Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
"LABIRINTO DE LABIRINTOS": O AR EM ROSA DOS VENTOS
"Labirynth of labirynths": the Ar in Rosa dos Ventos
Paula de Lima Baraldi (Mestranda em Artes Cênica; ECA – USP)
[email protected]
Resumo: No presente artigo analisamos o traje de cena do bloco Ar, em Rosa dos Ventos: o show
encantado (1971) com foco no processo de expressão artístico-política. Através de fragmentos do roteiro
do espetáculo musical de protesto de Maria Bethânia, dirigido por Fauzi Arap com cenografia e figurinos
de Flávio Império, verticalizamos nossa investigação sobre o traje no contexto do espetáculo, do período
e dos artistas envolvidos, em conjunto com a cenografia e a interpretação, buscando assim atingir seu
núcleo.
Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Traje de cena; Flávio Império
Abstract: This study analyses the theatre costume Ar, part of Rosa dos Ventos: o show encantado
(1971), as an artistic-politic expression. Through excerpts of Maria Bethânia's protest musical show,
directed by Fauzi Arap, with set design and costumes by Flávio Império, we deepened our investigation
of the costume in the context of the show, the time and the artists involved, and also the scenography
and the interpretation, thus seeking to achieve its core.
Keywords: Brazilian Theatre; Costume; Flavio Império
Penetrar no labirinto2
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido
na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar
um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo,
bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver não é muito perigoso? [...] o real
não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
(ROSA, 1994, p. 43-86).
Rosa dos Ventos: o show encantado, de Maria Bethânia, com roteiro e direção de Fauzi Arap,
cenografia e figurinos de Flávio Império, pode ser classificado como um espetáculo musical de protesto.
No auge da ditadura, em 1971, após a promulgação do Ato Institucional 5, os artistas envolvidos
apresentaram no espetáculo uma mensagem de resistência política, ainda que cifrada para transpor as
barreiras da censura. À luz de Foucault, Eva Heller, Michel Pastoureau e Guimarães Rosa, analisamos
Figurinista e pesquisadora do 42 Coletivo Teatral. Artista visual. Desenvolve pesquisa sobre Teatro Brasileiro e Teatro
político com ênfase em cenografia e figurino. Na área de artes visuais desenvolve pesquisa em aquarela, xilogravura e artes
plásticas das décadas de 1960 e 1970.
2 Trecho de "Janelas Abertas nº2", de Caetano Veloso, fio componente do tecido do espetáculo, uma das canções mais
cifradas e metafóricas do primeiro período da ditadura (1964-1971). Interpretamos a letra como o mergulho do indivíduo em
seu mar interior junguiano, assim como a exposição do autor, mesmo que no exílio, como uma mensagem de resistência.
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os elementos que compõem o bloco Ar, parte do segundo ato do espetáculo, através do traje de cena e
do excerto de Água Viva, de Clarice Lispector, declamado pela intérprete.
O show encantado foi dividido inicialmente em quatro partes, como declara Arap (1998). A ideia
de tal divisão surgiu a partir de sua leitura de Jung, que observa que o número quatro organiza.
A exemplo dos pontos cardeais que conseguem nos situar geograficamente, Jung
havia observado que, no processo de recuperação, seus pacientes costumavam
sonhar com símbolos que iam se estruturando numa forma mandálica, que quase
sempre incluía o número quatro. Também observara que eram quatro as funções
principais da existência humana - pensamento, sentimento, sensação e intuição. [...]
Resolvi dar às quatro partes do espetáculo o nome dos quatro elementos: Terra,
Água, Ar e Fogo. (ARAP, 1998, p. 152)
Entretanto, ao longo do processo criativo uma quinta parte foi incorporada. Fauzi justifica que "o
número cinco sempre arremata a existência dos outros quatro e, por significar o centro da mandala
formada pelos outros, realiza a inteireza da proposta" (Ibdem). No quinto "inevitável" elemento, o diretor
colocou o homem no centro, o bloco foi chamado de Eu-difícil. O espetáculo era ramificado em dois atos,
"o 1º ato contava com um prólogo, seguido dos blocos Terra, Água e Eu-difícil. O 2º Ato era composto
de Fogo e Ar, encerrando com um Finale" (FORIN JUNIOR, 2006:131).
