Fotos: Arquivo PDHC
Ensiladeira móvel de gestão coletiva para o armazenamento de forragem
Geração do conhecimento
agroecológico a partir da
interação entre atores:
a experiência do Projeto
Dom Helder Camara
Felipe Jalfim, Pablo Sidersky, Espedito Rufino, Fabio Santiago e Ricardo Blackburn
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O
Projeto Dom Helder Camara (PDHC)1
nasceu como uma
resposta governamental à demanda de
movimentos sindicais e sociais, ONGs
e Igrejas por ações permanentes para
o desenvolvimento da agricultura familiar na região semiárida nordestina. Ao
assumir como objetivo principal gerar e
difundir referências que possam orientar
políticas públicas de combate à pobreza e
apoio ao desenvolvimento rural sustentável
no Semiárido, o PDHC adotou o paradigma da Agroecologia como norteador de suas ações.
A partir dessa opção, a abordagem teórico-metodológica do projeto buscou romper com a noção de
transferência de tecnologias, adotando
um enfoque de geração participativa
de conhecimentos. Também experimentou novos processos nas relações
entre Estado e sociedade civil. O postulado assumido pelo PDHC é de que
a geração de conhecimento não é uma
exclusividade da ciência convencional.
Nesse sentido, as famílias agricultoras,
sozinhas ou em interação com pesquisadores e/ou extensionistas, também
têm um papel fundamental no avanço
dos conhecimentos necessários para a
prática de uma agricultura sustentável.
Afinal, observa-se que a experimentação é uma atividade cotidiana na vida
dos agricultores familiares que, de maneira constante, confrontam problemas
que afetam seus cultivos e criações de
animais, imaginam as suas prováveis
causas, implementam ações para atacar
essas causas e refletem sobre os efeitos
dos resultados de suas ações (HOCDÉ,
1997; SUMBERG; OKALI, 1997). Nesse
contexto, a hipótese é que a interação
entre famílias agricultoras, assessoria
técnica e pesquisa seja uma estratégia
eficaz para gerar conhecimentos pertinentes, que fortaleçam a sustentabilidade dos
agroecossistemas da região.
A estratégia tem como meta a promoção de gestões familiares e comunitárias de
agroecossistemas com vistas à coevolução das dimensões ambiental e socioeconômica. Considerou-se que a evolução dos agroecossistemas no sentido da sustentabilidade depende também de uma dinâmica de formação e desenvolvimento de capacidades
e institucionalidades locais e territoriais. Isso significa que para enfrentar o desafio de
fortalecer tipos de manejo de agroecossistemas na perspectiva da convivência com
o Semiárido é fundamental, entre outros aspectos, que as famílias exerçam um papel
qualificado no controle e no acesso às políticas públicas, na organização sociopolítica
e na construção de relações com os mercados.
A organização do trabalho junto às famílias
O arranjo institucional
Para dar concretude aos conceitos, estratégias e premissas mencionados, a
assessoria técnica às famílias foi organizada a partir de um arranjo de abrangência
territorial (Figura 1), que buscou estruturar um sistema coerente de planejamento,
execução e avaliação das ações a partir da integração das equipes técnicas com as
famílias. O foco dessa integração foi a troca de conhecimentos que contemplassem
as necessidades apresentadas pelas famílias. Esse arranjo foi estratégico para que
houvesse articulações entre as famílias, suas organizações representativas e movimentos sociais em uma busca permanente por acesso a políticas públicas e projetos
que fortalecessem as ações em curso, desde o âmbito comunitário até o territorial.
Projeto vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), apoiado pelo Fundo
Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Fida) e pelo Global Environment Facility
(GEF).
