontos que merecem atenção mais específica. Todos os moradores entre si. Já comentei a acessibilidade e a visibilidade entre os espaços constituintes do miolo da casa - vestíbulo, átrio, sala, copa-cozinha. A multifuncionalidade destes lugares, assim como sua integração recíproca, favorece uma intensa interface entre os moradores, que se revezam, na ausência de empregados permanentes, nas tarefas domésticas: a preparação de refeições, ou lavagem de louça, por exemplo, é feita por um, 14 ou outro, membro da família (na copa-cozinha), enquanto outros ficam ao alcance visual e auditivo em espaços contíguos (na sala, ou no átrio). Nesta casa, falar da relação entre copa-cozinha e sala, não é, como em outros casos, falar da relação entre gêneros, mas falar da relação entre membros da família exercendo funções intercambiáveis. Por outro lado, à preparação de refeições está garantido um lugar imediatamente abaixo da sala, em termos de acessibilidade, o que, nesta casa, diminui bastante a distância categórica entre “natureza” e “cultura”. (Tudo indica que esta casa muda bastante esta distância, em face de outros exemplos do contexto, mas isto resta por verificar) Por outro lado, a multifuncionalidade que se reproduz em outros lugares da casa, também já comentada, igualmente suporta uma pequena distância categórica entre gêneros ou idades: o escritório 1 é espaço de trabalho predominantemente do esposo, mas é também utilizado pela esposa e filhos; o escritório 2, ao contrário, é predominantemente utilizado pela esposa, mas também utilizado eventualmente pelo esposo; o quarto 3, do casal, também contém uma mesa onde trabalho eventual pode ser realizado, quando condições de maior reclusão do que aquelas eventualmente oferecidas pelo escritório 1 são necessárias. Os mais jovens e os mais velhos. As suites constituídas pelos quartos 1 e 2 foram pensadas, respectivamente, para o filho e a filha do casal. A eventual privacidade desejada é obtida com o fechamento das portas; são espaços tipo “c”, mas os seus usuários comandam a ligação aos anéis a que os quartos pertencem. Por outro lado, com as portas abertas, o uso desses anéis, através do jardim interno 1, uso que se dá com freqüência, favorece a interface com os outros moradores. Os quartos 1 e 2 abrem para os principais espaços convexos que constituem o núcleo integrador. A essa acessibilidade física soma-se a visibilidade franca para o miolo da casa: do seu interior é possível ver o átrio e a copa-cozinha, e assim que se sai deles, vêem-se o escritório, o vestíbulo e a sala. Moradores/hóspedes. A casa não tem aposentos especificamente pensados para hóspedes. Eles podem ficar nos quartos 1 ou 2 (na ausência dos filhos do casal), no quarto 4 (que, considerada a inexistência de empregados permanentes, também é utilizado para hóspedes), no escritório 2, ou no mezanino. No primeiro caso, valem as observações acima. No quarto 4, os hóspedes dispõem da privacidade do quarto mais segregado da casa, ao mesmo tempo em que o espaço à sua porta está a um passo da copa-cozinha, com a franca visibilidade que esta oferece para o átrio e para a sala. Se o lugar utilizado pelos hóspedes é o mezanino, eles se encontram num lugar mais próximo à linha média de integração, mas num 15 espaço tipo “a”, portanto relativamente recluso. Entretanto, aqui não há privacidade quanto à visibilidade. É espaço de hóspedes em condições de “casa cheia”... No dia-a-dia, o mezanino constitui agradável alternativa para observação de um outro canal de televisão, se a da sala já está sendo utilizada: a relativa segregação mútua entre estes dois lugares garante isolamento acústico satisfatório. Moradores/visitantes. A sintaxe da casa suporta bem uma intensa interface entre visitantes e moradores. Se incluirmos o átrio entre os espaços mais importantes (o que de fato ele é), temos a seguinte ordem de integração: exterior > átrio > sala > copa-cozinha > quarto do casal. Nas reuniões com os amigos, estes últimos freqüentemente assumem diretamente a preparação