O percurso proposto por Fauzi, qual travessia labiríntica rosiana propõe uma imersão no homem:
Eu, Eu-difícil, Edifício central, como ponto de referência e resistência. Arap, Império e Maria Bethânia
têm em comum - além dos maravilhosos espetáculos-obras de arte - Rosa dos Ventos: o show
encantado, 1971; A Cena Muda, 1974; Pássaro da Manhã, 1977; Maria Bethânia, 1979 e Estranha Forma
de Vida, 1981 - suas origens em grupos e montagens antológicas. A intérprete estreou profissionalmente
em 13 de fevereiro de 1965 no show-protesto Opinião, direção de Augusto Boal, com sua "garganta
rascante-metálica" (SALOMÃO, 2010) substituindo Nara Leão, ao lado de João do Vale e Zé Keti. O
Opinião foi a primeira resposta da classe artística à Censura imposta pelo golpe de 1964, e passou a ser
símbolo de posicionamento político e questionamento sobre as condições do país e das classes
populares, com firmeza e mensagem clara de resistência, como nos mostra a canção-tema:
Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião3
Além da arquifamosa Carcará
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que evidencia a temática do sertão nordestino e
concomitantemente denuncia os abusos da ave de rapina, carnívora, que "pega, mata e come" - e em
Letra-protesto, "Opinião" de Zé Keti, 1964.
Música de João do Vale e Zé Cândido, uma das principais do espetáculo, que rendeu a Maria Bethânia o título de cantora
de protesto.
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nada difere do regime militar - utilizando os procedimentos de distanciamento brechtianos, em voga no
período, seguida dos dados de migração do Nordeste, em tom de denúncia: "em 1950, mais de dois
milhões de nordestinos viviam fora de seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou, 13%
do Piauí! 15% da Bahia! 17% de Alagoas!".
Em total sintonia com o quadro acima estava Flávio Império, que iniciou sua carreira como
diretor, cenógrafo e figurinista no grupo amador do Teatro da Comunidade Cristo Operário. Sua primeira
peça profissional foi Morte de Vida Severina, em 1961, dirigida por Clemente Portella, que apresentava
na cenografia projeções 5 com informações sobre a chegada de emigrantes sertanejos às cidades
metropolitanas e as causas do êxodo. Ainda que em uma espécie de montagem premonitória do que
viria a ser abordado no Opinião, há clara consonância entre os propósitos. Flávio, ao lado de Sérgio
Ferro e Rodrigo Lefèvre formou o Grupo Arquitetura Nova, considerado a primeira geração de arquitetos
modernos brasileiros pós Niemeyer e Artigas. Entre as obras de maior expressão de sua carreira estão
os espetáculos em parceria com os Teatros de Arena e Oficina, dirigidos por Augusto Boal e José Celso
Martinez Corrêa, respectivamente.
Fauzi Arap, diretor e idealizador de Rosa dos Ventos, assim como Maria Bethânia e Império,
iniciou sua carreira no teatro também pelas mãos de Augusto Boal e Zé Celso, e deixou de atuar no auge
do sucesso - principalmente por seu posicionamento firme em não ser "garoto-propaganda de si
mesmo"6, na total contramão do que está em voga atualmente - para se tornar diretor e autor.
O labirinto de labirintos7
Fauzi Arap, em sua autobiografia Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos 8 , cita
Clarice Lispector como alguém que conseguiu compreender e expressar o indizível, especialmente na
década de 1970, período em que predominava o medo - sete anos após o golpe de 1964, três após o AI5. O diretor justifica a escolha de formas poéticas de expressão não exatamente como opção mas, no
contexto, como alternativa para burlar a ditadura. Rosa dos Ventos seria considerado censurável não
fosse seu caráter vanguardista. O espetáculo composto de forma fragmentária, com trechos de músicas,
poemas, textos e depoimento da própria cantora, ao levantar questões de seu microuniverso, aborda
temas comuns a grande parte da classe artística, como o exílio, a repressão e o desejo de resposta:
Como boa parte das criações de Flávio Império, a cenografia vanguardista com projeções de slides, foi um dos primeiros
registros de uso do recurso em cena no Brasil.