1
Experimentação no cultivo ecológico de hortaliças e pomares
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Cabe ressaltar que o sistema de assessoria do projeto contou com dois tipos
de aporte. Em um dos territórios, além das equipes locais de assessoria técnica das
ONGs que atuavam diretamente com as comunidades e assentamentos, buscou-se
articular outros conhecimentos por meio da contratação de consultores especialistas para tratar temas relevantes demandados pelas famílias, principalmente quando as equipes locais de assessoria técnica não contavam com essa expertise. Os
técnicos especialistas atuavam em suas áreas de conhecimento de forma integrada,
em uma abordagem de troca de saberes com as famílias e os técnicos das equipes
locais. Contou-se também com a assessoria de ONGs referenciais em relações de
gênero e geração, assegurando tratamento apropriado dessas temáticas por meio
do acompanhamento das ações e da capacitação das famílias, especialistas e equipes
locais de assessoria.
Figura 1. Esquema simplificado do funcionamento do sistema de
Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) no plano territorial
Ações transversais
de gênero e geração
7
1
Fortalecem a transversalidade
de gênero e geração na
atuação das Equipes e
Especialistas junto às famílias
Demandas identificadas e ações
planejadas por meio do
diagnóstico e planejamento
participativos
Equipes de Assessoria
Técnica Permanente e
Mobilizadores(as)
Sociais
2
6
FAMÍLIAS
AGRICULTORAS
Assentamentos /
Comunidades
Equipes e famílias organizam e
qualificam as demandas, criam
espaços de geração
participativa de conhecimentos e buscam em conjunto
viabilizar o acesso às políticas
públicas
Equipes e especialista
assessoram capacitações e a
elaboração de projetos nas
áreas específicas de sua
competência
5
Equipes e especialista
organizam momentos e
metodologias para facilitar o
aprendizado dos
conhecimentos especializados
3
Caso seja necessário,
acionam especialista
4
ESPECIALISTAS
Especialista interage
no planejamento
da ação
Fonte: SIDERSKY, JALFIM, RUFINO, 2010.
Legenda:
demanda
resposta da demanda
Para complementar esse arranjo no campo da organização social, o PDHC incentivou e apoiou os agricultores familiares na formação de equipes de mobilizadores sociais. Estes ficaram vinculados aos movimentos sociais e sindicais, assumindo
vários papéis, como o controle social dos serviços prestados pelas equipes locais, o
fortalecimento das organizações comunitárias no seu funcionamento cotidiano e a
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difusão de informação e apoio às famílias no acesso às políticas públicas. Ademais, para atender a crescente demanda
de geração de novos conhecimentos, o
PDHC estabeleceu importantes parcerias com diversas universidades e unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) do Nordeste.
Metodologias participativas
chave
A partir do enfoque agroecológico, a assessoria técnica às famílias
de comunidades e assentamentos no
âmbito do PDHC pautou-se em metodologias que favorecem a aprendizagem evolutiva e a geração participativa
de conhecimentos necessários para
promover mudanças nos campos organizacional, tecnológico e produtivo.
Desse modo, os processos de aprendizagem foram construídos em torno
de uma reflexão crítica sobre a realidade das famílias em suas tarefas diárias. Essa estratégia confere uma maior
coerência ao trabalho junto às famílias,
com o estabelecimento de metas bem
definidas de médio e longo prazos,
evitando assim eventos de formação
sem continuidade e que não estejam
no contexto de uma ação maior. Dessa
forma, em vez de realizar um evento
isolado sobre os benefícios da horta
de base agroecológica para a alimentação e a geração de renda familiar e
esperar que a comunidade se mobilize
e adote a proposta discutida, a assessoria técnica optou por uma ação mais
integrada com o seguinte itinerário
metodológico: reuniões de sensibilização, visitas de intercâmbio, oficina
para socialização da visita e, no caso
de haver real interesse na adoção da
proposta, o planejamento e a implantação da horta por meio de uma experimentação participativa.
Dessa maneira, na metodologia
adotada, o elemento central foi a utilização de um itinerário que permitisse o
fortalecimento da capacidade dos agri-
implementado através de vários instrumentos descritos brevemente a seguir.
