Utopia da Educação Popular: Saudade ou Esperança1? AMARAL, Edna Fernandes PASSOS, Luiz Augusto Este planeta tem cães? - pergunta a raposa. O Príncipe: - Não, não tem! Oba! – disse a raposa - E galinhas? Também não tem! – replicou o Príncipe. Nada é perfeito! – entristeceu-se a raposa. (Saint-Exupèry, O Pequeno Príncipe.) Qual a substância e o papel das Utopias, na educação realizada por movimentos sociais? Utilizou-se, freqüentemente, certas categorias emprestadas à antropologia social, sobretudo, das análises estruturalistas, para aplicação à compreensão do fenômeno humano e suas relações com outros seres no mundo2. Pretendemos realizar aqui um ensaio teórico, partindo das pesquisas de Carlos Mesters, relacionando-as com a psicanálise de Freud e as teorias de Hinkelammert e Jung Mo Sung, acerca do lugar do sujeito na sociedade contemporânea, relacionadas com as concepções educacionais de Paulo Freire. A presente comunicação reporta-se a um recorte de duas pesquisas, em andamento no GPMSE/UFMT: Saberes e Práticas da Educação Popular dos Movimentos Sociais no Mato Grosso, do Prof. Dr. Luiz Augusto Passos e a pesquisa de mestrado PPGE/IE/UFMT/GPMSE, Conhecimento e (re)conhecimento na educação 1 2 O presente título dialoga com o livro que nos serve de referência de Carlos Mesters: Estruturas de organização e formas literárias foram tomadas de textos míticos ou religiosos, escrituras sagradas, como linguagem cuja organização seria capaz de trazer sentido para outros ‘textos’, inclusive textos científicos, existenciais, analíticos ou interpretativos das ciências e do cotidiano. A linguagem onírica (sonhos) forneceu a Freud instrumental, para a Psicanálise, esclarecendo certa lógica do inconsciente; as teorias da Gestalt na Psicologia, transferidas para manchas de Rorschach, forneceram sofisticadas pistas para compreensão do sujeitos e sua identidade; a “História das formas (Formsgeschichte) de Bultmann foi utilizada como clichês organizadores das intencionalidades dos textos bíblicos; Paul Ricoeur utilizou, ainda, a exegese bíblica de Bultmann para criar a Hermenêutica. Recentemente, René Girard, antropólogo e cientista social, membro a Academia Francesa, estudou formas míticas na antropologia para gerar categorias como as “teorias sacrificiais” (dimensão do poder sagrado) para análises do contemporâneo Neoliberalismo. Da mesma maneira, “Babel bíblico” foi evocada por Jorge Larossa para avaliar o fenômeno da solidão e da incomunicabilidade cultural e ontológica entre os humanos, agravadas pela cultura moderna. Estas e outras obras e autores exemplificam certo êxito neste intento. Veja: ASSMANN,1991; BERGER, 1985; CASSIRER, 1972; DaMATTA, 1978 e ELIADE, 1972. popular: caso IPESP/ABHP orientada e coordenada pela Profª. Drª. Artemis Mota Torres. A questão que nos colocamos é o papel das utopias para a ação educativa dos sujeitos, quer sejam eles educandos ou educadores, numa determinada comunidade aprendente. Para que servem as utopias em educação popular? São elas sonhos ou realidades? São plausíveis e viáveis ou constituem delírios ou projetos inatingíveis? De onde e por que são construídas? Se tiverem algum papel relevante na ação educacional, qual seria este papel? Possuiriam um caráter mítico, psicótico ou alienante, que substituiria, de antemão, a ação que deveria ser feita por sobre a realidade ou poderiam vir a ser críticas provocativas e políticas? Poderiam, pela sua dimensão ideal, por seu “juízo final”, desqualificarem de antemão, todo e qualquer esforço histórico, na constituição da história ou seriam, ao revés, aguilhões impulsionadores da ação revolucionária? Eis algumas questões tematizadas em nosso percurso. Carlos Mesters é um belga, brasileiríssimo, em sua nordestinidade, que criou o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), movimento-instituição sempre na alça de mira do Vaticano, pois reúne parte das igrejas de muitas denominações, em torno de uma leitura popular da Bíblia. Toma como referência, o que penso que se poderia falar em linguagem acadêmica, uma leitura dos textos bíblicos a partir da base material da sociedade, à luz dos modos de produção. Encontraremos autores que falam de uma leitura materialista da Bíblia. Isso é, a compreensão do contexto de produção da realidade material das diversas etnias nas quais o povo e autores dos textos históricos, põem uma moldura de referência, esclarecedora do seu significado, a partir da história, da economia, da cultura sob a qual surgiu o referido texto bíblico. Faremos, nesta introdução, utilizaremos o mesmo procedimento, preconizado acima. Dialogaremos com o livro do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, e, faremos inspirados, teórico-metodologicamente, no primoroso texto de Carlos Mesters: Paraíso Terrestre: Saudade ou Esperança (1969). A arqueologia do livro do Gênesis O Gênesis – primeiro livro da Bíblia, não o mais antigo, – faz parte do Pentateuco, coletânea dos cinco primeiros livros, que constituía o que se chamava em Israel de TORAH. O Pentateuco teve muitas análises e interpretações diferentes, mas, o Gênesis, dentre seus livros, se distingue por sua complexidade maior com inumeráveis estudos. Foi composto, no seu corpo, por mais de um “autor”, por culturas e “escolas” teológicas muito distintas entre si. Duas delas, as maiores, a eloita pode ser identificada no seu texto, pois sempre denomina Deus como ELOIM: o Senhor. A javista, identificase por nominar Deus como JAHVEH. A cultura de origem de cada um destes conjuntos de autores, possuem teologias acerca do mundo religioso completamente antípodas, distintas. A corrente eloíta é monoteísta, e tem o SENHOR – Eloim ()םיהלא- como o único Deus de toda a carne, isto é, Deus de toda a criatura seja cósmica ou humana. Para ela, os outros deuses são ídolos imaginários criados pelos homens, obviamente, sem qualquer poder. Deus é aquele, cuja transcendência é universal, e sob seu poder está o mundo e qualquer ente do universo. A cultura Javista, ao contrário, é politeísta. YHVH ( )הוהי- Javé é um, entre tantos outros deuses, é o Deus particular que adotou, pela aliança com Moisés, as doze tribos e as constituiu como nação, raça escolhida, e povo seu, aqueles que, antes, sequer eram uma única etnia. Tratava-se de povos com culturas híbridas e sem representação política. Sua identidade cultural é realizada sob muitas seduções de outros povos e culturas, outras religiões e cultos, de sorte a aderirem à Idolatria, adoração - por exemplo - do Bezerro de Ouro ou dos cultos fenícios da fertilidade, cuja serpente, o gênesis referencia como poder demoníaco. A luta permanente de Moisés era a construção de uma fidelidade a Javé, que significaria também a fidelidade a Aliança, a unidade política perante os grandes desafios de sua desestruturação. [...] Moisés levantava a serpente do deserto para que vista, o povo identificasse a cura e a morte que ela poderia vir a provocar. A serpente empírica, biológica, a só, no deserto, ainda que evocasse fecundidade, ritos pagãos, divindades outras, não implicava nenhum perigo sem seu contraponto. O contraponto surge na intersecção de uma outra versão de universo (a constituição de nação realizada sob a unificação de Moisés) com pretensões à globalidade totalitária, que se apresenta assimiladora e guerreira contra as culturas que não domina. Surge da unificação das doze tribos de Israel que não tinham poder significativo de representação política, até o momento no qual, Moisés constitui destes povos, um só Povo, mediado pela aliança entre as tribos, e brindou essa aliança com uma Constituição – o Decálogo3 – e, com uma única referência de soberania: Javé. O Decálogo é o impulso instituinte da unificação e a condição do que virá a surgir: será um povo da promessa, e Javé será o seu único Deus. A negociação das tribos, o sacrifício das identidades culturais de origem, é o grande pacto social da constituição de um germe de ‘raça’ com pretensões de hegemonia (PASSOS, 2007: p. 5). 3 A tabua dos Dez Mandamentos. O Javismo apresentará, em seus textos, no Gênesis, Javé como um dos deuses que lutará contra os outros deuses, e contra todos os outros povos e nações, que não se submetiam a Javé. Nas crises de fidelidade, Deus abandona o povo, para que sinta o poder dos outros deuses, e aqueles os castiguem. O Eloismo apresentará o SENHOR como criador e sustentador universal de toda a criatura, fundamento da tradição monoteísta. Os outros deuses têm olhos, mas não vêem; nariz, mas não cheiram; têm, em suma, os pés feitos de barro que se desmancham como areia. E, apesar deste estilo explícito e claro, do texto sagrado ter sido escrito por duas “religiões” diferentes, que se tramam no mesmo parágrafo, ainda “lemos” e não vemos, por uma estratégia de nossa racionalidade ou ótica da invisibilidade, o politeísmo inscrito nos textos da Bíblia! Há duas narrações do gênesis, com versões de natureza completamente distintas da Criação. A primeira vai do Capítulo 1 até 2,4a e a segunda narração tem outro estilo, completamente distinto; vai do Capítulo 2,4b-25. O que o Gênesis não é... O Gênesis não é a narração da criação do mundo e das criaturas. Não livro de registro historiográfico, nem narra como Deus teria procedido para criar o mundo. O livro do Gênesis não é um livro de história, no sentido que damos a este termo, para saber onde, como e porque as coisas ocorreram daquele jeito, em que ordem, em que tempo, com que nexo causal aconteceu o ocorrido – isto é, o que veio antes e o que se seguiu depois, na criação do mundo. Sabemos bem mais, aliás, acerca do começo do mundo, do que os autores do livro do Gênesis poderiam ter sabido. E, quem o lê, na Bíblia, como livro de demarcação histórica, geográfica, usa lentes erradas para poder compreendê-la4. Mas, o livro do Gênesis não é também um livro de ciência. O Gênesis 4 Dou, apenas, um exemplo acessível e bem contemporâneo. Há uma proposta de turismo de Natal, anunciada por um canal de TV, que se propõe a levar as pessoas a visitarem, entre outro lugares, o “lugar onde Jesus fez o Sermão da Montanha”. Ora, o texto que apresenta o referido texto, numa montanha, é o de Mateus. Judeu, cobrador de impostos, sendo o apóstolo que deveria pregar para Jesus para os Judeus precisa apresentar Jesus como Messias. A constituição das tribos como Nação e a Lei para os Judeus, devem-nas a Moisés. Como anunciar aos Judeus, Jesus? Ele teria que tomar o lugar de Moisés, e superálo. Desta