6 Fauzi Arap em entrevista à revista Istoé. Fauzi Arap: aprendiz de feiticeiro. 7 de abril de 1999.
7 Vide nota 2.
8 Editora SENAC, 1998.
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"essa chama que não vai passar/ é mais forte que eu/ e eu não quero dela me afastar."9.
A temática das peças de Arap, assim como dos shows de Música Popular Brasileira dirigidos por
ele, exercem fascínio por abordarem conceitos sob o prisma junguiano de individuação, inconsciente,
inconsciente coletivo, sincronicidade, cura através da arte/ arte como salvação, verdade/ verossimilhança
e a busca pessoal do indivíduo através da compreensão de seu semelhante. As obras delineiam o retrato
de um período e, para além disso, mantêm-se atuais. Fauzi adaptou e dirigiu em 1965 o texto Perto do
Coração Selvagem, de Clarice Lispector, para o teatro e, por sua proximidade com a autora, utilizou
diversos fragmentos de sua obra em shows e peças teatrais. Dentre os textos de Rosa dos Ventos, há
um excerto de Água Viva, cedido pela autora especialmente antes do lançamento do livro.
O espírito inventivo de Dédalo ergueu o labirinto, uma construção cheia de
sinuosidades serpeadas, que desconcertavam olhos e pés daquele que nele
penetrava. Os inúmeros corredores emaranhavam-se como Maíandros, que em seu
correr incerto, ora para frente, ora para trás, acabavam por ir de encontro às suas
próprias ondas. Quando a construção ficou pronta e Dédalo a examinou, o próprio
inventor quase não conseguiu retornar à sua soleira, tal a esquisitice enganadora do
que criara. (SCHWAB Apud STEWART, 2007, p. 34)
No início, o palco vazio, preto sobre preto, e então começa o show encantado, labiríntico. No
entanto, como veremos, todos os caminhos levam ao centro, ao indivíduo pensante e questionador da
ordem, atingindo desta maneira o principal propósito da obra de arte de protesto: preconizar a reflexão
do espectador necessariamente transcendendo a censura através das mensagens cifradas. O propósito
oculto do espetáculo era o de evocar a volta dos exilados, especialmente Caetano Veloso e Gilberto
Gil 10 . O roteiro de Arap funciona como mote principal do show, criado através da sobreposição e
fragmentação de músicas e textos, e a mensagem de resistência é seu fio condutor.
O fio, como o novelo, a espiral e o círculo, compartilham do motivo da
fecundidade/fertilidade/continuidade da vida. A correlação estabelecida entre o
fio/novelo e a vida é anterior mesmo ao ato de fiar e tecer; ela encontra sua origem
na teia e sua senhora, a aranha. Fiando seu mundo a partir de si mesma, a aranha e
seu fazer são a prefiguração de uma das divindades mais antigas: as fiandeiras. Elas
alimentam a inesgotável compreensão do desenrolar de toda a existência,
enquadrada pelo nascimento e pela morte. O labirinto como o novelo, partilha a
simbologia da teia; ele é um entrelaçar de caminhos [...] Tanto faz que os corredores
de um labirinto sejam curtos ou compridos. Atingir o centro é encontrar a origem da
vida, ligar-se novamente à Terra Mãe; sair do labirinto, em contrapartida, é renascer,
"Resposta" de Maysa, música muito conhecida na voz de Maria Bethânia.
"O exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, desde 1969, funcionou como uma das forças motrizes de Rosa dos Ventos.
