Começar de Novo: as tensões dos anos 1980 na velha educação pública
da cidade maravilhosa
Leila de Macedo Varela Blanco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação - ProPEd –
Rio de Janeiro
Trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Educação Especial
Categoria: Comunicação Oral
Resumo:
Com as publicações que orientaram os professores de Educação Especial na
rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1980 a 1983,
me pergunto sobre a proximidade e o estranhamento de intenções e práticas
entre as orientações desses documentos e as encontradas nas publicações
anteriores para a formação de especialistas nos anos de 1960 e 1970. Como
foi possível a mudança do paradigma médico-psicológico que contava com a
confiança dos profissionais para o Modelo Diagnóstico Prescritivo? Para o
estudo pretendido, optei por analisar as cinco primeiras publicações que fazem
parte da coleção Modelo Educacional e dezessete dos anos anteriores. Para
compreender a tessitura que permitiu a mudança, usarei, também, as
memórias de profissionais da época, me valendo das reflexões teóricas de
Mogarro (2001). Por objetivar a formação em serviço, utilizei as reflexões de
Burker (2007) e Pintassilgo (2006) sobre permanências e inovações nas
práticas culturais imateriais na escola. Para além das características divulgadas
como inovadoras pelo Modelo Diagnóstico Prescritivo, existiam princípios
fundantes da Educação Especial que permaneceram. Dentre outras, cito a
importância dada à Psicologia como legitimadora da prática pedagógica.
Permanências e inovações presentes em propostas políticas e práticas
pedagógicas talvez sejam a energia propulsora da escolarização da criança
com deficiência.
Palavras-chave: metodologias, formação de professores, Educação Especial
De posse da coleção de publicações que orientou os professores de
Educação Especial da rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro, nos
serviços de apoio ao aluno com deficiência nos anos de 1980, 1981, 1982 e
1983, me pergunto sobre a proximidade e o estranhamento de intenções e
práticas entre as orientações emanadas desse conjunto de documentos e as
encontradas
nas
publicações
anteriormente
voltadas
aos
professores
especializados, ou em formação, nos anos de 1960 e 1970.
Optei por analisar as cinco primeiras publicações, mimeografadas, da
coleção Modelo Educacional, organizada pela Assessoria de Educação
Especial, do Departamento Geral de Educação, da Secretaria Municipal de
Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. As publicações integram
o conjunto de estratégias de formação em serviço dos professores que
atuavam na Educação Especial, nas diferentes modalidades oferecidas, ou
seja, em escolas e classes especiais, em classes hospitalares, em salas de
recursos, na itinerância e na orientação aos professores das turmas/EE. Essas
turmas foram formadas a partir de 1980 e nomeadas como turmas comuns
para alunos retidos por 3 ou mais anos na 1ª série do 1º Grau e aqueles
oriundos das turmas de AE- atrasado especial-, com classificação de
deficiência mental leve, obtida por testagem formal.
O interesse pelo trabalho veio da interrogação sobre a aceitação do novo
paradigma de trabalho por um grupo de profissionais que vinha estruturando a
Educação Especial nas décadas de 1960 e 1970, com o entusiasmo de
pioneiros, sob orientação do modelo médico psicológico. Para melhor
compreender a tessitura que permitiu ou determinou a mudança, usarei,
também, memórias de profissionais da época, registradas em entrevistas feitas
por mim e pelas professoras Elisa de Fátima Magalhães e Noêmia Trompieri
para o Centro de Memória do Instituto Helena Antipoff, órgão da Secretaria
Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Portanto, trata-se de uma pesquisa histórica que tem como fontes as
publicações oficiais e específicas para formação de professores na cidade do
Rio de Janeiro, no seu tempo de Estado da Guanabara e, e em seu período
inicial como município. Busco compreender os fatores que permitem a
aceitação, de grande parte dos profissionais das redes de escolas públicas,
quando de mudanças anunciadas pela hierarquia política ou administrativa.
Uma nova forma de Ensino ou um novo arranjo para o ensino velho?
Nas publicações estudadas, observei a preocupação com a novidade a
ser estabelecida, no que diz respeito à formação em serviço de professores
que, em vista da ampliação do número de matrículas de alunos nas escolas,
passaram a ter a eficácia e eficiência como aspectos valorizados, perseguidos
e discutidos nos discursos oficiais.
