Livro 8 Sob um guarda-chuva As luzes caíram trêmulas, na calçada. E escorrem líquidas. São luzes de todas as cores, em pequenos naufrágios sobre o asfalto. A terra pode mais que o céu, quando a chuva me molha a memória, me fecunda, e eu sinto peixes e orquídeas no corpo. Mas enquanto a chuva cai, torrencial, e o vento a arrasta pelos cabelos de prata, fico pensando, sob o meu guarda-chuva. Se eu pudesse gemer como este vento, como diria o poeta. . . E abro o pequeno céu com asa de morcego mas chove em mim pelo vão de uma estrela. Penso que é absurdo comparar com a chuva as nossas lágrimas (isso é demais, ó poeta). Lágrimas quentes, que nos queimam os olhos, e caem por dentro sobre ocultas feridas, com este choro sem sal. A chuva me dá, sempre, uma sensação de raiz. Tenho a impressão de estar coberto de folhas verdes, espirrando água. O mar estronda, carregado de prata e peixes. E eu logo penso em meu pai, lavrador. Roupa cheirando chuva, o cabelo escorrido na testa. Os sapatos no barro. A chuva, para ele, era uma festa com arco-íris ou sem arco-íris. Além disso, os problemas municipais já esquecidos e os nacionais, também, renascem, sob a chuva. Os automóveis gritam, pedindo passagem, uns roucos, outros tocando um começo de música. Discutem prefeitura e tarde escura a eterna questão do trânsito. Um trovão quis contar-me um violento segredo mas soletrou, apenas. Que monstruosa verdade não terá ele pretendido dizer-me? Pássaro branco sob o guarda-chuva em exercício de ficar parado sinto-me preso entre os quatro pontos cardeais desta esquina pingando horas. Nada mais falso do que um boletim meteorológico. 3 Deus rabiscou no espaço uma palavra de fogo que não pude entender, por não saber hebraico, mas que deve estar escrita em alguma passagem da Bíblia. Onde terá caído esta faísca elétrica? Ganhou da lua e da minha esperança. Onde estarão os pequeninos barcos de papel de minha infância? Estarão jogados, como objetos já sem uso no cemitério dos navios mortos? Penso na seca do Nordeste no país das fatalidades cíclicas e dos contrastes entre a rosa do sol e o Dilúvio. A rosa do sol escondida no abismo do mapa inteiramente cor de cinza. A sensação da ausência, a árvore da chuva desfeita em galhos torrenciais. E eu, aqui, a afogar-me em água e, lá, o Nordeste de rosto enxuto. 2 O céu me atrai, porém a terra — com este cheiro de chuva — me dá uma sensação de raiz. O que vale, pra mim, é que a casinha pequenina onde nasceu o nosso amor, tem um coqueiro ao lado. E se Franklin inventou pára-raios de luxo para os arranha-céus, Deus botou um coqueiro para servir de pára-raios junto à casa do pobre. Dia sem céu. (Nisto um transeunte saiu correndo, atrás do seu chapéu)