Começar de Novo: as tensões dos anos 1980 na velha educação pública da cidade maravilhosa Leila de Macedo Varela Blanco Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação - ProPEd – Rio de Janeiro Trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Educação Especial Categoria: Comunicação Oral Resumo: Com as publicações que orientaram os professores de Educação Especial na rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1980 a 1983, me pergunto sobre a proximidade e o estranhamento de intenções e práticas entre as orientações desses documentos e as encontradas nas publicações anteriores para a formação de especialistas nos anos de 1960 e 1970. Como foi possível a mudança do paradigma médico-psicológico que contava com a confiança dos profissionais para o Modelo Diagnóstico Prescritivo? Para o estudo pretendido, optei por analisar as cinco primeiras publicações que fazem parte da coleção Modelo Educacional e dezessete dos anos anteriores. Para compreender a tessitura que permitiu a mudança, usarei, também, as memórias de profissionais da época, me valendo das reflexões teóricas de Mogarro (2001). Por objetivar a formação em serviço, utilizei as reflexões de Burker (2007) e Pintassilgo (2006) sobre permanências e inovações nas práticas culturais imateriais na escola. Para além das características divulgadas como inovadoras pelo Modelo Diagnóstico Prescritivo, existiam princípios fundantes da Educação Especial que permaneceram. Dentre outras, cito a importância dada à Psicologia como legitimadora da prática pedagógica. Permanências e inovações presentes em propostas políticas e práticas pedagógicas talvez sejam a energia propulsora da escolarização da criança com deficiência. Palavras-chave: metodologias, formação de professores, Educação Especial De posse da coleção de publicações que orientou os professores de Educação Especial da rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro, nos serviços de apoio ao aluno com deficiência nos anos de 1980, 1981, 1982 e 1983, me pergunto sobre a proximidade e o estranhamento de intenções e práticas entre as orientações emanadas desse conjunto de documentos e as encontradas nas publicações anteriormente voltadas aos professores especializados, ou em formação, nos anos de 1960 e 1970. Optei por analisar as cinco primeiras publicações, mimeografadas, da coleção Modelo Educacional, organizada pela Assessoria de Educação Especial, do Departamento Geral de Educação, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. As publicações integram o conjunto de estratégias de formação em serviço dos professores que atuavam na Educação Especial, nas diferentes modalidades oferecidas, ou seja, em escolas e classes especiais, em classes hospitalares, em salas de recursos, na itinerância e na orientação aos professores das turmas/EE. Essas turmas foram formadas a partir de 1980 e nomeadas como turmas comuns para alunos retidos por 3 ou mais anos na 1ª série do 1º Grau e aqueles oriundos das turmas de AE- atrasado especial-, com classificação de deficiência mental leve, obtida por testagem formal. O interesse pelo trabalho veio da interrogação sobre a aceitação do novo paradigma de trabalho por um grupo de profissionais que vinha estruturando a Educação Especial nas décadas de 1960 e 1970, com o entusiasmo de pioneiros, sob orientação do modelo médico psicológico. Para melhor compreender a tessitura que permitiu ou determinou a mudança, usarei, também, memórias de profissionais da época, registradas em entrevistas feitas por mim e pelas professoras Elisa de Fátima Magalhães e Noêmia Trompieri para o Centro de Memória do Instituto Helena Antipoff, órgão da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Portanto, trata-se de uma pesquisa histórica que tem como fontes as publicações oficiais e específicas para formação de professores na cidade do Rio de Janeiro, no seu tempo de Estado da Guanabara e, e em seu período inicial como município. Busco compreender os fatores que permitem a aceitação, de grande parte dos profissionais das redes de escolas públicas, quando de mudanças anunciadas pela