Postal do Algarve
ID: 60085756
03-07-2015 | Cultura.Sul
Tiragem: 7927
Pág: 4
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Mensal
Área: 19,50 x 27,00 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 1 de 1
Letras e Leituras
Os Interessantes – O romance de uma geração
Paulo Serra
Investigador da UAlg
associado ao CLEPUL
Meg Wolitzer nasceu em Nova
Iorque, em 1959, onde vive atualmente. Estudou Escrita Criativa
no Smith College e é licenciada
pela Brown University. É autora
de 30 romances, dois deles já
adaptados ao cinema, estando
mais dois, segundo parece, em
fase de pré-produção para a sua
adaptação. Destes últimos Os Interessantes é o seu mais recente
romance.
Os Interessantes, o seu décimo romance, foi publicado em
2014 pela Teorema, considerado o «Melhor Livro do Ano» pelo
The New York Times. Juntamente
com A Mulher, o outro também
em fase de pré-produção, são as
duas únicas obras da autora publicadas em Portugal.
Os seus romances inserem-se normalmente numa linha
feminista, a excepção é Os Interessantes, um romance de formação de identidade que representa o retrato de uma geração.
Numa noite de verão de 1974,
seis adolescentes conhecem-se
num campo de férias, o «Spirit-in-the-Woods». Cathy, Jonah,
Goodman, Ethan e Ash - três rapazes e duas raparigas -, todos
de Manhattan, aos quais se irá
juntar, como que por acidente,
Julie: «Numa noite amena no
início de julho daquele ano há
tanto evaporado, os Interessantes reuniram-se pela primeira
vez. Só tinham 15, 16 anos, e começaram a utilizar esse nome
com uma ironia titubeante. Julie Jacobson, uma intrusa que até
podia ser excêntrica, fora convidada por motivos inexplicáveis
e agora encontrava-se sentada
a um canto do chão por varrer,
tentando posicionar-se de forma
a não incomodar e ao mesmo
tempo não parecer patética, o
que era um equilíbrio difícil de
conseguir.» (p. 11).
Estes jovens são filhos da revolução sexual marcada pela depressão consequente do arrastamento da guerra do Vietname e,
como é habitual a Meg Wolitzer,
o romance centra-se na perspectiva de Julie, uma protagonista
feminina, como o parágrafo inicial demonstra, mas somente
para através dela se retratar toda
uma geração que atravessa as
questões políticas da época,
em que no «final desse Verão,
Nixon haveria de abandonar
o cargo, deixando um rasto
viscoso de lema atrás de si» (p.
14), passando pelo grassar da
epidemia da SIDA, até chegar
ao terror do 11 de Setembro e
à recessão económica.
Na sua condição de “estrangeira” àquele modo de vida de
um grupo de jovens privilegiados da “cidade”, e que por isso
mesmo podem considerar as artes como área para as suas aspirações profissionais, Julie demarca-se por vários aspectos: mora
nos subúrbios, em Underhill,
numa casa igual a tantas outras
da classe média-baixa americana, o que a constrange de a
convidar algum dos novos amigos; o pai falecera meses antes
vítima de cancro; filha de uma
mulher recém-viúva, sem ambições além das de criar as filhas.
Julie ingressa no campo de férias
graças à sugestão da sua professora de inglês, que sabe haver
uma vaga e ser possível aceitá-la
como bolseira, até porque ninguém da sua vizinhança ia para
campos daquele género, não só
porque não tinham dinheiro,
mas porque isso nem sequer lhes
teria ocorrido: «Todos ficavam na
terra e iam ao despojado centro
de ocupação de tempos livres,
passavam os dias longos com os
corpos oleados na piscina municipal, empregavam-se na geladaria Carvel ou preguiçavam nas
casas húmidas» (p. 16).
fotos: d.r.