... quando se realiza um trabalho de “massa”, como o nosso,
surgem dificuldades sócio-econômicas, que impedem de se
trabalhar, exclusivamente, dentro do modelo citado (o autor se
refere ao modelo médico-psicológico). Tivemos, no primeiro
semestre de 1979, um considerável número de crianças com
dificuldades de aprendizagem, encaminhadas para diagnóstico.
Entretanto, ao final de três meses, apenas de 50% delas
conseguiu-se um diagnóstico final (SME/Rio. 1980, I, p.1).
Considerei os documentos iniciais da coleção Modelo Educacional como
os mais elucidativos do período de consolidação do novo município, porque
apresentam o discurso oficial da Secretaria Municipal de Educação. A primeira
publicação pesquisada – Modelo Educacional I − objetiva informar o professor
sobre a mudança de modelo, alguns dos motivos para a sua escolha em
substituição ao anterior e, em linhas mais gerais, suas características mais
importantes.
Vínhamos trabalhando, até o ano passado, no modelo médicopsicológico, tradicional; interessava-nos obter um diagnóstico da
criança através da equipe interprofissional, para transmiti-lo ao
professor (SME/Rio. 1980, I, p.1).
Desde 1961, com a criação da equipe de Educação Especial do Estado
da Guanabara, o norte da orientação pedagógica era feito seguindo os
primeiros trabalhos dessa área de educação, implantados por Helena Antipoff,
quando de sua vinda como professora para atuar na Escola Normal de Belo
Horizonte. Identificada com o movimento Escola Nova, Helena Antipoff
influenciou toda uma geração de professores mineiros, ensinando-os a
valorizar as ciências aplicadas à educação (JANNUZZI, 1985). Em 1945, vindo
para o Rio de Janeiro compor o Departamento Nacional da Criança do
Ministério da Saúde, criou a Sociedade Pestalozzi do Brasil - já havia criado a
mineira-, objetivando identificar, avaliar e dar atendimento especializado aos
alunos classificados como deficientes mentais. Sua influência foi forte o
suficiente para que a instituição fosse replicada em muitas outras cidades,
tendo como consequência a criação da Federação Nacional das Associações
Pestalozzi, em 1970.
O modelo experimentado com Helena Antipoff, e denominado médico
psicológico, previa a avaliação minuciosa, por equipe multiprofissional, dos
alunos que apresentassem dificuldades de aprendizagem escolar. No Modelo
Educacional I, é possível observar a crítica feita a esse modelo pela equipe que
o utilizava até então e que opta por uma nova forma de atendimento à
demanda que se apresentava.
O professor não intervinha no diagnóstico, recebendo, então,
seu aluno já classificado, com rótulos, que nem sempre
correspondiam à realidade do seu potencial. Usamos testes
padronizados, nunca padronizados em nosso meio, que coloca
em dúvida, para nós, os resultados dos mesmos (SME/Rio.
1980, I, p.1).
Dentre os argumentos para adoção do novo modelo de trabalho
pedagógico, aparece o grande número de crianças encaminhadas para
diagnóstico em equipe multiprofissional, em 1979, e a análise insatisfatória da
estratégia, apontando para a necessidade de mudanças.
...as causas são largamente conhecidas: desinteresse dos pais,
falta de conhecimento relativo à importância dos exames,
impossibilidade de deixar o lar para acompanhar o filho [...] e
muitas outras. (SME/Rio. 1980, I, p.1).
O documento comenta ainda que, após o diagnóstico daqueles que
cumpriam, passivamente, todos os procedimentos, o trabalho pedagógico era
longo e nem sempre contava com a persistência do professor.
Como um dos argumentos favoráveis ao diagnóstico prescritivo, nome do
novo modelo, é citada a prescrição ao trabalho do professor, para que faça
uma intervenção direta, isto em oposição às atividades compensatórias
trabalhadas no modelo anterior, além de comentários sobre :
...é esta a realidade de um País em desenvolvimento, que tinha
de ser vista e analisada, afim de que se pudesse atender, com
maior presteza e eficiência as centenas de alunos [...] repetindo
ou se evadindo, constituindo, segundo os economistas o índice de
desperdício do nosso sistema (SME/Rio.1980, I, p.1).
Vamos observar as características do novo modelo utilizando, neste
momento, uma análise da linguagem argumentativa. Há destaque para as
críticas, influenciadas pelo viés econômico de identificação de demandas, nos
levando a pensar a importância da planificação setorial na década de 1970,
lembrando que em 1971 foi aprovada a Lei de Reforma de Ensino – Lei
5692/71, que nos seus artigos de 53 a 57 vincula os financiamentos das ações
dos sistemas de ensino ao Plano Setorial de Educação. Da mesma forma,
pode-se destacar o valor dado ao tempo gasto com os trabalhos como
desperdício e a necessidade da eficiência do professor deixando transparecer
a urgência no “país em desenvolvimento”.