hierarquia política ou administrativa. Uma nova forma de Ensino ou um novo arranjo para o ensino velho? Nas publicações estudadas, observei a preocupação com a novidade a ser estabelecida, no que diz respeito à formação em serviço de professores que, em vista da ampliação do número de matrículas de alunos nas escolas, passaram a ter a eficácia e eficiência como aspectos valorizados, perseguidos e discutidos nos discursos oficiais. ... quando se realiza um trabalho de “massa”, como o nosso, surgem dificuldades sócio-econômicas, que impedem de se trabalhar, exclusivamente, dentro do modelo citado (o autor se refere ao modelo médico-psicológico). Tivemos, no primeiro semestre de 1979, um considerável número de crianças com dificuldades de aprendizagem, encaminhadas para diagnóstico. Entretanto, ao final de três meses, apenas de 50% delas conseguiu-se um diagnóstico final (SME/Rio. 1980, I, p.1). Considerei os documentos iniciais da coleção Modelo Educacional como os mais elucidativos do período de consolidação do novo município, porque apresentam o discurso oficial da Secretaria Municipal de Educação. A primeira publicação pesquisada – Modelo Educacional I − objetiva informar o professor sobre a mudança de modelo, alguns dos motivos para a sua escolha em substituição ao anterior e, em linhas mais gerais, suas características mais importantes. Vínhamos trabalhando, até o ano passado, no modelo médicopsicológico, tradicional; interessava-nos obter um diagnóstico da criança através da equipe interprofissional, para transmiti-lo ao professor (SME/Rio. 1980, I, p.1). Desde 1961, com a criação da equipe de Educação Especial do Estado da Guanabara, o norte da orientação pedagógica era feito seguindo os primeiros trabalhos dessa área de educação, implantados por Helena Antipoff, quando de sua vinda como professora para atuar na Escola Normal de Belo Horizonte. Identificada com o movimento Escola Nova, Helena Antipoff influenciou toda uma geração de professores mineiros, ensinando-os a valorizar as ciências aplicadas à educação (JANNUZZI, 1985). Em 1945, vindo para o Rio de Janeiro compor o Departamento Nacional da Criança do Ministério da Saúde, criou a Sociedade Pestalozzi do Brasil - já havia criado a mineira-, objetivando identificar, avaliar e dar atendimento especializado aos alunos classificados como deficientes mentais. Sua influência foi forte o suficiente para que a instituição fosse replicada em muitas outras cidades, tendo como consequência a criação da Federação Nacional das Associações Pestalozzi, em 1970. O modelo experimentado com Helena Antipoff, e denominado médico psicológico, previa a avaliação minuciosa, por equipe multiprofissional, dos alunos que apresentassem dificuldades de aprendizagem escolar. No Modelo Educacional I, é possível observar a crítica feita a esse modelo pela equipe que o utilizava até então e que opta por uma nova forma de atendimento à demanda que se apresentava. O professor não intervinha no diagnóstico, recebendo, então, seu aluno já classificado, com rótulos, que nem sempre correspondiam à realidade do seu potencial. Usamos testes padronizados, nunca padronizados em nosso meio, que coloca em dúvida, para nós, os resultados dos mesmos (SME/Rio. 1980, I, p.1). Dentre os argumentos para adoção do novo modelo de trabalho pedagógico, aparece o grande número de crianças encaminhadas para diagnóstico em equipe multiprofissional, em 1979, e a análise insatisfatória da estratégia, apontando para a necessidade de mudanças. ...as causas são largamente conhecidas: desinteresse dos pais, falta de conhecimento relativo à importância dos exames, impossibilidade de deixar o lar para acompanhar o filho [...] e muitas outras. (SME/Rio. 1980, I, p.1). O documento comenta ainda que, após o diagnóstico daqueles que cumpriam, passivamente, todos os procedimentos, o trabalho pedagógico era longo e nem sempre contava com a persistência do professor. Como um dos argumentos favoráveis ao diagnóstico prescritivo, nome do novo modelo, é citada a prescrição ao trabalho do professor, para que faça uma intervenção direta, isto em oposição às atividades compensatórias trabalhadas no modelo anterior, além de comentários sobre : ...