forma a “história” de Jesus – que já dissemos enfaticamente não é histórica, é catequética - é “feita” por Mateus em comparação com a vida e a “história” de Moisés. Moisés foi para o deserto; nele, foi tentado pelo demônio; passou quarenta anos em peregrinação e, por fim, subiu a Montanha; nela, recebeu as Táboas da Lei. Também o Jesus, de Mateus, começa sua vida pública, indo para o deserto, não se propunha, no seu tempo, ao estilo da cultura da ciência moderna, explicar a criação. A ciência pertencerá a um outro mundo, muito contemporâneo, que cultiva um certo “mito” de ter pretensão de saber com exatidão e certeza e de prever com isso fatos e fenômenos futuros. Por isso, ler o livro do Gênesis e imaginar que os fatos se deram assim como estão lá, e que constituem argumento para criticar a ciência, é equívoco ou ignorância. Até porque o mundo e os fenômenos a que o Gênesis se refere, são expressos numa concepção vulgar e simplória dos fenômenos, retrata a “ordem” interpretada no senso comum acerca do universo, naquela cultura. Não havia, por parte dos autores, conhecimento que hoje obtemos de certos fenômenos, ainda que não inteiramente compreendidos, dizem-nos com mais certeza, o que eles não seriam. Ler um livro de ficção como se fora livro histórico, o erro não estaria no livro, mas no leitor. Temos usado nosso universo simbólico modernizante, nossa linguagem, olhar cultural para ler e interpretar Gênesis ou querer esclarecer, através do livro do Gênesis se Deus criou um homem e uma mulher, ou muitos casais em partes diferentes do mundo (poligenia), se somos criação ou frutos da evolução. Estas questões, no contexto do Gênesis são extemporâneas, fora do tempo deles. O livro não fornece dados para isso. Estaríamos fazendo uma leitura, equivocadamente, com lentes erradas. Gênesis não diz como Deus mesmo fez o mundo, a ordem da criação, o número de dias. Ele é uma grande parábola, um grande poema, voltado à vida, ao cotidiano daquele momento. Terá que ser lido, na perspectiva do sentido para o qual foi escrito, o da fé do povo hebreu. Seu tema, contudo, não é importante apenas para aquele tempo, é útil, para aqueles que são crentes, para resignificar sua experiência humana, em quaisquer outros tempos. O que o livro de Gênesis é, afinal? O livro do Gênesis, tal como todos os textos bíblicos, está enxertado dentro de um momento histórico vivo, e serve tanto às pessoas daquele tempo, como para aquelas sendo tentado pelo demônio, passando nele quarenta dias, subindo a montanha, e – nela - proclamando sua Nova Lei, e, de certa forma, superando a Lei Mosaica por uma Lei Nova: “Vocês ouviram o que foi dito pelos antigos.... Eu, porém, vos digo...(Mt 5,21 ss). Em suma, se o turismo de Natal quisesse ir ao lugar onde Jesus deu sua lei, seguindo Texto de Mateus, subiriam a montanha – que é o que está anunciado; se utilizassem o texto de Lucas, não teriam montanha alguma, iriam para um lugar aberto e plano (Lc. 6,17) e, se fossem guiados ao pretendido lugar, pelo texto de Marcos, teriam que fazer o movimento oposto, o de encarnação, teriam que descer... e ir para às margens do mar da Galiléia (Mc 4,1-2)! pessoas que crendo, buscarem sentido à existência delas e aos acontecimentos vivenciados, à luz da fé em Deus. O(s) autor(es) e escritor(es) do Gênesis pertencem a uma cultura específica, sistema de comunicação e de linguagem humana sempre concreta. Trata-se de dois textos conjuntos. O primeiro escrito, em ordem de apresentação escrito em 586-538AC, tempo do Exílio da Babilônia, e a segunda narração do século X AC, tempo do reinado de Salomão. Estas narrações distam de nossa cultura, de 2600 a 3000 anos. Não havia um cronista ao lado de Deus para acompanhar seus gestos, quando a terra estava informe e vazia. Ninguém registraria como Deus teria feito no primeiro, segundo, terceiro dia, e assim por diante, para nos contar o ocorrido. O Exílio, não tinha clima para discutir uma cosmogonia. Foi um acontecimento dramático e cruel de dominação política, expulsão e desterro dos hebreus de sua terra, e levados para os desertos da Babilônia. Na visão de sua fé, estar longe de sua terra e do seu país, portanto, longe do Templo físico construído, estavam longe de Deus. Os babilônios tinham por finalidade de que os hebreus fossem extintos, enquanto povo. Não havia clima para descrever o paraíso terrestre. Este acontecimento foi o golpe na auto-compreensão do povo de si mesmo, de sua missão, de sua identidade, de seu abandono por Deus à dominação de Nabucodonor. Era acontecimento de negatividade, que precisava ser compreendido à luz de sua crença, fosse ela, de origem eloíta ou javista. O povo era nômade, antes do exílio, vivia com seus rebanhos em busca da terra prometida, com hábitos e trabalho do cunho pastoril. Não tinham tecnologia para retirar sua manutenção da cultura da terra, do plantio. Estavam, na Babilônia, cercados a espaço definido, e colocados nos seus desertos áridos para que morressem lentamente pela fome, doenças, animais venenosos e mortais, à míngua, sem condições de sobrevivência. A paisagem simbólica do Gênesis é desalentadora: a terra em trevas, informe e vazia quando Deus não dissera ainda sua Palavra. E o castigo viria como maldição: “a terra que você antes conhecia - no Éden - se contraporá a você, os animais rebelar-se-ão... irás comer o pão com o suor do teu rosto; mas a terra, ao teu suor, (do deserto) te devolverá carrapichos e espinhos”. O esforço que o povo precisava fazer para se libertar, era dialogar para compreender o que se passava, para construir uma unidade política. No entanto, lhe estará vedado este caminho. A fome, a pouquíssima produção levará ao extermínio entre os próprios judeus, pela posse da porção mínima de alimento através do qual pudessem sobreviver. Tropeçarão, contudo, numa outra maldição que impediria o diálogo e a comunicação: a confusão das línguas, que todos falavam e eram estranhas, não se entenderiam (Babel); e, a fraternidade que deveria haver, será rompida, e haverá genocídio, de irmão matando irmão (Caim e Abel). Os momentos de felicidade maior, de gerar um novo ser para o mundo, tornar-seá também maldição: “Irás dar as luzes entre dores” E, a serpente que te induziu à sedução, arrastar-se-á sobre seu ventre – deusa babilônica!” Estabelecerei, dirá o texto, conflito: conflito entre ti e a geração da mulher – “Ela – diz Javé à serpente pisar-te-á com os pés, esmagando-te a cabeça, - e, dirá à mulher:- e, ela te ferirá o calcanhar: morrerás!” Essa era a experiência cotidiana, econômico-política que contextualizava o livro do Gênesis. O autor – como membro do povo - se perguntava, na angústia, se Deus é bom e sempre quis o nosso bem, que é a causa do sofrimento? A fé lhe respondia: O mal não vem de Deus, ele é Bom, “Tudo que fez era bom!” Queria um Éden de felicidade para os humanos. Como existe, então, o sofrimento entre nós? E, o(s) autor(es) do livro do Gênesis responde(m): - se entre nós reside a luta, o sofrimento, o abandono, a incompreensão, a violência, a morte, a dor, a discórdia, não foi Deus que gerou esta situação de miséria na qual vivemos: a culpa é de Adão (ADHAM). ADHAM é o Homem, melhor dizendo, a humanidade, na verdade, todo o homem. Adham, tem a mesma função lingüística de termo que se lhe contrapõe, em hebraico, Evah. Ambos conceitos não são singulares ou se referem a uma pessoa concreta, o próprio texto define Eva, a partir da descrição de uma universalidade, “aquela que é mãe dos viventes”, e, portanto, toda mulher. Desta forma o autor identifica aqueles responsáveis e, que produzem a infelicidade e a morte, podendo também, de certa forma, como autores que são: descriá-las. O autor do Gênesis não escreve nesta ordem sua reflexão. Faz um flash back literário. Na verdade, escreve sua reflexão de trás para frente. Semelhante à casa do pobre, diz Carlos Mesters, que começa, por causa da urgência, pelos fundos, pelo mais útil, a cozinha, o quarto e, vai fazendo puxados com o nascimento dos filhos, dosnetos, até, um dia, mais tarde, poder realizar a parte da frente, a fachada, que é feita por último com mais cuidado, porque se quer mais bela. O que aparece na leitura do livro, na fachada, são textos mais tardios, os mais belos, o Paraíso. E, na fachada do Gênesis se começa na descrição de tudo o que foi bom. Isso, provavelmente, só foi pensado no fim. O que deu início à reflexão do autor, não era a belíssima criação e o paraíso, era a violência que se vivia, cotidianamente, na realidade do cativeiro, no limite histórico da vida humana e seus conflitos. Essa realidade do Gênesis, todavia, é ainda a realidade de todos nós, uma realidade muito longe do Paraíso Terrestre sonhado como Utopia! Estamos simplificando muito, a apresentação do Gênesis, porque o central para nós é, também, a partir dele, debater os sentido das utopias. Mas, vale conferir, a riqueza das indicações de Mesters, para que possa ler e passear, adequadamente, nas trilhas do texto do Gênesis, com todo o rigor necessário. Gênesis: manifesto de uma revolução O livro do Gênesis se constituiu como um manifesto político, naquele tempo, e à consciência da responsabilidade de cada um e de todos, resultou na organização da saída dos hebres da Babilônia, com a certeza de que, Deus não queria aquele cativeiro, de que Deus estava do lado de Adham e Evah – de cada ser humano, que quisesse construir sua liberdade, autonomia e felicidade, num paraíso que deveria começar, agora, das mãos humanas, e no tempo. O livro do Gênesis constitui-se num livro de denúncia, provocador de esperança. A consciência trazida pelo autor do Gênesis, de que Deus não queria o mundo assim como ele estava. Deus não queria o cativeiro, cuja responsabilidade era compartilhada pelos homens e mulheres, nas raízes do acomodamento, à servidão, escravidão e à morte. A culpa e, portanto, o chamado à responsabilidade de todos, permitiu, por causa disso, irromper um movimento de luta, por liberdade, emancipação e autonomia. Aquele mundo não era o mundo que Deus sonhava para seu povo. Essa consciência levou o povo, sob as lideranças dos profetas, as sair do Cativeiro da Babilônia e a vencer seus opressores. O livro do Gênesis foi e é um manifesto político contra a alienação ou a desesperança. Válido nas suas conclusões, às condições de hoje, cuja situação vivemos, não nos exime também da responsabilidade de ratificar essa (des)ordem por nossa freqüente capitulação perante a opressão, por ausência