O sistema de planejamento
participativo
Cultivando a agrobiodiversidade em quintal produtivo
cultores de identificar problemas, formular hipóteses, realizar testes e analisar os
resultados encontrados em seus experimentos. É esse roteiro que cria condições
propícias para uma geração participativa de conhecimento que alimente e estimule
a iniciativa das famílias agricultoras. O enfoque metodológico aqui mencionado foi
Para o PDHC, as atividades de assessoria técnica devem ser planejadas,
desenhadas, implementadas e avaliadas de
forma participativa, junto com os principais interessados/beneficiários. Essa abordagem busca inverter a lógica de Ater
convencional, fazendo com que a assessoria deixe de ser movida pela oferta de inovações e passe a ser mais orientada pela
demanda vinda da realidade das famílias
agricultoras. Quando se inicia um trabalho em uma comunidade ou assentamento, o primeiro passo é a realização de um
Diagnóstico Rápido e Participativo (DRP).
A partir dele, deve-se construir um plano de trabalho para o primeiro ano. Nos
anos subsequentes, renova-se o processo
de planejamento, com a elaboração de
novos planos de trabalho, que passam a
fazer parte dos contratos entre o PDHC
e as parceiras de Ater (SIDERSKY; JALFIM;
RUFINO, 2010). Esse processo promoveu uma dinâmica educativa recíproca,
com base no diálogo, na transparência, na
Algodão em consórcios agroecológicos
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proximidade e no compromisso entre as
famílias camponesas envolvidas, a assessoria técnica, as organizações não governamentais, os movimentos sociais e sindicais
e os diferentes setores governamentais.
Grupos de interesse
Embora a agricultura familiar se
caracterize pela pluriatividade, é comum que um ou mais tipos de atividade produtiva ganhem destaque nas
estratégias econômicas das famílias. É
nesse contexto que a formação e/ou
fortalecimento de grupos de interesse em torno dessa atividade principal
mostrou ser uma metodologia importante para reforçar a organização dos
agricultores familiares nos âmbitos de
comunidade/assentamento, município e
território, de modo que os problemas
e oportunidades comuns sejam tratados de forma articulada. O segredo da
motivação pela articulação reside justamente na afinidade temática. O grupo
de interesse tem uma natureza informal, funcionando como um espaço de
articulação, onde se definem estratégias
e se realiza o planejamento de ações
concretas para a condução de uma atividade produtiva importante para todos os participantes. Isto possibilita, por
exemplo, que um grupo de interesse de
criadores de caprinos de um território
tenha mais agilidade e eficácia na forma
como se relaciona com o mercado.
Intercâmbios entre
agricultores familiares
Para melhorar o desempenho da
lavoura ou da criação, resolver um problema ou desenvolver novas atividades
produtivas, frequentemente é preciso
contar com ideias, informações e conhecimentos novos. Nesse sentido, a
visita de intercâmbio tem se mostrado
um instrumento bastante útil. Trata-se
de organizar o deslocamento de um
grupo de agricultores para visitar um
agricultor ou outro grupo (comunidade, assentamento, associação, etc.). As-
Planejamento ambiental e produtivo de agroecosistemas
sim, nesse tipo de evento, a principal fonte de informação, ideias, conhecimentos, etc.
para o grupo demandante são os pares (INCRA, 2010). O intercâmbio é, portanto,
uma valiosa ferramenta que permite, de maneira interativa e espontânea, comparar
experiências e em muitos casos superar obstáculos que comprometem sua evolução, contribuindo para enriquecer as atividades educativas e promover a mudança
de paradigmas no processo de desenvolvimento de áreas de assentamento e comunidades de agricultura familiar.
Sempre que possível, os intercâmbios entre agricultores devem priorizar visitas
a experiências já consolidadas. Isso significa levar em conta práticas e métodos que já
passaram por processos de seleção e adaptação às condições locais. Um fator decisivo
para o êxito da metodologia é que as apresentações sejam feitas pelos próprios agricultores familiares que, na sua rotina diária, utilizam ou praticam a experiência que vai
ser abordada. Entre 2002 e 2009, o PDHC organizou mais de 180 visitas de intercâmbio, envolvendo 3.800 agricultores de diversas comunidades (FIDA, 2010), números
que mostram o peso dessa estratégia nos processos de aprendizagem.