Meg Wolitzer é autora de 30 romances
Em contraste, ali todos os jovens aspiram a grandes feitos e
trabalham já no sentido de os
alcançar: «Aqueles adolescentes
à sua volta, todos eles da cidade
de Nova Iorque, eram como realeza e estrelas do cinema francês,
com um toque de qualquer coisa papal. (...) Em suma, naquele
verão de 1974, quando ela ou
qualquer um deles se distraía da
concentração profunda e apática
das suas peças de um só ato, acetatos para animação, sequências
de dança e guitarras acústicas,
acabava a fitar uma porta aberta para um futuro horrível, pelo
que a regra consistia em desviar
apressadamente o olhar» (p. 13).
O romance serve assim tam-
bém uma intenção crítica, por
vezes satírica, de modo a descrever a actualidade americana.
Curiosamente, a própria personagem não é muito simpática
no início do romance, dada a
inveja que sente em relação ao
novo círculo de amigos, que
inesperadamente a irá acompanhar ao longo do resto da
sua vida, e a sua ânsia em querer enquadrar-se, pois continua
sempre insegura e a achar que a
qualquer momento Ash Wolf se
aperceba de que foi um erro a terem convidado a juntar-se àquele grupo. Julie passa entretanto a
ser Jules, conforme os colegas a
apelidam, o que no fundo está
associado a um reconhecimen-
'Os Interessantes' foi considerado o Melhor livro do Ano pelo The New York Times
to daqueles que ela olha como
superiores de como ela própria
é um adulto em potência e já
não uma criança. É sintomático
que seja nesse mesmo verão que
Jules tenha descoberto a ironia:
«A ironia era uma novidade para
si e sabia-lhe inesperadamente
bem, como uma fruta de verão
até então indisponível. Em breve,
ela e os outros seriam irónicos
durante grande parte do tempo, incapazes de responderem
a uma pergunta inocente sem
carregarem as palavras com um
pequeno ajuste mordaz.» (p. 12).
E um dos recursos de Jules para
melhor assegurar a sua inserção
será justamente um certo humor auto-depreciativo, tornando-se sarcástica em relação a si
própria, ao mesmo tempo que
começa a acalentar a esperança
de se tornar uma actriz de comédia, dado o sucesso que obtém
na peça representada no Spirit-in-the-Woods.
Ethan Figman, um rapaz feio,
mas cuja confiança o torna atraente, eternamente apaixonado
por Jules, e um génio da animação, envolvido na história que
ele próprio criou sobre um rapaz
que entra num mundo paralelo
a partir de uma caixa de sapatos
debaixo da sua cama; Cathy Kiplinger, uma jovem dançarina
que se encontra em luta contra
o tempo e contra as transformações que daí advêm sobre o
seu corpo, em crescimento nas
partes erradas; Jonah Bay, filho
de uma famosa cantora folk, o
jovem belo que se revelará homossexual mais tarde, ele próprio dotado para a música, mas
cujo talento lhe foi roubado;
Ash Wolf, uma bela jovem de
boas famílias, que se tornará a
melhor amiga de Jules, e o seu
irmão, Goodman Wolf, que não
parece ter nenhum talento óbvio
além do seu carisma e poder de
atração irrefutável.
Décadas mais tarde, a amizade entre eles mantém-se, embora tudo o resto tenha mudado.
Jules resigna-se a ser terapeuta
e casa com Dennis Boyd, um
simples técnico de radiologia
mas um homem sólido que
lhe transmite segurança e com
quem descobriu o amor que
nunca conseguiu dedicar a
Ethan; Goodman foge do país
devido a ser suspeita de um crime que ameaça o seu futuro e
coloca em perigo a relação de
amizade entre todo o grupo;
Cathy abandona a dança e o
grupo, e torna-se uma empresária; Jonah dedica-se à engenharia mecânica; Ethan é o criador
de uma série de televisão de sucesso e Ash, a sua esposa, é uma
encenadora aclamada.
Este é um romance intenso e envolvente sobre o crescimento pessoal, a formação
da identidade, a aceitação de
quem somos afinal, marcado
pela nostalgia e pelo sentimento de perda: perda de pessoas,
do talento, da ideia que temos
do nosso futuro bem como da
nossa identidade passada.
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Os Interessantes – O romance de uma geração