O documento apresenta, ainda, os procedimentos adotados para
implantação do novo paradigma com a preparação das equipes de nível central
e regional, no que diz respeito
“a nova filosofia de trabalho”. O
acompanhamento por meio de “visitas às classes, reuniões psicopedagógicas
mensais e inquérito avaliativo em junho e novembro” já é apresentado no
primeiro documento mostrando a preocupação com a planificação do
programa, suas formas de acompanhamento, controle e avaliação, que
caracterizam a tecnologia educacional.
A defesa da adoção do novo modelo é feita considerando a maior
participação do professor, a projeção do trabalho pedagógico a curto e médio
prazos, avaliação imediata e contínua, favorecimento da aprendizagem isenta
de erros, adoção de reforços ao comportamento adequado e consequente
melhoria do autoconceito.
O segundo documento −Modelo Educacional II– apresenta o fluxograma
representativo do processo, que vai desde o diagnóstico dos pontos fortes e
fracos que a criança apresenta para uma aprendizagem escolar específica até
o replanejamento, com novos objetivos a serem alcançados. Define os termos
mais importantes para a compreensão da “nova filosofia” e os procedimentos e
cuidados ao avançar em cada uma das etapas delineadas.
Ao sistematizar os aspectos e procedimentos para melhor conhecer o
aluno, o fascículo indica:
...é importante que se faça uma entrevista substancial com os pais e
professora ou professores, a fim de que se possa senti-la sob os
dois ângulos. Deve-se também, aplicar uma bateria de testes que
envolvam o raciocínio matemático, a leitura oral e silenciosa,
objetivando a compreensão, a escrita livre, ditado, leitura oral feita
pelo examinador com perguntas sobre a mesma e um questionário
de interesses, que servirá para o professor, ao utilizar o reforço [...] é
fundamental, que fosse feita a observação direta da criança em
situação escolar, bem como uma triagem de visão e audição,...
(SME/Rio. 1980, II, p.3). (grifos do autor)
Os elementos apresentados no fluxograma são trabalhados de modo a
facilitar a identificação de suas características e funções no ensino. Dentre os
elementos citados estão: formulação dos objetivos; formas de proceder para a
seleção e organização dos conteúdos a serem ensinados/aprendidos;
importância da análise de tarefas como metodologia para o acerto do exercício
e o sucesso da aprendizagem; escolha dos recursos para a individualização do
ensino; mecanismos para a intervenção propriamente dita, procedimentos para
a avaliação de processo e acompanhamento como dados relevantes para o
replanejamento.
Observei que esse é um paradigma de trabalho calcado na teoria de
sistemas, em voga nos anos 1970, para a administração da cidade. Na
aplicação da teoria de sistema para a educação – Sistema Instrucional – o
processo decisório alcança grande relevância e é assim concebido:
...o desenvolvimento de um sistema instrucional é resultante da
constante interação dos processos Avaliatório e Decisório. É o tipo
de Decisão referente a “fins” ou “meios” instrucionais que se
pretende tomar sobre uma determinada dimensão do Sistema, que
orienta e determina a Avaliação [...].que deve sempre preceder as
tomadas de Decisões (FESP. 1980, p. 5).
Cabe, portanto, instrumentalizar o professor para as diferentes tomadas
de decisão sobre o ensino de cada aluno. São consideradas decisões
importantes para o sistema instrucional a seleção dos recursos e a escolha das
atitudes e procedimentos que deverão aparecer no reforçamento dos
comportamentos adequados e esperados Todas as informações devem
aparecer descritas nos objetivos selecionados após a avaliação diagnóstica, e
nas sucessivas, responsáveis pela retro-alimentação.
As publicações de implantação do Modelo Educacional, ou Modelo
Diagnóstico Prescritivo, vão de I a XXI, aprofundando os conhecimentos de
cada um dos aspectos considerados para o desenvolvimento do Sistema
Instrucional. Chama atenção a repetição das informações, fazendo supor que
este também é um dos procedimentos de ensino - aprendizagem. A repetição,
em diferentes apostilas, é amenizada com a ampliação de informações que
propiciem, cada vez mais, o aprofundamento dos conhecimentos relativos aos
elementos-chave do sistema.
