O paradoxo do laicismo contemporâneo na perspectiva de
uma sociedade multicultural e fraterna
The paradox of contemporary secularism in the
perspective of a multicultural and fraternal society.
George Augusto Raimundo da Costa1
RESUMO: O presente artigo discute os limites de aplicação do princípio da laicidade do
Estado, verificando alguns casos em que em nome dele foram cometidos abusos aos
direitos fundamentais do homem. Tais abusos, além de afrontar a liberdade religiosa,
demonstram que o que se vem chamando de laicismo é, na verdade, uma visão distorcida
do que apregoavam os principais pensadores do Estado laico, para os quais este não se
confundia com Estado anti-religioso. A partir dessa análise, ele nos leva a perceber que uma
nova e perigosa ideologia, com características totalitárias, a exemplo do nazismo, pode
estar ganhando espaço em nossa sociedade. Nesse ínterim, esse tipo de ideologia pode
ser, ainda mais facilmente, disseminada devido à acentuação dos aspectos individualistas
que isolam os cidadãos, os esvaziam de qualquer sentido, e os tornam, assim, mais
receptivos a qualquer doutrina ideológica que os preencha e lhes dê uma causa pela qual
devam lutar. Por fim, ele faz uma análise das propostas do multiculturalismo e da
fraternidade política, mostrando, de um lado, sua importância para o atual estágio de
desenvolvimento da humanidade e para o fortalecimento dos institutos democráticos, e do
outro, a incompatibilidade entre essas propostas, marcadamente tolerantes e inclusivas,
com a intolerância do laicismo contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Laicismo; Totalitarismo; Fraternidade.
ABSTRACT:T This article discusses the limits of the application of the principle of state
secularism, noting that in some cases on its behalf abuses against the fundamental rights of
man were committed. Such abuses, besides confronting religious freedom, showed that what
has been called secularism is actually a distorted view of what preached the leading thinkers
of the secular state, for which secularism did not mingle with anti-religious state. From this
analysis, it makes us realize that a new and dangerous ideology with totalitarian
characteristics, such as Nazism, can be gaining ground in our society. Meanwhile, this kind
of ideology can be more easily spread due to the emphasis on individualistic aspects that
insulate citizens, emptying them from any meaning, and thus making them more receptive to
any ideological doctrine that satisfies them and gives them a cause why should struggle.
Finally, it analyzes the proposals of multiculturalism and political fraternity, showing, on one
hand, its importance for the current stage of human development and the strengthening of
democratic institutes, on the other, the incompatibility among these proposals, remarkably
tolerant and inclusive, with the intolerance of contemporary secularism.
KEYWORDS: Secularism; Totalitarianism; Fraternity.
1
Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES.
Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X
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1. Breve histórico do laicismo
O termo laico, que etimologicamente provém do grego laikos, e quer dizer
popular, bem como suas derivações, incorporara ao longo do tempo valores das
mais diversas correntes político-filosóficas. De acordo com Bobbio et al (1986. p.
670), “as diferentes significações do Laicismo reúnem em si a história das ideias e a
história das instituições e podem ser resumidas nas duas expressões clássicas:
„cultura leiga‟ e „Estado leigo‟”. Por leigo, tem-se aquele que não faz parte de uma
ordem clerical, mas pertence ao povo. A laicidade pressupõe antes de qualquer
coisa a separação entre Religião e Estado, sem que um interfira no campo
pertencente ao outro. Tal pensamento surgiu, notadamente nos círculos europeus,
em resposta às numerosas e infelizes consequências que resultaram da ingerência
mútua desses poderes em ambas as esferas de atuação.
A partir dessa ótica, é possível chegar a uma definição mais abrangente do
conceito de laicismo, que, de fato, como analisou Bobbio, está presente não só no
campo político, mas influenciando boa parte da cultura ocidental dos últimos
séculos. A expressão “cultura leiga” passa a ser uma realidade com a evolução das
ideias defendidas pela filosofia racionalista e imanentista que, ao rejeitarem a
verdade revelada, definitiva, defendem a livre busca de verdades relativas. (BOBBIO
et al., 1986. p. 670) A partir do século XV, o afastamento da Filosofia e da Moral da
esfera religiosa encontra expoente com o renascimento e culmina, no século XVIII,
com os conceitos iluministas que dão início ao primado da Razão sobre a Fé.
Todos os fatores da vida passam a ser analisados não necessariamente pela
ótica transcendental. A própria existência do Estado Confessional passa a ser
incompatível com os novos padrões e exigências da sociedade moderna, na qual a
tolerância é alçada a princípio universal e a religião posta como elemento fora da
competência estatal, e inserida no complexo de escolhas privadas do homem,
embora isso não significasse que suas manifestações externas estivessem restritas,
da mesma forma, à esfera particular de cada indivíduo.
Nesse ínterim, a obra dos precursores do laicismo não é apenas de extrema
importância para definí-lo. É também o regulador teórico do que ele de fato vem a
ser, e a linha divisória entre o laicismo originário e o fanatismo ideológico, coberto
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apenas superficialmente por princípios laicos. Isso se dá não em razão de o laicismo
ter um conceito imutável, estabelecido em definitivo pelos seus defensores iniciais,
mas pelo fato de que são pelos mesmos argumentos que aqueles usaram para
combater uma forma de intolerância do seu tempo, que agora se deve afastar do
radicalismo oposto, tão intolerante e indesejável quanto o combatido naquela época.
