Como cinco cidades brasileiras oferecem educação de qualidade em
todas as escolas da rede pública
CAMILA GUIMARÃES, COM DÉBORA RUBIN, DE SERTÃOZINHO, E FABIULA WURMEISTER, DE
FOZ DO IGUAÇU - Revista Época - 06/10/2012 - Rio de Janeiro, RJ
A mãe de Pedro Velena, de 10 anos, esperou dois anos por uma vaga na escola
que ela considera a melhor da cidade. Sertãozinho, no interior de São Paulo, tem
17 escolas do 1o ao 5o ano. A mais famosa delas é a Professor José Negri, de onde
saem medalhistas em olimpíadas de matemática, física e astronomia. Desde 2006,
foram 87. Para Pedro, que diz adorar aulas de matemática e que quer ser
engenheiro civil quando crescer, a escolha de sua mãe pela José Negri foi natural.
“Minha mãe é muito exigente. Nove e meio para ela é pouco”, diz Pedro. Se ele
tivesse sido matriculado em qualquer uma das outras escolas da cidade, também
teria boas chances de tirar notas altas. Mais importante que isso: teria garantido
seu direito de aprender.
Sertãozinho faz parte de um seleto grupo de cidades brasileiras que conseguem
oferecer educação pública de qualidade com equidade entre as escolas. A
distância entre a melhor e a pior escola nesses municípios é pequena. Mesmo a
pior escola ensina, no mínimo, as habilidades básicas de português e matemática
para os primeiros anos do ensino fundamental. Essa característica garante um dos
princípios essenciais de uma sociedade civilizada, onde todos recebem
oportunidades para aproveitar seus talentos individuais e se desenvolver.
A pedido de ÉPOCA, Ernesto Martins, coordenador de projetos da Fundação
Lemann, analisou os resultados da Prova Brasil de 2011, que avalia as habilidades
e competências em português e matemática. Ele considerou o desempenho dos
alunos do 1º ao 5º ano, séries quase totalmente de responsabilidade municipal.
Usou como referência do nível de aprendizado básico os critérios elaborados pelo
movimento Todos Pela Educação. Apenas cinco, num total de 929 cidades, têm
100% das escolas com nota média igual ou superior à recomendada. São elas:
Sertãozinho e Lençóis Paulista, ambas em São Paulo, Foz do Iguaçu, no Paraná,
São Lourenço, em Minas Gerais, e Sobral, no Ceará. O mesmo estudo foi feito
para os resultados do 9º ano, o último do ensino fundamental. Nenhum
município (nem os cinco acima) conseguiu garantir médias ideais para todas as
escolas.
O indicador mais importante de qualidade de uma rede pública é os alunos
terminarem a escola sabendo o que deveriam. Isso é raro no Brasil. Um estudo da
Unesco com a Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que, em 2009, 22%
dos alunos das escolas públicas do Brasil concluíram o ensino fundamental sem
habilidades básicas de leitura. E 39% sem conhecimentos essenciais de
matemática.
É verdade que o país avançou. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb), que desde 2005 avalia o ensino público, mostra alguma melhora na média
nacional. Ele é calculado levando em conta as médias da Prova Brasil e a taxa de
aprovação dos alunos. Por trás dessa aparente melhora, porém, persiste uma
grande disparidade regional, mesmo dentro dos municípios. Tão importante
quanto conseguir uma boa média nacional é ensinar habilidades de leitura e
matemática a todos os alunos, sem se importar com seu perfil socioeconômico.
“Não existe qualidade sem equidade”, afirma Priscila Cruz, diretora executiva do
Todos Pela Educação.
Garantir esse padrão mínimo de qualidade não é fácil. Basta olhar os resultados
do Ideb. Alguns exemplos: a média do Ideb (do 5º ano) do Estado mais bem
colocado, Minas Gerais, é 5,8 (a escala é de 0 a 10). A do pior, Alagoas, é 3,5.
Entre municípios, a disparidade é ainda maior. Claraval, em Minas, tirou 8,3.
