Relações de Gênero: Uma Categoria Introduzida ao Modelo Tridimensional de Desenvolvimento de empresa familiar Autoria: Filipe Fernandes de Pinho, Luana Sarantopoulos Bergamaschi, Joyce de Souza Cunha Melo Resumo O presente trabalho se propôs a analisar as limitações do Modelo Tridimensional de Desenvolvimento de empresas familiares quando aplicado em uma organização do setor de beneficiamento e comercialização de rochas ornamentais localizada no interior do Espírito Santo. Como propõem alguns autores da academia (CAPELÃO, 2000; GOFFEE, 1996; GERSICK et al, 1997; DAVEL et al, 2000; CAPPELLE et al, 2003), apesar de este modelo proporcionar avanços significativos na literatura contemporânea, algumas insuficiências e inconsistências indicam a persistência de um hiato entre sua teoria e a prática nas organizações familiares. Nesse sentido, embora este estudo de caso tenha adotado uma abordagem do ponto de vista gerencial, buscou-se um complemento da área de estudos organizacionais na perspectiva das ciências sociais, através do estudo das relações de gênero na organização pesquisada, a fim de explicar possíveis deficiências, propor a inserção de uma nova categoria no modelo, e claro, apontar algumas saídas para os novos estudos. Como técnica de coleta de dados, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, sendo realizada análise de conteúdo destes dados. A análise de dados centrou-se na análise da empresa à luz do Modelo Tridimensional de Desenvolvimento ao longo de sua existência e das relações de gênero permeadas no seu interior. Introdução Apesar da vulnerabilidade econômica, alta carga tributária e uma enorme porcentagem de fechamento de empresas em seus dois primeiros anos de funcionamento vivenciados no país, muitas pessoas se arriscam em iniciar seu próprio negócio. Grande parte dessas empresas formadas é familiar e possui significativa representatividade na economia nacional. Em se tratando de arcabouço teórico, o conteúdo sobre empresas familiares avança pouco de forma qualitativa, apesar da confirmação de um número crescente de publicações relativas ao tema. A estrutura social produtiva brasileira vem sofrendo constantes transformações, e muito tem se discutido sobre a sobrevivência das empresas familiares, em plena era da globalização e competição entre mercados. Mas um ponto importante que precisa ser abordado é: o que define uma empresa familiar? Como classificar uma certa empresa como familiar ou não-familiar? Muitas vezes, as fronteiras entre empresas familiares e não-familiares se tornam difusas e pouco definidas. A literatura especializada no tema opta por recorrer a algumas características mais marcantes para a identificação de empresas familiares (CAPELÃO, 2000). Apesar de já discutidas por alguns autores (CAPPELE, 2003; CAPELÃO, 2000; CORREA, 2004), outra questão que merece destaque é a relação de gênero, desta vez, abordada no contexto organizacional e fortemente atrelada às questões familiares. A partir do Modelo Tridimensional proposto por Gersick et al. (1997), foi realizado um estudo de caso em uma empresa nacional no setor de mármores e granitos, sob a ótica do desenvolvimento da empresa, bem como das relações de gênero na estrutura da empresa familiar, no contexto brasileiro. O presente artigo pretende contribuir para a literatura relativa ao tema, bem como servir de fonte de comparação, através de conclusões obtidas nesse trabalho, com a das principais publicações referentes ao tema. 1 A Empresa Familiar Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as empresas familiares não são representadas apenas por pequenas e médias empresas, grandes organizações de âmbito internacional também podem assumir essa característica. Algumas das mais importantes firmas do mundo são empresas familiares, tais como a Michelin na França, a Tetrapark e a Ikea na Suíça, a Lego na Dinamarca, a Fiat, a Olivetti e a Benetton na Itália, a C&A e a Heineken na Holanda, a Mars & Spencer, a Guinnes na Inglaterra, entre outras. Esse tipo de empresa representa mais de 80% dos negócios nos Estados Unidos, Alemanha e Áustria, e é, atualmente, a fonte de empregos que mais cresce na América do Norte e no oeste europeu (VRIES, 1996). No Brasil, dos 300 maiores grupos de empresas privadas nacionais, 287 são familiares, empregando, aproximadamente, um milhão e seiscentos mil funcionários. Entre eles, figuram nomes expressivos como Itaú, Bradesco, Pão de Açúcar, Rede Globo, Votorantim, KlaJosé, Mesbla, Artex, Aracruz, entre outros (BETHLEM, 1994). Bernhoeft (1987) cita a grande importância que tem a empresa familiar para o país em diversos campos. Sob a perspectiva social, a empresa familiar representa uma das maiores geradoras de emprego com uma descentralização dos pólos regionais de desenvolvimento. E conseqüentemente, sob um prisma econômico, produz um aumento do mercado consumidor, bem como melhor distribuição de renda, através de seus mecanismos de demanda de empregos e oferta de produtos. No entanto, primeiramente, é necessário identificar as principais características desse tipo de empresa. Em despeito à vasta bibliografia referente ao tema, percebe-se uma certa divergência de conceitos e abordagens, o que implica em distintas definições ou classificações das empresas como familiares, dificultando também os estudos comparativos entre elas. Segundo CAPELÃO (2000), são consideradas familiares as empresas ligadas a uma família há pelo menos duas gerações, nas quais as ligações de parentesco exerçam influência sobre as suas diretrizes empresariais. Deve existir identificação entre os valores institucionais da empresa e os da família, seja por meio de comunicados formais dentro da empresa ou pelas próprias tradições dentro da organização. Muitos outros autores realizaram estudos sobre as empresas familiares. CHRISTENSEN (1953), um dos primeiros autores a realizar esses estudos, afirmou que tais