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mia e autoestima. Isso ocorre porque,
ao experimentarem e refletirem sobre
seus problemas, as famílias agricultoras
camponesas buscam soluções e valorizam formas organizadas e solidárias de
trabalho, desenvolvendo suas capacidades para além dos aspectos técnicos.
Para estimular essa geração participativa de conhecimento, o PDHC
financiou instrumentos denominados
Unidades Demonstrativas (UDs), que
permitiram às famílias incorporarem novos conhecimentos, novas práticas e inovações aos seus saberes. Ao todo, entre
2004 e 2009, foram implantadas 372 UDs,
com a participação de 3.653 famílias.
Fundo de Investimento
Social e Produtivo (Fisp)
O objetivo original da criação
do Fisp era efetuar investimentos não
reembolsáveis visando à melhoria das
condições de vida das famílias por meio
do financiamento de iniciativas produtivas e sociais conduzidas por associações comunitárias.
Experimentação e projetos de pesquisa participativa
Para o PDHC, a experimentação e a pesquisa participativa se constituíram em
ferramentas muito importantes, permitindo que as famílias envolvidas se tornem
agentes multiplicadores permanentes de conhecimentos. De fato, a experimentação
coletiva pode ser um excelente recurso para organizar a ação de Ater, ao propiciar
o desenvolvimento participativo de soluções para problemáticas levantadas. A experiência do projeto mostra que a participação ativa de agricultores e agricultoras
favorece um processo mais seguro de ajuste de propostas técnicas e organizacionais
às condições locais. O sentido da experimentação como ferramenta de assessoria
é, em última instância, o de gerar informação para ajudar na avaliação das novidades, alimentando o processo de reflexão crítica que estimula o aprendizado e que,
como vimos, deve caracterizar todo o processo de assessoria (PINON, 1994). A
prática de pesquisa participativa conduz não só ao uso de tecnologias melhoradas, mas também ao fortalecimento institucional e ao aumento da capacidade da
comunidade para solucionar seus próprios problemas e desenvolver sua autono-
31
No entanto, os primeiros diagnósticos realizados no âmbito do PDHC nos
assentamentos de reforma agrária demonstraram um alto índice de inadimplência no crédito rural, especialmente
no Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar (Pronaf). Diante
desse quadro, o projeto percebeu que o
propósito do fundo teria que ir muito
além do objetivo inicial. Os esforços se
voltaram então para torná-lo um forte
instrumento de capacitação das famílias
e das equipes de assessoria técnica em
processos participativos de elaboração e
gestão de projetos produtivos e sociais
(Fisp, Pronaf, entre outros), bem como
em estratégias para alavancar outras
fontes de financiamento que não as habituais de crédito.
Para tanto, foi realizada a capacitação permanente de técnicos, mobilizadores sociais e representantes das
comunidades e assentamentos, com a
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perspectiva de criar uma nova cultura de elaboração de
projetos produtivos e sociais, cuja premissa básica é fazer
com que as pessoas aprendam a formular ideias, trocar saberes, participar e permitir que outros também participem
(BUNCH, 1995). Constatou-se que essa metodologia amadureceu a reflexão sobre aspectos indispensáveis para o
projeto, como a sua gestão, mas também ampliou a autoestima das famílias, bem como o seu domínio e motivação em
relação ao projeto (PDHC, 2006).
Nesse sentido, além de contribuir diretamente com seus
recursos para a melhoria das condições de vida de 11.727
famílias (entre 2002 e 2009) nas dimensões social, cultural,
econômica e ambiental, o Fisp foi um instrumento fundamental para o acesso qualificado às diversas políticas públicas voltadas para a agricultura familiar no Brasil.
A construção de conhecimentos na prática:
o exemplo dos consórcios agroecológicos
Para se ter uma melhor ideia de como o arranjo institucional e os instrumentos metodológicos se combinaram para
gerar conhecimentos e práticas agroecológicas, apresentamos
um exemplo em que pesquisadores, extensionistas e agricultores, cada um com diferentes aportes de conhecimento, atuaram
de forma integrada e horizontal.