Monteirópolis, em Alagoas, 2,5. “A equidade é hoje o maior desafio da educação
brasileira”, diz Cleuza Repulho, presidente da União dos Dirigentes Municipais de
Educação. “Para os municípios, é um esforço gigantesco.”
As cinco cidades que conseguiram esse padrão de qualidade para todos oferecem
boas lições para o país. Os caminhos são particulares de cada localidade, mas é
possível identificar características ou estratégias comuns:
1. Manter a política longe da sala de aula
Há uma condição comum a esses cinco municípios, um item fundamental para
que as reformas escolares se tornem viáveis: continuidade na política de
educação. Como, nessa área, os resultados demoram anos para aparecer, é
preciso tempo para identificar as falhas e corrigi-las. A mudança no comando
municipal é mais rápida e, muitas vezes, interrompe a melhora. É a velha história:
muda o prefeito, muda o secretário, muda a ideo¬logia, e o que foi feito pelos
anteriores é desfeito para começar tudo do zero. É comum isso acontecer até
mesmo entre executivos do mesmo partido. Nesse vaivém dos gabinetes, os mais
prejudicados são os alunos.
Em Sertãozinho, a secretária Maria Dirma Francisco, no cargo desde 2001, passou
por dois prefeitos em três mandatos. O atual, do PPS, ao perceber que o trabalho
feito pela equipe de Dirma dava resultado, continuou o projeto do prefeito
anterior, do PSDB (ambos são rivais nestas eleições). “Ele confiou na equipe e deu
liberdade para a gente trabalhar”, diz ela. Também com 12 anos de atividade, a
reforma de Sobral resistiu a três prefeitos e quatro secretários, ainda que do
mesmo grupo político, o PSB. Em Lençóis Paulista, a atual prefeita, em seu
primeiro mandato, foi secretária municipal entre 2005 e 2009.
Quando a política partidária respeita as necessidades da sala de aula, a solução
começa com as indicações para cargo de diretor de escola. O diretor é figurachave para que todo o plano das secretarias funcione. Uma das primeiras
medidas tomadas por Margarida de Luca Alves quando assumiu a Secretaria de
São Lourenço, em 2009, foi determinar que os diretores passassem a ser
escolhidos pelos integrantes da própria escola. “Fiquei assustada com a falta de
critérios das escolhas”, afirma ela. Em Sobral, os diretores passaram a ser
selecionados por mérito também logo no começo das mudanças, em 2001. Quem
já era diretor teve de passar pela mesma seleção: uma prova escrita, avaliações
comportamentais e entrevistas. Resultado: a rede trocou 75% do total de seus
diretores naquele ano – e passou a cobrar mais deles a responsabilidade pela
eficácia do ensino em suas escolas.
2. Avaliar sempre e estabelecer metas
Os planos de gestão da educação das cinco cidades campeãs de qualidade têm
um único objetivo: todos os alunos precisam aprender, não importa sua classe
social. Para saber se o plano está dando certo, é preciso acompanhar o
desempenho de cada um dos estudantes. As avaliações sistemáticas são adotadas
sem receio. As escolas das redes municipais participam das avaliações federais,
como o Ideb, das estaduais e ainda têm uma avaliação própria, uma prova
aplicada a todos os alunos, de todas as séries dos primeiros anos do ensino
fundamental, no mínimo duas vezes por ano.
Como as avaliações são abrangentes e frequentes, seus resultados também
servem para mapear os alunos mais atrasados e como eles evoluem ao longo do
tempo. A partir daí – e essa é uma estratégia adotada por todas as escolas de
todas as cinco redes –, a recuperação é feita, aluno por aluno, imediatamente.
Ninguém espera chegar o final do ano para recuperar o deficit de aprendizagem
de uma criança. “É importante que o município olhe com atenção especial para
suas piores notas. É aí que ele precisará trabalhar com mais esforço”, afirma
Romualdo Portela, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP), especialista em políticas públicas de ensino.