empresas caracterizam-se pelas peculiaridades de gestão, onde estão diretamente vinculados o exercício das funções principais, a gestão e a propriedade. Para DONNELLEY (1964), entretanto, a empresa familiar é aquela que está identificada com os valores de uma família, resultando daí uma influência recíproca, tanto na política geral da firma, como nos interesses e objetivos da família. Assim, para o autor, a empresa familiar só adquire este título depois de uma sucessão. Nesse sentido, Lodi (1978), salienta que o conceito de empresa familiar é concebido geralmente com a segunda geração de dirigentes, seja porque o fundador pretende abrir caminho para eles entre os seus antigos colaboradores, ou porque os futuros sucessores precisam criar uma ideologia que justifique a ascensão ao poder. Frente a essa pluralidade de conceitos, torna-se inexorável a questão da complexidade que envolve as relações na empresas familiares, desde sua concepção e denominação. Para um melhor entendimento, será descrito a seguir considerações acerca do Modelo Tridimensional de desenvolvimento de empresas familiares. 2 O Modelo Tridimensional de Desenvolvimento de Empresas Familiares São muitas as teorias sobre empresas familiares, existem estudos no campo da estrutura social, das forças e fraquezas, metáforas de conceitos importados de outros campos, dentre outros. Entretanto, nota-se a predominância da abordagem que concebe a transformação organizacional mediante aos processos de desenvolvimento e de evolução. Atualmente, dentro dessa abordagem, o “Modelo de Três Círculos da Empresa Familiar” de GERSICK et al (1997), tem sido usado como forma representativa de se abordar as mudanças nas empresas familiares. Trata-se de um modelo tridimensional de desenvolvimento que busca avançar na compreensão das empresas, considerando de maneira sistêmica três dimensões ou interdependentes e superpostas: a propriedade, a família e a empresa/gestão. Cada um dos três círculos possui um desenvolvimento próprio que evolui em uma seqüência de estágios, como afirmam os próprios autores: “À medida que uma empresa familiar se desloca para um novo estágio em qualquer das dimensões, assume uma nova forma com novas características” (GERSICK et al 1997). Esse modelo ajuda a compreender como o papel organizacional é influenciado pela posição ou posições que o indivíduo ocupa nos setores circulares determinados. Entretanto, apesar da concepção de desenvolvimento supor uma certa direção, os autores reconhecem que o curso não é “uma via de mão única”, podendo passar rápido por alguns estágios, estagnar em outros, retroagir ou até mesmo estar em vários estágios simultaneamente (DAVEL SILVA e FISCHER, 2000). Esse modelo percebe o eixo de desenvolvimento da propriedade, que é a primeira dimensão, dividido em três estágios, que são: Proprietário-controlador (a maior parte das empresas familiares começa dessa forma, isto é com um único proprietário), Sociedade entre Irmãos (muitas empresas passam com o tempo para essa nova fase) até o Consórcio de Primos. Este eixo sugere que as empresas começam com um único proprietário, movendo-se com o tempo para uma sociedade entre irmãos e depois para um consórcio de primos. Já a segunda dimensão do modelo descreve a evolução da família pelo envelhecimento biológico de seus membros, constituindo uma evolução que dificilmente retroage nos seus estágios, diferentemente dos outros dois eixos. Trata-se do desenvolvimento estrutural e interpessoal da família por meio de aspectos como casamento, paternidade, relacionamentos entre irmãos e adultos, cunhados e sogros, padrões de comunicação e papéis familiares. A dimensão do desenvolvimento da família divide-se em quatro fases: a Jovem Família Empresária; a Entrada da Família na Empresa, Família que Trabalha em Conjunto e Passagem do Bastão. A terceira dimensão, o desenvolvimento da empresa, descreve a sua evolução ao longo do tempo. O primeiro estágio é o Início, seguindo-se da Expansão/Formalização e chegando até Maturidade. No modelo de GERSICK et al (1997), a combinação dos vários estágios de desenvolvimento da família, da propriedade e da empresa gera quatro tipos clássicos de empresas familiares. O primeiro deles é a empresa de primeira geração, dirigida pelo fundador, de propriedade de um único indivíduo; o segundo é a Entrada na Empresa, em que a propriedade pertence a uma sociedade entre irmãos e a empresa passa por mudanças rápidas; o terceiro tipo é o Trabalho Conjunto, caracterizado pelo Consócio entre irmãos; e o quarto tipo é a empresa no estágio da passagem do bastão, que situa-se muito próximo de uma transição. A mudança de um tipo para outro pode ser provocado por algum evento da dimensão propriedade, família ou empresa. Há vários tipos de eventos provocadores, influenciando uma passagem de um tipo clássico para o outro de forma súbita ou gradual. Por exemplo, a abertura de um novo mercado, a conquista de novos clientes, mudanças na participação acionária e 3 relacionamentos familiares podem lançar a organização na trilha do desenvolvimento. Outros fatores também localizados nos eixos da propriedade, família e empresa podem funcionar para retardar o crescimento organizacional. O Modelo Tridimensional do desenvolvimento implicou num avanço significativo da bibliografia concernente às empresas familiares, principalmente com a inserção do eixo da propriedade para análise do ciclo evolutivo das empresas familiares, uma vez que a academia reconhecia a interelação e combinação apenas dos subsistemas família e gestão. Segundo Davel e Colbari (2000), abordagens como essa, baseadas no desenvolvimento, apresentam oportunidades variadas de aprimorar a compreensão sobre as organizações familiares, sendo úteis ao entendimento das mudanças que ocorrem na estrutura e nos processos organizacionais. Além disso, a ênfase em estágios evolutivos favorece uma visão historicamente