ZERO HORA PORTO ALEGRE, QUINTA-FEIRA, 21 DE OUTUBRO DE 1999 40 MUNDO Editor: LUCIANO PERES ☎ 218-4345 Editora Assistente: ROSANE TORRES ☎ 218-4346 Entrevista: Hernán Ramirez “Treinamos todos os dias para a guerra” Enquanto o governo do presidente colombiano, Andrés Pastrana, e a guerrilha marxista Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) anunciavam a retomada das negociações de paz, diversas vezes interrompidas este ano, o líder máximo no Brasil do maior grupo guerrilheiro da América Latina se encontrava em missão em Porto Alegre. Hernán Ramirez nasceu em Tolima, na Colômbia, e na semana passada conversou a portas fechadas com o governador Olívio Dutra. Aos 55 anos, Ramirez viaja pelo Brasil divulgando a causa das Farc e Zero Hora – O que o senhor veio fazer em Porto Alegre? Hernán Ramirez – Estamos fazendo uma atividade político-diplomática. Percorremos o mundo mostrando a situação colombiana e denunciando as graves intervenções dos EUA em nosso país. ZH – O que o senhor conversou com o governador Olívio Dutra e qual a relação das Farc com o governo do Estado? Ramirez – A relação com o governo de Olívio Dutra e com o governo da capital do Estado é uma relação que se dá pelo fato de que eles nos recebem e escutam nossas opiniões. Nós queremos conhecer muito mais as questões do Estado, como o conduzem, por isso mantemos diálogo. Algumas coisas que se desenvolvem aqui têm nos chamado a atenção. Conversamos sobre o orçamento participativo. Essa é uma forma muito adequada de empregar o dinheiro do Estado, uma experiência que nos interessa conhecer. ZH – O senhor é um admirador de Olívio Dutra? Ramirez – Eu não diria admirador. Eu o vejo como um homem muito dedicado a resolver os problemas do povo. Ele é uma pessoa que saiu do meio dos trabalhadores. Nós queremos que, um dia, na Colômbia, nossos trabalhadores estejam desenvolvendo atividades administrativas. Nos interessa saber como os trabalhadores administram um Estado, quais são suas aspirações e quais são suas lutas para que o Estado seja melhor. ZH – Pelo fato de o Rio Grande do Sul ser governado por um partido de esquerda, houve alguma diferença na sua recepção? Ramírez – Somos recebidos da mesma maneira. Há uma receptividade muito boa em todos os Estados, muito denunciando a “intervenção americana” no país. No sábado, Ramirez concedeu uma entrevista exclusiva a Zero Hora sob a condição de que não fosse fotografado. O repórter de ZH e o guerrilheiro se encontraram em frente à Associação Riograndense de Imprensa (ARI), no centro da Capital. Ramírez e um amigo portoalegrense, que realizou as negociações para o encontro, conduziram o repórter num táxi até um prédio comercial na Rua Voluntários da Pátria, onde o guerrilheiro concedeu a seguinte entrevista: ZH – Que medidas de segurança são solidária e muito importante. Não faz diferença se o governo é de direita ou de essas? Ramirez – Isso é segredo. esquerda. O problema é de ângulo latinoamericano. E vêem nossa causa como ZH – Qual é o risco que o senhor cormuito importante. A dimensão de nosso re no Brasil? trabalho supera esses limites. Ramirez – Aqui não corremos nenhum ZH – Uma vez no poder, as Farc co- perigo do ponto de vista dos brasileiros, locariam em prática projetos como os das autoridades. Tomamos medidas de sedo Rio Grande do Sul? gurança porque sabemos que os braços Ramirez – Sim, gostaríamos muito de dos militares colombianos e dos paramilipôr em prática as medidas democráticas tares são muito grandes. FOTOS BANCO DE DADOS/ZH que se desenvolvem ZH – Hernán em alguns lugares Ramirez não é o do Brasil. Gostaríaseu verdadeiro nomos muito