'Cantávamos a volta dos dois, sem ser explícitos e isso acabou por acontecer. Após uma longa negociação, Caetano veio ver
o show', conta Arap". (SANCHES, Pedro Alexandre. Rosa dos Ventos. Folha de São Paulo, São Paulo, 3 de julho de 1997.
Ilustrada).
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daí seu uso iniciático em diversas culturas e religiões. (ROSA apud FURTADO, 2014,
p. 94-95)
Na abertura, há o elemento Terra, com canções que soam a denúncia e lamento, como "Último
pau de arara"11; "Pau de Arara"12, "Carcará" entre outras. Seguido pela Água, que permeia todo o show
em forma de Mar e Rio; águas doce e salgada; Oxum e Iemanjá; Maria Bethânia, Flávio Império, Fauzi
Ara e TERRA Trio. A canção O tempo e o Rio está presente nos dois atos, correndo solta, costurando e
unindo todas as partes. Encerra o primeiro ato o Eu-difícil, cerne do roteiro. No segundo ato, a presença
do Fogo, o vermelho vivo em cena, seguido pelo Ar, denso, retorno ao vácuo, vazio inicial, preto sobre
preto, nosso objeto de estudo no presente artigo.
C - CO2
E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e
de acordar à uma hora da madrugada em desespero eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei.
Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação.
Simplesmente eu sou eu. e você é você. É lindo, É vasto, vai durar.
Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida mas
por enquanto olha para mim e me ama.
Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
(Clarice Lispector)
Na última parte do espetáculo, antes do encerramento, Maria Bethânia declama Clarice
Lispector. Analisamos o texto no contexto do espetáculo, do período e do conjunto da obra, para que
possamos dessa maneira, alcançar o "ponto de furo" (BRANCO, 1988) do texto-tecido, atingindo assim
a menor unidade de medida - o ponto - como esgotamento de possibilidades: o âmago da questão.
No início do trecho de Água Viva - o fim do espetáculo sincronicamente está atrelado ao fim do
livro de Lispector - observamos o "Eu" em questionamento. Após uma tarde inteira de dúvidas, a insônia
se apresenta duplamente. A personagem dorme, acorda "à uma hora da madrugada", dorme novamente
e enfim "às três horas da madrugada" acorda e "se encontra". O que teria sido a força motriz para o
caminho de iluminação? A longa tarde de reflexão - longa no sentido em que quando buscamos algo as
horas passam mais devagar? O curto período de sono? Teria a personagem sonhado com algo que a
"A vida aqui só é ruim quando não chove no chão/ mas se chover dá de tudo fartura tem de porção/ tomara que chova logo
tomara meu Deus tomara/ só deixo o meu cariri no último pau-de-arara", letra de Palmeira Guimarães e Rosil Cavalcanti.
12 "Quando eu vim do sertão seu moço/ do meu bodocó/ a maleta era um saco/ e o cadeado era um nó/ Só trazia coragem e
a cara/ viajando num pau de arara/ Eu penei, mas aqui cheguei" canção de Luiz Gonzaga e Guido Moraes.
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fez despertar duas vezes? Há no começo do texto a dualidade entre caos e ordem; desespero e encontro;
pulsão de vida e pulsão de morte.
Uma possibilidade de interpretação é a de que no período da madrugada, a personagem acessa
o seu caminho, em uma trajetória que vai do desconhecido à luz, "ao encontro de si", ao mergulho no
inconsciente, que tem sua lógica própria em constante comunicação com o consciente. No entanto, o
escuro nem sempre é associado à ausência de luz, pois o mar profundo, interior é negro, mas é o
caminho para seu labirinto interno.