da refeição a ser feita. Nestas ocasiões, a integração copa-cozinha / átrio / sala, mostra novamente a sua importância para a socialização: os três ambientes, além de mutuamente conectados em termo de acessibilidade, são sincrônicos áudio-visualmente, o que facilita o contato entre diferentes subgrupos. Por outro lado, a sintaxe da casa "embaralha" os setores "social", "intimo" e de "serviço". O setor social se prolonga pelo escritório 1 e mezanino, o que rompe a continuidade do setor íntimo: por dentro da casa, é preciso sair para o social, para ir dos quartos 1 e 2, para o 3 (mas lembremos que há uma alternativa pelo jardim), o que também contribui para enfraquecimento das barreiras entre visitante e morador. (Sobre a relação entre o íntimo e o de serviço, ver abaixo) Proprietários/empregados. Embora a família não tenha empregados permanentes, existe a opção de uma área de serviço. A atividade de uma diarista ocorre, naturalmente, na casa inteira, mas o quarto 4 é o local preferido para o trabalho de passar roupa (em vez da lavanderia, junto à garagem). A preferência por um determinado espaço é sempre resultado de um conjunto de fatores. O quarto 4 oferece agradáveis condições ambientais (melhor iluminação), e uma bela vista para a área de proteção ambiental referida. Além disso, ele abre para um anel que contém o núcleo integrador da casa, o que permite uma acessibilidade e visibilidade muito mais franca para o resto do edifício, do que se a diarista utilizasse a lavanderia. Novamente, a alta acessibilidade e visibilidade da copa-cozinha, aproxima os empregados da vida cotidiana casa, reduzindo a segregação entre o "setor social" e o "de serviço". Por outro lado, como já sugerido, a sintaxe também embaralha os setores social e de serviço, na medida em que um anel de permeabilidade inclui a sala, assim como a copacozinha, mas exclui a lavanderia: a ausência de integridade do setor de serviço indica como 16 algumas tarefas domésticas são mais freqüentemente realizadas pelo casal - como a preparação de refeições -, e outras mais raramente - como a lavagem de roupa na lavanderia. Conclusões A análise comparativa entre esta casa e outras residências, projetadas ou não por arquitetos de reconhecida importância, revela que há variações significativas de configuração, independente dos aspectos plásticos dos edifícios. Revela também a inexistência de uma estrutura de permeabilidades especificamente moderna, assim como ilustra um parentesco antes insuspeitado entre manifestações do chamado "vernáculo" e da arquitetura dita "erudita", demonstrando mais uma vez a precariedade destes rótulos na caracterização da identidade dos edifícios, ou, pelo menos, de uma de suas dimensões fundamentais. Por outro lado, a avaliação de um edifício é necessariamente informada por valores, que informam expectativas. Como sugerimos noutra oportunidade (Holanda & Kohlsdorf, 1995), essas expectativas são de vários tipos - funcionais, bioclimáticas, de orientabilidade etc. - e a valoração do desempenho do edifício em qualquer delas depende da prioridade a elas alocada na definição do partido. Naturalmente, a melhor solução é aquela em que melhor se conciliam todos os tipos de demanda que temos em relação ao espaço arquitetônico. Neste texto, a análise concentrou-se numa dimensão específica - a co-presencial, aquela que relaciona a configuração com o modo de interação entre as pessoas -, embora algumas observações tenham sido feitas, de passagem, sobre outras dimensões. É necessário lembrar ainda que algumas expectativas são de caráter mais universal - aquelas relacionadas à orientabilidade, por exemplo - e outras são de caráter mais contextual, mesmo pessoal. Em seu livro, Hanson caracterizou o espaço da residência analisada de Hejduk como "anti-social", e aquele da residência de Botta como "maçante" (1998, cap. 9). O projeto de Hejduk é teórico (não foi construído); no caso de Botta (construído), é possível que os moradores concordem com esta avaliação, mas é possível também que discordem, e que as expectativas relativas a esta residência tenham sido plenamente satisfeitas (Hanson não comenta). Isto porque, em se tratando dos aspectos espaciais relacionados ao estilo de vida de uma família, a sua avaliação pode ser fortemente idiossincrática. 