A origem laica do poder é defendida pela primeira vez na história com a
doutrina cristã de São Tomás de Aquino, no século XIII. Comentando este fato,
Mattos declara que para Tomás de Aquino (1986. p. 13-14), “O Estado (poder
temporal) é concebido como instituição natural, cuja finalidade consistiria em
promover e assegurar o bem comum”. A Igreja, por sua vez, seria essencialmente
voltada ao sobrenatural.
Séculos mais tarde, Rosseau afirmaria que não cabia ao Estado deter-se em
assuntos religiosos, que divagam em seara distinta daquela em que ele se
fundamenta, devendo se ocupar somente dos aspectos concernentes ao bem
comum, à vida em sociedade. Rosseau, na sua obra Do Contrato Social, refuta a
ideia de que a sociedade mais perfeita seria aquela formada unicamente por
verdadeiros cristãos, uma vez que os assuntos ligados à religião, na maior parte das
vezes, não dizem respeito ao Estado, bem como os deste não são da competência
daquela. (ROUSSEAU, 1983. p. 143)
Jonh Locke escreveu em sua “Carta sobre a Tolerância” que o Estado é fruto
de um acordo mútuo entre homens livres objetivando proteger seus direitos e
resolver conflitos. (LOCKE, 1983. p. 05) Locke também vê no Estado o provedor de
leis imparciais e uniformes, sendo sua função somente preservar os direitos sobre
bens e aspectos desta vida, afinal: “o poder do governo civil diz respeito apenas aos
bens civis dos homens, está confinado a cuidar das coisas deste mundo, e
absolutamente nada tem a ver com o outro mundo”. (LOCKE, 1983. p. 07)
Mas, o verdadeiro avanço do pensamento de Locke em relação a seus
predecessores é pelo destaque dado à tolerância como princípio inafastável para a
manutenção de uma sociedade harmônica, uma vez que a intolerância foi matriz de
numerosas convulsões sociais. Michael Walzer diz que a tolerância possibilita “a
coexistência pacífica de grupos de pessoas com histórias, culturas e identidades
diferentes”. (WALZER, 1999. p. 04)
A partir desta breve análise, já é possível constatar que nada é mais estranho
às origens do pensamento laicista que a falta de tolerância entre as confissões
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religiosas ou a elas. Neste ínterim, é salutar uma observação sobre o que se
entende por confissão religiosa. Em termos práticos, e conforme ensinamento de
Bobbio, o que diferencia uma confissão religiosa de uma pluralidade de homens que
se apresentam como um simples grupo de interesses é a existência de uma
estrutura orgânica que tal coletividade vai adquirindo em decorrência de sua
organização e de seu comportamento como um único sujeito (BOBBIO et al., 1986.
p. 224). Tal fato é verificado através de manifestações visíveis que exteriorizam o
sentimento religioso comum, como os ritos, liturgias, costumes, cerimônias, além de
princípios inspiradores etc. É para assegurar os direitos destas confissões e regular
sua relação com o Estado que subsistem, com a mesma relevância dos séculos
passados, as discussões acerca da extensão do Estado laico e das normas que
versam sobre tal temática.
2. Leis e declarações internacionais que defendem a liberdade religiosa
A liberdade religiosa tem um longo e gradual processo de consolidação como
elemento indispensável às democracias contemporâneas. O início de sua
fundamentação jurídica encontra suas bases nas reformas protestantes e nas
guerras religiosas. Esses eventos trouxeram à tona o debate acerca da tolerância e,
posteriormente, da liberdade religiosa. Nos Estados Unidos, esse processo
conseguiu avançar do campo das discussões sociais e políticas para o campo
jurídico-normativo, com a proibição constitucional do Estado de instituir uma religião
oficial. Mais tarde, alguns países europeus também seguiriam esse modelo de
separação entre Estado e religião. No século XX, alguns países passaram a
codificar e constitucionalizar os direitos coletivos e os direitos fundamentais, como a
liberdade, a igualdade e a vida (FRANÇA et al., 2007. pp. 342-343). Mas foi depois
das atrocidades da segunda guerra mundial que as nações elegeram os direitos que
julgavam ser os de maior valia, devendo ser respeitados em qualquer situação e
acima de qualquer interesse. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a
Organização das Nações Unidas – ONU, foi a porta voz dos anseios das
comunidades de vários países, que almejavam ver a dignidade humana com o
status de direito fundamental para o desenvolvimento do homem e reconhecida
como princípio inspirador do ordenamento jurídico.
O artigo XVIII da referida Declaração expõe que:
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Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;
este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade
de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e
pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular
(ONU, 1948).
E ainda assegura: “Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”
(ONU, 1948).
Assim, baseado no compromisso das Nações de colaborarem para a
concretização de tais direitos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos vem
servindo de orientação para a inclusão de seus valores como normas codificadas em
cada ordenamento jurídico nacional.
Sob esta orientação, outras Convenções de grande influência internacional
foram discutidas e assinadas por representantes de várias nações e culturas ao
redor do mundo. No Brasil, a Constituição Federal protege a liberdade religiosa, que,
para Gilmar Mendes, inclui a “liberdade de crença, de aderir a alguma religião, e a
liberdade do exercício do culto respectivo” (MENDES et al., 2008. p. 416), através de
uma série de artigos. No inciso VII do artigo 6º da Carta Magna tem-se que: “[...] é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos, e garantida na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as
suas liturgias” (SENADO, 1988).
Para assegurar a concretização deste artigo, o constituinte estabeleceu a
imunidade de impostos sobre templos de qualquer culto (art. 150, VI, b, da
Constituição Federal), evitando assim que o Estado possa através da tributação criar
obstáculos à liberdade de religião.
