MATÉRIA DE CAPA Autora: Priscila Crispi Coisa de gente pequena Uma discussão sobre produção de conteúdo para uma geração conectada que leve em conta seus direitos, interesses e participação O escritor irlandês C. S. Lewis, autor do clássico infantil As Crônicas de Nárnia, defendeu em um artigo publicado no Brasil em 1982, após sua morte, que existem três maneiras de se escrever para crianças, duas boas e uma má. Segundo ele, a forma menos proveitosa e convincente de produzir cultura para crianças é a partir de uma suposição do que elas gostariam ou precisariam ler, vendo-as como um conjunto uniforme a ser manipulado. A segunda maneira seria a partir de uma história contada de viva voz, espontaneamente, a uma criança real. Por mais que o contador possa adaptar sua criação às reações e gostos do ouvinte, esse método se diferencia do primeiro, pois não concebe as crianças “como uma espécie estranha cujos hábitos ele precisa 'identificar', como faria um antropólogo ou um caixeiro viajante”, diz ele, mas está lidando com uma pessoa concreta. A terceira forma, que segundo o autor era a única que ele era capaz de usar, é a de escrever para crianças por entender que aquela era a melhor forma artística de expressar algo que ele gostaria de dizer ao mundo. Segundo ele, um escritor nunca deve tratar seus pequenos leitores com condescendência ou de maneira idealizada, mas enxergá-los como iguais naqueles aspectos de nossa natureza em que realmente somos iguais, porque nossa diferença como adultos não é por possuirmos uma moral mais elevada, mas por termos acesso a outras regiões do ser que as crianças ainda não tiveram oportunidade de experimentar. Desde o tempo do escritor para cá, novas mídias e suas formas de consumo mudaram muito a cultura e a sociedade, mas a transmissão de valores, a relação de poder entre adultos e crianças, o papel da comunicação na educação e socialização de novos indivíduos e a dificuldade na mensuração da recepção continuam sendo temas recorrentes para uma infinidade de profissionais que produzem conteúdo voltado ao público infantil. “A comunicação, certamente, tem papel, em conjunto com outros atores, na formação da criança. Desde a entrada da literatura, do cinema... O que acontece é que a sociedade sempre fica assustada com uma nova mídia. As mudanças que elas trazem são estruturais, mas não são todas nocivas. Eu sou otimista quanto à internet. Acho que as nossas crianças estão vivendo em uma sociedade em que as informações são muito socializadas, o que traz possibilidades e riscos”, explica Isabel Orofino, pós-doutora em Mídias e Direitos das Crianças, professora da ESPM/SP e pesquisadora da Rede Latino-Americana de Infâncias e Juventudes. Para ela, a questão central na discussão do consumo de mídia por crianças continua sendo, apesar das mudanças tecnológicas, o autoritarismo na socialização das crianças, ou seja, na sua formação para o convívio social. “Não levamos em conta a voz da criança. A maior mudança precisa passar por uma relação menos vertical com elas. Como é considerar os direitos da criança frente as mídias, o direito de participação? Apesar de toda diferença de maturidade, ali tem um outro, não menor, mas diferente. A criança tem um lugar de direito na sociedade, de diálogo, de pronunciamento e de aprender com o mais velho”, defende. Suzana Varjão, gerente de qualificação de mídia da Rede ANDI Brasil - Comunicação pelos Direitos da Criança e do Adolescente, organização que articula ações inovadoras em mídia voltada à defesa da infância e juventude, destaca o papel central que os veículos de comunicação ocupam em nossa sociedade na garantia de direitos como o de participação, formação e, especialmente, aprendizagem. “A comunicação de massa é protagonista no processo educativo da criança, que passa, hoje, seguramente, mais tempo em frente à TV, ou de um computador com acesso à internet, do que em bancos de escolas”. A Lei que cria a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Lei nº 11.652, não traz recomendações específicas para a programação infantil, porém, afirma, que toda sua produção deve ter