UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA MESTRADO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC Santo Antonio de Jesus 2011 WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em História Regional e Local, Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. CHARLES D’ ALMEIDA SANTANA Santo Antonio de Jesus 2011 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Pereira, Wadson Barbosa Calasans Uma história de músicos do carnaval de Salvador : sindicato e axé-music / Wadson Barbosa Calasans Pereira . – Salvador, 2011. 139f. Orientador: Prof. Charles D’Almeida Santana. Dissertação (Mestrado em História ) – Universidade do Estado da Bahia. Campus I. 2011. Contém referências. 1. Músicos - Salvador(BA) - História. 2. Axé-music - História. 3. Carnaval - Salvador(BA). 4. Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado da BahiaI. I. Santana, Charles D’Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia. CDD: 780.98142 TERMO DE APROVAÇÃO WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC DISSERTAÇÃO DE MESTRADO BANCA EXAMINADORA CHARLES D’ ALMEIDA SANTANA Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Universidade do Estado da Bahia. RAPHAEL RODRIGUES VIEIRA FILHO Doutor em História do Brasil, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Universidade do Estado da Bahia. RINALDO CESAR NASCIMENTO LEITE Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Universidade Estadual de Feira de Santana. Santo Antonio de Jesus, setembro de 2011. Dedico este trabalho a Silvia Bochicchio, a minha família, aos músicos entrevistados, ao músico e amigo Neyvan Cruz (in memorian), aos músicos brasileiros e a todos aqueles que acreditam que é possível construir um outro modo de vida, que seja mais digno para todos. Agradeço a todos que contribuíram, de algum modo, para a realização deste trabalho, aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da UNEB, aos colegas do curso e, especialmente, aos professores Charles D’ Almeida Santana, Raphael Vieira Filho e Rinaldo Leite, a Silvia Bochicchio, a Luciano Calazans, Cassio Calazans, Carine Calazans, a Jamile Calazans, a minha mãe Ana Lúcia, a meu pai Wadson Calazans e a todos os músicos baianos. "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar". Bertold Brecht Resumo Este trabalho analisa o fazer-se dos músicos de Salvador. Através do mundo vivido daqueles trabalhadores, procuramos apontar as diversas situações nas quais os músicos estiveram inseridos nas décadas de 1980 e 1990. Buscou-se compreender as transformações pelas quais estes trabalhadores passaram, situando-os no processo de mercantilização do Carnaval de Salvador. Refletimos sobre aquelas mudanças a partir das décadas de 1980 e 1990. Discutimos, dentro daquele processo, de que maneira os músicos se comportaram, de que forma vivenciaram aquele movimento histórico pelo qual passou o Carnaval. Trazemos aqui aspectos do modo de vida dos músicos; a dinâmica do espaço de trabalho daqueles profissionais; o conteúdo contraditório da experiência daqueles trabalhadores. Há a sistematização de algumas reverberações ensejadas pelas mudanças que ocorreram no Carnaval - nos músicos da cidade. Finalmente, apontamos também a gênese da indústria cultural carnavalesca. Palavras-chave: músicos; trabalho; Carnaval; festa-negócio; vivência. Abstract This work examines the making of musicians in Salvador. Through the lived world of those workers, we tried to point out several situations in which the musicians were included in the 1980 and 1990. We tried to understand the transformations which these workers passed, placing them in the process of commodification the Carnival of Salvador. We reflect about those changes from the 1980 and 1990. We discuss, within that process, how the musicians behaved, how they lived this historic movement through which passed the Carnival. We are bringing aspects of the lifestyle of musicians, the dynamic workspace of those professionals, the contradictory content of experience of those workers. There is the systematization of some reverberations - caused by the changes that occurred in the Carnival – in the city's musicians. Finally, we also point out the genesis of cultural industry of Carnival Keywords: musicians; work; Carnival; business-party; experience. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS 9 1 26 VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE TRABALHADORES DA MÚSICA 1.1 Aspectos de uma profissão 26 1.2 Combatendo a exploração, as dificuldades e o desemprego 49 1.3 Gravações, direitos, lutas sindicais e Carnaval 54 2 OS MÚSICOS PROTESTAM: SINDIMÚSICOS E O CARNAVAL 61 2.1 Imprensa, músicos e suas considerações 61 2.2 Um ‘’olhar’’ panorâmico sobre o processo 87 2.3 O sindicato e o circuito dos bairros como espaços carnavalescos de 93 trabalho 3 A AXÉ-MUSIC E SEUS DESDOBRAMENTOS 98 3.1 A festa-negócio 99 3.2 Quando os músicos se profissionalizam 113 3.3 A consolidação de uma indústria fonográfica: novas possibilidades para 117 os músicos? 3.4 O trabalho dos músicos a partir da axé-music 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS 128 FONTES 133 REFERÊNCIAS 136 9 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Fiz este livro comigo mesmo, com minha vida e com meu coração. Ele é fruto de minha experiência [...] Ele provém de minha observação e de minhas relações com amigos e vizinhos; e o recolhi nas estradas (Jules Michelet) O Carnaval de Salvador é também um produto dos músicos da cidade. São trabalhadores. Portanto, é sob esta consideração fundamental que se pretende discutir sobre estes sujeitos. Os seres humanos que cumprem a ‘’função’’ de músicos numa determinada sociedade podem expressar bem o modo através do qual se concebe a arte e a cultura em que ele ou ela se situa. É preciso, portanto, investigar quem são esses indivíduos, trabalhadores do Carnaval. O que se busca é compreender um movimento histórico que tem relações com as transformações que esta categoria de trabalhadores sofreu: o processo de mercantilização do Carnaval de Salvador ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990. Mas não apenas isto. É perceber, dentro deste processo, de que maneira os músicos se comportaram, de que maneira vivenciaram aquele movimento histórico pelo qual passou o Carnaval. Quais foram as reverberações daquelas transformações nos músicos da cidade? Neste movimento histórico, no qual o privado ganha ênfase, ao mesmo tempo em que condicionantes políticos e econômicos redefinem uma tradição — o Carnaval —, começa a se configurar uma nova realidade de mercado. A partir daquelas características que começavam a se delinear em torno da e na festa, tipos diversos de alongamentos daquela nova dinâmica foram criados; por exemplo, os chamados ‘’carnavais fora de época’’. E os músicos, como outros tantos grupos sociais que integram a dinâmica carnavalesca, não passaram incólumes naquele movimento. Nesse passo, buscamos situar os músicos naquelas transformações, bem como perceber essas transformações a partir de suas experiências. Experiências que são de ordem e natureza diversas. Escolhemos discutir sobre estes sujeitos, as suas experiências, os papéis sociais atribuídos a eles, bem como os modos através dos quais perceberam certas mudanças ocorridas no Carnaval, por acreditarmos que, apesar de sua aparição constante em diversos espaços na Cidade do Salvador, pouco se sabe a respeito da heterogeneidade desta categoria profissional. 10 Como bem nos salienta o historiador Eric J. Hobsbawm, a história de qualquer classe não pode ser escrita se a isolarmos de outras classes, dos Estados, instituições e idéias que fornecem sua estrutura, de sua herança histórica e, obviamente, das transformações das economias que requerem o trabalho assalariado industrial e que, portanto, criaram e transformaram as classes que o executam (HOBSBAWM, 2000, p.11). É difícil escapar da vivência, e esta pesquisa representa, de certo modo, isto. Por ser também músico e historiador — necessariamente nesta ordem —, não haveria outro tema mais interessante senão o de falar sobre músicos através dos horizontes da história. Fui criado neste ambiente: o do trabalho musical. Por isso mesmo é que muitas coisas perpassavam o nosso imaginário em relação ao que