Tão forte é o valor atribuído ao aspecto religioso no desenvolvimento do
homem que o ensino religioso em entidades públicas de ensino fundamental (CF,
art. 210, § 1º), o direito à prestação religiosa em entidades civis e coletivas de
internação coletiva (CF, art. 5º, VII) e a própria permissão para que o casamento
religioso produza efeitos civis (CF, art. 226, §§ 1º e 2º) foram admitidos pelo Texto
Magno. A Constituição também não impede a colaboração do Estado com as
denominações religiosas quando os empenhos mútuos convergem para o interesse
público (CF, art. 19, I). Para Gilmar Mendes, ministro de um dos órgãos
responsáveis pela interpretação do Texto Constitucional, o Supremo Tribunal
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Federal, a Carta Magna convalida esse sentimento de religiosidade do povo
brasileiro reconhecendo a contribuição que pode ser dada pelas religiões ao seio
social:
A sistemática constitucional acolhe, mesmo, expressamente, medidas de
ação conjunta dos Poderes Públicos com denominações religiosas e
reconhece como oficiais certos atos praticados no âmbito de cultos
religiosos, como é o caso da extensão de efeitos civis ao casamento
religioso (MENDES et al., 2008. p. 419).
Por fim, percebemos em outros diplomas legais do ordenamento nacional a
preocupação em proteger aqueles que praticam ou externam algum tipo de credo,
bem como a realização de suas cerimônias e cultos. No artigo 208 do Código Penal
Brasileiro, por exemplo, é previsto uma pena de detenção ou multa para aqueles que
atentam de alguma forma contra tais atos e contra o sentimento religioso de
qualquer cidadão.
Ante o exposto, é possível identificar em que momento a defesa de uma
ideologia pode estar ferindo, ou ameaçando, o ordenamento pátrio ou as
convenções internacionais acerca do direito à liberdade religiosa e de expressão
dentro de um Estado fundamentalmente laico. Era preciso analisar sobre qual base
jurídica assenta-se o direito dos povos, inclusive no Brasil, à liberdade de aderir a
determinado credo e exercer a plena cidadania segundo seus preceitos. Como
observado, tais pressupostos já foram devidamente positivados, não obstante os
esforços humanos para sua realização. Isso faz com que a ressalva de Bobbio
torne-se cada vez mais pertinente: o maior desafio deste século não será o alcance
de novos direitos, mas a proteção daqueles já existentes (BOBBIO, 1992. p. 25).
3. Casos de intolerância e discriminação em nome do laicismo
Alguns exemplos elucidam uma clara tendência a deturpação do espírito
laico. Em um episódio recente, envolvendo brasileiros, a censura à exteriorização do
sentimento religioso revela um crescente repúdio dos organismos de alcance
internacional a este tipo de manifestação, que, todavia, se insere entre aqueles
abrangidos pela liberdade de pensamento e expressão. Em Julho de 2009, após a
vitória da seleção brasileira na Copa das Confederações, realizada na África do Sul,
alguns dos jogadores decidiram comemorar o título exibindo camisas com
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mensagens religiosas. A atitude, no entanto, foi alvo de críticas imediatas por parte
da Confederação Dinamarquesa de Futebol que acionou a FIFA exigindo uma
repreensão aos brasileiros, sob a justificativa de que aquela atitude feria as pessoas
de outros credos e abria um precedente para que adeptos de outras crenças
também agissem dessa forma. Para o diretor da Associação Dinamarquesa isso
seria algo inaceitável, vez que “A religião não tem lugar no futebol" (CHADE, 2009).
Segundo o artigo de uma revista de grande circulação no país:
Dias após a final, a entidade que controla o futebol mundial entregou
documento a Ricardo Teixeira pedindo para a CBF evitar que os atletas
usem camisas com mensagens religiosas nas premiações (ITRI, 2009. pp.
64-72).
As fotos do episódio, presentes em vários sites na internet, levam-nos a perguntar o
que pode haver naquela demonstração tão espontânea e despojada de satisfação
pela vitória alcançada que seja capaz de agredir os descrentes ou adeptos de outras
religiões. Qualquer pessoa consegue ver, pela expressão de alegria até infantil dos
jogadores e membros da equipe técnica, que não há naquela atitude nenhum desejo
de ofender ou menosprezar as demais religiões, mas a simples demonstração da
religiosidade, que faz tão parte da história cultural do homem quanto os esportes.
Pelas normas da FIFA, qualquer atitude que possa fazer referência a
denominações políticas e religiosas são proibidas durante a realização dos jogos,
mas não após seu término, quando a liberdade de cada jogador para comemorar
sua vitória não pode sofrer limitações, exceto quando agridem outros indivíduos.
Num universo heterogêneo e multicultural como o observado no mundo
globalizado, o respeito e a convivência pacífica entre as mais diversas culturas
passa necessariamente por uma postura de não hostilidade às culturas e formas de
pensar alheias. Porém, isso não significa de nenhum modo que se deva promover
uma homogeneização cultural, ou que os aspectos de determinada cultura, entre
eles os religiosos, devam ficar enclausurados no âmbito particular, como se tratasse
de uma característica pessoal da qual se deve ter vergonha. Ou ainda, que de tão
nociva ao corpo social, sua simples demonstração pública golpeasse de imediato a
dignidade dos outros indivíduos, merecendo ser censurada ou repreendida. Logo,
carece de razão um pleito que vê como ofensa a comemoração de um atleta que
atribui sua conquista pessoal ao Deus que ele presta culto e, dentro de sua esfera
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de liberdade, sem objetivar diminuir adeptos de outras crenças, expressa isso em
público. Essa publicidade é uma característica própria do fenômeno religioso. Ao
falar sobre o caráter público da religião, Mendes Machado et al (1996. p. 333)
salienta que:
[...] a mesma não se contenta com uma esfera subjetivo-intelectual, de
crença ou adesão a uma ortodoxia, exigindo, para além disso, uma conduta
ética (ortopraxis) que necessariamente transcende o âmbito restrito da
devoção privada ou doméstica e se reflete nas mais diversas esferas de
ação social em que os indivíduos se realizam. [...] a dimensão interior do
fenômeno é complementada com uma vocação orientada para o exterior no
sentido de „publicitação‟ da mensagem religiosa de forma a atingir
segmentos mais alargados da população.