caráter formativo e educativo. Isabel Ourofino acredita que uma programação educativa, não necessariamente deve servir para subsidiar a escola ou ser utilizada nas práticas de ensino, mas seria aquela que convida o espectador a refletir sobre o seu contexto, a sua história e sua sociedade, proporcionando uma compreensão ampliada e não fragmentadora dos temas em debate – o que é válido para todas as idades, levando em consideração as necessidades de cada fase. “Uma comunicação educativa é também aquela que promove o encorajamento e a esperança para o engajamento em diferentes formas de mobilização social visando a transformação qualitativa para uma sociedade justa e sustentável”, afirma. Isabel acredita que é responsabilidade dos produtores de conteúdo trabalhar esses conceitos a partir de suas produções: “quando se fala em comunicação, estamos trabalhando com produção simbólica, então, estamos no nível do pensamento. É responsabilidade desses profissionais colocar para as crianças parâmetros do pensamento contemporâneo, da filosofia, da ética e igualdade. Precisamos de uma comunicação pública que encoraje a pensar sobre o momento que estamos vivendo e as mudanças que precisamos”. É exatamente na transmissão de valores que Bia Rosenberg, produtora, diretora-geral do Igarapé-Magico, consultora da TV Cultura e da TV Rá-Tim-Bum, coloca o alvo de suas produções. “Existe uma coisa que é o conteúdo transversal, que aborda questões da cidadania, respeito ao outro, conhecer a si mesmo, educação, higiene, alimentação saudável, resolução de conflitos de uma maneira produtiva, ternura... São valores que permeiam todas as minhas produções. Eles geram bons argumentos, transmitem valores de vida – não valores falados, mas de experiência”, conta. Bia explica que cada produção tem também um grande objetivo, para além dos valores transversais, que atuam como pano de fundo. “Por exemplo, em Cocoricó, queremos mostrar de onde vem a comida, valorizar os produtos da fazenda. No caso do Igarapé Mágico, o objetivo final é mostrar o mundo da Amazônia, da preservação ambiental. Cada programa tem um grande objetivo. Isso facilita muito fazer o produto, não é algo que eu preciso tirar da minha cabeça. Mas todos tem que ser divertidos, atraentes e musicais, se possível”. A produtora afirma que não existem pesquisas para mensurar se todos esses objetivos foram alcançados e geraram resultado na vida das crianças que assistiram seus programas, mas ela acredita que houve êxito. “Os anos 90 e 2000 foram muito produtivos na TV Cultura e hoje existe aquilo que eu chamo de 'geração cultura', uma geração que se formou vendo esses programas. Tenho contato com eles nas universidades, no YouTube... Nesses comentários, às vezes, você vê indícios do resultado da programação que fizemos. É uma geração informada e formada, parecem pessoas que estão alertas para questões sociais”, diz. Rita Okamura, assessora de Projetos Especiais da TV Cultura, explica que, ainda hoje, a emissora trabalha na construção de parâmetros formativos para a programação infantil: “nós mantemos consultores pedagógicos e de conteúdo que nos assessoram na seleção dos programas a veicular, sempre visando valores sociais a transmitir, de acordo com as faixas etárias e os parâmetros pedagógicos e psicológicos aconselháveis”. Interessante perceber que a preocupação com a programação infantil na TV pública também pode ser vista para além do Brasil. Na TV pública argentina, o canal Pakapaka, destinado especificamente ao público infantil, nasceu como um projeto político, educativo e cultural do Ministério da Educação do país, e conta com objetivos bem definidos. “Nossos princípios foram e continuam sendo trazer conteúdos audiovisuais de qualidade para todas as infâncias, ampliar seu repertório cultural, divulgar e ampliar os direitos de meninos e meninas, e dar a eles ferramentas para o exercício de sua cidadania”, diz Fucundo Agrelo, Coordenador Geral de Conteúdos do canal. A EBC, segundo seu diretor de Conteúdo e Programação, Asdrúbal Figueiró, preza pela disseminação de valores como amizade, solidariedade, tolerância, preservação