A produção de algodão e alimentos em consórcios
agroecológicos
O roçado de sequeiro é um elemento muito importante
nos sistemas produtivos familiares da região semiárida nordestina. Ele produz alimento (milho e feijão) e forragem para
o rebanho. Até pouco tempo atrás, o algodão integrava esse
roçado e era uma fonte de renda de primeira ordem para as
famílias. Porém, a partir da década de 1970, entrou em crise
por motivos econômicos (preço). Nos anos 1980, a chegada
da praga do bicudo foi a gota d’água, e o algodão praticamente
desapareceu dos roçados familiares.
Houve diversas tentativas de revitalização da cultura do
algodão no Nordeste com técnicas convencionais (principalmente a aplicação de agrotóxicos para o controle do bicudo),
mas elas foram pouco eficazes. Algumas entidades decidiram
então desenvolver uma proposta agroecológica para a produção de algodão. Esse trabalho nasceu no Ceará no início da
década de 19902 e mais tarde foi se expandindo para outros
estados da região.
Em 1993, a ONG Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, com sede no
Ceará, iniciou, junto com a Associação de Desenvolvimento Educacional e
Cultural (Adec) e o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Tauá, um trabalho de experimentação participativa, que buscava desenvolver
uma forma sustentável de produzir algodão.
2
Módulo de formação em campo sobre manejo e convivência com os insetos-praga
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Em 2008, o PDHC procurou o Esplar e a Embrapa Algodão para firmar uma parceria com o objetivo de abordar o
tema do algodão agroecológico nos territórios de abrangência
do Projeto. Essa iniciativa começou a ser levada a campo nos
territórios de atuação do PDHC no início de 2009, quando
aproximadamente 130 famílias de cinco territórios3 plantaram
os roçados consorciados de algodão agroecológico. Em 2010,
houve uma expansão considerável da iniciativa: 500 famílias dos
mesmos cinco territórios passaram a adotar a proposta do
consórcio do algodão agroecológico. Em 2013, esse número
praticamente dobrou, chegando a cerca de mil famílias.
A proposta técnica
Do ponto de vista técnico, o consórcio agroecológico incorpora diversos conhecimentos gerados pelos centros de
pesquisa sobre o tema da convivência com o bicudo, tais
como o ajuste da data do plantio, a catação dos botões florais
e a destruição dos restos culturais do ciclo anterior. Mas a
proposta é, de fato, mais ampla e completa. Para começar, propõe a volta do consórcio propriamente dito, uma vez que a
prática corrente em muitas comunidades do Semiárido é a do
plantio solteiro, seja do algodão ou de outras culturas. Além
disso, a proposta do consórcio recomenda outras práticas,
como a fertilização orgânica, conservação e recuperação dos
recursos naturais, principalmente o solo e a biodiversidade local. Em síntese, o consórcio agroecológico propõe uma reflexão
mais geral sobre o roçado de sequeiro da agricultura familiar
no Semiárido nordestino, buscando fazer com que se torne
mais intensivo, em contraposição a práticas culturais como o
roçado de toco em áreas brocadas e queimadas.
A formação por meio da experimentação e da prática
O PDHC, a Embrapa Algodão, o Esplar e representantes das famílias envolvidas na implementação da proposta dos
consórcios agroecológicos desenvolveram em conjunto um processo de formação baseado na experimentação e na prática
participativa. A formação acompanha todas as etapas do consórcio (do preparo da terra até a comercialização) de maneira
essencialmente prática. As soluções para a superação de entraves na implementação das práticas de manejo do consórcio, a exemplo do plantio em curva de nível, são apoiadas técnica e metodologicamente pelo PDHC e pelas parceiras de
assessoria técnica. A parte da formação que aborda a estratégia de manejo dos consórcios ocorre no campo, em uma área
de consórcio tomada como referência no território. Cabe ao
assessor de formação da Embrapa Algodão ou do Esplar a
facilitação da formação territorial, que conta também com o
suporte de agricultores mais experientes e técnicos da assessoria local e com a supervisão do PDHC. Essas atividades de
formação estão divididas em seis módulos e tratam de temas
focados nas demandas reais de cada período do processo,
desde a implantação dos consórcios até a comercialização.