Com isso, percebe-se que a situação apontada trata-se de um caso latente da
intolerância aos símbolos religiosos em nome de uma ideologia laica que pretende
alcançar e influenciar todas as áreas de atuação humana, impondo, a custo da
diversidade cultural e da liberdade individual, suas concepções e estilo de vida.
Como leciona Alexandre de Moraes (2008. p. 40): “[...] o constrangimento à pessoa
humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade
democrática de ideias, filosofia e a própria diversidade espiritual”.
No Brasil, os casos de agressão às garantias inerentes à liberdade de crença
também podem ser constatados. Autoridades religiosas e leigos de vários credos
vêm denunciando abusos e alertando para o fato de que a laicidade, embora
saudável e necessária à democracia, quando não observada em consonância com
suas propostas históricas de inclusão e tolerância, pode gerar a exclusão de todas
as denominações religiosas e, por conseguinte, de seus adeptos, dos diálogos
acerca de muitos dos assuntos de interesse nacional. Pelo contrário, como leciona o
ministro Gilmar Mendes et al (2008. p. 420), “A Constituição (...) toma a religião
como um bem valioso por si mesmo, e quer resguardar os que buscam a Deus de
obstáculos para que pratiquem os seus deveres religiosos”.
Contudo, o que podemos observar é que em debates como o que foi
levantado e remetido ao Supremo Tribunal Federal no tocante ao aborto de fetos
anencéfalos, houve declarações de autoridades governamentais (como o então
Ministro da Saúde Humberto Costa; Nicéia Freire, em defesa dos “direitos da
mulher”, etc.) objetivando excluir as igrejas da discussão. Segundo eles, “esse
assunto devia ser estudado „exclusivamente como questão de saúde pública, e não
do ponto de vista ético‟” (FAUS, 2009). Esse estratagema restringiria o campo de
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debate e decisão somente a grupos que não pudessem ser identificados com
nenhuma tradição religiosa, o que, como visto no tópico anterior, se configura como
um ato de inconstitucionalidade, na medida em que alimenta uma forma de
discriminação e limitação ao exercício da cidadania por determinados indivíduos a
partir de critérios subjetivos.
Da mesma forma, essa linha de argumentação foi novamente levantada
quando da discussão acerca da permissão do uso de células-tronco embrionárias
em pesquisas científicas, rejeitando a oposição da CNBB, Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, e de outras denominações, como intromissão indevida da Igreja e
da religião em assuntos científicos e em decisões de um Estado laico (FAUS, 2009).
Para Francisco Faus, da Associação Cultura e Atualidades, as críticas por parte da
imprensa à Igreja, que tentou participar do debate expondo seu ponto de vista
“chegaram a ser mordazes, ofensivas para a Igreja, para os católicos e para os fiéis
de outras crenças” (FAUS, 2009).
Logo, é explícito que a confusão, às vezes mal intencionada, acerca do que
significa o caráter laico do Estado, está bastante presente na sociedade brasileira, e
vem sendo usada como justificativa para menosprezar o aspecto religioso dos
cidadãos. Até mesmo os símbolos e feriados religiosos vêm sendo questionados, na
esteira das polêmicas geradas pela defesa de semelhantes argumentos em outros
países, como uma espécie de atentado à dignidade daqueles para os quais aquelas
datas e ícones nada significam. A incongruência dessa alegação está no fato de que
todas as nações têm símbolos, heróis e datas que fazem parte da história e da
cultura do seu povo, sem que isso acarrete prejuízo aos cidadãos que pessoalmente
reconheçam mais alguns desses elementos em detrimento de outros. Sobre o uso
dos símbolos religiosos nas repartições públicas, Fernando Capez entende, com
correta e coerente argumentação, que:
A retirada de símbolos já instalados, mesmo que em repartições públicas,
leva à alteração de situação consolidada em um país composto pela quase
totalidade de adeptos da fé cristã e agride, desnecessariamente, o
sentimento de milhões de brasileiros, apenas para contentar a intolerância e
a supremacia da vontade de um restrito grupo de pessoas (CAPEZ, 2009. p.
54).
Para o autor, baseado nas observações de Michel Villey:
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[...] há uma clara e indesejável tendência nos sistemas jurídicos
contemporâneos de conferir à laicidade, um conteúdo de antagonismo à
religião, deturpando-a em puro laicismo, no qual a fé é desprezada e
totalmente substituída pelo racionalismo profano (CAPEZ, 2009. p. 54).