contextualizada, permitindo situar as mudanças no espaço e no tempo. Entretanto, este modelo teórico não é capaz de abarcar e compreender todos os modelos de empresas familiares, apresentando deficiências especialmente no que tange ao eixo família. Assim, em alguns casos, encontra-se uma análise incompleta ou inconsistente acerca da maneira como a relação familiar afeta a gestão da empresa e como as relações no âmbito da empresa afetam as relações familiares. Este panorama pode ser explicado pela pressuposição consensual de família nuclear, adotada nos estudos da ciência administrativa, que contraria algumas pesquisas, como mostra Eccel, Cavedon e Craide (2005). Estas autoras provaram que a definição de família nuclear, utilizada pela classe média, foi incapaz de envolver a estrutura familiar analisada em uma lancheria no Rio Grande do Sul. Além disso, Davel, Silva e Fischer (2000), constataram a formação de estágios de desenvolvimento híbridos, que se distanciavam e se singularizavam com relação ao modelo proposto por Gersick et al (1997), exigindo abordagens teóricas mais individualizantes. Dessa forma, os estudos requerem uma maior muldisciplinaridade a fim de diminuir os hiatos entre a teoria e a prática das empresas familiares e enriquecer a bibliografia, como defendem Davel e Colbari (2000). Logo, uma mescla de duas abordagens, uma do ponto de vista gerencial e a outra mais ligada à área de estudos organizacionais na perspectiva das ciências sociais, poderia implicar em um avanço teórico relevante sobre o tema. Nesse sentido, a abordagem sociológica do ciclo de vida familiar pode contribuir para se pensar as empresas familiares, já que inclui uma gama mais detalhada de variáveis e níveis de análise que impactam no desenvolvimento (DAVEL, SILVA e FISCHER, 2000). A questão do gênero, excluída da análise proposta por esse modelo, mostra-se um importante ponto para entender a complexidade das relações que envolvem todo o âmbito da empresa familiar. De acordo com o contexto atual, frente a todas as polêmicas que envolvem as relações subjetivas e complexas dentro de uma organização, não é viável julgar essa relações de acordo com a lógica cartesiana polarizada de masculino e feminino, em que o homem representa o “dominador” enquanto a mulher desempenha o papel de “dominada”. As relações de gênero são percebidas como mecanismos e práticas sociais que são instituídos e instituem ações e comportamentos (CAPELLE et al, 2003). Em princípio uma questão ignorada em muitos estudos relativos ao tema empresa familiar, nesse trabalho é atribuída uma atenção especial e através dela uma ascensão de valor na ordem de importância nas análises que refletem a realidade nas organizações familiares. E vai além, é proposta pelo trabalho uma inclusão da categoria Gênero ao Modelo Tridimensional, para que se entenda, de maneira mais abrangente, as relações que comandam e influenciam a gestão nas empresas familiares. 4 A questão do gênero nas organizações familiares Nas sociedades humanas, a discriminação pode ser considerada uma prática universal, de forma que, onde há diferenças, existem também indivíduos que são prejudicados por pertencerem a grupos que fogem às normas determinadas (SOARES, 2000). Grupos de pessoas são excluídos de seus direitos de cidadania pelo fato de pertencerem à determinada classe social ou religião, por serem de determinada raça ou representarem determinado gênero, podendo ser, também, o somatório de diferentes tipos de dominação (ROSO et al., 2002). Estes grupos excluídos representam as “minorias” presentes em diversas sociedades e, como no estudo de Roso et al. (2002) não são definidas em relação ao valor numérico, mas sim em termos de relações de poder. Segundo os mesmos autores, “(...) minorias podem ser definidas como segmentos das sociedades que possuem traços culturais ou físicos específicos que são desvalorizados e não inseridos na cultura da maioria, gerando um processo de exclusão e discriminação”. As representações sociais construídas sobre este termo, porém, não são naturalmente conseqüentes destas características culturais e físicas, mas sim cercada por relações político-econômicas, variando de acordo com a cultura e os diferentes contextos históricos. Esses processos de discriminação têm caráter histórico e, dentre esse grupo de discriminados, as mulheres compõem um grupo importante. O termo gênero representa a maneira como a diferença sexual entre homens e mulheres é interpretada e organizada nas diferentes culturas (YANNOULAS, 2002). É construído a partir da interação entre as pessoas e apresenta a possibilidade de mudança na relação entre homens e mulheres, ao longo do tempo, diferentemente do conceito de sexo, que apresenta estabilidade no tempo. Estas representações construídas sobre um gênero só existirão em relação ao outro, bem como as relações de poder e de subordinação. A intervenção de gênero deve ocorrer não só sobre a parte mais ‘fraca’ – as mulheres – passando também pela sensibilização dos homens, bem como a mudança de sua mentalidade, superando preconceitos como a que as mulheres não são aptas a desempenhar certos cargos ou chefias (ARAÚJO, 2003). No Brasil, estas diferenças referem-se não a uma minoria da população, ou a grupos específicos, mas sim a grande parte da população – segundo dados da PNAD 2001, as mulheres compõe 42% da População Economicamente Ativa. Ao analisar as desigualdades existentes entre homens e mulheres e a sua natureza, pode-se afirmar que ocorrem em praticamente todas as sociedades (ARAÚJO, 2003) e que algumas mulheres vivenciam uma condição de dupla ou tripla discriminação, marcada pela sua categoria feminina, de trabalhadora e de raça ou etnia (SUPLICY, 2002). Neste contexto, inserem-se, por exemplo, a população negra em geral, em que as mulheres são mais vulneráveis (HADDAD e GRACIANO, 2004). Segundo Araújo (2003), a base deste processo é