do meio ambiente, diversidade cultural, além dos conhecimentos tradicionais como história, geografia, literatura e ciências. “Também buscamos conteúdos que valorizem as crianças como protagonistas, passando por reflexões sobre os excessos do consumo e da sexualização na infância, além de cuidados com a alimentação”, define. Para os artistas e produtores da Estação Brincadeira, faixa infantil das emissoras de rádio da EBC, o casal Jujuba e Ana Nogueira, a principal diferença em produzir para uma empresa pública de comunicação se dá no aumento da responsabilidade de refletir um valor específico nos conteúdos dos programas: a diversidade. “Estamos falando através de um canal que tem como princípio representar o povo, e nós somos um povo que possui uma imensa diversidade cultural e social”, afirmam. Diversidade e identidade Segundo os especialistas em desenvolvimento infantil ouvidos pela reportagem, a identificação é um fator importante no processo de construção da personalidade das crianças. Nesse sentido, quando uma criança se enxerga e enxerga “o outro” nas telas de um veículo de comunicação, ela forma, também, suas visões a respeito de si e da realidade que a cerca. O conceito de diversidade busca garantir que as pessoas possam se identificar em algum momento na grande de programação daquele canal, o que não significa uma identificação forçada em todos os conteúdos. “A gente não pode pensar na criança como alguém que vai se desenvolver para ser um adulto, a criança já é um ser, e nós devemos respeitá-la como tal. Precisamos trazer o repertório para que a criança se forme, e não é só um repertório de conteúdo e linguagem. Precisamos mostrar crianças para outras crianças e colaborar no processo de formação da identidade”(SUGESTÃO DE OLHO!!) defendeu Beth Carmona, produtora cultural e criadora do ComKids, iniciativa para a promoção e produção de conteúdos para crianças e adolescentes, em seminário apresentado na EBC. Suzana Varjão concorda com a correlação entre respeito e valorização das identidades: “uma comunicação que respeite as crianças em sua diferença é, seguramente, uma comunicação de qualidade. E esse respeito passa pela representação equitativa e valorizada das diversas culturas, etnias, sotaques, crenças, sistemas de valores...”, aponta. Segundo Asdrúbal, os conteúdos infantis da TV Brasil, emissora da EBC, são prioritariamente nacionais e buscam elementos da diversidade brasileira. As obras co-produzidas são todas rodadas no Brasil e as adquiridas vêm, aproximadamente, 45% de produtoras brasileiras e 55% de fora do país. “Talvez o exemplo mais emblemático seja o desenho Igarapé Mágico, focado no público pré-escolar, que traz espécies da flora e da fauna amazônica. Também temos o programa O Teco Teco, onde os personagens principais são inspirados Santos Dumont, quando criança, e Luís da Câmara Cascudo. A casa de Cascudo é na Floresta Amazônica e o personagem é filho de um importante cientista que trabalha na base de foguetes de Alcântara. Outros programas são produzidos em parceria com a Rede Nacional de Comunicação Pública e trazem, da origem, aspectos regionais, como é o caso do Pandorga (Rio Grande do Sul) e do Dango Balango (Minas Gerais)”, fala o diretor. Para Raquel Rodrigues, 24, mãe de Davi Luiz, de 3 anos, essa é uma abordagem que faz diferença. Os dois moram em Brasília e descobriram a TV Brasil passeando entre os canais e o próprio Davi resolveu ficar para assistir os desenhos da emissora. Ele é fã do Igarapé Mágico, do Pingu e de Cocoricó. “O Davi assiste muito os canais pagos também. Ambos trazem enredos bem elaborados, têm temas educativos a serem trabalhados, mas eu acho a programação muito 'americanizada'. O Igarapé, por exemplo, traz rios, árvores, a Iara, animais que falam e brincam, coisas que são do nosso folclore, me parece mais brasileiro. Acho mais legal”, diz. Mas, na opinião de Mariana Leopoldo, 13 anos, de Majé (RJ), ainda falta uma coisa para ela “dar nota 10 para programação da TV Brasil”: novelas infantis. A menina adora o programa ABZ do Ziraldo e entrou em contato com a Ouvidoria