Ora, o sistema democrático, não obstante o respeito às minorias, não deve
atentar contra as concepções da maioria de seus cidadãos pelo simples desejo ou
entendimento
de
algumas
vozes
que
dizem
representar
essas
minorias,
especialmente quando seus símbolos não carregam nenhuma conotação que as
deprecie ou agrida. Bobbio entende que: “O Estado leigo, quando corretamente
percebido, não professa uma ideologia „laicista‟, se com isto entendemos uma
ideologia irreligiosa ou anti-religiosa” (BOBBIO et al., 1986. p. 670). A simples
discordância ou incredulidade, por parte de alguns, quanto a algum elemento da
tradição cultural e religiosa majoritária do país não justifica a eliminação de seus
símbolos dos espaços públicos, nem mesmo torna sua existência um fator de
menosprezo às diversas concepções religiosas. Essa é a valiosa peculiaridade da
democracia: ela permite o reconhecimento por parte do poder público de diversos
elementos do contexto político-cultural da sociedade, sem que, com isso, se
pressuponha estar ferindo os que não tenham sido vislumbrados por determinado
ato, mas que, todavia, são abrangidos por outros. Häberle (2001. p. 117) lembra:
Esses símbolos dizem frequentemente mais sobre o espírito de um povo do
que algumas normas jurídicas. Desse modo, declaram-se dias festivos,
constroem-se monumentos, nomeiam-se ruas, são criadas e são saudadas
bandeiras e se cantam hinos. Desse modo, se elabora a história e se traça
o futuro
No próprio conceito de liberdade religiosa, inclui-se a liberdade para professar
a fé em Deus, seja através da demonstração em locais públicos ou particulares.
Para Gilmar Mendes (2008. p. 420):
O Estado que não professa o ateísmo, pode conviver com símbolos os
quais não somente correspondem a valores que informam a sua história
cultural, como remetem a bens encarecidos por parcela expressiva da sua
população.
A utilização do laicismo como justificativa para diminuir a expressão social dos
adeptos de alguma crença, e o valor dos argumentos que estes levantam nos
debates de interesse nacional, aponta gravemente para um viés totalitário e
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ideológico desse laicismo. Uma das principais marcas dos pensamentos que
levaram à implantação de regimes totalitários é a concepção de que a única verdade
existente é aquela que apregoam, e para sua aplicação todos os meios devem ser
utilizados e opositores silenciados. Tendo em vista o clamor de terror e alerta que,
através da história, ainda emana dos Gulags e das câmaras de gás e chega até as
sociedades atuais, cada vez mais amedrontadas e dispostas a abrir mão de seus
direitos em troca de algo que lhes dê segurança, é necessária uma análise mais
aprofundada sobre até que ponto a defesa intransigente do laicismo pode estar
gradual e perigosamente se aproximando do totalitarismo.
4. Elementos do totalitarismo no laicismo contemporâneo
O totalitarismo marcou uma das páginas mais obscuras da história do homem
e levantou questões perturbadoras, como o apoio das massas aos projetos nazifascistas. O fato das ideologias totalitárias não demonstrarem, num primeiro
instante, até onde podem ir seus agentes no desejo de ver implantado seu modelo
de sociedade perfeita, é, para Arendt, seu aspecto mais característico (ARENDT,
1989. p. 345). Se em sua fase inicial, o totalitarismo parece inofensivo, uma simples
concepção radical de ver o mundo, é porque ainda persiste um número razoável de
oposição organizada às suas propostas, que, tão logo seja eliminada, permitirá ao
governante totalitário liberar todo o terror contido nessa espécie de ideologia.
Ao se colocarem como instrumentos dos movimentos totalitários, as massas
puseram em questão a confiança dos governos na soberania da maioria (ARENDT,
1989. p. 362). Arendt (1989. p. 361) explica que:
Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a
maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se
filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto.
Essas massas seriam, na visão de Odilon Alves Aguiar, o fruto da demanda pelo
progresso e prosperidade, que, ao invés de liberar, empurrou o homem para o jugo
do trabalho e o fez esvaziar-se dos valores até então relacionados aos contatos e as
relações humanas (AGUIAR et al., 2003. p. 108). A partir daí, todas as atividades
perdem seu aspecto comunitário e construtor de um ambiente mais habitável para a
coletividade, para serem encaradas como formas de alcançar maior prazer e
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dominação individual, através do binômio trabalho e consumo (AGUIAR et al., 2003.
p. 108). Uma vez se sentindo vazio e isolado, o indivíduo passa a ser seu próprio
referencial, o que leva à condição perfeita para a recepção das ideias totalitárias:
Sua solidão congênita, seu deserto, torna-se um campo fértil para a
disseminação e propaganda das identidades fictícias, raciais, étnicas,
abstratas etc. A nulidade experimentada na solidão é substituída pela força
de pertencer ontologicamente a uma entidade superior. É daí que vem a
força do totalitarismo. [...] O governo totalitário ambiciona preencher o vazio
do poder que é a característica quando o seu exercício é concebido como
coisa dos cidadãos e não como derivado de instâncias externas à esfera
pública (AGUIAR et al., 2003. p. 108).
Indo no cerne da questão, Arendt vê nesse individualismo a condição
característica do período que antecede a ascensão totalitária: “[...] o terror só pode
reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros [...]; os
homens isolados são impotentes por definição” (ARENDT, 1989. p. 526). E,
acrescenta: ”[...] a solidão organizada é consideravelmente mais perigosa que a
impotência organizada de todos os que são dominados pela vontade tirânica e
arbitrária de um só homem. É o seu perigo que ameaça devastar o mundo que
conhecemos [...]” (ARENDT, 1989. p. 531).