histórica (certas desvantagens que marcaram o início das relações sociais conferiram o caráter universal a tal discriminação) e refletem na situação sócio-econômica (saúde, rendimento e educação) e na posição (ou grau de autonomia e controle de suas vidas) das mulheres (ROQUE, 2004). No Brasil, desde o século XVI, a participação da mulher na economia brasileira é bastante significativa, apesar de ter ocupado tarefas menos reconhecidas e menos recompensadas. Seu trabalho não era individualizado, mas sim considerado como integrante de um grupo, dirigido pelo chefe da família, que recebia o pagamento pelo trabalho realizado por toda a unidade familiar (SUPLICY, 2002). Na medida em que as famílias se transferiram para as cidades, o trabalho feminino passou a ser remunerado, mas submetido à exploração e dominação, visivelmente identificadas pelos valores salariais mais baixos, em relação aos homens. Elas trabalhavam preferencialmente em fábricas de fiação e tecelagem. Ainda segundo o autor, com o avanço da industrialização, a 5 situação social destas mulheres passou, paulatinamente, para “cabeças de família”, identificandose, cada vez mais, mulheres responsáveis pelo sustento da família, com pouca ou nenhuma ajuda de um parceiro. A articulação entre as variáveis raça, gênero e classe social definiu um perfil para estas mulheres chefes de família caracterizado, em grande parte, por mulheres negras, em condição de extrema pobreza e inseridas em um contexto de vida desfavorável à sua entrada e permanência no mercado de trabalho, como o baixo nível de escolaridade (MACEDO, 2003). Além da assimetria de gênero, o mercado comporta diferenciações de raça/etnia, idade e ambiente urbano/rural. Macedo (2003) afirma que, no que se refere à dimensão de gênero, a força de trabalho feminina é utilizada em benefício da acumulação capitalista de diversas maneiras. Uma delas diz respeito à diferenciação de remuneração entre homens e mulheres, em que a renda gerada pela mulher é considerada suplementar ao orçamento doméstico e ao fato de algumas habilidades femininas (impostas por processos de socialização e educação diferenciados, não naturais) serem utilizados em serviços que exijam minuciosidade e paciência e que são extremamente rotineiros. Além da diferenciação de remuneração entre homens e mulheres, outra forma de discriminação do grupo feminino diz respeito à dificuldade de ascensão profissional, caracterizada por aspectos socioculturais nem sempre perceptíveis, que não se relacionam à qualificação e competência da mulher, mas sim às diferenciações de gênero (CAPPELLE et al, 2003a). Um exemplo seria a crença de que os homens seriam mais aptos para ocupar cargos centrais nas organizações, constituindo o fenômeno do teto de vidro, analisado por Steil (1997). Segundo a autora, esta barreira, apesar de sutil, é suficientemente forte a ponto de impossibilitar a ascensão das mulheres para níveis mais altos da hierarquia das organizações. Para transpor o teto de vidro, as mulheres precisam criar uma nova identidade adaptada às exigências organizacionais específicas (CAPPELLE et al. 2003a). No caso das organizações familiares, percebe-se que para serem analisadas, é necessário se conhecer a cultura local e o modo de viver e organizar-se de comunidades, entendendo as organizações de origem familiar como estruturadoras do contexto em que atuam, reflexivas da cultura local e construtoras desta mesma cultura (FISCHER, 2000). Dentro dos fatores culturais, encontra-se a questão do gênero, que segundo Davel e Colbari (2000), é timidamente abordada pela literatura. Um exemplo original ressaltado pelos autores de um empreendimento que abrange aspectos de gênero e de etnia são as microempresas pertencentes às baianas dos acarajés vinculadas a grupos familiares de origem africana que incorporam o sistema familiar matrilinear em que a mulher constitui o eixo central do empreendimento. Vários estudos relatam que a mulher é pouco considerada nos estudos sobre empresa familiar e, portanto, no ocidente, existe um número crescente de negócios familiares fundados por mulheres e que revelam relações entre a esfera da família e a esfera do negócio relativamente diferentes daquelas fundadas e geridas por homens (GOFFEE, 1996). Teorizar as relações entre gêneros implica considerar a dimensão política envolvida, e segundo Melo (1991), as manifestações das relações de poder tem um locus preferencial nas relações de trabalho, que podem assumir diversas formas de expressão, a depender das relações de forca existentes entre os grupos de interesse na empresa e na sociedade. Aspectos Metodológicos Com o propósito de investigar a natureza das relações de gênero nas organizações, com enfoque nos aspectos relativos à percepção da posição da figura feminina, bem como dos atributos e dos papéis atribuídos à mulher no âmbito da empresa familiar, foi realizada uma pesquisa descritiva em um grupo empresarial do ramo de mármores e granitos, localizada no 6 estado do Espírito Santo. Os dados foram coletados em outubro de 2005 através de observação não-participante e entrevistas não-estruturadas como instrumentos de coleta de dados. Foram entrevistados diretores familiares, encarregados e funcionários do nível operacional da empresa, não-integrantes da família, segundo a disposição e conveniência dos membros da organização. Foi garantido às empresas do grupo empresarial que essas não seriam identificadas, assim elas serão denominadas de “Florença” e “Labrador”. Para identificar o que está sendo dito a respeito determinado tema, torna-se importante utilizar a técnica de análise de conteúdo para o tratamento de dados que foram colhidos durante as entrevistas. Frases e parágrafos são definidos como unidades de análise. As categorias de análise que foram enfocadas dizem respeito às percepções relativas às relações de gênero no empreendimento, em especial a situação