Na folha 3 da publicação I, podemos ver a comparação dos itens:
suposição para a não aprendizagem, objetivo do diagnóstico, causa da
deficiência ou dificuldade de aprendizagem, técnicas corretivas, tipo de
trabalho a oferecer, prognóstico, avaliação e objetivo final. Na publicação III,
p.11, há um novo quadro comparativo com apenas duas categorias de análise
– Posição Metodológica e Esquema de Atendimento Educacional onde, porém,
são inscritas, como subcategorias, as diferenças encontradas no quadro
anteriormente citado, no que diz respeito à suposição e objetivo, dentre outros.
Na publicação III, a comparação entre os modelos, utilizando os termos
tradicional e novo, é obtida pela condição operatória, com os verbos no modo
infinitivo para indicar a ação empreendida. Como exemplo, no que se refere ao
modelo médico-psicológico, a suposição aparece por meio da ação – “procurar
a causa principal da não aprendizagem” - em oposição a - “descrever as
dificuldades encontradas” - no caso do Modelo Educacional. Logo a seguir,
aparece um novo quadro comparativo que, com exemplos do cotidiano,
concretiza a categoria Tipos de Informação sobre o Aluno (observáveis,
inferenciais e hipotéticas) e o Atendimento Educacional consequente nos dois
modelos de atendimento. Os exemplos do quadro enfatizam o desenvolvimento
de habilidades básicas para o primeiro modelo, além de encaminhamento para
especialista da área da saúde e, para o novo modelo, o trabalho com a escrita
utilizando “pistas” que favoreçam o acerto.
A publicação IV trabalha com os níveis de informação sobre o aluno, mas
utiliza as mesmas categorias informadas como tipos de informação –
observáveis, inferenciais, hipotéticas - mostrando que a classificação,
anteriormente tipo, passa a ser considerada nível, porque sua utilização se fará
por níveis hierárquicos da administração.
A publicação V – Componentes do Modelo − trata dos diferentes
elementos,
apresentados
nas
publicações
anteriores,
especificando
e
detalhando cada um. Sobre o aluno serão acrescidas as expressões: Potencial
de Aprendizagem e Características de Aprendizagem.
Não sendo o modelo classificatório, não dependendo, portanto,
da categoria da deficiência, mas sim da descrição do problema,
[...],
teremos,
através
do
diagnóstico
prescritivo,
um
instrumento que dará ao professor subsídios de alto valor para
o planejamento instrucional (SME/Rio.1980, IV, p.3).
A análise de tarefas, como metodologia de ensino, só mereceu um
parágrafo, porque é tratada em outras publicações isoladas.
A individualização do ensino estará em consonância com a metodologia e
incentivará o trabalho independente, para que o professor possa atender às
necessidades de todos e de cada um. A orientação para o estabelecimento de
regras de convívio claras, objetivas e utilizando termos positivos é trazida,
nesse componente, por facilitar o controle da turma. Ressalto a inclusão do
elogio como atitude a ser adotada pelo professor nas vezes em que o aluno
acerta ou “aproxima seu comportamento do comportamento final”, esperado
com o ensino.
A avaliação, sempre valorizada, será caracterizada como um processo
complexo, direto, progressivo, que começa no diagnóstico e é feita antes,
durante e depois de cada fase de ensino, portanto, diagnóstica, formativa e
somativa.
Voltando no tempo para encontrar o Velho Modelo
É necessário que a criança passe por um exame médico
acurado, a fim de receber o tratamento que verdadeiramente
necessita. O regime de
trabalho em equipe
é, pois,
indispensável no atendimento das crianças deficientes.
Para o treinamento da percepção a pedagogia terapêutica
indicada,
organização
versará
do
sobre:
educação
pensamento;
senso-perceptiva;
associação
de
ideias-
desenvolvimento da atenção- desenvolvimento da memória desenvolvimento do esquema corporal – desenvolvimento da
orientação temporo-espacial – constância da percepção relação figura-fundo – análise-síntese – gestalt.
Somente com um bom grau de desenvolvimento perceptivo
poderá ser iniciada a alfabetização.
A professora deverá estar atenta, registrar os progressos de
cada aluno, para saber quando iniciará sua escolaridade
(SEC/GB, 1970f, p.2-3) (grifos nossos).