Logo, se a condição de animal laborans é um subproduto das revoluções dos
séculos XVIII e XIX, é possível concluir que o liberalismo e o humanismo ocidental
fracassaram em suas propostas de prosperidade e desenvolvimento humano, uma
vez que foram incapazes de refrear a ambição e a animalidade do homem. Ao
contrário, não raro essas correntes removeram as amarras morais que impediam o
desejo de dominação total de se manifestar livremente, dando o respaldo necessário
aos atos de violência em massa e a subjugação do homem pelo homem.
A preocupação de que tal cenário volte a se repetir não é despropositada.
Ante todos os aspectos já analisados, é possível perceber que a atmosfera política
atual está, como no período pré-nazista, propícia para a ascensão de novas
ideologias totalitárias, em nome das quais uma violência ainda mais exterminadora
pode ser colocada a serviço de uma seleção não só político-ideológica, mas também
genética da raça humana, através das novas ferramentas à disposição da ciência.
Nesse sentido, John Gray (2008. p. 292) afirma que:
A suposição de que a humanidade caminha para uma condição na qual não
mais haverá conflito quanto à natureza do governo é não só ilusória, como
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perigosa. Basear as políticas públicas na pressuposição de que um
misterioso processo evolutivo conduz a humanidade à terra prometida
acaba levando a um estado de espírito de despreparo frente aos conflitos
mais intratáveis.
Uma das faces mais características do governo totalitário é o desejo de coagir
a tudo e a todos, visando “subordinar e homogeneizar todas as esferas da vida ao
princípio único da ideologia” (AGUIAR et al., 2003. p. 110). Segundo Aguiar et al
(2003. p. 110):
Da família à cultura, da economia ao lazer, todas as relações e atividades
passam a sofrer o crivo da ideologia, qualquer movimento espontâneo,
independente do poderio ideológico, é concebido como subversão. É daí
que surge a categoria de “inimigo objetivo”: trata-se de qualquer situação ou
pessoa que, pela simples existência ou condição, é entendido como estorvo
ao princípio ideológico. Assim, os judeus, os ciganos, os doentes, os
mestiços eram considerados “inimigos objetivos” dos nazistas e deveriam
ser eliminados.
Logo, o que ocorreu na comemoração da copa das confederações com a
seleção
brasileira
exemplificaria,
embora
ainda
superficialmente,
esse
expansionismo ideológico próprio das ideias totalitárias. Essa imposição ideológica
só se dará na sua versão definitiva, e exterminadoramente intolerante, no momento
em que não houver mais oposição às suas propostas.
Quando se aproxima da intolerância e ambição dos movimentos totalitários,
os defensores do laicismo terminam por arrogar-lhes a função de acelerar o curso
natural da história, que, embora por meios mais lentos, supostamente já eliminaria,
pelo peso da modernidade, os dogmas arcaicos das confissões religiosas (ARENDT,
1989. p. 518). Porém, Arendt alerta que dessa forma o terror total elimina do
processo:
[...] não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte
de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de
começar de novo. [...] Na prática, isso significa que o terror executa sem
mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente
pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são „indignos de
viver‟, ou que a História decretou contra as “classes agonizantes”, sem
esperar pelos processos mais lerdos e menos eficazes da própria história
ou natureza (ARENDT, 1989. pp. 518-519).
Por certo, a perda da liberdade e da riqueza inerente à pluralidade existente
hoje nas sociedades globalizadas é algo tão inaceitável, quanto sua preservação é
incompatível com o avanço de um laicismo ideológico. Estando inserido em um
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período de forte individualismo e isolamento social, o indivíduo de hoje parece estar
nas condições ideais para aceitar a intolerância laica caso sua bandeira seja
levantada por um líder capaz de lhes assegurar alguma prosperidade econômica.
Para Arendt (1989. p. 530):
O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não-totalitário
é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida
geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a
ser [...] a experiência diária de massas cada vez maiores.
Se a laicidade não significa ojeriza às confissões religiosas, mas pelo
contrário, é baluarte da tolerância, o laicismo contemporâneo lhe é radicalmente
estranho e antagônico, embora se aproprie de seus conceitos para formular suas
propostas. Da mesma forma, esse laicismo é antagonista de uma sociedade que,
orgulhosa de sua riqueza histórico-cultural, deve defender um modelo de
convivência política baseado no multiculturalismo de Boaventura (SANTOS, 2003. p.
26), e na fraternidade política idealizada por Baggio (2008. p. 23).
5. O laicismo sob a ótica de uma sociedade multiculturalista e fraterna
Muitos intelectuais da atualidade reconhecem que a sociedade ocidental,
senão global, está em crise. Crise de valores, sistemas, concepções, enfim, uma
crise paradigmática, cujas proporções repercutem decisivamente no rumo que a
humanidade irá tomar a partir de agora. Isso implica um questionamento dos
padrões estabelecidos, sejam eles políticos, éticos, econômicos, etc., que a primeira
vista parece ser exclusivamente marcado pelo indiferentismo social, mas que, no
entanto, denuncia um perigoso e potencial desejo de sublevação. No que diz
respeito às religiões, o estado de espírito propalado em nossas sociedades, antes
voltado a uma polida indiferença, semelhante à dedicada às coisas que saíram de
moda, vem dando lugar a um endurecimento do discurso anti-religioso.
(GUILLEBAUD, 2007. pp. 14-15) Os que enxergam na religião um fenômeno
essencialmente negativo para o corpo social, e se apropriam do laicismo como
instrumento para alijá-la do espaço público, o fazem sob os argumentos de que a
religião foi a força motriz de inúmeros conflitos, assassinatos e perseguições. Essa
generalização, mesmo partindo de fatos inquestionáveis como as guerras de religião
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e a Inquisição, é extremamente irracional e revela o quanto os seus autores estão
sujeitos e tentados às ideias intolerantes que se propõem a combater.