Em São Lourenço, os alunos são avaliados três vezes por ano. Existe uma
categoria de professor exclusiva para cuidar dos estudantes com dificuldades. O
professor recuperador trabalha o ano inteiro com o professor regular, no mesmo
turno ou no contraturno, sob demanda. “Ensino o que o professor principal
pede”, diz Miriam de Almeida Mota Silva, professora recuperadora da escola
Coronel Manoel Dias Ferraz, na periferia da cidade. Miriam é a responsável pela
recuperação de Vanessa Lopes Silva, de 10 anos. Ela deveria estar no 6o ano, mas
ainda cursa o 4o. Sua principal dificuldade era entender os textos que lê. Com as
aulas de Miriam, a menina começa a ganhar mais fluência. “Com ela, consigo
aprender o que não entendi na sala de aula”, diz Vanessa.
Outro resultado das avaliações é o estabelecimento de metas. Cumprir os
objetivos, nesses municípios, é uma obsessão. Em Lençóis Paulista, toda a rede
trabalha com metas, do pessoal da cozinha aos alunos. Isso foi determinado em
2005, quando a atual prefeita era secretária de Educação e criou o plano de
gestão das escolas. Metas individuais são estabelecidas de acordo com as da
escola e da rede. O diagnóstico vem da avaliação municipal, uma prova aplicada
em todas as séries do ensino fundamental, três vezes por ano.
Depois de 23 anos de magistério, a professora Fátima Cardim começou a
trabalhar com metas. Sua missão neste ano é ensinar textos de diversos gêneros,
como fábulas, cartas ou receitas. Os alunos e pais foram informados em março de
que precisavam melhorar nesse quesito. A meta dela é ter 100% de sua classe
com a habilidade. Na avaliação de março, foi detectado que 18 dos 20 estudantes
não dominam os gêneros de escrita. Na segunda avaliação, feita em julho, apenas
um aluno continuava com dificuldade. “O bom disso é que todas as pessoas estão
envolvidas num único objetivo. Antes, meu trabalho era solitário.”
3. Políticas sob medida para cada escola
Com os resultados das avaliações, é possível enxergar que escolas apresentam
problemas específicos e criar, a partir daí, políticas sob medida. Essa é uma das
principais estratégias para garantir a equidade. Há cinco anos, Foz do Iguaçu tinha
altas taxas de abandono e reprovação, infladas por determinado grupo de
escolas. Localizadas em bairros próximos da margem do Rio Paraná e da Ponte
Internacional da Amizade, entre Foz e Ciudad del Este, no Paraguai, essas escolas
perdiam seus alunos para quadrilhas de contrabandistas, que aliciam famílias
inteiras para fazer a passagem de mercadorias ilegais entre um país e outro.
A partir daí, a secretária Joane Vilela, no cargo desde 2008, criou uma equipe
formada por assistentes sociais e psicólogos, que trabalham com as crianças e
suas famílias. Ao mesmo tempo, Foz do Iguaçu adotou um programa estadual em
que cada escola preenche uma ficha com informações sobre os alunos que
sumiram das aulas. Essas fichas os tornam visíveis, e a equipe pode atuar com
mais eficácia e acompanhar caso a caso. Com um apoio extra da prefeitura,
escolas velhas foram reformadas. Foi também criado um período para receber
alunos que precisam realizar atividades fora do horário escolar, o contraturno. A
taxa de abandono da rede caiu de 7%, em 2008, para zero, em 2011.
O rendimento dos alunos melhorou. Na Escola Municipal Pedro Viriato Parigot de
Souza, numa área onde atuam tanto quadrilhas de contrabandistas como
traficantes de drogas, o Ideb passou de 4,2, em 2005, para 7,3, no ano passado. A
Escola Municipal Elenice Milhorança, no Jardim América, um dos bairros vizinhos
à região da Ponte da Amizade, saiu de 4,1 e chegou a 7 no mesmo período. A
estratégia de montar um plano para as escolas mais críticas ajudou a puxar para
cima a média de todo o município. Em 2005, o Ideb de Foz do Iguaçu foi de 4,2. A
escola com a maior nota tirou 5,3. Em 2011, Foz ficou com 7, e a escola com
maior nota tirou 8,6 – a melhor do país.