de projetos que resgatem a utopia. Mais. O problema central do Gênesis que nos interessa, para a finalidade que aqui nos propomos é análise dele acerca do Paraíso terrestre. Na visão tradicional religiosa, versão já feita senso-comum, o Paraíso terrestre é uma utopia encerrada e perdida no passado pelo pecado humano. Mas, se a leitura de Mesters fizer sentido, o paraíso é descrito, construído pelo autor do gênesis como um flash-back, mito ou metáfora, para realçar qual seria o sonho de Deus para a realidade, é o desafio à instauração dele imediatamente em vista do futuro. Denunciaria, à sua luz, o presente dramático vivo no cotidiano pelos homens, tanto hoje como durante o cativeiro da Babilônia – e o Paraíso, não seria uma realidade perdida num tempo que passou, mas a grande plataforma da esperança para o futuro, um projeto político a ser construído como inédito-viável. Este, é também, explicitamente, o sentido do título do livro de Carlos Mesters: Paraíso Terrestre: saudade ou esperança?5 A esta questão central queremos, agora, nos dedicar. As Utopias de Hinkelammert no texto de Jung Mo Sung O livro do Gênesis historicamente abriu perspectivas de libertação para o povo Hebreu. Nem toda a utopia abre perspectivas emancipadoras. Hitler, em certa ocasião, registra em sua fala ao povo alemão: “Deixem os céus para os pardais e para os cristãos, que da terra cuidamos nós!” Feuerbach, antes dele, asseverava que a humanidade costuma deixara para os outros e alhures, e, sobretudo, transferir para Deus, aquilo que deveríamos e poderíamos, nós mesmos, ser e fazer. Transferimos para Deus a bondade, a verdade, a força e o poder que temos, e, com isso nos esvaziamos da responsabilidade de assumir o poder que temos. Kant, em seu famoso artigo acerca do Esclarecimento – O que é Aufklärung – tem por tese que é muito mais fácil, para qualquer pessoa, renunciar a si e atribuir a responsabilidade e o risco de autonomia e emancipação. As pessoas acham 5 Mesters mostra, entretanto, que não se trata de privilegiar esta versão interpretativa como se fora, agora, a verdade sobre o Gênesis, o livro, como nenhum outro, que tem inspirado centenas e centenas de hipóteses e significações, todas elas ricas e oportunas. mais gostoso e mais fácil ser menor. Ainda que, alienar-se a tutores, àqueles que, inescrupulosamente, decidem por nós e em nosso nome, seja covardia. Nesta mesma direção, Baruch Espinosa denunciará a absurda miséria do ser humano quando entrega nas mãos de outro, seja em matéria de governo, seja em nome da religião ou em termos de representação, o poder político que possui para que o outro, substituindo-o, administre este poder em nome daquele que o tem. Marx, na esteira de Feuerbach, crítica duramente e ideologia burguesa, que opera conceitos religiosos como armas contra o proletariado. Usa a religião como se fosse narcóticos (ópio) que o povo transferindo direitos e gozo deles para depois, e para o céu, aquilo do qual estão injustamente privados na terra, pela burguesia. Nietzsche levando adiante Feuerbach, virulento crítico da utopia, lastima a fraqueza da espécie humana, sua renúncia da vontade de poder, jogando para frente sonhos esperançados, que deveriam construir, por sua potência, na terra; e expressa seu nojo pela vil subserviência dos cristãos. Nada diferente do escândalo de Ghandi, para citar alguém simpático ao cristianismo, dirá que adorava Jesus, mas odiava os cristãos incapazes de radicalidade. Contemporâneo nosso, Joseph Comblin, em O Definitivo no Provisório, dirá que o perigo das utopias é que elas estabeleçam um perigoso marco escatológico, fora do tempo e no final dele, com o risco de desqualificar toda a caminhada no presente. Apontando que a realização em plenitude estará não na história, mas no desfecho dela. Tornará inútil as lutas e as vitórias, sempre incompletas, no presente e no passado da humanidade, arrebatando-nos a vontade de transformar o mundo, as estruturas políticas e a opressão. Hinkelammert autor do livro “Critica a la razón utópica”, de 1984 já anunciava que: [...] La política como arte de lo posible contiene, por tanto uma crítica a la razón utópica sin la qual no és possíble establecerla. Esse “no es posible” no es algo dado sino algo por descubrir.[...]” (HINKELAMMERT, apud SUNG, 2000, p. 48). A utopia nesse sentido se coloca não apenas no campo místico e religioso, como já afirmado anteriormente, mas no campo da realidade vivida em confronto com a realidade sonhada – idealizada. O estratagema fundamental da manutenção do mercado é transpor o campo subjetivo e imaginário, deslocando-o para o campo objetivoeconômico, e, nele realizar sua permanência. De forma similar, a realidade idealizada se constrói, em Freud e Lacan, a partir da percepção da “falta” que demanda – o objeto faltante ou em Hinkelammert, na “ausência” que grita. Só a partir de um olhar utópico, que se situa para além do vivido e fora do nosso tempo, podemos olhar para a realidade e perceber que aquilo que tomamos por bom, desejado, ideal, não se encontra presente na realidade - mundo físico e histórico. Da sequiosidade humana dessa percepção somos impulsionados a tomar as possíveis decisões muito contrárias: congelarmo-nos engessados no