Ao
defender
que
estamos
vivenciando
um
período
de
transição
paradigmática, Boaventura aponta que uma das falhas da teoria crítica moderna,
que questiona exatamente o paradigma dominante em declínio, está no fato de que
não consegue enxergar a proximidade em que ela se encontra do objeto de sua
crítica. Para ele:
Ao identificar e denunciar as opacidades, falsidades, manipulações do que
critica, a teoria crítica moderna assume acriticamente a transparência, a
verdade e genuinidade do que diz a respeito de si própria. Não se questiona
no ato de questionar nem aplica a si própria o grau de exigência com que
critica (SANTOS, 2005. p. 17).
Boaventura entende que aquilo que dizemos sobre o nosso discurso é ainda
mais importante que o que sabemos acerca do que ele trata, e é nisto que reside o
limite da crítica:
Quanto menos se reconhece esse limite, maior ele se torna. A dificuldade
deste reconhecimento reside em que algumas das linhas que separam a
crítica do objeto da crítica são também as que a unem a ele. Não é fácil
aceitar que na crítica há sempre algo de autocrítica. (SANTOS, 2005. p. 17)
Esse fenômeno é verificado em vários discursos de estudiosos e analistas
nos diversos ramos das ciências sociais. É nesse sentido, por exemplo, que
Bourdieu(apud BOAVENTURA, 2005. p. 17) sustenta que “os sociólogos tendem a
ser sociólogos em relação aos outros e ideólogos em relação a si próprios”. Tal
situação é verificável nos defensores modernos do laicismo, que com seus
argumentos “inquestionáveis” e imperativos, veem-se, no entanto, como portadores
da democracia e da tolerância, impondo suas ideias, muitas vezes, declaradamente
contrárias ao sentimento popular, (des)qualificando-o como ignorante. O pretexto
para que se levasse a termo a concretização, a qualquer custo, do que entendem
por laicismo, seria então a identificação da religião como a matriz primordial da
intolerância. Todavia, essa afirmação não encontra respaldo histórico. Como
observa Guillebaud (2007. p. 16): “A maior parte dos fanatismos atuais ou passados
não foi ou não é de essência religiosa”.
Se a religião não é a principal causa do dogmatismo e da violência, no século
XX, os crentes foram sem dúvida o grupo social mais perseguido pelo ateísmo antiRevista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X
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religioso que, seja stalinista, nazista ou nipônico, foi não só intolerante, mas
intolerante até o extermínio em massa. Para Guillebaud (2007. p. 19):
A religião, na época, era perseguida, ou se transformava, como na Polônia,
em área de resistência à barbárie. O Deus invocado pelos crentes, em
todas as situações, estava mais frequentemente no campo dos oprimidos
do que no dos opressores. Se levarmos em conta uma pesquisa
encomendada pela Papa João Paulo II e realizada por uma comissão
independente, nunca, desde a época das catacumbas, os cristãos foram tão
perseguidos quanto no século 20.
A religião, portanto, deve ser analisada como um todo, como fator social
complexo que pode se manifestar de várias maneiras, positivas ou não, como
acontece com a política, a ciência, etc. Mais ainda, como fenômeno próprio da
natureza humana, que como tal, permanece sujeita às inconstâncias, e oscilações
de caráter e interesses, do ser humano. Assim como a política inspirou milhares de
homens a lutar pelos seus direitos, também os inspirou a dar apoio a ideologias e
governos totalitários. Da mesma forma, se tomarmos dentro do universo religioso o
exemplo da Igreja Católica, verificamos igualmente esses dois lados da natureza
humana. Se ela é tão lembrada por mover milhares a combater pela “Terra Santa” e
participar da condenação de outros tantos às fogueiras da inquisição, seu papel na
construção da civilização ocidental, nas mais diversas dimensões do conhecimento
humano, é tão inconteste quanto seu posto de maior instituição de caridade de todos
os tempos. Nesse sentido, Thomas Woods (apud AQUINO, 2008. p. 12), diz que:
Bem mais do que o povo hoje tem consciência, a Igreja Católica moldou o
tipo de civilização em que vivemos e o tipo de pessoas que somos. Embora
os livros textos típicos das faculdades não digam isto, a Igreja Católica foi a
indispensável construtora da Civilização Ocidental. A Igreja Católica não só
eliminou os costumes repugnantes do mundo antigo, como o infanticídio e
os combates de gladiadores, mas, depois da queda de Roma, ela restaurou
e construiu a civilização.
Todo esse debate revela o quanto a humanidade é rica em manifestações
culturais e possui diferentes formas de pensar as mesmas questões. Enquanto a
globalização aproximava as diferentes culturas, trouxe à tona as discussões sobre
como essas culturas poderiam dividir um só espaço sem que suas concepções
entrassem em choque, ou que uma acabasse, necessariamente, absorvendo as
outras. Nas palavras de Karine Finn (2007. p. 38): “Surge a preocupação com o
resgate da identidade dos povos, ao mesmo tempo em que se induz um maior
respeito para com outras culturas”.
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A ordem jurídico-constitucional deve garantir a preservação desses elementos
que fazem parte da história e dos costumes da população abrigada sob sua
jurisprudência. Para Machado, ela deve ser inclusiva e não criar qualquer
mecanismo de homogeneização, mas deve se fundamentar: “num princípio de igual
dignidade da pessoa humana e num conceito alargado de liberdade subjetiva”.