Só a visão estreita do comum dos mortais costuma atribuir ao isolamento e à morte
uma cor escura ou ausência de luz. Mas talvez seja essa mesma coisa tão escura,
sem que saibamos que nos conduza, e seja ela mesma nosso guia em nossa procura
incansável de uma possível luz absoluta. (ARAP, 1998, p.226)
A personagem "Calma, alegre, plenitude sem fulminação", apresenta dados da pulsão de vida,
com o desejo de que a beleza dure - "É lindo, é vasto, vai durar" - simultaneamente evoca a finitude na
vida, a certeza da morte em contraponto com as incertezas da vida, do "não saber o que fazer", dúvida
que permanece. A percepção elementar: "Eu sou eu e você é você" está carregada de significados,
primeiramente enquanto desejo de individualidade, assim como da descoberta de si, mas também há
nisso a angústia permanente humana da noção de que "só se vê inteiro no outro ou a partir de uma
deformação de si: o espelho"13. Interpretamos tal confusão como deslocamento quando a personagem
pede, ainda que não saiba o que fazer, "olha pra mim e me ama", seguida da negação conclusiva: "Não:
tu olhas para ti e te amas. é o que está certo", desta maneira, o amor se desloca entre o "Eu" e o "outro".
No momento em que a intérprete declama, a cor preta domina a cena. Retomando a ideia de
caos, não podemos deixar de citar o primeiro relato da Criação: no princípio era o céu e a terra, sem
forma e vazia, o escuro, o breu e então: Fiat Lux! O traje criado por Flávio Império para a quinta parte do
espetáculo (Figura 1) é inteiro preto, assim como a cenografia na caixa preta. O efeito de tal
sobreposição da cor é o de flutuação, noção amplificada pelo piso preto subindo às paredes, criando
uma espécie de vazio, destacando ainda mais Maria Bethânia, como se estivesse suspensa no ar, no
vácuo. Justamente o ar, "fluído gasoso que forma a atmosfera", invisível e vital, relacionado à cor remete
também ao espaço, o universo, percepção reforçada pela presença da lua na barra do vestido de
modelagem ampla, e da fumaça de nuvens, que seria a própria metonímia do ar condensado.
Anotação da aula de "Crítica literária e Psicanálise", ministrada pela Prof. Dra. Cleusa R. P. Passos no dia 19 de março de
2013.
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Figura 1 - Desenho de figurino de Flávio Império para Maria Bethânia, representando o elemento Ar. Hidrográfica e grafite
sobre papel. Fonte: Acervo Flávio Império. Ao centro fotografia de cena do espetáculo, de autoria desconhecida. À direita,
Fotografia de cena. Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 2 de maio de 1972.
Além do efeito ótico em cena, buscamos também outras possibilidades de associação do uso do
preto associado ao elemento da transparência por excelência, uma vez que tanto para Flávio quanto
para Fauzi, o teatro é uma arte iniciática, portanto, tudo o que está em cena o faz com objetivos claros,
seja transmitir pelos signos implícitos - observando que em distintos períodos e sociedades a
interpretação das cores varia - ou conduzir o espectador a decifrar a mensagem do espetáculo.
Buscamos, por sugestão de Bodstein14, a fórmula de composição do Ar e encontramos apontamentos
de que o dióxido de carbono, popularmente conhecido como gás carbônico contêm em sua fórmula
fuligem - de cor preta - quando há grande concentração de carbono, dado que cremos não ter sido
ignorado por Arap, engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
O universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
14
Érika Bodstein, diretora, pesquisadora e professora de teatro, por nós entrevistada em junho de 2014.
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(Alberto Caeiro)
Segundo Heller, "o preto mais profundo do mundo é o do veludo preto" (2013, p. 129), cor e
matéria escolhidas por Flávio pra o traje, que contém em si a lua, com nuvens bordadas e "queimadas",
feitas de cinzas, com uma ponta em brasa diretamente sobre o tecido, formando o desenho. O croqui de
Império aponta para um decote profundo o suficiente para alongar a figura que
canta como uma jovem árvore que queima
numa crepitação de madeira que se extingue para o alto.
Tudo é combustão nessa extraordinária cantora cuja voz nos veio da Bahia,
para transmitir uma mensagem de amor e poesia como raramente acontece.
Seu canto é livre e puro, mas não de uma pureza casta e desumana:
é o encontro do céu com a terra, um casamento do mundo com o infinito.