das figuras femininas na organização. A Análise de Conteúdo é uma técnica de pesquisa para tornar replicáveis e validar inferências de dados de um contexto que envolve procedimentos especializados para processamentos de dados de forma científica. Uma parte importante do comportamento, opinião ou idéias de pessoas se exprime sob a forma verbal ou escrita. A Análise de Conteúdo destas informações deve normalmente permitir a obtenção destas informações resumidas, organizadas. A Análise de Conteúdo pode ser usada para analisar em profundidade cada expressão específica de uma pessoa ou grupo envolvido num debate (FREITAS, 2000). Foi adotada uma pesquisa de caráter descritivo neste trabalho e foi utilizada uma grade de análise mista, com definições de categorias relevantes ao objetivo da pesquisa, admitindo-se a inclusão de categorias surgidas durante o processo de análise (VERGARA, 2005). A empresa Florença e seu mercado O grupo tem sua origem nos anos 90 na cidade de Cachoeiro de Itapemirim. Com experiência de 25 anos com o transporte de pedras, José, o pai da família, passou a conhecer superficialmente o processo produtivo de mármores e granitos, possibilitando também um contato direto com clientes, fornecedores e concorrentes da cadeia. Seu filho Hugo ingressou no trabalho de transporte com o pai e, anos mais tarde, em uma iniciativa empreendedora, os dois resolveram apostar em um novo negócio, investindo o capital adquirido com a venda de parte dos caminhões. Para iniciar suas atividades de fato, a futura empresa precisava de alguém que tivesse algum conhecimento e experiência na comercialização de mármores e granitos. Com esse intuito, Hugo convidou um amigo para trabalhar no empreendimento e administrar a parte comercial. A Florença foi então constituída com o capital integral de José e a gestão pertencia a Hugo e seu amigo. Margarida, a filha do meio, concluiu o ensino superior em administração e também ingressou no negócio. A empresa ainda não gozava de uma estrutura formalmente definida, mas tacitamente Margarida era responsável pela área contábil-financeira, Hugo pelas áreas de compra e produção e seu amigo pela área comercial. Após um ano e meio, o amigo de Hugo foi convidado a deixar a Florença, que passou a ser comandada por Hugo e Margarida. Aproximadamente em 1995, ao sentir a necessidade de horizontalizar o processo, José e Hugo decidiram comprar uma pedreira em Barra de São Francisco, no norte do estado. Em 1997, Luís, o filho caçula, também iniciou sua participação no negócio, assumindo funções relacionadas às áreas de logística e manutenção. A empresa prosseguiu em um ritmo de expansão e, com o tempo, adquiriu mais uma parte do processo produtivo ao realizar as atividades de polimento, levigamento, flameamento e resinamento das chapas brutas serradas e a transformação de chapas em ladrilhos. O crescimento da estrutura organizacional se mostrou tão frenético que, em um determinado período, sua 7 capacidade física atingiu o seu limite. Foi comprado um terreno para que algumas fases do processo fossem descentralizadas, mas a família decidiu que a nova empresa deveria ter toda a cadeia produtiva em seus domínios, e assim foi criada a Labrador Ltda, capaz de aumentar em grandes proporções a demanda sustentada anteriormente pela Florença. Após um desaquecimento do mercado de rochas ornamentais, o grupo desativou de forma temporária a Florença, transferindo todas as suas atividades de beneficiamento de chapas para a Labrador Ltda. Mas com um sinal de alavancagem do setor, a empresa pode retomar o trabalho em ambas as empresas de forma a se ajustar à demanda criada. Tanto nas jazidas quanto nas empresas, a estrutura organizacional é muito semelhante. A família preenche de forma exclusiva os níveis estratégicos do grupo, sendo que o pai administra as jazidas, enquanto os filhos se preocupam com a gestão das duas empresas. A empresa conta atualmente com 95 funcionários efetivos, sendo 60 nas empresas beneficiadoras de mármores e granitos e 35 nas jazidas situadas no norte do estado. O grupo Florença e os três círculos de desenvolvimento Após a coleta de dados, nota-se como a empresa poderia ser enquadrada nos círculos de propriedade, família e gestão da empresa familiar delineado por Gersick et al (1997) e, posteriormente, nas quatro combinações mais típicas destes círculos. Analisando individualmente os três eixos ao caso estudado, no que se refere ao eixo da propriedade, a empresa foi constituída apenas por capital de terceiros pertencente ao pai, fundador do negócio, fato que a enquadraria no estágio de Proprietário-Controlador. Posteriormente, observou-se a entrada dos três filhos ao longo dos anos até os dias atuais, o que propiciou à organização uma evolução para o estágio de Sociedade entre Irmãos, em que o controle acionário e efetivo situa-se na mão dos três irmãos. Entretanto, como observado, o grupo não atingiu a última etapa de Consórcio entre primos, por não ter seu controle acionário pertencente a muitos primos acionistas e a mistura de sócios funcionários e não funcionários, situação que deverá ocorrer somente com a entrada da próxima geração no controle do grupo, através de uma eventual sucessão familiar. Tal fato deve-se principalmente pela resistência dos irmãos controladores em abrir o controle da gestão, seja para primos ou outros parentes, seja para pessoas externas à fronteira familiar, como constatou-se durante as entrevistas: “Precisa de alguém pra dar continuidade né, porque o dia que a gente não tiver mais aqui, e não puder continuar, quem vai tocar? (...) Da minha parte, se meus filhos não se interessarem em continuar, o meu pensamento é de vender e sair. Vou continuar pra que? Se eles não quiserem continuar, ai eu pretendendo sair” (Hugo) Com relação ao eixo da gestão, a empresa deixou a fase de Início que se configurava pelas estruturas organizacionais mínimas e informais com o proprietário no centro de tudo, oferecendo somente um produto ou serviço, para alcançar o estágio de Expansão/Formalização no período atual. Este segundo estágio foi percebido devido à grande expansão da organização que de uma pequena empresa se transformou em um grande grupo. Com isso, o grupo passou a deter outras partes da cadeia produtiva, como a extração de blocos brutos diretamente das jazidas e iniciou a atividade de exportação. Além disso, passou a oferecer uma variedade de produtos ou serviços, como a realização das atividades de polimento, levigamento, flameamento e resinamento das chapas brutas serradas e a transformação de chapas em ladrilhos, diferentemente do único tipo de serviço oferecido inicialmente: a serragem dos blocos brutos em chapas brutas. 