(MACHADO, 1996. p. 181) A proposta do multiculturalismo é exatamente criar as
condições para que os indivíduos não sejam coagidos a aceitar pensamentos e
culturas estranhas às suas, mantendo essa reciprocidade com as demais, baseando
as relações sociais no respeito às diferenças. Para Freire (1997. p. 156): “A
multiculturalidade não se constitui da justaposição de culturas, muito menos no
poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito
assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da outra”.
O multiculturalismo não defende somente o direito de ser diferente, já que o
simples direito à diferença, quando esta é caracterizada pela desigualdade social,
por exemplo, não é suficiente para o que se espera de uma sociedade multicultural.
(FIGUEIREDO, 2005. p. 07) Para Santos (2003. p. 63), “a afirmação da diferença
por si só pode servir de justificativa para a discriminação, exclusão ou inferiorização,
em nome dos direitos coletivos e de especificidades culturais”. Assim, faz-se
necessário perceber que, ao invés do simples direito à diferença: “a expressão
multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de
grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades modernas”.
(SANTOS, 2003. p. 26) Se as identidades de cada indivíduo são construídas em
decorrência de diversos fatores internos e externos ao indivíduo, o multiculturalismo
vai se propor exatamente a trabalhar essas diferenças e identidades emergentes ou
em construção (SANTOS, 2003. p. 26), formando com todas um conjunto ao mesmo
tempo rico, por sua diversidade, e pacífico, em sua coexistência de respeito mútuo.
Porém, esse processo não pode se inclinar à homogeneização cultural. Para
Walzer, é necessário combater essa onda de intolerância às diferentes culturas e
formas de pensar, a partir da reafirmação dos valores tradicionais de cada cultura:
“[...] precisamos [...] formar os regimes de tolerância de maneira que fortaleçam os
diferentes grupos e talvez até incentivem os indivíduos a identificar-se fortemente
com um ou mais deles”. (WALZER, 1999. p. 119)
É nesse ponto que a fraternidade política e o multiculturalismo oferecem as
condições para uma verdadeira comunhão de pensamentos e ações voltadas ao
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bem comum. A fraternidade política propugna por uma sociedade em que os valores
essenciais sejam inclusivos e tolerantes, na medida em que todos se enxergam
como membros dessa comunidade fraterna, pela qual todos devem zelar. Sua
legitimidade não se encontra apenas nos discursos de grandes pensadores do
nosso tempo, ou no reconhecimento que suas teses possam ter nos meios
acadêmicos, ou na adesão expressa de políticos que tenham a coragem de lutar
pela concretização da fraternidade no seio social. A legitimidade da fraternidade
política encontra-se também em cada família e indivíduo vitimados em razão da
prevalência de uma convicção individualista ou intolerante na seara sociopolítica. As
obras eleitoreiras, a má distribuição de renda, a imposição de pensamentos
ideologicamente excludentes, a exploração dos trabalhadores, a propaganda
abusiva das empresas, o desrespeito destas para com os consumidores e a
elaboração de leis que as beneficiam em detrimento destes, enfim, todos os
elementos à disposição dos que crescem a custa da miséria e da dignidade da
pessoa humana, ao serem utilizados, geram simultaneamente um fator que legitima
a adoção de uma proposta de sociedade fraterna.
6. Conclusão
Depois das atrocidades empreendidas pelas ideologias totalitárias, a
humanidade não pode correr o risco de se ver lançada, pela mesma indiferença ou
condescendência de antes, numa nova onda de ascensão político-ideológica de
grupos intolerantes e totalitários. Vale destacar que os maiores expoentes da política
totalitária tiveram a mesma inclinação para eliminar as religiões, substituindo-as pelo
culto à causa ideológica e ao líder que as governava, que os defensores do laicismo
parecem ocultar. Se a modernidade ocidental passou a maior parte do tempo
preocupada em evitar que a “intolerância e o radicalismo” dos religiosos reacionários
caíssem nas graças do povo e os levassem de volta ao poder, pode ter esquecido
de que essas mesmas características também se encontram nos demais grupos
sociais, em alguns de forma até acentuada. É exatamente daí que pode partir a
verdadeira ameaça aos direitos constituídos, tão amplamente aceitos pela maior
parte da comunidade religiosa. Guillebaud consegue traduzir bem o cenário diante
do qual nossa sociedade se depara:
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Expomo-nos a defender ardorosamente nas muralhas do sul uma cidadela
que está sendo perigosamente sitiada nas muralhas do norte. À força de
dirigir, com a maior boa-fé, toda a nossa suspeita apenas às grandes
religiões impedimo-nos de discernir os integrismos de outra natureza, os
que não usam sotaina, nem estolas, nem quipá. (GUILLEBAUD, 2007. p.
27)
Uma vez denunciado o paradoxo do laicismo contemporâneo, é necessário
um esforço conjunto para, de um lado, resistir ao avanço dessa nova ideologia,
recebendo com muita cautela o que se propaga “em nome de um Estado laico”; do
outro, trabalhar pela construção de um multiculturalismo, a partir das práticas
educativas, que despertem na sociedade o desejo de respeitar as diferentes culturas
e formas de pensar, crer, expressar-se. Com isso, os indivíduos estarão propensos a
viver uma fraternidade política efetiva, direcionando todos os institutos democráticos
para a superação dos preconceitos, desigualdades e injustiças. Para esse fim, as
confissões religiosas podem contribuir com sua extensa gama de conhecimentos e
tradições, eliminando, com sua presença e participação nesse importante debate, o
risco de vermos triunfar a intolerância sobre os direitos conquistados pelo homem,
não raro, ao preço da vida de muitos.
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