representava, de fato, ser um músico, mais precisamente um músico em Salvador durante as festas momescas. Conversando com músicos mais velhos, amigos e membros da nossa família, buscávamos sempre saber se algum dia, em algum momento e lugar da história, os músicos haviam questionado as suas condições de trabalho em Salvador; se tinham notado — como sujeitos da história que fazem e que vivem, enfim, como trabalhadores que são — as mudanças ocorridas em um dos seus principais espaços de trabalho: o Carnaval de Salvador. Perguntávamos se haviam percebido as mudanças ocorridas, ao longo da história, nesta profissão. Esta pesquisa representa o desdobramento de uma busca que foi iniciada em agosto de 2005, e que certamente seguirá em andamento mais apaixonado do que dantes. A pesquisa não gira apenas em torno de trabalhadores de um dado ramo da produção industrial, mas também de expectativas, de descobertas fascinantes, de busca de significados. Uma vez que cada sociedade concebe a sua maneira o que um músico representa para ela. Quisemos saber, entre outras coisas, através daquelas experiências, o que ocorreu, como a sociedade soteropolitana percebia o músico e vice-versa. Como havia ocorrido em algum momento a concretização de uma experiência de classe. Espera-se que este trabalho possa constituir-se realmente numa memória histórica desses indivíduos. Que possa, de alguma maneira, dar visibilidade a eles. Nesse momento das considerações iniciais, cabe também chamarmos a atenção para um dado específico desta pesquisa. O autor desta é músico profissional. Faz-se necessário destacar isto. Não deixar explícito o lugar social do 11 qual partimos é uma ‘’missão’’ impossível. E assim como a maior parte dos músicos, profissionalizou-se muito cedo. Aos quinze anos estava nos bares da vida tocando, iniciando a profissão. A partir de 1998, seguiu trabalhando ativamente no circuito da música comercial de Salvador, isto inclui evidentemente o Carnaval. Depara-se com algumas situações semelhantes às vivenciadas pelos músicos entrevistados nesta pesquisa. Atuou no fim da década de 1990 no Carnaval de Salvador, no circuito que chamamos aqui de circuito hegemônico, e também nos carnavais dos bairros. Buscou-se realizar nesta investigação, entre outras coisas, uma sistematização das experiências históricas dos músicos, uma codificação das diversas dimensões do mundo vivido destes sujeitos. Esta empreitada se deu sob a inquirição dos procedimentos metodológicos próprios da História. Todavia, pelo fato de investigarmos sujeitos históricos tão específicos, os músicos, e também pelo fato do nosso objeto de estudo estar ‘’classificado’’, do ponto de vista temporal, como ‘’passado recente’’, algumas técnicas de pesquisa que são largamente exploradas por outras áreas do saber foram necessárias. O processo histórico sobre o qual discutimos neste texto está ainda em curso. Por isto, além das técnicas de pesquisa próprias da nossa disciplina, aquela técnica que os antropólogos sociais chamam de ‘’observação participante’’, mais as entrevistas, foram técnicas que surgiram em nossa investigação histórica a partir das exigências específicas do nosso estudo. O historiador Eric J. Hobsbawm chamou a atenção dos historiadores a este respeito. Argumentando sobre determinadas situações de pesquisa nas quais os historiadores se vêem forçados a fazerem uso de técnicas de outras áreas, ele afirma [...] experimentamos igual necessidade das técnicas para a observação e análise em profundidade de indivíduos específicos, pequenos grupos e situações que também foram desbravados fora da história, e que podem ser adaptados aos nossos objetivos – por exemplo, a observação participante dos antropólogos sociais, a entrevista em profundidade [...] No mínimo, essas várias técnicas podem estimular a procura de adaptações e equivalentes em nosso campo que podem ajudar a responder questões de outro modo impenetráveis (HOBSBAWM, 2005, p. 89). A nossa pesquisa parte em primeiro lugar, e a cima de tudo, da empiria necessária a qualquer trabalho acadêmico. Nossas argumentações e explicações 12 estão situadas e respaldadas em um