de fazer me. Qual é o vero mesmo na Colômdadeiro? bia. Ramirez – HerZH – Qual o intenán Ramirez é meu resse das Farc no nome de guerra. Brasil? Não posso dizer Ramirez – Os meu nome. Uma EUA propuseram das nossas normas aos países latinoé que nossos hoamericanos a formamens não conheção de uma força de cem o nome de neintervenção maior nhum companheiro. na Colômbia. Até o Sempre usamos nomomento, o governo mes que não colobrasileiro disse que cam em risco nosos problemas devem sas famílias. ser resolvidos por nós mesmos e que ZH – As Farc não participarão des- Guerrilheira: pausa para vaidade são acusadas de se tipo de aventura. violar o território Essa posição deve ser apoiada pela opi- brasileiro, atravessando a fronteira na nião nacional. região da Floresta Amazônica. Como o senhor responde a essa acusação? ZH – Como o senhor entrou no Brasil? Ramirez – Não entramos no território Ramirez – Ingressei como turista há al- brasileiro. Nós temos uma orientação clara guns meses, com documentos legais. da nossa direção no sentido de que é proibido realizar operações militares fora do ZH – Por que não quis ser fotografa- território colombiano. do? Ramirez – Porque tenho que seZH – O senhor já pegou em armas? guir as normas de segurança. Ramirez – Faz bastante tempo. Quando eu era muito mais novo. mamos falar desses detalhes. ZH – O senhor já participou de operações militares? Ramirez – Sim. ZH – Operações que envolviam seqüestros? Ramirez – Não, absolutamente. Num combate, numa guerra, não há seqüestros. Quando temos o objetivo de ocupar uma base inimiga, e pessoas se rendem, nós os tomamos como prisioneiros de guerra. Nesse momento, temos 400 prisioneiros de guerra em nossas áreas. ZH – O senhor já planejou atentados? Ramirez – Não, nós não fazemos esse tipo de atos terroristas. Não somos terroristas. Somos revolucionários. ZH – Como é o cotidiano na área de 42 mil quilômetros quadrados que as Farc controlam? O que acontece nessa região, onde o governo não entra? Ramirez – É um lugar comum. As pessoas atuam normalmente como em qualquer outra cidade. Há algumas particularidades. Por exemplo: existe uma polícia municipal, que é nomeada pelo prefeito. Os recursos e a sociedade desses municípios estão organizados em sindicatos, cooperativas, diversas organizações juvenis, de mulheres e, inclusive, de crianças. É uma sociedade que se organiza espontaneamente quando já se vê liberada do jugo do governo central. A nós, cabe proteger essa área contra incursões dos paramilitares. Fazemos alguns treinamentos. As pessoas recebem aulas. ZH – Que tipo de aulas? Ramirez – As pessoas se levantam às 4h45min para fazer ginástica. Depois, ministramos aulas de História, Economia, Filosofia, história do movimento guerrilheiro, os programas e propostas que temos para a Colômbia. ZH – A ginástica inclui treinamento ZH – Já matou alguém? Ramirez – Isso não interessa. No militar? Ramirez – Os militares têm que estar desenvolvimento da guerra, não se sabe. É preciso se defender. treinados todos os dias para fazer a guerra. ZH – Isto significa um sim? Ramirez – Tu sabes que na guerra há mortos dos dois lados, feridos e muita tragédia. Não costu- ZH – As Farc colaboram de alguma forma com o narcotráfico? Ramirez – Não podemos ser defensores dos nossos inimigos. Há uma aliança entre os narcotraficantes e o exército colombiano. Examine a vida dos oficiais que trabalharam no exército nos últimos 20 anos e verá que todos se transformaram em latifundiários e possuem imensas quantidades de dinheiro nos bancos, produto do dinheiro que receberam dos chefes da máfia, para permitir o tráfico de drogas.