da EBC para se voluntariar a aparecer na plateia em alguma edição. Entrevistada, ela disse que gosta muito de programas educativos, que incentivam a leitura e ensinam de forma lúdica, porém, nada se compara a ver outras crianças na tela da TV. “Eu gosto muito mais de ver crianças sendo atores do que de desenhos. Eu gosto e tenho sonho de atuar em uma novela. Por exemplo, Chiquititas, tem uma audiência enorme, pois chama a atenção do público”, explica. (OLHO) Segundo Bia Rosenberg, a empolgação da pequena carioca explica uma necessidade de identificação que vai além de temas e elementos da cultura local, mas em ver crianças reais retratadas nas produções. “Crianças que assistem crianças se identificam muito. Hoje, isso tenta se resolver com a animação, que traz muitas personagens infantis, mas não é mesma coisa. O Sítio do Pica-Pau Amarelo em animação é ok, mas em storytelling é muito mais rico”, defende. E como fazer para incluir crianças na produção de conteúdos, tanto no que se refere à participação do ponto de vista editorial, quanto na programação? É importante lembrar que, ao mesmo tempo em que reconhece a função importante desempenhada pelos meios de comunicação e incentiva a produção de conteúdos voltados a crianças, declarando o direito delas à participação na vida cultural e artística, o Estatuto da Criança e do Adolescente também proíbe o trabalho de menores de catorze anos e coíbe a exploração de sua imagem. Para Suzana Varjão, não há receita de bolo na busca de uma participação justa e protetora, mas há horizontes em que se basear. “Uma regra importante é não confundir participação com mera presença – ou exploração. Incluir crianças, de modo rotativo, apoiadas por pais e/ou educadores, em um conselho editorial que lhes permita inserir sua visão de mundo na programação voltada a esse universo, por exemplo, é uma coisa. Outra coisa, é encaixá-las num esquema opressivo, preparado pelo adulto, a partir da visão do mundo do adulto, submetendo-as a pressões e rotinas exaustivas de trabalho”, alerta. A escola, na visão da pesquisadora Isabel Orofino, é o lugar onde a criança deve ser encontrada para todo tipo de diálogo democrático e produção. “A TV pública pode criar projetos de interação com a escola. As escolas poderiam trabalhar mais com novas estéticas de comunicação e a EBC poderia abrir espaço na grade para produções das escolas, o que ajudaria a pedagogia a ser mais libertadora e mais pertinente para a criança e para o jovem. Precisamos estar em diálogo com as outras instituições que trabalham com a criança, especialmente com a educação pública, porque a comunicação não vai conseguir dar conta do recado sozinha, precisa ser uma abordagem transdisciplinar. Precisa atravessar o muro”, acredita a professora. De maneira prática, Bia Rosenberg acredita que é preciso tomar cuidados específicos quando se trabalha com direção de crianças, mas sua experiência mostra que eles podem se divertir muito durante a produção do material. “A gente tem normas especiais para não sobrecarregar as crianças. Você garante certas regras, faz um intervalo e todo mundo vai jogar bola no jardim, por exemplo. Uma produtora fica vendo o horário da tarefa... Acho que é uma situação específica e deve existir, porque o ganho de representação é grande”, diz. Jujuba e Ana Nogueira afirmam que a questão da exploração do trabalho infantil é levada muito a sério na Estação Brincadeira: “os nossos locutores mirins oficiais são escolhidos para participarem dos programas somente com a devida autorização dos pais e com a observância de que isso não causará nenhum prejuízo escolar ou transtorno para eles. E ainda adequamos as gravações de acordo com as suas disponibilidades e tomamos o cuidado de gravar somente por duas horas, quinzenalmente”. No canal argentino Pakapaka, a presença de crianças faz parte da filosofia e linha editorial do produto. “Essa participação é muito ampla, compreende desde a produção de material audiovisual realizado pelas crianças, que é transmitido nos canais do Pakapaka, até sonoras de meninos e meninas contando diferentes experiências, que