8 Constatou-se que tal expansão proporcionou uma estrutura mais funcional à Florença, em que as áreas de vendas, finanças, produção e RH começaram a adquirir maior separação, diferenciação e formalização de seus processos. Contudo, apesar da expansão em várias direções ocorridas recentemente, a resistência à inserção de novos entrantes no controle da gestão e do quadro acionário do grupo, mencionada na análise do eixo anterior, pode resultar na passagem para a fase de maturidade num horizonte próximo. De uma certa forma, todos os membros familiares concordam que a estrutura da empresa está atingindo um limite máximo considerando sua capacidade e principalmente o fato de estarem sobrecarregados em seus respectivos cargos. Como os membros familiares próprios alegam, sem uma abertura no processo de sucessão com a permissão à entrada de gestores profissionais, o crescimento do grupo ficará comprometido, podendo a empresa tender a uma estabilidade da estrutura organizacional e a uma certa incerteza sobre o período de expansão. No eixo da família, a organização familiar adentrou-se estágio de trabalho em conjunto, com o avanço dos pais na direção dos sessenta anos e a geração seguinte se encontra na faixa entre 20 e 45 anos. A terceira e mais jovem geração situa-se numa idade de 15 a 20 anos mais nova em relação à anterior, ainda em fase de infância. Assim, seguindo à risca a teoria do Modelo Tridimensional de Desenvolvimento, um dos desafios deveria estar relacionado à comunicação entre as gerações presentes na organização, ainda mais pelo fato de que as gerações são separadas pela distancia entre as duas cidades que onde se situam as empresas do grupo Florença: o pai fundador em Barra de São Francisco e os irmãos em Cachoeiro do Itapemirim, há aproximadamente 600 km. Entretanto, os familiares dessas duas gerações mencionadas revelam que enfrentam poucas dificuldades de cooperação e comunicação entre as gerações. A dificuldade maior, como afirma José, encontra-se na cooperação e comunicação entre a geração mais jovem dos irmãos que controlam o grupo, devido à maneira como o poder é distribuído entre eles. Este mesmo entrevistado julga ter uma função integradora da organização familiar, instaurando a união entre os membros familiares na organização. Um outro aspecto, que envolve o eixo da família, promove uma disfuncionalidade do Modelo de Tridimensional em sua aplicação ao caso estudado: a separação do dirigente fundador José de sua esposa, Nazian. Apesar do Modelo considerar os estágios evolutivos do eixo da família como sendo de mão única, esse acontecimento fez como que o desafio-chave de criar um “empreendimento casamento” viável fosse retomado e parte dos esforços despendidos por membros da família se concentrasse nesse ideal: “Só que quando o meu pai foi pro norte e a minha mãe ficou, começou a haver conflitos por parte de pai e mãe. Até que eles começaram a ficar meio separados, ciúmes, briga e eu também me casei. E os dois não conseguiram mais se compor. Só que os filhos sempre envolvidos nisso tentando juntar, foram 8 anos de luta pra não deixar acabar. Meu pai no Norte também, mas o casal se separou assim mesmo.” Como será constatado adiante, a mãe não participava do dia-a-dia da empresa, muito menos do processo de tomada de decisão, particularmente por estar confinada a suas tarefas domésticas. Quando José viajava para tratar de assuntos relacionados à organização familiar, em Barra de São Francisco, o papel da mãe, previamente definido, era permanecer e cuidar do ambiente doméstico, o que deve ter sido a causa de parte dos conflitos e desentendimentos. Logo, pode-se dizer que este fato, assim como outros que serão apresentados envolvendo as relações de gênero em uma cultura tradicionalmente paternalista, proporcionou um abalo na sintonia entre as 9 três dimensões do Modelo de Desenvolvimento das empresas familiares. Fica claro, a partir de tal constatação, que é necessário uma adequação ou um complemento ao Modelo Tridimensional, acrescentando a esfera Gênero à sua estrutura, para que as impressões constatadas na prática sejam coerentes com a proposição teórica. Percepções relativas ao gênero masculino e feminino no empreendimento A análise dos dados revelou um quadro limitadamente difundido na literatura sobre empresas familiares, a respeito das diferenças de percepções sobre o gênero masculino e feminino. As três principais evidências levantadas não abrangem somente a diferença de gênero entre os membros familiares e seus respectivos estilos de gestão, como também chegam a abordar a realidade distinta que é criada acerca do papel da figura masculina e feminina pela sociedade. Em uma análise sobre o conteúdo do discurso de alguns dos entrevistados, nota-se uma convergência com a concepção generalista que a sociedade dissemina, principalmente através de laços culturais difíceis de serem revertidos em sua totalidade e em curto prazo, sobre o papel do gênero feminino e masculino. A figura prevalecente da mulher é pautada nas tarefas domésticas incumbidas a ela no âmbito do lar, enquanto a figura dos homens se concentra