4. Valorização do professor
Gestão, avaliação, metas, recuperação. Nada disso funciona se, dentro da sala de
aula, o professor não está apto e estimulado a ensinar. Ao mesmo tempo que
promoviam as mudanças, todos os cinco municípios investiram na remuneração e
formação dos mestres. Na remuneração, prevalece a bonificação de acordo com o
resultado do desempenho dos alunos. Sobral paga R$ 250 a mais por turma que
atinge a meta. Se o professor tem duas turmas, ganha R$ 500. Em São Lourenço,
um comitê avalia o professor levando em conta a frequência e a didática em sala
de aula. Se ele tira nota igual ou maior que 7, ganha um bônus que pode chegar a
50% do salário. Sertãozinho paga 14o salário para os que têm alta frequência.
A formação dos professores é o fator que mais demanda atenção. Sobral criou
uma estrutura em que todo professor do 1o ao 5o ano assiste a aulas sobre como
usar o material didático daquele mês. Antes de entrar em sala de aula, eles ainda
discutem com os orientadores pedagógicos. Com planos de aula afinados, o
aproveitamento do tempo em sala melhorou. Antes, o professor chegava
atrasado, gastava tempo organizando a turma ou dispensava os alunos mais cedo,
por falta de ideias de atividades. As aulas, que duravam, na prática, duas horas,
agora rendem quatro horas, segundo o secretário Julio Alexandre.
Em Sertãozinho, foi criado um cargo novo: assistente pedagógico, para cuidar do
aprimoramento dos docentes. Eles saem da cidade em busca de cursos oferecidos
por universidades para aprender técnicas didáticas usadas nas aulas. Quando
voltam, transmitem o que aprenderam aos coordenadores pedagógicos de cada
escola. E estes ensinam aos professores. “Antes de fazer o aluno gostar da escola,
tive de fazer o professor gostar de dar aula”, diz a secretária Maria Dirma.
Com professores bem treinados, essas redes conseguem dar certa autonomia à
prática em sala de aula. Os mestres precisam trabalhar com o material didático
escolhido pela rede, em muitos casos, desenvolvem técnicas próprias de ensino.
Em Foz do Iguaçu, as professoras Leda Márcia Dal Gin e Maria Isabel Gomes Vieira
tomaram a iniciativa de dividir a mesma classe, de 5o ano. Uma ficou com as
aulas de português e ciências. A outra, com matemática, geografia e história.
“Várias vezes, conversando, percebíamos que tínhamos notado algum problema
com um ou outro aluno. Ele não receberia a atenção necessária se uma não
tivesse comentado com a outra”, diz Leda.
O sucesso desses cinco municípios é, em parte, possível porque eles tinham
condições especiais para isso. Trata-se de redes pequenas, com no máximo 51
escolas de anos iniciais. O secretário de Educação e os supervisores conseguem
acompanhar pessoalmente as escolas, para controlar e cobrar resultados.
Também parece mais fácil para municípios pequenos criar um ambiente em que
todos se sentem responsáveis pelo aprendizado do aluno, inclusive as famílias.
Sobral recebe apoio técnico e financeiro do Unicef. Apesar de ter médias altas no
Ideb, essas cidades não são perfeitas. São Lourenço tem uma alta taxa de
defasagem escolar, que aparece como distorção entre a idade e a série do aluno.
Um terço das escolas de Lençóis Paulista não alcançou a meta ou teve queda no
Ideb em 2011. Todas estão com médias muito baixas nos anos finais (6o ao 9o
ano) do ensino fundamental.
Mesmo assim, de alguma forma e com muito esforço, esses cinco municípios
encontraram um caminho. Ele tem mais a ver com a gestão da rede que com
pedagogia, um dado relevante em tempos de eleições municipais. A receita
milagrosa não existe. Essas cidades estão apenas fazendo, com mais eficiência,
algo básico para que alunos como Pedro, de Sertãozinho, de classe média, e
Vanessa, que estuda na periferia de São Lourenço e tem mãe analfabeta, tenham
chances iguais de aprender. Que sirvam de inspiração a outras.
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