fazem parte de vários programas do canal”, conta Facundo Agrelo. Segundo ele, o canal realiza também uma série de estudos qualitativos e quantitativos junto ao público para estudar aspectos vinculados a conteúdos e narrativas. Para além da interação espontânea com o público na gravação dos programas de rádio e as manifestações via sites e Ouvidoria da empresa, a EBC não possui formas qualitativas de mensurar a recepção de seus conteúdos. Porém, está em funcionamento um Grupo de Trabalho para análise dessa faixa de programação, criado em setembro de 2014. Atualmente, o GT está estudando os veículos e empresas que lidam com conteúdo infantil de outros países. Os resultados preliminares serão apresentados num seminário, ainda com data a ser confirmada, entre julho e agosto de 2015. Está prevista, também, a realização de grupos focais com crianças a partir do segundo semestre deste ano. O objetivo principal do trabalho será fornecer subsídios para a elaboração das diretrizes da casa para este público. “Os resultados serão apresentados ao Comitê de Programação e Rede da casa e ao Conselho Curador. A partir das contribuições será definido um Plano de Execução das Diretrizes, contendo estratégias e ações, custos e cronograma. Tudo para implementação a partir de 2016. O principal foco é na forma como os pequenos vem consumindo conteúdo para além da grade linear comum na televisão. Os resultados não necessariamente apontarão mudanças na grade, mas certamente apontarão caminhos de convergência dos conteúdos e de modelos de distribuição e interação com o público. Não só o infantil, mas também pais, responsáveis e professores”, adianta Asdrúbal. Linguagens convergentes A pesquisa PapagaioPipa 2013, realizada pela MultiFocus Inteligência de Mercado com 1840 crianças e adolescentes de todas as classes sociais, entre 0 e 17 anos, nas doze principais capitais brasileiras, apontou que as linguagens preferidas do público infantil são: visual/imagética; sonora/ritmada; intuitiva/plug-andplay; dinâmica/movimentada; virtual com proximidade do real; bem-humorada/alegre/inusitada; capilarizada/com capacidade de gerar buzz (capacidade que um produto tem de se multiplicar pela rede). Dentro dessa descrição, vários gêneros e formatos de programa atendem, em maior ou menor grau, ao interesse das crianças. “A animação teve uma evolução muito grande em termos de quantidade e qualidade. O mercado oferece uma infinidade de opções. Não podemos falar em exclusão de formatos pura e simplesmente. O formato em si é sempre escolhido a partir da sua adequação ao conteúdo que se deseja veicular”, acredita Rita Okamura, da TV Cultura. Beth Carmona complementa: o conteúdo, entendido em seu sentido extraído da palavra inglesa “content”, que engloba forma mais conteúdo, é rei no contexto atual. “Ele pode circular em qualquer plataforma e quanto mais ele tiver essa flexibilidade, melhor. O que continua sendo importante para as crianças são histórias inspiradoras, sua identidade cultural, o retrato de seus espaços, a discussão de valores, crenças e temas relevantes, além da própria interatividade”. Facundo explica que a TV pública argentina toma suas decisões de escolha de programas buscando ampliar o repertório cultural das crianças: “isto pressupõe oferecer a maior quantidade possível de formatos e estéticas. Por isso, a priori, não excluímos nenhum formato. O que pode acontecer é que certos formatos preexistentes sejam trabalhados para se adequarem a uma audiência infantil”. Na EBC, o casal Jujuba e Ana Nogueira adaptam, toda semana, a linguagem da música, do circo e do teatro popular para o rádio e, acreditam que a experiência amplia suas possibilidades artísticas. “Nos grandes centros, notamos que as novas gerações vêm perdendo o interesse pelo rádio e se voltando para outros meios de comunicação. Entretanto, nos interiores do país, o rádio continua sendo um meio de comunicação de extrema importância. Uma das funções de uma programação infanto-juvenil de rádio é preservar e resgatar novos ouvintes. Claro que para isso é necessário estar sintonizados com uma linguagem que se