é esta a realidade de um País em desenvolvimento, que tinha de ser vista e analisada, afim de que se pudesse atender, com maior presteza e eficiência as centenas de alunos [...] repetindo ou se evadindo, constituindo, segundo os economistas o índice de desperdício do nosso sistema (SME/Rio.1980, I, p.1). Vamos observar as características do novo modelo utilizando, neste momento, uma análise da linguagem argumentativa. Há destaque para as críticas, influenciadas pelo viés econômico de identificação de demandas, nos levando a pensar a importância da planificação setorial na década de 1970, lembrando que em 1971 foi aprovada a Lei de Reforma de Ensino – Lei 5692/71, que nos seus artigos de 53 a 57 vincula os financiamentos das ações dos sistemas de ensino ao Plano Setorial de Educação. Da mesma forma, pode-se destacar o valor dado ao tempo gasto com os trabalhos como desperdício e a necessidade da eficiência do professor deixando transparecer a urgência no “país em desenvolvimento”. O documento apresenta, ainda, os procedimentos adotados para implantação do novo paradigma com a preparação das equipes de nível central e regional, no que diz respeito “a nova filosofia de trabalho”. O acompanhamento por meio de “visitas às classes, reuniões psicopedagógicas mensais e inquérito avaliativo em junho e novembro” já é apresentado no primeiro documento mostrando a preocupação com a planificação do programa, suas formas de acompanhamento, controle e avaliação, que caracterizam a tecnologia educacional. A defesa da adoção do novo modelo é feita considerando a maior participação do professor, a projeção do trabalho pedagógico a curto e médio prazos, avaliação imediata e contínua, favorecimento da aprendizagem isenta de erros, adoção de reforços ao comportamento adequado e consequente melhoria do autoconceito. O segundo documento −Modelo Educacional II– apresenta o fluxograma representativo do processo, que vai desde o diagnóstico dos pontos fortes e fracos que a criança apresenta para uma aprendizagem escolar específica até o replanejamento, com novos objetivos a serem alcançados. Define os termos mais importantes para a compreensão da “nova filosofia” e os procedimentos e cuidados ao avançar em cada uma das etapas delineadas. Ao sistematizar os aspectos e procedimentos para melhor conhecer o aluno, o fascículo indica: ...é importante que se faça uma entrevista substancial com os pais e professora ou professores, a fim de que se possa senti-la sob os dois ângulos. Deve-se também, aplicar uma bateria de testes que envolvam o raciocínio matemático, a leitura oral e silenciosa, objetivando a compreensão, a escrita livre, ditado, leitura oral feita pelo examinador com perguntas sobre a mesma e um questionário de interesses, que servirá para o professor, ao utilizar o reforço [...] é fundamental, que fosse feita a observação direta da criança em situação escolar, bem como uma triagem de visão e audição,... (SME/Rio. 1980, II, p.3). (grifos do autor) Os elementos apresentados no fluxograma são trabalhados de modo a facilitar a identificação de suas características e funções no ensino. Dentre os elementos citados estão: formulação dos objetivos; formas de proceder para a seleção e organização dos conteúdos a serem ensinados/aprendidos; importância da análise de tarefas como metodologia para o acerto do exercício e o sucesso da aprendizagem; escolha dos recursos para a individualização do ensino; mecanismos para a intervenção propriamente dita, procedimentos para a avaliação de processo e acompanhamento como dados relevantes para o replanejamento. Observei que esse é um paradigma de trabalho calcado na teoria de sistemas, em voga nos anos 1970, para a administração da cidade. Na aplicação da teoria de sistema para a educação – Sistema Instrucional – o processo decisório alcança grande relevância e é assim concebido: ...o desenvolvimento de um sistema instrucional é resultante da constante interação dos processos Avaliatório e Decisório. É o tipo de Decisão referente a “fins” ou “meios” instrucionais que se pretende tomar sobre uma determinada dimensão do Sistema, que orienta e determina a Avaliação [...].que deve sempre preceder as tomadas de Decisões (FESP. 1980, p. 5). Cabe, portanto, instrumentalizar o professor para as diferentes tomadas de decisão sobre o ensino de cada aluno. São consideradas decisões importantes para o sistema instrucional a seleção dos recursos e a escolha das atitudes e procedimentos que deverão aparecer no reforçamento dos comportamentos adequados e esperados Todas as informações devem aparecer descritas nos objetivos selecionados após a avaliação diagnóstica, e nas sucessivas, responsáveis pela retro-alimentação. As publicações de implantação do Modelo Educacional, ou Modelo Diagnóstico Prescritivo, vão de I a XXI, aprofundando os conhecimentos de cada um dos aspectos considerados para o desenvolvimento do Sistema Instrucional. Chama atenção a repetição das informações, fazendo supor que este também é um dos procedimentos de ensino - aprendizagem. A repetição, em diferentes apostilas, é amenizada com a ampliação de informações que propiciem, cada vez mais, o aprofundamento dos conhecimentos relativos aos elementos-chave do sistema. Na folha 3 da publicação I, podemos ver a comparação dos itens: suposição para a não aprendizagem, objetivo do diagnóstico, causa da deficiência ou dificuldade de aprendizagem, técnicas corretivas, tipo de trabalho a oferecer, prognóstico, avaliação e objetivo final. Na publicação III, p.11, há um novo quadro comparativo com apenas duas categorias de análise – Posição Metodológica e Esquema de Atendimento Educacional onde, porém, são inscritas, como subcategorias, as diferenças encontradas no quadro anteriormente citado, no que diz respeito à suposição e objetivo, dentre outros. Na publicação III, a comparação entre os modelos, utilizando os termos tradicional e novo, é obtida pela condição operatória, com os verbos no modo infinitivo para indicar a ação empreendida. Como exemplo, no que se refere ao modelo médico-psicológico, a suposição aparece por meio da ação – “procurar a causa principal da não aprendizagem” - em oposição a - “descrever as dificuldades encontradas” - no caso do Modelo Educacional. Logo a seguir, aparece um novo quadro comparativo que, com exemplos do cotidiano, concretiza a categoria Tipos de Informação sobre o Aluno (observáveis, inferenciais e hipotéticas) e o Atendimento Educacional consequente nos dois modelos de atendimento. Os exemplos do quadro enfatizam o desenvolvimento de habilidades básicas para o primeiro modelo, além de encaminhamento para especialista da área da saúde e, para o novo modelo, o trabalho com a escrita utilizando “pistas” que favoreçam o acerto. A publicação IV trabalha com os níveis de informação sobre o aluno, mas utiliza as mesmas categorias informadas como tipos de informação – observáveis, inferenciais, hipotéticas - mostrando que a classificação, anteriormente tipo, passa a ser considerada nível, porque sua utilização se fará por níveis hierárquicos da administração. A publicação V – Componentes do Modelo − trata dos diferentes elementos, apresentados nas publicações anteriores, especificando e detalhando cada um. Sobre o aluno serão acrescidas as expressões: Potencial de Aprendizagem e Características de Aprendizagem. Não sendo o modelo classificatório, não dependendo, portanto, da categoria da deficiência, mas sim da descrição do problema, [...], teremos, através do diagnóstico prescritivo, um instrumento que dará ao professor subsídios de alto valor para o planejamento instrucional (SME/Rio.1980, IV, p.3). A análise de tarefas, como metodologia de ensino, só mereceu um parágrafo, porque é tratada em outras publicações isoladas. A individualização do ensino estará em consonância com a metodologia e incentivará o trabalho independente, para que o professor possa atender às necessidades de todos e de cada um. A orientação para o estabelecimento de regras de convívio claras, objetivas e utilizando termos positivos é trazida, nesse componente, por facilitar o controle da turma. Ressalto a inclusão do