Já nos primeiros anos, os agricultores demonstraram ter
um domínio considerável das práticas de plantio e manejo dos
consórcios. O controle ecológico da principal praga do algodão,
o bicudo, é um bom indicador de avanço na retomada dessa
cultura. Outro indicador importante é a produtividade média
dos consórcios, que em 20114 alcançou 1.058 quilos (de grãos
mais o algodão em rama – pluma e caroço) por hectare.
Organização social e acesso aos mercados
Desde o início, o trabalho teve como um de seus
objetivos centrais o fortalecimento dos grupos locais, sobretudo por meio da participação das famílias agricultoras
nos espaços de gestão colegiada. Procura-se organizar essa
participação em dois níveis: o local (grupo de interesse/
associação da comunidade ou do assentamento) e o territorial. Para tanto, em 2011 foi criado, em cada território,
um Grupo de Gestão Territorial (GGT), que é composto
por dois representantes de cada um dos grupos locais e
conta com assessoria de técnicos das entidades de Ater,
mobilizadores sociais, técnicos da Embrapa Algodão, do
Esplar e do PDHC. Assim, temas de interesse territorial,
como o descaroçamento, a logística de armazenamento, a
certificação orgânica e a comercialização, passaram a fazer
parte das responsabilidades do GGT.
Em 2012, a prioridade do projeto foi o fortalecimento
desses GGTs. Buscando aprimorar a gestão coletiva territorial, diversos eventos de formação foram promovidos não
mais pelo Esplar ou pela Embrapa Algodão, como em anos
anteriores, mas por organizações sociais dos agricultores e
pelas entidades de assessoria técnica. Essas organizações também são responsáveis pelo processo de descaroçamento do
algodão (separação da pluma do caroço), que permite uma
agregação de valor interessante.
As empresas compradoras do algodão passaram a exigir
um selo de certificação.5 Esse requisito tem se tornado um
desafio a mais para a organização das famílias envolvidas com
a produção de algodão. Até 2011, os produtores de algodão
agroecológico nordestinos utilizaram a certificação por auditoria. Nas áreas atendidas pelo PDHC, a entidade certificadoA última vez em que houve precipitação suficiente para a produção de grãos
e algodão nas áreas monitoradas foi no ano de 2011.
5
No Brasil, a certificação orgânica tem como marco legal a Lei Federal no
10.831 (de 23/12/2003) e o Decreto no 6.323 (de 27/12/2007).
4
Os cinco territórios onde o PDHC atua são: Inhamuns e Sertão Central,
no Ceará; Apodi, no Rio Grande do Norte; Cariri, na Paraíba; e Pajeú, em
Pernambuco.
3
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Agriculturas • v. 10 - n. 3 • setembro de 2013
ra era a Associação de Certificação Instituto Biodinâmico (IBD
Certificações). Entretanto, já a partir de 2010, foi implantado
o Sistema de Controle Interno (SCI), que coleta dados para
verificação pelo próprio grupo. Esses registros eram depois
auditados pela entidade certificadora externa, no caso, o IBD,
mas só esse item (a existência do SCI) já significou uma redução do custo na certificação.
Porém, no esquema de certificação por auditoria com
SCI, a emissão do selo continua sendo feita pela empresa
certificadora. Avaliou-se então que seria interessante avançar
mais para ampliar a autonomia dos agricultores e reduzir os
custos. Para tanto, ficou decidido que seria implantado um
Sistema Participativo de Garantia (SPG).
Em 2013 o conjunto de famílias que participam dos consórcios está com seus SPGs em fase de credenciamento no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que,
por sua vez, tem participado ativamente na reta final de ajustes
e amadurecimento antes da auditoria de credenciamento. No
Brasil, existem atualmente quatro Organismos Participativos de
Avaliação de Conformidade (Opac) credenciados. Somando-se
os 10 das áreas dos consórcios que estão em fase de credenciamento, esse número passará para 14 Opacs.
