POR UMA VIDA ACADÊMICA NÃO FASCISTA Lilia Ferreira Lobo[1] ... que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem: “é uma ciência?” Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem “menorizar” quando dizem: “eu que formulo este discurso, enuncio um discurso e sou cientista?” (Foucault, 2000 b, p. 172) A respeito do livro Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari, publicado no início dos anos 70, Michel Foucault apresenta-nos um breve e belo artigo denominado Anti-Édipo: Uma introdução à vida não fascista (1991), no que diz ser, curiosamente, uma modesta homenagem a São Francisco de Salles que escreveu no século XVII a Introdução à vida devota. Nele, Foucault substitui a devoção, não apenas pelo afeto e admiração que dedica à obra daqueles dois grandes autores, mas também pela glorificação de uma arte de viver contrária a todas as formas de fascismo (Foucault In Dossier Deleuze, 1991p. 83): um livro ético onde se encontram as armadilhas apropriadas para a caça de todas as formas de fascismo desde aquelas colossais, que nos circundam e nos comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vida cotidianas. (Idem) Quando me lembrei deste pequeno texto de Foucault achei que ele resumia com mais clareza e qualidade literária tudo o que eu gostaria de dizer sobre a coletânia reunida neste livro. Dizer mais alguma coisa seria tarefa impossível... Talvez seja, se se supõe que Foucault escreve para um público em geral. Não, ele não se dirige a um leitor qualquer mas àqueles que podem e querem utiliza-lo ( Dit et Ecrit, vol.II, p. 523): do psiquiatra ao enfermeiro e o doente mental; do juiz ao carcereiro e o presidiário, para dar apenas alguns exemplos. Justamente aqueles que queiram fazer de um escrito de Foucault o que ele próprio fez com Nietzsche: faze-lo ranger, gritar (2000 b, p. 143), como uma máquina em funcionamento. Além disso, como a crítica genealógica é sempre fragmentária e inacabada, a lembrança daquele pequeno texto não acontecera em vão. Tratava-se, portanto, de pontua-lo num espaço específico de luta e evidenciar o problema que está em jogo na proposta de insurreição presente nas vozes dos autores deste livro. Nos longos anos de vida na universidade tenho ouvido inúmeras vezes comentários desairosos, tanto de alunos quanto de professores, a respeito da “contaminação espúria” da teoria pela prática política. Eles em geral desqualificam os efeitos de tal mistura como uma saber menor, indigno de figurar no panteon do verdadeiro conhecimento, de um “conhecimento em si”. Desse modo, para nos aproximarmos da essência do conhecimento seria necessário apaziguar os instintos, fugir das lutas e das relações de poder. (Foucault, 1974) Para esta perspectiva vigente na academia, conhecimento e militância são, portanto, incompatíveis graças a um tipo de racionalidade que impõe oposições dicotômicas entre teoria e prática, e ciência e ideologia. Estas oposições, nossas velhas conhecidas nos meios acadêmicos, manifestam-se hoje em dia nas vanguardas dos chamados “núcleos de excelência” e ditam normas que hierarquizam saberes, desqualificando outros considerados parciais, descontínuos, inconclusos, distantes das pretensões formais e totalizadores de uma teoria. Em primeiro lugar, a separação entre teoria e prática, propondo relações de semelhança e adequação, permitiria a aplicação da teoria e esta uma explicação totalizadora da prática. Ora, uma teoria é sempre local e as relações entre teoria e prática são sempre pontuais e fragmentadas, não havendo qualquer garantia de semelhança na aplicabilidade. Por outro lado, as práticas se constituem no conjunto de revezamentos com as teorias, e estas nos revezamentos das práticas que lhes concernem. (Deleuze, In Foucault, 2000 b) Trata-se assim de multiplicidades ao mesmo tempo teóricas e práticas e seus efeitos moleculares de transformação. Sob este ponto de vista, as teorias são nada mais que instrumentos de intervenção que se chocam contra ou meramente reforçam pontos de poder (...). Se se chocam, elas são na realidade o efeito localizado das lutas, funcionam como instrumentos de combate, de desmontagens das máquinas instituídas. (Lobo, 1997; Foucault, 2000 b) Em segundo lugar, a separação entre ideologia e ciência pretende resguardar esta última dos descaminhos produzidos pelos interesses das práticas do senso comum. E, mesmo admitindo que o conhecimento científico é historicamente datado, ele foi considerado como “descoberta” de uma racionalidade própria do humano, o que elevou à categoria de julgamento de verdade de todo saber que lhe antecedeu ou que lhe é contemporâneo. Como nos diz Foucault, utilizando-se de Nietzsche, se o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana, e não há no apetite humano (...) algo como um germe do conhecimento (1974, p.12), ele não é uma descoberta, mas uma invenção. E se não há este apetite pelo conhecimento, só poderá haver entre o conhecimento e as coisas não uma relação de