elogio como atitude a ser adotada pelo professor nas vezes em que o aluno acerta ou “aproxima seu comportamento do comportamento final”, esperado com o ensino. A avaliação, sempre valorizada, será caracterizada como um processo complexo, direto, progressivo, que começa no diagnóstico e é feita antes, durante e depois de cada fase de ensino, portanto, diagnóstica, formativa e somativa. Voltando no tempo para encontrar o Velho Modelo É necessário que a criança passe por um exame médico acurado, a fim de receber o tratamento que verdadeiramente necessita. O regime de trabalho em equipe é, pois, indispensável no atendimento das crianças deficientes. Para o treinamento da percepção a pedagogia terapêutica indicada, organização versará do sobre: educação pensamento; senso-perceptiva; associação de ideias- desenvolvimento da atenção- desenvolvimento da memória desenvolvimento do esquema corporal – desenvolvimento da orientação temporo-espacial – constância da percepção relação figura-fundo – análise-síntese – gestalt. Somente com um bom grau de desenvolvimento perceptivo poderá ser iniciada a alfabetização. A professora deverá estar atenta, registrar os progressos de cada aluno, para saber quando iniciará sua escolaridade (SEC/GB, 1970f, p.2-3) (grifos nossos). Neste recorte, é possível observar parte das preocupações com a orientação do atendimento ao aluno com deficiência, que corroboram com as críticas apontadas no documento, Modelo Educacional I, no que diz respeito à intervenção indireta no problema de aprendizagem, assim como sobre aquelas feitas sobre a importância da identificação da causa do transtorno obtida por exame médico acurado. A identificação da pedagogia qualificada como terapêutica com a clínica médica é outra característica que se pode apreender no texto. O papel do professor especializado pode ser comparado com o de um terapeuta em trabalho de reabilitação, quando prediz o treinamento das habilidades descritas, com rigor científico, das partes componentes do todo perceptivo. A identificação com a cura da doença, feita pelo médico assistente, também pode ser observada quando orienta a professora a ter atenção e registrar os progressos do aluno, visando iniciar sua escolaridade. Portanto, o trabalho pedagógico talvez seja percebido, por seus próprios técnicos, como terapia, que possibilitará, posteriormente, a educação escolar e, quem sabe, a alta. A escolarização dos anos 1970 na cidade do Rio de Janeiro, ainda influenciada pelo movimento Escola Nova (GONÇALVES MENDES, 2010) prevê um nível de desenvolvimento da criança para que a alfabetização seja possível. No caso do aluno com deficiência são muitas as habilidades a serem trabalhadas, segundo o texto analisado. Entretanto, esse não é um caso isolado e sim uma das marcas da escolarização pública. A orientação para as turmas de alunos imaturos, identificados pelo teste ABC de Lourenço Filho, propõe o mesmo tipo de atenção para que as crianças, desenvolvidas as habilidades indispensáveis à aprendizagem da leitura e da escrita, logrem êxito na alfabetização no ano seguinte. Parece que, com essa leitura do desenvolvimento, o atendimento de educação infantil começa a ser pensado (BRAGA, 2008, p.45). Todas essas expressões do pensamento educacional nos possibilitam observar a hegemonia de ciências como a neurologia, a psiquiatria e a psicologia, na prática da organização escolar e curricular. Alunos considerados imaturos passam a viver experiências educacionais compensatórias de suas lacunas ou atrasos no desenvolvimento. É importante que o professor conheça muito bem cada uma das crianças sob sua responsabilidade para escolher trabalhar com exercícios propulsores do desenvolvimento de cada um dos alunos em questão. O treinamento de habilidades, que garantirá a melhor condição perceptiva, é organizado e desenvolvido pelo professor, também o registro dos progressos que apontarão o momento de início do ensino da leitura e da escrita. Para a análise desse período em que foi utilizado o modelo médico psicológico, me vali de apostilas distribuídas no Curso de Especialização para