na busca pelo sustento da família através do trabalho em um ambiente externo ao lar. A nível organizacional isso pôde ser traduzido por três momentos nas entrevistas transcritas, em que se percebe uma projeção previamente estabelecida do gênero masculino para a função gerencial e da figura feminina para o desempenho de tarefas relacionadas a afazeres domésticos. Esse fato é capaz de criar um empecilho ao acesso de mulheres na gestão da organização. Esta barreira contra a ascensão do sexo feminino até a administração se inicia precocemente e reflete o fenômeno do teto de vidro, descrito por Steil (1997). Pelo fato de haver um único herdeiro homem na terceira geração, em um total de sete herdeiros, a inserção dele na organização já começa a ser incentivada e de certo modo planejada. Nesse sentido, a socialização do único provável herdeiro ao controle do grupo também vem sendo trabalhada pela família, apesar de não estarem extintas as possibilidades de que alguma das herdeiras também participe da gestão do grupo. Hugo, quando perguntado sobre o futuro do grupo, coloca a seguinte questão: “Meu irmão também traz os filhos dele direto, são novinhos. Mas já está trazendo pra vir acompanhando e ver. E o menino (filho de Luís) sempre tem interesse pede pra vim. Tem curiosidade, fica no meio dos funcionários, se dá bem com eles. É pequenininho, mas ele tem vocação, eu acho, pra tocar o negócio lá na frente.” Apesar de todos os herdeiros correspondentes à terceira geração serem ainda crianças, sendo que o único herdeiro tem apenas 5 anos de idade, os dois filhos da segunda geração, Hugo e Luís e o dirigente-fundador acreditam estar nele toda a vocação gerencial necessária para que se torne o sucessor da terceira geração. Este fato contribui para a idéia predominante na sociedade de que os homens possuem um papel e um lugar pré-definidos para o trabalho e para o sustento, diferentemente da figura feminina, reforçando as diferenciações de gênero socialmente construídas. Outro aspecto digno de análise concernente a esse bloco temático, que corrobora com esta visão sobre a diferente realidade de gêneros é a única representante do sexo feminino, Margarida, que concorda com as dificuldades vivenciadas pelo gênero feminino, na sua tentativa de inserção no mundo empresarial, pela sua própria experiência no grupo: 10 “Meu pai achava que mulher não trabalhava, machista, aí eu comecei a trabalhar num escritório e ele foi acreditando em mim”. Margarida é a única que teve que provar através de seus próprios méritos que era capacitada para assumir uma função gerencial dentro da organização. Adquiriu experiência ao trabalhar anteriormente em um escritório de contabilidade e concluiu o curso de graduação em administração de empresas, enquanto seus dois irmãos concluíram apenas o ensino médio e logo depois foram inseridos pelo pai no negócio familiar. Somente após esta preparação é que Margarida conseguiu a aceitação do pai para ingressar no grupo. Através deste discurso, pode ser comprovada a existência do fenômeno do teto de vidro na organização, composto por barreiras nem sempre formalmente impostas que devem ser transpostas pela herdeira para que consiga “provar” que é capaz de realizar determinado trabalho ou função na empresa, ao contrário de seus irmãos que, com menor qualificação já detêm maior poder que a irmã. Ainda sobre a percepção distinta dos gêneros, no caso das organizações, a diferenciação técnica que se faz do trabalho também evidencia a divisão por sexo, já que os trabalhos mais centrais e estáveis, como a chefia, por exemplo, são normalmente ocupados por homens enquanto trabalhos periféricos e com menor atribuição de responsabilidades são historicamente atribuídos às mulheres. E, apesar de toda essas transformações nos papéis das mulheres e dos homens, tanto no meio familiar e privado, quanto no meio de trabalho e público, ainda existem e podem ser notados desequilíbrios entre o feminino e o masculino em vários aspectos (CAPELLE, 2003). No caso estudado, percebe-se que provavelmente exista uma tentativa de afastamento das mulheres da família da gestão dos negócios. Este fato pode ser comprovado nas entrevistas dos dois filhos, da filha e do pai. O pai separou-se da mãe algum tempo após a mudança para o norte do estado, a fim de administrar as jazidas. José relatou, durante a fase das entrevistas, que sentia a falta da esposa na família, apesar de ela nunca ter interferido ou opinado sobre os negócios da família. O desejo de José era que a ex-mulher, Nazian, estivesse inclusa também no círculo da empresa, exemplificando o fato de, na empresa de seus amigos e colegas, as suas esposas trabalharem na empresa, particularmente na cozinha ou faxina. Frente a tal afirmação, deve-se levar em consideração que assim como os homens, as mulheres conheceram a escravatura, a sucessão de utensílios de trabalho, etc. Mas, o fato de a mulher carregar os filhos, alimentá-los e ser considerada fisicamente mais fraca do que o homem acarretou divisões ou tarefas fundamentadas na arbitrariedade e não na fisiologia, o que permitiu o agravamento de condicionamentos milenares, sobre os quais não se sabe ao certo onde começam e nem onde terminam. No plano do trabalho há, ainda mais evidente, como foi visto, a segregação do masculino e do feminino (CORREA, 2004). É importante ressaltar, que as mulheres, por aspectos culturais e pelo seu papel na sociedade, estão restritas a atividades e funções na empresa que geralmente lhe cabem em uma família, como as domésticas. Assim, atividades simbólicas da família são transpostas para a empresa, principalmente aquelas relacionadas ao atendimento. É óbvio que se trata de uma visão tradicionalista e sustentada desde os primórdios da sociedade, entretanto, apesar das mudanças gradativas que vem ocorrendo, todos estes fatos descritos mostram como ainda é consistente essa idéia na sociedade