sofrimento desta falta – lamentando não possuir o objeto desejado ou não fazer parte do processo social; situarmo-nos na condição de vítima esperando um “salvador” que venha nos redimir, ou; indignados - com a condição de expropriação, “gritar” contra as determinações dos sistemas que esmagam e excluem – assumindo a responsabilidade da mudança, e estabelecendo os passos necessários para que o utópico – o sonhado - possa ter lugar, e, mesmo que não inteiramente, venha a se concretizar no tempo, e na história. É a partir desta percepção e desta tomada de decisão afirma Sung, que individual e coletivamente, estabelecemos projetos históricos. Não há, portanto, que nos enganar. [...] Só se pode interpretar a atual condição do ser humano pobre como “esmagado” e “negado” na medida em que se sabe o que esta condição não é. (SUNG, 2000, p.59). Esta condição não tem nenhuma consistência ontológica, ela não é uma falta com a qual se nasce, ela não é de natureza, todo ao contrário, ela é fruto de um processo social ativo, genocida e aniquilador, que nos desconstitui do que somos, ontológica e politicamente. Eis a razão da luta! A educação, em especial a educação popular lugar privilegiado da construção de sujeitos e de sonhos não pode se furtar de denunciar estas “lacunas” e, dialeticamente, de anunciar e prenunciar, inaugurando outras possibilidades, outro mundo, ainda que no horizonte utópico. Não se pode parar de sonhar: [...] Se o sonho morreu e a utopia também, a prática educativa nada mais tem que ver com a denúncia da realidade malvada e o anúncio da realidade menos feia, mais humana. [...] (FREIRE, 2000, p.56). Uma coisa é, contudo, afirmar que seres humanos somos seres de falta – dimensão fenomenológica –e, portanto, incompletos em nossa essência de seres-nomundo. Essa incompletude, entretanto, ficou perdida no passado – num topos noetos6 6 Topos noetos: Mundo das idéias. Instância na qual, segundo Platão, todo o ser humano teve origem, num mundo pré-existente, como essência espiritual estável, e, que foi perdido, por sua encarnação no mundo magmático material, de forma que a existência material conduziu a um esquecimento (lete: esquecido) acerca do que se sabia sobre a essência verdadeira dos seres, quando os havia contemplado, na préexistência, no mundo das idéias. O esforço filosófico é, o da maiêutica, isto é, o de parturizar (Parto: maia), dar à luz ao conhecimento que se tinha antes, naquele mundo, que está dentro de nós, quando se platônico - ou na versão do Paraíso terrestre, incompletude a ser realizada num futuro inédito-viável que anuncia no presente, uma dimensão escatológica? Na verdade, colocada desta forma, nossa enfermidade e cura parece, estranhamente, localizar-se num tempo, alhures ou algures. A falta, contudo, que nos esvazia da posse, sentida e vivida, é o que possibilita ao sujeito sonhar e desejar – o objeto faltante. Somos seres que buscam aplacar a fome de que a posse do objeto realize o preenchimento e satisfação que ele acena. Ocorre, porém, que sempre que alcançamos o objeto desejado, essa falta se repõe em outro objeto, objeto outro que passa a “nos” faltar e a ser, novamente, demandado. Por outro lado, quando algo passa a nos faltar ou a faltar em nós, não fica explícito, para nós que a falta, dialeticamente, fora de nós em algum lugar “no objeto” a ser alcançado, mas, também está em nós, e dentro de nós, “no desejo” a ser saciado. Vale relembrar Sócrates, citado por Merleau-Ponty, precisaria não ter para que nos faltando, buscássemos; mas precisaria ter, em parte, para saber o que estamos procurando, para saber, quando acharmos que era isso que era buscado. É preciso em parte ter, e em parte não ter. A Utopia é precisamente esta presença ausente. O mercado capta esse movimento, se apropria desse desejo e se propõe a realizálo por sucedâneos de novos objetos. Posto que, dependente desse desejo para sua manutenção, o mercado, trata de estimular e re-por, incessantemente, novas necessidades, gerando-as ou soldando-as a objetos menos estáveis, menos duradouros, mais descartáveis, porém mais desejáveis. A sociedade capitalista ocidental, consumista, em que vivemos, demonstra claramente esse movimento: ela se mantém menos pelo aparente consumo dos objetos materiais, econômicos, que por ter de responder à esfera da falta imaterial, a corporifica em objetos outros, consumíveis. Até pouco tempo, a comunicação entre os seres humanos se dava na relação direta – interpessoal e primária, que parecia nos bastar. A dependência, planetária, a dispersão no planeta, a conexão entre seres espacialmente longínquos começaram a afetar nossas vidas. Os vínculos, as distâncias precisaram ser vencidas, na busca de sobrevivência, implicando a utilização de novas tecnologias de informação à distância. Os emissários, as cartas, o correio, o telefone, a conexão instantânea foram iniciativas primordiais, hoje sabe que a aparência material é enganadora, e oculta a essência real que é invisível. Todo processo de aquisição deste conhecimento é a busca das essências, de como as coisas são mesmas, através de reminiscência ou rememoração. Ela permitirá uma dia-letsia – isto é do des-velamento do que está oculto sob o magma exterior. imprescindíveis, partes