17 No presente caso, o desempenho da residência satisfaz às expectativas co-presenciais que se tinha: sua configuração responde bem às interfaces sociais desejadas, permitindo um espectro amplo de alternativas de socialização ou reclusão. Mas o estudo de um edifício isolado não permite a caracterização de um genótipo espacial, ou seja, sua maior ou menor pertinência a uma determinada família de soluções. Para entender melhor a medida em que esta casa reproduz códigos do seu contexto, ou apresenta atributos distintos, faz-se necessário uma abordagem sistemática dos espaços domésticos correntes. Pesquisas já têm sido realizadas em outras cidades brasileiras, por Trigueiro, Amorim e Monteiro, por exemplo (SSL, 1997). Comparar os resultados obtidos aqui com os verificados por aqueles autores, certamente enriquecerá a compreensão de nosso tema. Por outro lado, várias observações foram feitas, ao longo do texto, sobre os códigos espaciais domésticos no Distrito Federal, mas a partir de observações ainda superficiais e assistemáticas. A melhor caracterização destes códigos constitui interessante objeto de investigação, a ser eventualmente enfrentado. 18 Tabela 1: Integração do presente estudo de caso. espaço circul 1 escada 1 vestíbulo circul 5 circul 2 escrit 1 exterior pátio escada 2 circul 7 escada 3 roupeiro circul 6 circul 4 circul 3 lavanderia sala copa-coz quintal 1 garagem mezzan quintal 5 escrit 2 quarto 3 quarto 1 quarto 2 varanda lavabo ban 3 quarto 4 ban 4 jard int 1 ban 1 ban 2 quintal 3 quintal 4 quintal 2 jard int 2 jard int 3 n. espaço integração 9 1,3473 8 1,2126 1 1,1735 18 1,1136 10 1,0699 26 1,0699 39 0,9744 6 0,9573 19 0,9408 2 0,9249 23 0,9249 28 0,8873 20 0,8731 11 0,8593 14 0,8593 24 0,8395 4 0,8206 7 0,8144 38 0,8084 25 0,7851 27 0,7851 37 0,7740 17 0,7579 30 0,7579 13 0,7374 16 0,7374 5 0,7133 3 0,7041 29 0,6907 21 0,6737 22 0,6737 31 0,6695 12 0,6655 15 0,6655 35 0,6458 36 0,6345 34 0,6345 33 0,5597 32 0,5457 máxima média mínima 1,3473 0,8407 0,5456 espaços tipo a: 9 espaços tipo b: 1 espaços tipo c: 16 espaços tipo d: 13 tipo d c d d d c d d c d c c c c c c d d d d a d c c c c c a b a a d a a c c a a a 19 distributividade: 2,9 simetria: 1,29 entropia: 0,85 Tabela 2. Integração em vários exemplos de espaços domésticos. Casos CTI CMI Arquitetos ingleses Botta Meier Hejduk Loos Rietveld (div. abertas)* Rietveld (div. fechadas)* Esta casa Integração 0,67 0,98 0,704 0,71 0,72 0,54 0,5 0,99 0,76 0,8407 Legenda: CTI - Classe Trabalhadora Inglesa CMI - Classe Média Inglesa * Nestes casos, a integração se refere exclusivamente aos espaços internos do primeiro pavimento da casa. Nos demais, inclui todos os espaços, internos e externos. BIBLIOGRAFIA EVANS, Robin. Translations from drawings to building and other essays. London : Architectural Association Press, 1997. HANSON, Julienne. Decoding homes and houses. Cambridge : Cambridge University Press, 1998. HILLIER, Bill. Space is the machine. Cambridge : Cambridge University Press, 1996. HILLIER, Bill, HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge : Cambridge University Press, 1984. HOLANDA, Frederico de. A determinação negativa do Movimento Moderno. In: II SEMINÁRIO DOCOMOMO BRASIL, 1997, Salvador. HOLANDA, Frederico de, KOHLSDORF, Gunter. Sobre o Conceito de Arquitetura. In: SEMINÁRIO NACIONAL - O ESTUDO DA HISTÓRIA NA FORMAÇÃO DO ARQUITETO, 1994, São Paulo. Anais... São Paulo : FAUSP/FAPESP, 1995. p. 196-203. 20 MARKUS, Thomas. Buildings & power – freedom & control in the origin of modern building types. London: Routledge, 1993. SHANON, C, WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Chicago: University of Illinois Press, 1948. SPACE SYNTAX – I INTERNATIONAL SYMPOSIUM, PROCEEDINGS. London; Space Syntax Laboratory, 1997.