Nela o timbre crestado, com uma realidade de juta, é um dos componentes mais
humanos;
mas seu canto se eleva mais alto, lírico, embriagado de espaço, cravejado de
estrelas.
Maria Bethânia canta com a liberdade dos pássaros para fora e para cima,
mas sem perda dessa intimidade fundamental à comunicação.
A bênção Maria Bethânia.
(Vinícius de Moraes, em 3 de dezembro de 1965)
O preto indicado no desenho não é puro, contém em sua composição a cor azul. Na barra do
vestido há uma Lua minguante. O símbolo da Lua, frequentemente associado a elementos místicos,
realça nossa percepção sobre a escolha da cor, seu pano de fundo. O astro lunar é colocado em oposição
ao solar por refletí-lo e ser inconstante. O Sol e a Lua estão também presentes na obra de Império criada
para a fachada do teatro, capa do programa e disco do espetáculo, em que Maria Bethânia aparece
como a Lua, enquanto Caetano Veloso, seu irmão, está dentro do Sol (Figura 2), como opostos
complementares.
A Lua, cujo disco aparente é do mesmo tamanho do Sol, tem na astrologia um papel
especialmente importante. Simboliza o princípio passivo, mas fecundo, a noite, a
umidade, o subconsciente, a imaginação, o psiquismo, o sonho, a receptividade, a
mulher e tudo que é instável, transitório e influenciável, por analogia com seu papel
de refletor da luz solar. [...]É a parte do primitivo que dormita em nós, vivaz ainda no
sono, nos sonhos, nas fantasias, na imaginação, e que modela nossa sensibilidade
profunda. [...] A Lua é também o símbolo do sonho e do inconsciente, bem como dos
valores noturnos. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 561 et passim)
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Figura 2 - Desenho de Flávio Império, Maria Bethânia como a Lua e Caetano Veloso como o Sol e, simultaneamente, um
olho. Fonte: Acervo Flávio Império.
Michel Pastoureau afirma que "como qualquer fator social uma cor só tem significado na relação
que estebelece com as outras. Só assim transparece seu sentido completo, seja do ponto de vista social,
artístico ou simbólico." (2011, p. 10). A cor preta é associado ao luto, desde o século II antes de Cristo,
quando "o preto começa a aparecer nas roupas dos magistrados que participam dos funerais, usando
uma toga de cor escura na ocasião. É o início da prática de usar roupas em sinal de luto" (Ibidem, p. 33)
e, como sabemos, a ditadura fez muitas vítimas e calou muitas vozes. É importante ressaltar também
que Maria Bethânia usou, pela última vez a cor em cena, por motivos religiosos15. O preto é ambíguo.
No Egito Antigo assim como na África do Norte, a cor é originalmente o símbolo da fecundidade, a cor
da terra fértil e das nuvens inchadas de chuva (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 741). Aponta
para a vida, na "busca da luz infinita", ao mesmo tempo em que é luto, a renúncia da vaidade.
"[...] Sabe como eu conheci a Mãe Menininha? Através do Vinícius de Moraes. Foi ele que me apresentou a ela, uma das
maiores alegrias da minha vida. Paixão, paixão, paixão! Eu, baiana, não sabia de nada, tanto que encerrava Rosa dos Ventos
vestida de preto da cabeça aos pés. Foi a primeira coisa que o candomblé me proibiu. O preto não combina com os meus
orixás." Trecho de entrevista de Maria Bethânia concedida à Revista Playboy em 1996.
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A Lua é também o primeiro morto. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está
como morta, desapareceu... Depois reaparece e cresce em brilho. Da mesma forma,
considera-se que os mortos adquirem uma nova modalidade de existência. A Lua é
para o homem o símbolo desta passagem da vida à morte e da morte à vida. (Ibidem,
p.561)
Tens a vontade e ela é livre16
Acreditamos que o espetáculo percorre em sua trajetória, um caminho cíclico, em forma de
mandala, com seu início no caos, vazio, retomado no último ato, com o traje negro. Através da
compreensão da sobreposição de signos e símbolos, o espetáculo se revela iniciático para os artistas consequentemente catártico para os espectadores. O preto é "a cor da Substância universal, Prakriti da
prima matéria, da indiferenciação primordial, do caos original" (Ibidem, p. 742) na escola oriental,
estudada por Fauzi Arap através das teorias de I-ching e Tao.