aproxime destes públicos e os conquistem”. A pesquisa citada acima confirma a percepção do casal: 74% das crianças brasileiras tem o costume de acessar a internet e apresentam um perfil de audiência bem diferente de gerações anteriores, muito mais permeado pelo uso da web, não se declarando mais apenas como consumidores, mas como selecionadores, produtores e difusores de conteúdos. O YouTube e jogos online aparecem como as plataformas preferidas pelas crianças para produção de conteúdos. “A educação e a vida das crianças são dominadas pela imagem. As plataformas são uma realidade e nessas plataformas as linguagens se encontram. O audiovisual não está sozinho, tem que estar com o digital e o interativo. Como atrair as crianças para a TV pública? Hoje existem 11 canais infantis na TV paga, fora canais no YouTube, on demand e smartv. Bom, eu acredito que as grades tem que ser dinâmicas”, defende Beth Carmona. Para enfrentar essa realidade, a TV Cultura tem programado de maneira conjunta com a faixa infantil da emissora e do Cmais, seu canal de conteúdos na internet. “Também produzimos exclusivamente para o Cmais, que por ser um veículo específico, tem que ter tratamento diferenciado. Estamos engatinhando na conquista de visibilidade nas diversas plataformas, mas já tivemos ótimas experiências, como por exemplo com o 'Vila Sésamo'. Vamos crescer nesse sentido”, afirma Rita Okamura. Realidade essa presente na Argentina, por exemplo, onde a convergência ultrapassou os limites dos veículos de comunicação e o Pakapaka é, hoje, uma marca de entretenimento infantil, para além da TV e web, que administra três musicais, obras de teatro e um parque temático, entre outros projetos. Segundo Asdúbral Figueiró a ideia do GT de programação infantil é caminhar na direção de unificar mais as equipes e a produção do conteúdo infantil da EBC: “tanto para convergir ideias e conhecimentos dos integrantes das diversas equipes, quanto para definir uma estratégia comum buscando conhecer melhor o público”. Adriana Franzin, editora do canal infantil do Portal EBC, acredita que é essencial que isso aconteça para que haja uma diretriz única para esse nicho. “Aqui cada um faz por si. Seria uma produção mais coerente se fizéssemos as mídias dialogarem, e uma maneira de manter a audiência em diversos canais”, cobra. Davi, de três anos, é uma dessas crianças que escolhe seu próprio conteúdo e trafega com muita naturalidade no universo do conteúdo sob demanda. “Ele tomou conta do meu notebook, vou ter que comprar um tablet pra mim. Ele pega, mexe sozinho e sabe colocar vídeo no YouTube, aí fica vendo desenhos. De todo tipo, os que ele gosta da TV e as coisas que só tem na internet. Até em inglês ele assiste”, conta a mãe, Raquel Rodrigues. Raquel diz que não tem receio de que Davi acabe acessando conteúdos não adequados para ele porque o YouTube só relaciona vídeos que sejam infantis. “Agora, tem alguns desenhos que eu não gosto que ele veja, tipo com monstros e bichos assustadores”. Esses, o filtro da plataforma não consegue barrar. Mediação e educomunicação O Brasil dispõe de uma das políticas públicas mais avançadas do mundo para proteção das crianças contra conteúdos de entretenimento prejudiciais ao seu desenvolvimento e para o apoio na mediação e escolha de conteúdos pelos pais e responsáveis – a Classificação Indicativa. Porém, programas “policialescos”, que trazem cenas de violência impactantes com justificativa jornalística, publicidades inadequadas e, principalmente, o uso da internet, impõem desafios a essa mediação. Na visão de Isabel Ourofino, justamente pela dificuldade que os pais têm em acompanhar tudo que seus filhos estão consumindo na frente da TV ou computador, é responsabilidade dos produtores de conteúdo pensar na preservação dos direitos da criança mesmo quando eles não estão produzindo para ela. Mas, para além das grades de programação adulta, a mediação é um imperativo também para conteúdos produzidos diretamente para o público infantil. “Não podemos abandonar a criança. As mediações familiares e escolares são importantíssimas. É por causa da mediação