professores de crianças com dupla deficiência – física e mental. Os títulos das publicações apontam a opção teórica adotada e os caminhos metodológicos consequentes. Não houve, entretanto, possibilidade de sequenciá-las, não sendo possível, até o momento, identificar as cinco primeiras. Também não foi possível averiguar se a organização das apostilas foi feita exclusivamente para o curso, realizado em 1970, ou se houve aproveitamento dos títulos antes ou depois do mesmo. São 18 publicações assim agrupadas: O primeiro grupo, formado por seis apostilas, conceitua, classifica e aborda a etiologia da deficiência física, elegendo como fio condutor três publicações “os aspectos da evolução intelectual, emocional, e da personalidade do deficiente físico”. O segundo grupo, com cinco apostilas, versa sobre a psicologia evolutiva utilizando-se, inclusive, dos estágios descritos por Jean Piaget. O terceiro engloba assuntos dispersos entre si, como: Atenção e Memória; Compilado Básico de Neuro-embriologia e Necessidades Básicas e Adquiridas. No quarto grupo aparecem as orientações pedagógicas. No Guia de Orientação ao Professor de Criança Disritmica, encontramos sugestões de atividades, cuidados e uma lista de fontes de consultas para o professor enriquecer este guia. Na publicação A criança com paralisia cerebral, as orientações vão aparecer na p.23 com o subtítulo Áreas Específicas da terapêutica pedagógica. A apostila Educação Sensorial traz uma explanação sobre o conceito e função deste tipo de educação e detalha exercícios para os treinos perceptivos em várias categorias: percepção visual quanto à forma; à cor; ao tamanho; à posição e aos detalhes. Posteriormente, aparecem os treinos para as percepções auditiva, tátil, gustativa, olfativa, térmica e cinestésica. Nos depoimentos dos profissionais que viveram a Educação Especial dos anos 1960, 1970 e início dos anos 1980, é possível perceber o orgulho de ter trabalhado na construção de um novo serviço para a cidade. Acolhendo aqueles que eram marginalizados pela condição de deficientes, estudando com profissionais da saúde e sendo capazes de conhecer aspectos do desenvolvimento humano. As professoras pioneiras parecem ter-se percebido detentoras de saberes valorizados socialmente, por pertencerem às novas descobertas científicas. Considerações Finais A primeira aproximação que fiz dos documentos de 1970 me levou a confirmar o discurso de inovação produzido na publicação Modelo Educacional I. Nela, a novidade do modelo que se adotava era apresentada por meio da crítica ao anterior e calcado nas comparações que evidenciavam as diferenças de postura teórico- metodológica. A entrevista com a professora Maria Amélia também deixava transparecer a oposição entre os modelos e a opção política feita pela administração, mas negada por parte do grupo. Não sendo bem visto por alguns, como foi possível implantar um novo paradigma utilizando-se, inclusive, como argumentação para o convencimento, de críticas ao anteriormente aceito por todos? Que referencial poderia ser utilizado para a compreensão desse episódio? Parece-me que inovações são bem vindas quando as práticas relacionadas às realidades concretas são questionadas como inadequadas ou superadas suas formas de intervenção. Analisando manuais de pedagogia do início do século XX, Pintassilgo me oferece um possível caminho para a compreensão do momento estudado. A formação executada por professores mais experientes, como acontecia nos anos estudados, deixou as marcas das práticas e ideais da Escola Nova, vivida nas Escolas Normais nos anos anteriores. Burker (2007), ao indagar-se sobre os custos e os benefícios da utilização do conceito de tradição na educação, inicia sua análise com questionamentos sobre o que, como, por que, para que e para quem, onde e com que objetivo é transmitido e sobre o papel do professor como aquele que transmite os conteúdos culturais. Em se tratando de formação em serviço, como a mediada pelos documentos analisados, as experiências anteriores, assim como crenças e práticas, vão sendo transmitidas pelos formadores nas atitudes que