Reprodução de resenha publicada em O Estado de S. Paulo – Cultura – 10.02.08
Romance sobre o cinismo de uma sociedade interesseira
Alienação denuncia universo onde a política cede lugar a arranjos quase caseiros
Ricardo Lísias
Se nos últimos dois ou três anos as livrarias brasileiras ganharam novas traduções de autores russos já
conhecidos entre nós, como Tolstói, Dostoiévski e Gorki, O Diabo Mesquinho entra nessa pequena e
notável biblioteca com um mérito a mais: apresenta um autor inteiramente desconhecido, Fiódor
Sologub. Com os três, Sologub tem em comum a extraordinária habilidade romanesca que faz o leitor
ficar preso ao texto até terminar a última linha, isso sem adotar nenhum procedimento de suspense.
Para quem está atrás do velho e insubstituível prazer na companhia de um bom livro, O Diabo
Mesquinho é a minha indicação.
Lançado no começo do século passado, o livro se passa em torno das aventuras de um professor que,
mesmo sem a maioria dos atrativos de praxe, torna-se alvo dos desejos casamenteiros de diversas
mulheres, que o cobiçam ao mesmo tempo em que aprontam todo tipo de tramóia contra as
adversárias. É ao redor do possível matrimônio que as outras relações aparecem, sempre cheias de
falsidade, pensamentos maldosos e atrapalhações de toda natureza. Alguns trechos são hilários, como
quando por exemplo uma das pretendentes, hábil no discurso, convence outra das enormes vantagens
de esfregar uma urtiga no corpo. Segundo ela, a sábia atitude evitaria o emagrecimento, já que o
professor prefere as mulheres, por assim dizer, mais cheias. Uma personagem também ensina a outra
uma manobra para evitar a ingestão de café com cicuta. Só não sabemos se a técnica funciona mesmo
ou se o tiro vai sair pela culatra. O ambiente pitoresco, alimentado por todo tipo de maldade cotidiana,
dá o tom do enredo, quase sempre dominado por diálogos ligeiros e divertidos. Às vezes, comparações
esdrúxulas alimentam o humor; outras, a ironia aparece para denunciar intenções escusas das
personagens.
A espinha dorsal do livro é a forma dialogada, que domina a maioria das páginas e ofusca o narrador.
A estrutura se dá através da apresentação de uma situação, que logo em seguida passa a ser discutida,
ou protagonizada, pelo diálogo entre as personagens. O procedimento, que exige mão leve obtida com
sucesso na tradução, faz com que as personagens se componham através da fala, às vezes em
verdadeiros duelos verbais, vencidos pelo mais esperto. Aqui está uma diferença crucial com a
narrativa, memorialística ou não, de Gorki: para o autor de Minhas Universidades, que também cultiva
o diálogo, o triunfo quase sempre se dá através da força, ficando a esperteza em segundo plano.
Outra aproximação interessante pode ser com a obra de Dostoiévski, com quem Sologub compartilha
certo gosto, aqui e ali, por situações grotescas. Os Demônios, por exemplo, também está cheio de
maldades de salão, muito embora suas conseqüências, no mais das vezes, sejam um tanto mais
violentas do que em O Diabo Mesquinho. Enfim, Sologub não perde nada quando é aproximado aos
autores mais conhecidos entre nós da literatura russa, ao contrário, é tão grandioso quanto eles.
Mas eu ainda quero arriscar uma outra comparação, agora mais inusitada. O Diabo Mesquinho
compartilha com os melhores romances de Machado de Assis a matreira visão de uma sociedade em
que as atitudes, frágeis e prontas para serem desfeitas, estão sempre se formando em um plano cuja
base é o interesse, o cinismo e o oficioso. Ao contrário do brasileiro, porém, Sologub não investe na
figura do narrador, apostando tudo na voz direta das personagens. Como no caso de Machado,
conflitos ideológicos mais diretos aparecem raramente. De vez em quando, os socialistas, àquela altura
um grupo que crescia sem deixar muito claro seu potencial de ameaça, são citados, mas logo
desaparecem, dando lugar a alguma discussão sobre o matrimônio do professor e que tipo de cargo
isso poderia gerar. O contrário também vale: de repente, um cargo pode facilitar as coisas para uma
pretendente.
A alienação das personagens denuncia um microcosmo social em que a política propriamente dita, ao
menos em sua variação oficial, dá lugar a arranjos quase caseiros. Trata-se, portanto, de uma
sociedade arcaica, frágil em sua constituição ideológica, voltada sobretudo para interesses quase
pedestres. Aqui, Sologub e Machado de Assis são praticamente irmãos, a despeito das enormes
diferenças que existiam entre a Rússia pré-revolução e o Brasil do início do período republicano. São
dois escritores procurando compreender as dificuldades que suas respectivas sociedades enfrentavam
enquanto os países centrais fabricavam velozmente a modernidade, da qual a propósito tanto
brasileiros quanto russos ficaram na vizinhança.
O Diabo Mesquinho, assim, mais do que apenas revelar outro grande escritor russo (e só isso já estaria
de bom tamanho) vale como um ótimo exemplo de que, de fato, a boa literatura é capaz de, com sua
forma particular, absorver tanto a história de uma sociedade particular, quanto mais amplamente a
época em que é produzida. E, como se fosse pouco, ainda vai além disso: no mais oferece, como eu
disse no início, um enorme prazer.
Ricardo Lísias é escritor, autor de Anna O e Outras Novelas, entre outros livros
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