que os conteúdos são discutidos”, expõe Isabel. A pesquisadora defende que a criança tem mecanismos de escape próprios da infância e que a intensidade e forma de absorção de toda informação que ela recebe vai depender da interação com seu meio: “ela vai se tornar uma pequena Xuxa ou Barbie se a família incentivar. É a mesma coisa das crianças obesas, que normalmente são filhos de pais obesos. A criança está inserida na sua cultura – que são várias. Existem várias infâncias”. O Catraquinha, portal de notícias voltado para famílias, cuidadores e educadores, reflete a preocupação de alguns grupos no acompanhamento ativo do consumo de mídia por suas crianças. O site é fruto de uma parceria entre o Instituto Alana e o portal Catraca Livre e tem a missão de honrar a infância e reunir informações sobre tudo o que interessa esse público, com o intuito de empoderá-los para que interfiram positivamente no desenvolvimento das crianças. Segundo Mayara Penina, jornalista responsável pelo portal, em todas as matérias em que o tema 'mediação de conteúdos' é tratado, é apresentada aos pais uma visão crítica, com informações e argumentos em relação à exposição da criança às telas e ao consumo de mídia, para que eles percebam que é importante acompanhar o que se consome e discutir sobre aquilo a que a criança está exposta. Adriana Franzin, jornalista da EBC, tem tentado imprimir um perfil parecido ao canal infantil do Portal de conteúdos da casa. A maior parte do material que sua equipe produz, aproximadamente 60%, é destinado à editoria 'Para Pais', que fala sobre saúde da criança, amamentação, desenvolvimento infantil e temas afins. “Para mim, o caminho do sucesso da EBC em relação ao infantil seria dialogar com esse grupo de pais que querem uma maternidade/paternidade ativa e mostrar a eles que podemos responder ao que eles pensam”, defende. A opção de Adriana é estratégica. Isso porque a editora acredita que as telas são prejudiciais para o desenvolvimento do cérebro da criança. “Eu defendo a ideia de que temos que ter um canal só para pais, não devemos estimular o consumo de mídias pelas crianças. (SUGESTÃO DE OLHO) Referências mundias dizem que não devemos produzir conteúdo para elas, eles recomendam que a criança tenha tempo para brincar. Porém, no Brasil, temos um problema: as TVs são babás. No meu ponto de vista, a solução passaria por capacitar as famílias a promover atividades foras das telas que ajudem no desenvolvimento das crianças”, explica. Porém, essa não é uma concepção compartilhada por toda a casa ou tomada como diretriz pela Diretoria da empresa. “Entendo que a nossa produção é uma escolha que está dada. Por mais que eu seja contrária à TV, eu entendo que a TV existe e que as crianças vão ver. Nesse sentido, eu penso que precisamos produzir programas e campanhas que tirem elas da frente da tela, que estimulem a atividade física, ensinem jardinagem, culinária, etc”, completa Adriana. A Sociedade Americana de Psiquiatria recomenda o não consumo de comunicação em telas até os dois anos de idade. Na França, existe uma proibição legal para o consumo de mídia para crianças também menores de dois anos. “Eu tenho até um livro que fala sobre esses riscos, a questão é que o consumo já existe independente do que eu possa recomendar para os pais. É muito comum hoje você ver o bebê no carrinho e ter um tablet na frente dele, é muito estranho! Na inevitabilidade de elas consumirem, é importante ter coisas produzidas especialmente pra elas, mais simples, com menos estímulos visuais, cores primárias, menos palavras. E é importante esclarecer os pais também que a TV não pode ser o único estímulo da criança”, defende Bia Rosenberg. Mayara Penina concorda sobre a necessidade de se discutir o consumo de comunicação e preparar as crianças para este universo, a chamada educomunicação: “não é necessário e nem justo demonizar as tecnologias digitais. Elas podem ser divertidas, educativas, enfim, cumprir o seu papel. O que é necessário é saber dosar seu uso e entender que a brincadeira livre é muito importante e precisa encontrar seu espaço nas agendas cada