Tertúlias literárias entre alunos: uma utopia? A implementação do novo programa de Português para o ensino secundário, em 2003/2004, funcionou como incremento para a promoção de novas possibilidades no plano das experiências literárias autónomas entre uma faixa etária que habitualmente já oferece algumas resistências à criação de hábitos de leitura. Numa escola maioritariamente vocacionada para o ensino secundário, como é o caso da Escola Secundária/3 de Carregal do Sal, onde as actividades de leitura extensiva ainda não tinham ocupado um lugar de primeiro plano, podemos considerar que o sucesso do item programático Contrato de Leitura foi considerável. A apresentação aos alunos de sugestões de leitura adaptadas quer ao nível etário quer a diferentes sensibilidades abriu caminho a uma experiência que efectivamente desencadeou novas perspectivas de contactos com obras literárias cujos títulos iam além dos previstos para leitura integral no âmbito do programa. Nalguns casos, a apetência pela leitura prolongou-se para lá dos portões da escola e ultrapassou os três anos que constituem o percurso do ensino secundário. A formação de leitores autónomos foi, a partir desse momento, um processo efectivamente conseguido, tanto mais que permitiu dar início a um programa de partilha, na medida em que as obras lidas pelos alunos foram sendo apresentadas e discutidas em sala de aula. Na nossa escola, começava a falar-se de literatura, ouvia-se literatura, despertava-se para uma imensidão de imaginários e sensibilidades. Acreditava-se que estes ingredientes eram promotores de novas leituras. E, em muitos casos, tal foi verdade. As turmas passavam a funcionar como pequenas comunidades de leitores. No início do presente ano lectivo de 2008/2009, considerou-se que tinha chegado o momento de dar novos passos no sentido de experimentar outras formas de promoção e divulgação da leitura, por meio de um conjunto de actividades que, pensa-se, poderão vir a ser fundadoras de um futuro Clube de Leitura (que, para já, existe apenas no nosso espírito). O desenvolvimento destas experiências adveio também da noção de que a partilha de vivências literárias pode funcionar como um factor adicional de motivação para a criação e manutenção de jovens leitores. Estávamos certos de que raramente os alunos conversavam entre si sobre o que liam ou sobre os que lhes poderia agradar, ou não, numa obra. Porém, estávamos também convictos de que são estes mesmos alunos aqueles que melhor conseguem falar de uma obra aos seus pares, pois a proximidade de sensibilidades e visões cria uma linguagem muito própria que promove a intercompreensão em diferentes planos. A conjugação destas evidências acabou por gerar, quase naturalmente, a ideia de criação de uma tertúlia literária entre alunos do ensino secundário. E depois … uma ideia traz outra ideia. Uma tertúlia ocorre mais naturalmente em ambiente de café. Então, trazemos bolos para a biblioteca! E, quem come também bebe. Venha também um café e, já agora, um chá para aqueles que não gostam de cafeína (que, na realidade, não passa de cevada). Assim, nasceu o Chá/Café com Letras, tertúlia literária com bolinhos e bebidas à mistura. A ideia era a seguinte: alunos de um ano mais avançado apresentavam as suas experiências de leitura de uma determinada obra a alunos do ano anterior; os alunos apresentadores distribuíam-se por mesas em função da obra e autores lidos; os alunos mais jovens circulariam entre mesas, de modo a poder contactar com o maior número possível de obras; no final, a actividade serviria também como um informação adicional para ajudar à selecção de uma obra a ler no âmbito da leitura contratual. O primeiro grupo foi constituído por alunos do 11.º ano, que apresentaram diversas obras literárias, e por alunos de 10.º ano, que vieram contactar com esses mesmos textos. O êxito da iniciativa foi, no mínimo, inesperado: os alunos aderiram em grande número, trouxeram livros e bolos, a biblioteca ofereceu chá/café e converteu-se num ambiente informal. Em todas as mesas se conversava sobre obras distintas: Mar Me Quer, Diário de Anne Frank, Diário de Zlata, Cartas de Amor de Fernando Pessoa, Pequenas Memórias. De Saramago a Pessoa, de Mia Couto a Anne Frank, passando pela jovem Zlata. Alunos falaram do que leram, de como leram, das suas impressões, deram-se conselhos, fizeram-se interpretações… Das 12:15 às 13:00, num dia semana, depois das aulas da manhã e antes de almoço, falou-se um pouco de tudo: “os momentos de que mais gostei foram…”; “a minha personagem preferida…”; “De que fala este livro?”; “É difícil?”; “Quem é esta pessoa na capa?”; “Fala de guerra?”; “Há algum momento em que ela fale do seu namorado?”; “Por que é que as memórias são pequenas?” Entre um golo de café e livros desfolhados vezes sem conta, a conversa começou a fluir, fizeram-se leituras em voz alta, viram-se fotografias, discutiram-se imagens, as ideias foram-se clarificando. Os alunos distribuíram-se de mesa em mesa ao sabor dos interesses e das oportunidades: «Olha, a mesa do Diário de Zlata está livre. Vamos lá!”; “Eu venho do Mar Me Quer!”; “Eu vou já para o Saramago. Já sei o que quero.” Inicialmente, só por curiosidade, mas depois com alguma vontade de descobrir: “Professora, acha que este livro é bom para mim? A história parece tão interessante…”. Sim, vamos lá descobrir… Partilharam-se ideais, conheceram-se livros, contactou-se com diferentes experiências de leitura fundadas no mesmo texto. No final, com a sensação de ter vivido um momento de conversa agradável, os alunos de 10º ano comentavam: “Estou dividido entre dois livros!”; “Já sei qual vou ler…”. Já os alunos de 11º, inicialmente nervosos e inseguros, confidenciavam: “Afinal, isto foi interessante…”; “Eu ajudei o … a decidir-se!”; “Pensei que não conseguia dizer nada e depois…” E os professores? Os professores também foram chegando, também se foram sentando, indecisos no papel a adoptar: a conversa acabou por fluir e os alunos, inicialmente intimidados pelas presenças dos docentes, acabaram por aceitá-los. Nalgumas mesas a conversa foi mesmo muito animada e viva! Depois, vieram as reflexões, as escolhas de obras a ler, o confronto das experiências de leitura alheias com as pessoais. Muito vai ficando registado num blog, criado para o efeito e para muito mais. Um espaço colaborativo ainda a descobrir-se: http://contrato-deleitura.blogspot.com/ As edições seguintes foram realizadas com alunos do 12.º ano, que apresentaram obras lidas ao 11.º ano. Mudaram as obras, os autores, as experiências, as formas de falar sobre o texto literário. Alunos do 11.º ano puderam experimentar o outro lado (a recepção). Elegeu-se a obra mais interessante, o melhor orador. Se se motiva para a leitura também se pode motivar para a excelência de uma apresentação em público. E agora são os alunos do 10.º que também desejam poder conversar sobre as obras que já leram: “Vamos começar pela apresentação à turma. Para o ano, já teremos aprendido muito e a tertúlia será muito melhor! Temos de saber esperar!” Ler é uma experiência enriquecedora e partilhá-la com outros é uma possibilidade de reviver momentos de prazer, recontando e recriando histórias e fruições. Carla Marques Texto a publicar no Correio de Educação – publicação on-line das edições ASA-Leya