conjunto de fontes que faz parte de uma dinâmica específica. Os jornais constituíram uma importante fonte para melhor compreender algumas ‘’visões’’ de determinados grupos sociais existentes no período que foi trabalhado. A imprensa foi pensada, neste sentido, como mais uma, dentre outras, interpretação construída sobre o ‘’fato’’, sobre o ‘’real’’. Uma das qualidades peculiares que os jornais possuem é a periodicidade: os jornais constituem-se em verdadeiros ‘’arquivos do cotidiano’’, nos quais podemos acompanhar a memória do dia a dia e estabelecer a cronologia dos fatos (ESPIG, 1998, p. 274). Desse modo, através de análises críticas dos jornais da época, buscou-se extrair opiniões, visões e intenções de ordens diversas. Foram utilizados também alguns documentos ‘’oficiais’’, como atas e diários oficiais. Os documentos oficiais produzidos pela sociedade política nos forneceram algumas ‘’pistas’’ sobre o tipo de tratamento que foi dado pelo poder público às reivindicações feitas pelos trabalhadores da música. Os diários oficiais explicitaram, em certo sentido, a ‘’cultura política’’ da época, na qual estiveram imersos os líderes do sindicato, os músicos e os parlamentares. O SindiMúsicos nos forneceu fontes riquíssimas, tais como: atas, jornais sindicais, recibos de proventos salariais, entre outros. Realizamos entrevistas com os músicos sindicalizados e os não sindicalizados. Foram entrevistados os músicos que, de algum modo, trabalharam continuamente em carnavais do período, bem como os músicos que haviam tido algum tipo de experiência de trabalho no Carnaval, ainda que não tivessem trabalhado continuamente no mesmo. O que se buscou, com as entrevistas que foram realizadas, foram aspectos de experiências compartilhadas por aqueles trabalhadores. Experiências que se deram dentro e fora do âmbito de trabalho. Sendo assim, os depoimentos nos revelaram contradições, antagonismos, conflitos, ‘’dubiedades’’ da identidade do trabalhador. Elementos que quando cruzados com fontes de outra natureza, podem descrever melhor alguns aspectos do real. Na realidade, as fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes. Elas têm em comum características autônomas e funções específicas que somente uma ou outra pode preencher, ou que um conjunto de fontes preenche melhor que a outra (PORTELLI, 1997, p. 26). 13 Portanto, o cruzamento dessas evidências – os relatos dos sujeitos com as fontes escritas - foi de fundamental importância para entendermos a história desse grupo social não hegemônico. Não esqueçamos que fontes orais são uma condição necessária para isto, embora não suficiente. Elas são menos necessárias para a história dos grupos dominantes, que têm tido controle sobre a escrita e deixaram atrás de si um registro escrito muito mais abundante (PORTELLI, 1997, p. 37). Diante do que até aqui foi exposto, não podemos prescindir uma questão: como consideramos a história, o seu fazer, a noção de ‘’prova’’, de conceito, evidência e narrativa. Evidentemente, todas as questões mencionadas abririam espaço para a produção de cem dissertações ou teses. Há muitas controvérsias, vários tipos de considerações. Mas, ainda assim, indicaremos alguns caminhos nos quais trafegamos. Além de outras ‘’pistas’’ que fornecemos para o leitor ao longo do texto no que se refere às nossas considerações sobre a pesquisa histórica, trazemos à luz a seguinte consideração: a história possui uma lógica específica, algo que o historiador Edward P. Thompson chamou de Lógica histórica. O entendimento deste historiador do que vem a ser esta lógica, engloba grande parte das questões levantadas no parágrafo acima. Thompson nos diz o seguinte: Por ‘lógica histórica’ entendo um método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a testar hipóteses quanto à estrutura, causação etc. [...] O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro. O interrogador é a lógica histórica; o conteúdo da interrogação é uma hipótese — por exemplo, quanto à maneira pela qual os diferentes fenômenos agiram uns sobre os outros —; o interrogado é a evidência, com suas propriedades determinadas (THOMPSON, 1981, p. 49). A