Neste recorte, é possível observar parte das preocupações com a
orientação do atendimento ao aluno com deficiência, que corroboram com as
críticas apontadas no documento, Modelo Educacional I, no que diz respeito à
intervenção indireta no problema de aprendizagem, assim como sobre aquelas
feitas sobre a importância da identificação da causa do transtorno obtida por
exame médico acurado.
A identificação da pedagogia qualificada como terapêutica com a clínica
médica é outra característica que se pode apreender no texto. O papel do
professor especializado pode ser comparado com o de um terapeuta em
trabalho de reabilitação, quando prediz o treinamento das habilidades
descritas, com rigor científico, das partes componentes do todo perceptivo. A
identificação com a cura da doença, feita pelo médico assistente, também pode
ser observada quando orienta a professora a ter atenção e registrar os
progressos do aluno, visando iniciar sua escolaridade. Portanto, o trabalho
pedagógico talvez seja percebido, por seus próprios técnicos, como terapia,
que possibilitará, posteriormente, a educação escolar e, quem sabe, a alta.
A escolarização dos anos 1970 na cidade do Rio de Janeiro, ainda influenciada
pelo movimento Escola Nova (GONÇALVES MENDES, 2010) prevê um nível
de desenvolvimento da criança para que a alfabetização seja possível. No caso
do aluno com deficiência são muitas as habilidades a serem trabalhadas,
segundo o texto analisado. Entretanto, esse não é um caso isolado e sim uma
das marcas da escolarização pública. A orientação para as turmas de alunos
imaturos, identificados pelo teste ABC de Lourenço Filho, propõe o mesmo tipo
de atenção para que as crianças, desenvolvidas as habilidades indispensáveis
à aprendizagem da leitura e da escrita, logrem êxito na alfabetização no ano
seguinte. Parece que, com essa leitura do desenvolvimento, o atendimento de
educação infantil começa a ser pensado (BRAGA, 2008, p.45).
Todas essas expressões do pensamento educacional nos possibilitam
observar a hegemonia de ciências como a neurologia, a psiquiatria e a
psicologia, na prática da organização escolar e curricular. Alunos considerados
imaturos passam a viver experiências educacionais compensatórias de suas
lacunas ou atrasos no desenvolvimento.
É importante que o professor conheça muito bem cada uma das crianças
sob sua responsabilidade para escolher trabalhar com exercícios propulsores
do desenvolvimento de cada um dos alunos em questão. O treinamento de
habilidades, que garantirá a melhor condição perceptiva, é organizado e
desenvolvido pelo professor, também o registro dos progressos que apontarão
o momento de início do ensino da leitura e da escrita.
Para a análise desse período em que foi utilizado o modelo médico
psicológico, me vali de apostilas distribuídas no Curso de Especialização para
professores de crianças com dupla deficiência – física e mental. Os títulos das
publicações apontam a opção teórica adotada e os caminhos metodológicos
consequentes. Não houve, entretanto, possibilidade de sequenciá-las, não
sendo possível, até o momento, identificar as cinco primeiras. Também não foi
possível averiguar se a organização das apostilas foi feita exclusivamente para
o curso, realizado em 1970, ou se houve aproveitamento dos títulos antes ou
depois do mesmo. São 18 publicações assim agrupadas:
O primeiro grupo, formado por seis apostilas, conceitua, classifica e
aborda a etiologia da deficiência física, elegendo como fio condutor três
publicações
“os
aspectos
da
evolução
intelectual,
emocional,
e
da
personalidade do deficiente físico”. O segundo grupo, com cinco apostilas,
versa sobre a psicologia evolutiva utilizando-se, inclusive, dos estágios
descritos por Jean Piaget. O terceiro engloba assuntos dispersos entre si,
como: Atenção e Memória; Compilado Básico de Neuro-embriologia e
Necessidades Básicas e Adquiridas.
No quarto grupo aparecem as orientações pedagógicas. No Guia de
Orientação ao Professor de Criança Disritmica, encontramos sugestões de
atividades, cuidados e uma lista de fontes de consultas para o professor
enriquecer este guia. Na publicação A criança com paralisia cerebral, as
orientações vão aparecer na p.23 com o subtítulo Áreas Específicas da
terapêutica pedagógica. A apostila Educação Sensorial traz uma explanação
sobre o conceito e função deste tipo de educação e detalha exercícios para os
treinos perceptivos em várias categorias: percepção visual quanto à forma; à
cor; ao tamanho; à posição e aos detalhes. Posteriormente, aparecem os
treinos para as percepções auditiva, tátil, gustativa, olfativa, térmica e
cinestésica.