Principais aprendizados
O enfoque agroecológico adotado pelo Projeto Dom
Helder Camara, centrado na geração participativa de conhecimentos sobre o manejo de agroecossistemas na
perspectiva da convivência com o Semiárido e, ao mesmo
tempo, experimentando novos modelos de relação entre
Estado e sociedade civil, proporcionou uma rica experiência junto à agricultura familiar da região e nos permite ressaltar alguns aprendizados.
Em primeiro lugar, constatou-se que a efetiva participação das famílias agricultoras em todas as etapas do projeto,
junto com outros atores governamentais e não governamentais, especialmente nos processos de planejamento, execução,
monitoramento e avaliação, é condição fundamental para que
as mesmas se apropriem das ações de maneira mais democrática e transparente. Essa participação leva às famílias uma
nova cultura educativa de elaboração, gestão e controle social
sobre as políticas públicas de desenvolvimento territorial.
Observou-se também que a concepção e a prática de
um serviço de assessoria técnica baseado na Agroecologia,
destacando metodologias participativas e um arranjo territorial integrado, constituem uma forma eficaz de geração de
conhecimento, empoderamento das famílias e troca de saberes entre técnicos e famílias agricultoras e entre estas e suas
organizações representativas.
Por fim, é possível concluir que a implementação de um
processo territorial de desenvolvimento rural, caracterizado
por valorizar o conhecimento local e fomento à capacidade
de experimentação dos agricultores familiares, não significa
um afastamento do conhecimento científico e das instituições de pesquisa. Ao contrário, no caso do PDHC, verificaram-se resultados mais significativos, em termos de impactos
­
socioeconômicos e ambientais para as famílias, onde ocorreu
maior sinergia entre agricultores familiares, extensionistas e
Agriculturas • v. 10 - n. 3 • setembro de 2013
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pesquisadores. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o Projeto Dom Helder Camara respondeu de maneira positiva às
oportunidades de colaboração com famílias agricultoras e organizações de pesquisa e extensão.
Felipe Jalfim
Coordenador de Planejamento do PDHC
[email protected]
Pablo Sidersky
Consultor do Fida e assessor da Coordenação Nacional do
Programa de Ates (Incra)
[email protected]
Espedito Rufino
Diretor do PDHC
[email protected]
Fabio Santiago
Coordenador Técnico do PDHC
[email protected]
Ricardo Blackburn
Consultor do PDHC
[email protected]
Referências bibliográficas:
BUNCH, R. Duas espigas de milho: uma proposta de desenvolvimento agrícola participativo. Rio de Janeiro: AS-PTA; Rio Branco: Pesacre, 1995. 220 p.
FIDA. O Projeto de Desenvolvimento Sustentável para
Assentamentos de Reforma Agrária no Semiárido
do Nordeste - O Projeto Dom Helder Câmara. Avaliação
da 1ª Fase. FIDA, 2010. 74p. Disponível em: < http://www.
projetodomhelder.gov.br/site/images/PDHC/Avaliacao_
FIDA/PDHC_Project_Evaluation_final_portugues.pdf >
Acesso em: 30 set. 2013.
HOCDÉ, H. Locos pero no insensatos. San José, Costa
Rica: Programa Regional de Reforzamiento a la Investigación Agronómica sobre los Granos en América Central
(Priag), Instituto Interamericano de Cooperación Agrícola
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INCRA. Referenciais metodológicos para o Programa
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<http://www.incra.gov.br/portal/arquivos/projetos_programas/port_01_dd_ates.pdf>. Acesso em: 30 set. 2013.
PDHC. Manual para elaboração de projetos FISP. Recife: Fida; Projeto Dom Helder Camara; MDA, 2006.
PINON, J. Situación y perspectivas de la experimentación campesina con grupos de productores en
Centro América. Montpellier: Cirad-SAR, 1994. 25 p.
SIDERSKY, P.; JALFIM, F.; RUFINO, E. A estratégia de assessoria técnica do Projeto Dom Helder Camara. 2. ed.
Recife: Projeto Dom Helder Camara, 2010.
SUMBERG, J.; OKALI, C. Farmers’ Experiments: Creating
Local Knowledge. Boulder; London: Lynne Reinner Publishers, 1997.
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