adotam, nas formas de intervenção no grupo, nas respostas a questionamentos sobre os conteúdos estudados. A legitimidade estabelecida pelo papel de formador vai legitimar heranças culturais classificadas como imateriais, como proposto por Burker (Burker,2007. p.150). Observei, nas publicações analisadas como representativas dos dois modelos, aspectos que, talvez, permitam a compreensão da aceitação da mudança pelas continuidades presentes como consequências das vivências anteriores na imersão cultural. Burker (2007) chama atenção para resultados de transmissões culturais onde aparecem diferenças entre a mensagem transmitida e a recebida de forma consciente ou voluntária e seus contrários. Para além das características divulgadas como inovadoras pelo Modelo Educacional ou Modelo Diagnóstico Prescritivo, existiam princípios fundantes da Educação Especial que permaneceram. Posso citar a centralidade do trabalho pedagógico como presente nos dois modelos. A importância dada à Psicologia como saber científico que legitima a prática pedagógica também está presente nas duas propostas estudadas. A individualização do ensino como um dos componentes do Modelo Novo era um dos pilares do Modelo Médico-psicológico. A intencionalidade da educação do sujeito deficiente, como estratégia de socialização e integração na comunidade, aparece como norteadora nos dois modelos. A apresentação do Modelo Educacional nas publicações analisadas, descrevendo os procedimentos do ensino para o sucesso, pode ter sido recebida como um coletivo de técnicas de ensino adaptáveis a concepções de aluno já enraizadas e legitimadas. Com as marcas da tradição encontradas no modelo inovador, é possível compreender as mudanças de modelos sucessivas que acontecem na Educação Especial até os dias atuais. Permanências e inovações presentes em propostas políticas e práticas pedagógicas talvez sejam a energia propulsora da escolarização da criança com deficiência. As tradições parecem permitir maior segurança em um trabalho responsável com excluídos, ao mesmo tempo que as inovações apontam para novas possibilidades de horizontes, para embates políticos de ampliação de direitos, além de categorias ou grupos que se percebem mais participativos, legitimados e decisivos continuarem motivados para o estudo e o trabalho com essa parcela da população. Referências Bibliográficas: AURICCHIO, Ligia de Oliveira. Desenvolvimento de um sistema instrucional. Rio de Janeiro: FESP, 1980. (mimeo) BRAGA, Rosa Maria de Sousa. Caligrafia em Pauta: a legitimação de Orminda Marques no campo educacional. Rio de Janeiro, Dissertação, UERJ, 2008. BURKE, Peter. Cultura, Tradição, Educação. In: GATTI JÚNIOR, Décio & PINTASSILGO, Joaquim, (org). Percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História da Educação, Uberlândia: EDUFU, 2007. GONÇALVES MENDES, Enicéia. Breve histórico da educação especial no Brasil. 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(mimeo) ______.Compilado Básico de Neuro- embriologia. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970i. (mimeo) ______. Introdução à Psicologia Evolutiva. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970j. (mimeo) _ _____. Primeira Infância. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970k. (mimeo) ______. Segunda Infância: de 3 a 7 anos. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970l. (mimeo) ______. Terceira Infância: de 7 a 12 anos. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970m. (mimeo) ______. Psicologia Evolutiva: adolescência. Rio de Janeiro: SEC/GB, 1970n. (mimeo) JANUZZI, Gilberta. A Luta pela Educação do Deficiente Mental no Brasil. São Paulo: Cortez – Autores Associados, 1985. MOGARRO, Maria João. Memórias de Professores. Discursos orais sobre a formação e a profissão. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n.17, abril, pp 7-31, 2005. PINTASSILGO, Joaquim. Os manuais de pedagogia no primeiro terço do século XX: entre a tradição e a inovação. In: PINTASSILGO, Joaquim ; FREITAS M. C.; MOGARRO, Maria João & CARVALHO, M. M. C. (org.). 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