Nos depoimentos dos profissionais que viveram a Educação Especial dos
anos 1960, 1970 e início dos anos 1980, é possível perceber o orgulho de ter
trabalhado na construção de um novo serviço para a cidade. Acolhendo
aqueles que eram marginalizados pela condição de deficientes, estudando com
profissionais da saúde e sendo capazes de conhecer aspectos do
desenvolvimento humano. As professoras pioneiras parecem ter-se percebido
detentoras de saberes valorizados socialmente, por pertencerem às novas
descobertas científicas.
Considerações Finais
A primeira aproximação que fiz dos documentos de 1970 me levou a
confirmar o discurso de inovação produzido na publicação Modelo Educacional
I. Nela, a novidade do modelo que se adotava era apresentada por meio da
crítica ao anterior e calcado nas comparações que evidenciavam as diferenças
de postura teórico- metodológica. A entrevista com a professora Maria Amélia
também deixava transparecer a oposição entre os modelos e a opção política
feita pela administração, mas negada por parte do grupo.
Não sendo bem visto por alguns, como foi possível implantar um novo
paradigma utilizando-se, inclusive, como argumentação para o convencimento,
de críticas ao anteriormente aceito por todos? Que referencial poderia ser
utilizado para a compreensão desse episódio? Parece-me que inovações são
bem vindas quando as práticas relacionadas às realidades concretas são
questionadas como inadequadas ou superadas suas formas de intervenção.
Analisando manuais de pedagogia do início do século XX, Pintassilgo me
oferece um possível caminho para a compreensão do momento estudado.
A formação executada por professores mais experientes, como
acontecia nos anos estudados, deixou as marcas das práticas e ideais da
Escola Nova, vivida nas Escolas Normais nos anos anteriores. Burker (2007),
ao indagar-se sobre os custos e os benefícios da utilização do conceito de
tradição na educação, inicia sua análise com questionamentos sobre o que,
como, por que, para que e para quem, onde e com que objetivo é transmitido e
sobre o papel do professor como aquele que transmite os conteúdos culturais.
Em se tratando de formação em serviço, como a mediada pelos
documentos analisados, as experiências anteriores, assim como crenças e
práticas, vão sendo transmitidas pelos formadores nas atitudes que adotam,
nas formas de intervenção no grupo, nas respostas a questionamentos sobre
os conteúdos estudados. A legitimidade estabelecida pelo papel de formador
vai legitimar heranças culturais classificadas como imateriais, como proposto
por Burker (Burker,2007. p.150).
Observei, nas publicações analisadas como representativas dos dois
modelos, aspectos que, talvez, permitam a compreensão da aceitação da
mudança pelas continuidades presentes como consequências das vivências
anteriores na imersão cultural. Burker (2007) chama atenção para resultados
de transmissões culturais onde aparecem diferenças entre a mensagem
transmitida e a recebida de forma consciente ou voluntária e seus contrários.
Para além das características divulgadas como inovadoras pelo Modelo
Educacional ou Modelo Diagnóstico Prescritivo, existiam princípios fundantes
da Educação Especial que permaneceram. Posso citar a centralidade do
trabalho pedagógico como presente nos dois modelos. A importância dada à
Psicologia como saber científico que legitima a prática pedagógica também
está presente nas duas propostas estudadas. A individualização do ensino
como um dos componentes do Modelo Novo era um dos pilares do Modelo
Médico-psicológico. A intencionalidade da educação do sujeito deficiente, como
estratégia de socialização e integração na comunidade, aparece como
norteadora nos dois modelos. A apresentação do Modelo Educacional nas
publicações analisadas, descrevendo os procedimentos do ensino para o
sucesso, pode ter sido recebida como um coletivo de técnicas de ensino
adaptáveis a concepções de aluno já enraizadas e legitimadas.
Com as marcas da tradição encontradas no modelo inovador, é possível
compreender as mudanças de modelos sucessivas que acontecem na
Educação Especial até os dias atuais. Permanências e inovações presentes
em propostas políticas e práticas pedagógicas talvez sejam a energia
propulsora da escolarização da criança com deficiência. As tradições parecem
permitir maior segurança em um trabalho responsável com excluídos, ao
mesmo tempo que as inovações apontam para novas possibilidades de
horizontes, para embates políticos de ampliação de direitos, além de categorias
ou grupos que se percebem mais participativos, legitimados e decisivos
continuarem motivados para o estudo e o trabalho com essa parcela da
população.
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