Durante um período bastante longo, o negro matricial das origens permanece
associado à simbólica de certos lugares, como as cavernas e todos os lugares
naturais que parecem comunicar-se com as entranhas da terra: antros, grutas,
abismos, galerias subterrâneas ou rupestres. Esses lugares, se bem que privados de
luz, são cadinhos férteis, locais de nascimento ou de metamorfose, receptáculos de
energia, e por essa mesma razão são espaços sagrados que provavelmente
constituíram os locais mais antigos de culto da humanidade. Do período Paleolítico
até as épocas históricas, elas abrigaram quase todas as cerimônias mágicas ou
religiosas. Mais tarde, as grutas e cavernas tornaram-se os locais favoritos de
nascimento dos deuses e dos heróis, em seguida os locais de refúgio ou de
metamorfose: as pessoas dirigem-se para lá a fim de esconder-se, de retomar
energias, realizar este ou aquele rito de passagem. Posteriormente, talvez sob
influência das mitologias nórdicas, as florestas se sucederam às cavernas, mas as
pessoas continuaram a fazer dos espaços escuros, ou privados de luz, lugares
sagrados. (PASTOUREAU, 2011, p. 20)
A análise, seja de trajes de cena, roteiro ou fragmentos de texto, pode e deve se apoiar em todos
os pilares que sustentam o objeto e não serem feitas de forma isolada. O alcance proporcionado pela
ampliação da observação analítica em conjunto com a psicanálise é para nós fundamental,
principalmente porque acreditamos que a única forma de haver aproximação verdadeira com a obra dos
criadores, é a compreesão de suas crenças, motivações e referências já que, segundo Arap, cada
homem acaba cercado pelo que acredita; é senhor absoluto do que cria (1998).
"Tens algo do fogo/ tens algo do ar/ tens algo da terra/ tens algo dos animais/ tens a vontade e ela é livre" Poema de autor desconhecido,
utilizado por Flávio Império em 1973 como mote do espetáculo Labirinto: o balanço da vida, e para sua obra O Homem nu.
16
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Ainda que quarenta e quatro anos separem a estréia de Rosa dos Ventos do presente estudo,
pedimos passagem a Chronos, para transpor as barreiras temporais e nos cercar das crenças e,
consequentemente, das criações de Lispector, Império, Arap e Maria Bethânia. Queremos "ver o que os
não iniciados não veêm" (COLLI Apud AZEVEDO, 2010), assim como aqueles que são possuídos por
Dioniso, o deus estrangeiro, que conduz à desordem, à embriaguez, ao mesmo tempo em que liberta e
faz vibrar; o estranho familiar - Das Unheimlich.
Clarice Lispector questiona e mostra o caminho do aprofundamento quando afirma "quero pintar
uma tela branca. Como se faz? É a coisa mais difícil do mundo. A nudez. O número zero. Como atingílos? Só chegando, suponho, ao núcleo último da pessoa". Em sincronia, Manoel de Barros diz que
"ninguém é pai de um poema sem morrer" e "poesia designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras, imagens, cores, sons etc. Geralmente feitos por crianças, pessoas esquisitas,
loucos e bêbados". Caminho esse que procuramos trilhar na compreensão do espetáculo através da
profícua união de saberes.
É como doido que entro pela vida
que tantas vezes não tem porta
e como doido compreendo o que
é perigoso compreender.
(Clarice Lispector)
Referências Bibliográficas
ARAP, Fauzi. Sobre a Loucura. São Paulo, [1998].
___________. Mare Nostrum: Sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Senac, 1998.
AZEVEDO, Cristiane Almeida. O delirante Dioniso: o divino da vida a partir do trágico. Rio de Janeiro:
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