4•PROSA & VERSO O GLOBO WILSON MARTINS Sábado, 21 de junho de~ Oromance político de uma geração Escritor de qualidade incomum, Roberto Amara I regressou com sabedoria do milenarismo da esquerda ,. ão haverá bom romance poUtico onde não houver bom romance- porque, no caso, não se trata de politica, mas de literatura. ~ noção elementar que não compreendem, em particular, os numerosos sobreviventes das revoluções malogradas, procurando compensar pelo testemunho mal flccionalizado a luta que perderam na ação, e que, por isso mesmo, perdem mais uma vez enquanto romancistas. Roberto Amaral, ao contrário, soube criar o grande romance politico da sua geração por ser, antes de mais nada: um escritor de qualidade lncomum ("Não há noite tão longa". RJo: Record, 1996). A narrativa articula-se por melo de unta técnica original, na qual os comentários intercalados pertencem à "voz" impessoal do Tempo, marcando os momentos dos numerosos destinos que se cruzam e entrecruzam, desde a fllosofia de vida sertaneja no interior do Ceará, apresentada em quadros magnfflcos de vigoroso realismo, passando pela pequena polftica paroquial (ela mesma fundada nas crenças folclóricas da população), para culminar no miienarismo ideológico, que é o pano de fundo de toda a história. Claro, trata-se do milenarismo "de esquerda" ou das utopias socialistas, universo mental de que o próprio autor parece haver regressado com a sabedoria das desilusões e a obstinada persistência das ilusões: MHeráclio não quer a terra para ser um novo Saturnino pois no seu mundo, que anda nas imagens de sua cabeça, os coronéis são excedentes, a vida lhe ensinou, sem precisar dos livros de Isaías, que atrás de toda aquela ordem natural N A LUTA ARMADA é apenas um dos painéis do amplo quadro histórico de Roberto Amaral das coisas que separava os homens entre os Coronéis e os Severinos, entre os possuidores ,e os despossufdos, havia um esbulho que só teria fim quando fosse posslvel ele mesmo desenhar a paisagem de sua vida, essa foi finalmente a descoberta tardia de Isafas, que voltaria a se enganar pensando que a revolução que se mexe no ventre da classe-média modificaria o milenar mundo da propriedade". Segundo o Insuspeito Antônio Callado, os ardorosos revolucionários latinoamericanos sofrem de ejaculação precoce, arruinando pela precipitaçã_o o que poderia ter sido a bela noite de núpcias com a Dulcínéia continental. Com- batente do ativísmo Ingénuo e retórico, Henrique recebe do velho dirigente veterano uma lição de realismo: "Pontes está de pé, segurando a porta entreaberta. Gesticula multo. nervosamente, derrotado no seu esforço poresconder uma irritação mortal:- Nós bem que avisamos ... Quantos vezes denunciamos esse espontaneismo! E agora é tarde, tudo agora é tarde. Vocês deram o pretexto que a linha-dura precisava para nos esmagar. Estamos todos fodidos e o processo democrático atrasado- 50 anos. (...) Henrique sabia que a grande luta havia sido substituída pela grande hibernação. Conversando com os seus botões ele escrevia o seu modo um 'Adeus às Ilusões', que o leitor pode traduzir como um adeus à utopia. Um adeus provisório, sabemos, mas sempre uma despedido". As páginas sobre a fuga de Henrique estão entre as mais belas e vigorosas do romance universal. para nada dizer da prisão e dos interrogatórios. conduzidos pelos militares com impecável espfrlto profissional. Mas a surpresa maior foi encontrar entre eles aquele Marcellnho, companheiro de suspeitas brincadeiras infantis, "gordinho, imberbe, roliço, moreninho, meigo, filho caçula do saudoso Tenente (...). Todos gostavam dele na escola. Marcellnho era uma graça e o encanto dos meninos, saía com todos sem fazer exigências a não ser o segredo comum ( ...)". Pois esse complacente Marcelinho estava entre os Interrogadores de plantão, "o Marcelinho da Marechal Deodoro, agora identificado como Capitão Nogueira, todo cercado de respeito e autoridade. A sua entrada os policiais civis se levantam. ~ ele quem fala para um guerrilheiro mudo, pálido, sem voz, com a alma apertada por uma manopla: 'Ô bicho, a vida é Isso, estamos em margens diferentes mas o rio é o mesmo, no meu lugar você faria o mesmo, esse é o meu negócio como o teu é o teu'". A luta armada e conseqüente repressão sendo apenas um dos painéis do amplo quadro histórico levantado por Roberto Amaral, será um erro de leitura colocá-lo no centro da intriga ou atribuir-lhe qualquer primazia sobre os demais. Henrique, adverte o autor, nem mesmo é o herói da novela, trama de extraordinária complexidade: "Fatos, pessoas. sentimentos, paisagens. lembranças- perdidos que esta- vam na memória de viventes e ex-viventes, cada um com sua história particular e a particular leitura dessa história, cheio de meandros, curvas e túneis, espaços abertos e horizontes azuis, como toda história que se preza, e assim ela é contada, e só por isso (...) peço ao leitor que apenas nos leia, sem cuidar da saga ou da novela, refazendo o seu modo, isto é, livremente, os paisagens de naturezac; e hcmens, pois não há outra maneira de contar 3 história senão escre.. vendo as imager s da história que cada um conta do que ouviu, viu e fez: assim, a história que se segue é o canto de um tempo, de vários tempos, de várias pessoas vivendo um tempo comum , de existência vária, em paisagens distintas que são uma só E única paisagem de um só e único personagem, o pobre homem comum perdido na multidão humana, desconsoladamen(e só: era uma vez..." ão é romance para ler, mas para reler, não é um texto fixo e imóvel, mas "ondulante e diverso", como diria Montaigne, Por inesperado, o herói é o desprezível Ananias, pai de Henrique, figura ao mesmo tempo central e secundária (num romance em que as mulheres, de resto, estão sempre em primeiro plano), protótipos e vítimas, todos eles. de um sistema econômico e social que se desfazia, e cujo esplendor pode ter na história de Moacir e dos Dionísios o episódio emblemático. Mas, que dizer de Santlnha e Luciano? Vivem uma tragédia se rtaneja exemplar de fulgurações shakespearianas. catástrofe de amor furioso numa terra em que "Deus e o diabo disputam as mesmas almas". N