desse processo. Não basta, porém, nos comunicar, ter informação. Vivemos Babel na era da comunicação. O aparelho, o instrumento pelo qual nos comunicamos carece “ser o melhor” e ser o “mais atual”. Assim, sucessivamente o sonho de conseguir um telefone celular é sempre reposto, cotidianamente, na necessidade de um melhor, dotado com novos recursos de um minicomputador, de áudio, som, imagem. Não basta mais ter um meio de comunicação, ele precisa responder as outras demandas – foto, música, jogos, internet e... depois? Mais e mais. Cada vez que realizamos parte de nosso sonho, outro se coloca à frente, seja ele uma necessidade ou uma fantasia, gerada pelo Mercado ou pela abertura infinita dos seres à plenitude do belo, da verdade e do bem. O milagre do mercado, e sua face mais cruel, é a da “criação” de necessidades e desejos artificiais e supérfluos, que prometem ou insinuam o que não poderão jamais dar. Esta é também a crítica de Adorno aos Meios de Comunicação e de Propaganda A religião, afirma Sung (2000), foi portadora, antes da modernidade, desse anúncio e carregava em seu ventre o gérmen dessa utopia, a de partejar um “paraíso” no mundo, o Mercado - hoje - se põe como o grande e único mediador dela, ou, por vezes, como materialização terminal dela: [...] Nas sociedades pré-modernas a religião foi a grande portadora da promessa da chegada nesta utopia. Nos tempos modernos de hoje, após a derrocada do bloco socialista, o sistema de mercado liberal ou neoliberal se apresenta como o único portador dessas promessas [...] (SUNG, 2000, p.62). A fantasia, aliás, são formas concretas de aproximação da utopia, no campo pessoal, porém afirmação ainda do seu caráter u-tópico, seja, o de não poder ter plenamente lugar no mundo. Neste sentido, as utopias não poderão ser postas inteiramente em qualquer projeto social. Ela sempre escapa à sua instauração histórica. A tentativa de apresentá-las aqui e lá, frustram seu caráter e natureza poético-evocativo. Elas se constituirão como horizontes em diálogo com o caminhar histórico. [...] Há uma tensão insuperável entre a utopia desejada e necessária ao pensamento social e as instituições e projetos políticos possíveis que ao serem implementados como antecipação dessas utopias acabam as negando pela sua dinâmica institucional (idem, p.50). Porque, diz Sung (2000, p. 10) “A utopia é um horizonte irrealizável que dá sentido para projetos históricos concretos”. Projetos que, historicamente, os movimentos sociais, por meio das lutas reivindicatórias, de estado democrático de direitos instaurado, de educação popular para se ser feliz, vêm teimosamente implementando e construindo caminhos de aproximação de um mundo novo, onde reine, ainda que parcialmente, a liberdade, o respeito, a justiça, a democracia. Utopias e Movimentos Sociais Enquanto houver injustiças sociais. Enquanto houver um sistema que exclui e mata. Enquanto houver exploradores e explorados, a vida continuará clamando – gritando por justiça, por inclusão, por direitos, por igualdade, por direito de viver. Os movimentos sociais continuarão sendo o meio pelo qual, coletivamente, os injustiçados, excluídos, explorados buscarão ter Voz e Vez (DOIMO, 1995). É nestes espaços que a educação popular, ouvindo e deixando falar, constrói solidariamente bases para que um novo homem – uma nova mulher – para que um mundo novo possa surgir. Na esfera dos movimentos sociais é comum estabelecer nos planejamentos estratégicos três dimensões ou passos necessários: 1. O que buscamos em longo prazo? Via de regra, todo movimento social estabelece, como meta final – a utopia - a mudança estrutural da sociedade para que assim a justiça social seja estabelecida para todos e todas; 2. o que buscamos em médio prazo? Nesta etapa, estabelece-se o projeto que aproxima o futuro sonhado, onde as metas são estabelecidas no campo do macro-estrutural – situado conjunturalmente; 3. o que buscamos em curto prazo? Neste passo da dinâmica estabelecem-se as ações mediadoras que consubstanciam ações imediatas que aproximem o projeto em construção, face às utopias. Entretanto, nos alerta Sung em diálogo com Hinklammert, que mesmo que nos esforcemos, juntos, para tornar estes horizontes utópicos em realidades palpáveis, vividas em sua plenitude estas não serão possíveis, apesar de indispensáveis: [...] nenhum horizonte é alcançável. Ele sempre se distancia na medida em que nos aproximamos dele. Assim também é a utopia. A diferença é que a utopia não é um horizonte qualquer, mas sim um horizonte desejável por si mesmo e que também dá sentido às nossas lutas ou à nossa existência. Por isso é que temos tanta dificuldade em aceitar a não factibilidade das nossas utopias.