adequação ou apaziguamento, mas uma relação de força, de poder, de dominação. (Idem, p. 14) Por isso, as separações entre ideologia e ciência não são da ordem do conhecimento e se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreende-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas dos políticos. (Idem, p.17, grifo meu), afirma Foucault juntando sua voz a de Nietzsche. Eis, portanto, as linhas de desmontagens de nossos fascismos acadêmicos de cada dia. Sobre isso Guattari pergunta: o que assegura a passagem das grandes entidades fascistas [ele se refere às fórmulas de Stalin, Hitler e Mussolini] à molecularização do fascismo a que assistimos hoje? (1987, p.187) E em seguida, dá-nos uma pista do que hoje nos acontece: é pelo fato de as máquinas técnicas e sistemas econômicos serem cada vez mais desterritorializados, que estão em condições de liberar fluxos de desejo cada vez maiores; ou, mais exatamente, é pelo fato de seu modo de produção ser forçado a operar esta liberação, que as formas de repressão também são levadas a se molecularizarem. Uma simples repressão maciça, global, cega não é mais suficiente. (Idem, p.188) Será contra estas formas moleculares de sujeição que o projeto genealógico desta coletânia se insurge, ou seja: a inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para liberar da sujeição os saberes históricos, isto é, torna-los capazes de oposição e de luta contra a coerção do discurso teórico, unitário, formal, científico. (Foucault, 2000 b, p. 172) Pode-se dizer que os textos aqui apresentados se chocam tanto contra os burocratas da verdade quanto os profetas da revolução - as formas mais adaptadas do totalitarismo capitalista da globalização (a que Guattari se referia), aqueles que se arrogam o direito de falar sobre e no lugar de outrem. Um pequeno texto de duas autoras deste livro resume com mais clareza muito do que tentei passar até agora para o leitor: ... ao pesquisarmos os processos do Juizado, encontrados no Arquivo Nacional, nos deparamos com o fato de que nos mesmos somente apareciam as falas oficiais (juizes, comissários e demais técnicos). Neles as vozes dos diferentes personagens (criança, adolescente, pai, mãe, vizinhos etc) não apareciam. E mais adiante: Se as vozes das margens, classificadas como desviantes, foram silenciadas e anuladas, se seus embates forma retirados do palco da história, como ver a potência e a multiplicidade de suas invenções, interferências, combates? Não seria este o desafio da pesquisa genealógica?· Sim, o desafio de provocar visibilidade para novas formas de mortificação do bio-poder: seja a dos genocídios lentos ou brutais da atualidade, seja nas mortes em vida por exclusão ou abandono. (Foucault, 2000 a) Aquelas vozes que não aprecem nos processos foram mortificadas em vida pelos especialistas e deixaram, no entanto, suas marcas sutis na apropriação a que foram submetidas para a constituição de um domínio de saber ou um saber de domínio. Não se trata aqui de nenhuma renúncia cética da ciência - o irracionalismo estreito ou o relativismo absoluto – mas de questionar os modos de circulação dos saberes, as suas relações com o poder e as mortificações que as identidades incutem nos chamados especialistas e em todos nós. Ou, como nos indica Foucault: temos que promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto durante séculos. (Foucault In Dreyfus & Rabinow, 1982) Para finalizar, volto ao pequeno texto de Foucault que usei no início, dizendo que o objetivo principal deste livro é o de intensificar o pensamento, usando como lema contra os microfascismos que amargam nossa vida diária: Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento como se ele não fosse senão pura especulação.Utilize a prática política como um intensificador do pensamento e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política. (Foucault In Dossier Deleuze1991, p.84) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DREYFUS, Hubert L. & RABINOW, Paul. Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics – with as Afterword by Michel Foucault. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. ESCOBAR, Carlos Henrique (org.). Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon. 1991. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Cadernos da PUC, 1974. _________________ Dit et ecrit. Vol. II. Paris: Gallimard, 1994. _________________ Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 2000 a. _________________ Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000 b. GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 3a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. LOBO, Lilia Ferreira. Um papel para o psicólogo hoje? Revista do Departamento de Psicologia – UFF, vol. 9, N 2 & 3 . 1997, pp. 83 – 89. [1] Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense · Trata-se do capítulo de Cecília M. B. Coimbra e Cláudia Abbês Baeta Neves Potentes misturas, estranhas poeiras: desassossego de uma pesquisa.