contemporânea, principalmente em uma cidade do interior do Espírito Santo. Esta tentativa de exclusão da mulher da família na gestão ainda é reforçada por um de seus filhos, Hugo: 11 “Ela (Nazian), vamos dizer assim, faz parte (da empresa) mas não opina ativamente. Ela nunca se envolveu com a empresa, com nada, ela sempre ficou em casa. Ela é do lar. Então ela não tem opinião para decidir nada nos negócios, essa capacidade de decidir nos negócios, nunca teve assim junto com a gente. Minha mãe fica de fora, ele fica em casa, tomando conta das crianças, um pouco.” E segundo Margarida: “Não ela não da opinião, porque nunca trabalhou junto com a gente, e não tem conhecimento do negócio.” É relevante ressaltar que José, quando da separação passou para o nome dos filhos a propriedade da empresa. Mais uma vez, houve a tentativa de excluir a mãe, Nazian, de qualquer envolvimento com o negócio familiar. No entanto, parece ser consenso entre os filhos que a mãe precisa de uma fonte de renda que vem a ser essa redistribuição dos ativos da família exercida pelos filhos. É interessante observar que, nesse caso, as três dimensões interdependentes e superpostas do Modelo dos Três Círculos(a propriedade, a família e a empresa / gestão) se relacionam de maneira curiosa, já que Nazian está presente na esfera família, presente informalmente, mas de maneira determinante, na propriedade e está totalmente excluída de qualquer participação na esfera gestão. Este último caso merece ser tratado com maior profundidade, em estudos posteriores, já que também envolve outros fatores como separação conjugal e conseqüentemente a partilha de bens, relações de poder e possíveis fontes de conflito entre a família, repercutindo também no ambiente organizacional. Considerações Finais A análise das entrevistas realizadas no grupo familiar Florença possibilitou a constatação da adequação apenas parcial do Modelo Tridimensional de Desenvolvimento de Empresas Familiares. Mesmo esta sendo a abordagem predominantemente utilizada pelos estudiosos da área, é necessário lançar um olhar crítico sobre a teoria no momento da sua aplicação, visto que as relações de gênero em uma cultura tradicionalmente paternalista proporcionam um abalo na sintonia entre as três dimensões desse modelo. Fica claro, a partir de tal constatação, que é necessário uma adequação ou um complemento ao Modelo Tridimensional, acrescentando a esfera Gênero à sua estrutura, para que a proposição teórica seja coerente com as impressões constatadas na prática. Um aspecto marcante do trabalho é a diferença de percepções entre as realidades formadas pelos entrevistados sobre a figura feminina e seus respectivos papéis na sociedade e como isso pôde ser traduzido para o ambiente empresarial. Nota-se uma convergência com a concepção generalista que a sociedade dissemina, principalmente através de laços culturais difíceis de serem revertidos em sua totalidade e em curto prazo, sobre o papel do gênero feminino e masculino na sociedade. Em geral, empreendimentos familiares brasileiros possuem um modelo de gestão baseado na centralidade familiar. Os empreendimentos econômicos brasileiros, desde o princípio histórico 12 da sua constituição, sempre estiveram fortemente ligados à lógica da família autoritária e centralizadora no Brasil colonial. Com o processo de industrialização, as empresas brasileiras logo assimilaram as práticas existentes dentro das tradicionais famílias proprietárias de terra, assim o extenso papel das famílias permaneceu (CAPELÃO, 2001). Devido a esses aspectos históricos e culturais existe, nas empresas familiares brasileiras, uma tendência a se presenciar elementos ligados ao universo da casa, já que a empresa, nada mais é que propriedade da família, além de elementos vindos de influentes externos. A evidência de uma centralidade patriarcal nas empresas foi facilmente verificada, já que a hierarquia formal da empresa é dominada apenas pelos homens da família. Conseqüentemente, os homens têm apresentado a tendência de dominar os papéis e funções organizacionais quando existe uma necessidade de comportamento direto e agressivo, enquanto as mulheres da empresa, no caso específico da mãe, foi confinada a um exílio organizacional ou às tarefas de faxina e cozinha, segundo sugestões do próprio marido. Conforme constatado, a figura prevalecente da mulher é pautada nas tarefas domésticas incumbidas a elas no âmbito do lar, enquanto a figura dos homens se concentra na busca pelo sustento da família através do trabalho em um ambiente externo ao lar. Dentro da organização isso pôde ser traduzido em alguns momentos nas entrevistas transcritas, em que se percebe uma projeção previamente estabelecida do gênero masculino para a função gerencial e da figura feminina para o desempenho de tarefas relacionadas a afazeres domésticos. Esse fato resulta na criação de um empecilho ao acesso de mulheres na gestão da organização. Torna-se importante ressaltar que este aspecto é pouco encontrado e difundido na literatura referente a empresas familiares e necessita de posteriores contribuições e avanços da ciência administrativa sobre o tema. Referências bibliográficas ARAÚJO, C. Políticas públicas e gênero – um breve balanço de sua trajetória e das intervenções no Brasil. In: GARCIA, J.; LANDIM, L.; DAHMER, T. Sociedade & Políticas – novos debates entre ONGs e Universidade. Rio de Janeiro: Revan, 2003. BERNHOEFT, R. Empresa Familiar: Sucessão Profissionalizada ou Comprometida. 1 ed. São Paulo: IBECON, 1987. Sobrevivência BETHLEM, A. S. A empresa Familiar: oportunidades para pesquisa. Revista de Administração, São Paulo, V. 29, n.4, p.88-97, out./dez.1994. CAPELÃO, L. G. F. Relações de poder no processo de sucessão em empresa familiar: o caso das Indústrias Filizola S.A. Revista O&S, v. 7, n. 18, p. 141-155, Maio/Agosto, 2000. CAPELÃO, L. G. F. 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