vez mais apertadas das crianças, em especial as que vivem nas grandes cidades. É importante que exista o tempo do ócio, que a criança não esteja sempre com um aparelho nas mãos”. Facundo ressalta que é preciso reconhecer o papel das telas para essa geração e a relação entre as novas tecnologias de comunicação e a socialização em nossa sociedade, especialmente das crianças. “Dentro desse contexto, em um projeto de televisão para a infância, público e federal, como se pretende o Pakapaka, convidamos os meninos e meninas a perguntar, descobrir, fantasiar, jogar, investigar, criar, se expressar e participar, e isso ganha força verdadeira quando a televisão desliga”. Mariana Leopoldo, com seus 13 anos, acredita ser ela mesmo um exemplo bem-sucedido, de relação saudável com as mídias: “acho que a TV, o videogame e até mesmo a internet não trazem a alegria necessária, as pessoas estão deixando se levarem pela tecnologia. Eu não troco uma brincadeira nem um passeio pela tecnologia!”. Grade Segundo a pesquisa PapagaioPipa 2013, 46% dos lares com crianças possuem TV fechada. Porém, os demais 54% correspondem a mais de 22 milhões de crianças brasileira que só tem acesso a TV aberta. Nos últimos anos, a programação voltada a esse público foi desaparecendo na televisão aberta após a migração das crianças ou “público consumidor”, na lógica das tevês comerciais, para as redes de tevês fechadas e a posterior restrições à publicidade infantil, cenário muito parecido ao de vários outros países da América Latina. Isso, na opinião do Diretor-geral da EBC Américo Martins, proporcionou à EBC a exploração de um nicho e a possibilidade do aumento de sua audiência. (OLHO) “Minha intenção é que a gente continue investindo bastante em programação infantil por vários motivos: primeiro, porque é nossa missão, fazer bons programas infantis, ajudar a formar desde cedo a cidadania nas crianças, e além disso, porque é uma boa oportunidade de mercado para nós”, diz Américo. A programação infantil ocupa, hoje, cerca de 30% da grade da TV Brasil, em número de horas, concentrada no período da manhã e início da tarde. Segundo a PapagaioPipa, 49% das crianças brasileiras estão na escola nesse horário. Durante a semana, os programas não são reprisados no final da tarde ou a noite. Já a TV Cultura, por exemplo, privilegia a programação infantil na montagem de sua grade. “Nossa programação é espelhada. Repetimos à tarde o que vai ao ar pela manhã. A preocupação nossa é realmente atender o público infantil dos dois turnos”, pontua Rita Okamura. Por outro lado, a casa conta com apenas um programa de produção própria atual – os demais pertencem ao seu acervo, são produções de fases anteriores, além de co-produções através de leis de incentivo, e aquisições nacionais e internacionais. Conforme dados do 1º trimestre 2015, a programação infantil da TV Brasil tem 1% de produção própria; 24% de coprodução; e 75% de produção externa. “A porcentagem obedece a ordens de custo, mas a nossa intenção é reduzir a fatia proporcional da produção externa e ampliar a produção própria”, assegura Asdrúbal, diretor de programação. Os dados nacionais contrastam, e muito, com os do país vizinho: no Pakapaka, 80% de toda produção é própria, e os 20% restantes correspondem a co-produções com universidades, canais locais e internacionais. A porcentagem de aquisição tem um limite imposto pela Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual. Américo Martins já definiu sua prioridade para a melhoria da faixa: “minha maior ambição é empacotar melhor esses conteúdos infantis. A gente passa a manhã inteira colocando vários programas todos gravados, um em cima do outro, sem ter um apresentador, uma coisa mais lúdica. Queria ter programas infantis que colocassem todos os desenhos, séries, tudo, com pessoas do ramo apresentando, atraindo mais a criança, explicando pra ela o que vai acontecer na sequência, reforçando mensagens que acabaram de ser abordadas em outros programas. E é possível até que a gente encontre mais horários – no fim da tarde, início da noite – para nossa audiência infantil”. Julho de 2015