[...] preferimos o auto-engano e continuamos a pensar que é possível chegarmos a esta sociedade tão desejada. (SUNG, 2000, p.63) No entanto, a transformação social, só será possível mediante nossa insistência – teimosia em continuar sonhando com um mundo melhor. A transformação social possível – factível é sempre menor que aquela sonhada, porém, infinitamente maior e melhor que a realidade vivida. E, novamente nos colocando no horizonte utópico – indispensável nos garante Freire: [...] O que não é, porém, possível é sequer pensar em trans-formar o mundo sem sonho, sem utopia e sem projeto [...] os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não, não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta. Na verdade a transformação do mundo a que o sonho aspira é um ato político e seria uma ingenuidade não re-conhecer que os sonhos têm seus contra-sonhos [...] (Freire, 2000 p.26). Afirma Jung Mo Sung (2000, p. 62) que “uma das principais contribuições de Hinkelammert é a sua idéia de “razão utópica”. Para ele, o conceito utópico - como mercado perfeito do capitalismo ou planejamento perfeito do socialismo soviético, ou Reino de Deus do cristianismo que faz opção pelos pobres - é uma condição para se conhecer a realidade e intervir nela. Só se pode conhecer o que a realidade social é, na medida em que se conhece também o que ela não é. Só se pode atuar socialmente tendo em vista um modelo social perfeito – utopia - que serve como horizonte, a ser alcançado ou aproximado, pela prática conjunta solidária daqueles que gritam de sua facticidade e demandam reconhecimento. Merleau-Ponty acena que a dimensão utópica, e a necessidade de formularmos projetos, é o que põe em movimento o processo. Não há processo, movimento nele, sem que esteja tensionado para fora de si, por um horizonte que serve de prumo, de referência para avaliar o quanto se está próximo ou mais distante dele. Por si só, a utopia não mexe no processo, quem mexe são as pessoas, e o fazem tocadas pelo desejo. Sequer existe humanidade sem desejo, somos seres do desejo, que se põe a caminho tensionado pelos apelos dos sonhos, de certas miragens, que se dissolvem a poucos metros de nossos passos. Transmudam-se como dunas de areia. As humanidades individuais, contudo, não são suficientes para movimentarem grandes projetos coletivos, ancoram-se na falta e nos desejos de cada qual, mas a sinergia da soma de um mais um, é bem maior que dois. Esta sinergia se torna força revolucionária, capaz de movimentar montanhas, quando cada qual se torna um único agente social coletivo. Nesta condição as utopias podem emergir como tópicas, como inéditos-viáveis, porque o sonho é comum. [...] ninguém me pode afirmar categoricamente que um mundo assim, feito de utopias, jamais será construído. Este é, afinal, o sonho substantivamente democrático a que aspiramos, se coerentemente progressistas. Sonhar com este mundo, porém, não basta para que ele se concretize. Precisamos de lutar incessantemente para construí-lo. (FREIRE, 2000, p. 60) Iniciamos nosso texto fazendo perguntas que nos pareciam nucleares. Para que servem as utopias em educação popular? São elas sonhos ou realidades? São plausíveis e viáveis ou constituem delírios ou projetos inatingíveis? De onde e por que são construídas? Se tiverem algum papel relevante na ação educacional, qual seria este papel? Possuiriam um caráter mítico, psicótico ou alienante, que substituiria, de antemão, a ação que deveria ser feita por sobre a realidade ou poderiam vir a ser críticas provocativas e políticas? Poderiam, pela sua dimensão ideal, por seu “juízo final”, desqualificarem de antemão, todo e qualquer esforço histórico, na constituição da história ou seriam, ao revés, aguilhões impulsionadores da ação revolucionária? Tanto quanto a ambigüidade lancinante das utopias, estas questões, explicitadas e tematizadas, não ficam respondidas por nós. O passeio nos atalhos de Hinkelammert, Mo Sung, Paulo Freire, possam, quiçá, ser caminho drummondiano das pedras: tinha uma pedra no meio do caminho! Caminho da complexidade e da ambigüidade merleaupontyana. Caminho que joga à nossa face que, à difícil arte de fazer hábeis perguntas, deve corresponder certa arte de, socraticamente, sabermo-nos, de antemão, incapazes de respondê-las. Dir-nos-ia, Paulo Freire: “Deixem-me, com minhas ambigüidades!” – testemunho de Ana Maria, sua esposa. Alguma coisa saberemos sempre com certeza: será sempre difícil consolar um pouquinho sequer, uma pequena raposa inquieta e esfomeada, no planeta do Pequeno Príncipe! Bibliografia: ASSMANN, Hugo (ed.). René Girard com teólogos da libertação. Um diálogo sobre ídolos e sacrifícios. Petrópolis, RJ: Vozes & Piracicaba: Unimep, 1991. BERGER, Peter. O Dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Trad. José Carlos Barcellos. 2 ed., São Paulo: Paulus, 1985. CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. Uma contribuição ao problema dos nomes dos deuses. Trad. J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman São Paulo: Perspectiva, 1972. [Coleção Debates]. DaMATTA, Roberto. Apresentação VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 1978. DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume, 1995. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Póla Civetti. São Paulo: Perspectiva, 1972. [Coleção Debates]. FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos / Paulo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2000. PASSOS, Luiz Augusto. Diário [da Festa] de um Pároco da Cidade-aldeia. Cuiabá: 2007. 24p. SUNG, Jung Mo. Sujeito como transcendentalidade ao interior da vida real: um diálogo com o pensamento de Franz Hinkelammert. Cadernos do Ifan, Bragança Paulista, n. 20, p. 47 - 66, 2000.