TEXTO: REDAÇÃO PROFESSOR: NEY SANTANA Uma geração sem palavras Há vinte anos, o domínio de um razoável vocabulário não era julgado nenhum luxo intelectual; pelo contrário, parecia indispensável não somente para alguém se exprimir, mas sobretudo para pensar, uma vez que essa última operação é inseparavelmente ligada às palavras, símbolos dos conceitos. “Mais nous avonschangé tout cela!” Nesse ponto, vejo-me assaltado por uma dúvida cruel. Semelhante falta de vocabulário não será a causa e, ao mesmo tempo, a consequência de uma escassez alarmante de conceitos, de ideias? É de temer que sim. É o que faz supor, entre outros fenômenos, a incapacidade que têm nossos alunos de resumir uma página que acabam de ler, ou de ir até o fim de um livro, mesmo escrito para adolescentes. A falta de qualquer atividade intelectual autônoma criou neles uma indolência estranha. Basta uma descrição algo demorada, algumas páginas sem parágrafos, duas palavras empregadas em sentido figurado, uma frase irônica, para que atirem de lado o livro que pegaram por insistência dos pais ou dos professores. Certo dia, ocorreu-me premiar uma das minhas melhores alunas da 4ª série ginasial com um delicioso livrinho para adolescentes. Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar, que eu mesmo traduzira do húngaro com o intuito de divulgá-lo em português. Estranhando a falta de qualquer reação da parte dela depois de decorridos dois meses, pedi-lhe as impressões. A resposta não deixou de me surpreender: não conseguira ler o livro porque as personagens tinham nomes estrangeiros. Esse único empecilho, evidentemente, não seria bastante para fazê-la abandonar a leitura, se já não estivesse, embora sem sabê-lo, à procura de um pretexto para isso. A pobreza do vocabulário é uma consequência sobretudo da falta de leitura. Os nossos alunos de hoje não têm tempo de ler. Costuma-se culpar os programas malfeitos e sobrecarregados. Mas a esses os jovens sabem opor uma reação natural e eficiente, que consiste em estudarem em casa o menos possível. Não têm tempo, porque o rádio e o futebol, e sobretudo as histórias em quadrinhos e o cinema ocupam-lhes todos os lazeres (e note-se que não falo nos passeios em automóvel, nem na televisão, por enquanto privilégio de uma minoria). Todos esses divertimentos contribuem para desprestigiar a palavra escrita e, em geral, o esforço mental. Quem devora uma história em quadrinhos não vai parar se lhe escapa o sentido de algumas palavras. Se fosse livro de verdade, ele recorreria ao dicionário ou consultaria alguém. Mas o desenho explica tudo e permite que a gente prossiga na “leitura” sem que tenha uma idéia muito clara dos pormenores da história. Se analisássemos os demais passatempos, chegaríamos a resultados mais ou menos idênticos. Mas talvez eu me deixe levar apenas pelas idiossincrasias devidas a uma educação diferente. Os alunos de hoje lerão menos, mas levam, sem dúvida alguma, uma vida mais intensa, mais rica em sugestões. De acordo; apenas, eles não chegam a tomar inteira consciência dessa vida, dessas sugestões, e isso precisamente por causa da falta de vocábulos e de ideias. Há tempos, passei para meus alunos de francês – a outra matéria que ensino – um fácil exercício de redação: três frases com três tempos do verbo aller. A maioria elaborou frases iguais: “Hier je suis allé au cinéma; aujourd'hui jé vais au cinéma; demain j'irai au cinema”. Alguns em vez de “au cinéma” escreveram “à un jeu de football”. Mandei refazer a lição, proibindo nas frases o emprego das palavras cinema e football. Em face dessa proibição, parte da turma não conseguiu fazer o trabalho , pois não lhes ocorreu nenhum complemento de lugar a não ser aqueles dois. Trata-se de uma crise geral da civilização, está certo. A cultura que nos criou, baseada toda ela na palavra escrita, está em via de se transformar e, forçosamente, transformarse-ão também seus meios de expressão. Mas o ritmo dessa metamorfose é menos rápido que o do empobrecimento intelectual dos nossos jovens, que estão abrindo mão de uma ferramenta preciosa antes que a nova marca se encontre à venda. Por Paulo Rónai, em 1954.