nossa narrativa é a expressão da natureza das perguntas que fizemos às nossas evidências. A interrogação e a resposta são mutuamente determinantes, e a relação só pode ser compreendida como um diálogo. Há formas de diálogos que são reveladas com determinadas evidências. A arte de contar histórias é, por si só, um tema histórico que desperta grande interesse (BURKE, 2002, p. 179). É importante salientarmos que a nossa narrativa pode parecer, à primeira vista, para o leitor, uma narrativa não seqüenciada. E pode ser verdade. A tentativa de entender as experiências de uma categoria de trabalhadores, de compreender aspectos diversos ligados à classe trabalhadora, talvez tenha nos levado a incorrer 14 neste tipo de narrativa. Há, evidentemente, uma série de assuntos correlatos que discutimos ao longo dos capítulos. Mas por ser a classe trabalhadora um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência (THOMPSON, 1987, p. 9), acabamos também por gerar, talvez por termos acompanhado inconscientemente esta dinâmica, uma narrativa não seqüenciada, como mencionamos. Devemos esclarecer outros aspectos da trajetória desta pesquisa. Fizemos menção a alguns. Quando nos metemos a escarafunchar a vida dos músicos de Salvador, já possuíamos muitas ‘’peças’’ do ‘’quebra-cabeça’’ que representa esta pesquisa. É como se já soubéssemos a resposta de algumas perguntas que foram lançadas, inicialmente. A pesquisa histórica, com todo seu aparato metodológico, trouxe complexidade àquelas inquietações. Através da pesquisa histórica, uma curiosidade ingênua, ainda fragmentada, transforma-se em curiosidade epistemológica. Sabe-se que os músicos compõem uma categoria heterogênea de trabalhadores. Algumas fontes foram buscadas aqui no sentido de evidenciar esta situação. O ''desigual'', o ''irregular'', os componentes diferentes, enfim, estes elementos que compõem as características de um dado heterogêneo, no caso dos músicos, tanto na sua dimensão socioeconômica como também na dimensão simbólica. De tal forma que, na esfera simbólica, por exemplo, observamos que apenas a dimensão da ''fama'', do músico ''bem sucedido'' porque é famoso e vice-versa, esta dimensão específica, tendeu a aparecer mais para alguns setores da sociedade civil soteropolitana quando do processo de mercantilização do Carnaval de Salvador. E para alguns músicos, aquela dimensão havia se tornado um fim em si mesmo. Para outros, o sentido de ser musicista no Carnaval não tinha relação, tão somente, com aquela dimensão. Há um grande esforço em apreender isto ao longo do texto, de modo que a explicitação da heterogeneidade aparece ‘’diluída’’ no corpo do trabalho, e não numa parte específica. A partir da espetacularização do Carnaval de Salvador, o público consumidor — fundamentalmente a classe-média soteropolitana— daquele Carnaval-espetáculo 15 não compreendia bem os traços daquela heterogeneidade dos músicos enquanto uma categoria de trabalhadores. E isto por vários motivos. Não vamos retomar aqui nas considerações iniciais alguns dos motivos, eles estão presentes nas linhas que se seguem. Ao que tudo indica, aquele processo de mercantilização, de espetacularização do Carnaval apresentou os seus contornos, nitidamente, na década de 1980. Assim, na segunda metade da década de 1980 é possível observar um Carnaval regido por um forte ‘’aparelho publicitário’’, cujo objetivo foi apresentar o Carnaval nos moldes de um produto a ser consumido. A noção de mercantilização é a própria noção de mercadoria. Ou seja, mercantilizar é transformar algo em mercadoria, ou simplesmente lançar mão única e exclusivamente de um mesmo processo que caracteriza a mercadoria numa sociedade capitalista. O filósofo e crítico literário Georg Lukács afirmou que ‘’A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes. Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma ‘objetividade fantasmagórica’ que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens’’(LUKÁCS, 2003, p. 194). E quanto ao espetáculo? O espetáculo é o ‘’mundo da mercadoria’’ absolutizado. O filósofo e diretor de cinema Guy Debord afirmou em seu livro A sociedade do espetáculo que o ‘’espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo’’ (DEBORD, 1997, p.30). Depois de explicitar alguns termos, cabe fazer mais uma pergunta: e os músicos? Onde eles aparecem em meio a tudo que até aqui foi exposto? Os músicos constituem um importante elemento dentro da dinâmica carnavalesca, seja por conta da sua produção — no sentido mais amplo do termo— musical, seja por conta da própria natureza da festa. A partir daquelas transformações sofridas pelo Carnaval — o surgimento de uma indústria carnavalesca robusta—, os músicos profissionais passaram a permear o imaginário da sociedade baiana sob diversos aspectos. Um deles foi a relação, quase que mecânica, que alguns setores da sociedade soteropolitana passaram a 16 fazer entre a aparição de um músico nos espaços midiáticos e sua condição socioeconômica ‘’privilegiada’’ por conta de ele ou ela — o musicista — haver se tornado ‘’famoso’’. De fato, não se sabe ao certo como esses trabalhadores vivenciaram — naquele processo de mercantilização do Carnaval — as suas experiências cotidianas; tampouco sabe-se a respeito das contradições existentes dentro e fora do âmbito do seu trabalho. Investigar aquele processo histórico, situando os músicos, o lugar social destes sujeitos, foi um mote para alcançarmos algumas análises sobre estes indivíduos. Buscamos situações diversas, tais como: a exploração generalizada no seio da categoria, praticada muitas vezes por músicos-empresários — de níveis e categorias diversos —; o tipo de relação que o poder público manteve na época com estes sujeitos; e de que forma — e o porquê— ‘’apareceram’’ nos discursos produzidos pelos diversos setores da sociedade civil soteropolitana no período ora tratado, isto é, as décadas de 1980 e 1990. O motivo da escolha das décadas de 1980 e 1990 para a realização da pesquisa decorre da observação de evidências que apontaram mudanças significativas no Carnaval naquele período. As bandas que surgiram e que estiveram ligadas ao aperfeiçoamento tecnológico do qual o Carnaval se beneficiou, aquelas bandas bem como os seus músicos acompanharam e sentiram a rápida transformação do Carnaval num grande mercado. Este é o motivo essencial da utilização desta demarcação. Do ponto de vista acadêmico, pode-se argumentar que foi uma tentativa de construir, através deste recorte temporal/espacial, uma história social dos músicos. A relevância do tema, bem como de sua investigação, consiste na busca de uma interpretação de um movimento histórico que tem raízes na segunda metade da década de 1970, passando por toda a década de 1980. Nesta pesquisa, tiramos os músicos da cena do espetáculo e trouxemos os mesmos para o mundo do trabalho. O que equivale a argumentar que fizemos uma história do trabalho. Aqui o trabalhador, o operário do período momesco aparece, mas o mesmo não se pode dizer do ‘’artista’’, do ‘’indivíduo famoso’’. É importante destacar que tem havido um ‘’renascimento’’ criativo do campo da história do trabalho. No livro Culturas de Classe, os autores Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes argumentam que 17 Tendências atuais da historiografia têm-se voltado cada vez mais para a diversidade, a divisão e os conflitos internos à classe operária [...] A classe vem cedendo terreno para estudos linguísticos, étnicos e culturais, entre outros, abrindo a história para trocas conceituais e abordagens transdisciplinares. O resultado é a ampliação do leque temático da história do trabalho, compondo um quadro multifacetado da vida dos trabalhadores (BATALHA; SILVA; FORTES , 2004, p. 13). O historiador Eric J. Hobsbawm pontuou também mudanças substanciais na produção da história operária. Ele afirmou que A mudança na situação dos movimentos organizados tendeu a ampliar as perspectivas dos historiadores do movimento operário. Eles estão cada vez mais preocupados com as bases tanto quanto com os líderes, tanto com os não-sindicalizados, quanto com os sindicalizados, com o ‘trabalhador conservador’ tanto quanto com o radical ou revolucionário – em resumo, mais com a classe, do que com o movimento ou com o partido. Isto é bom (HOBSBAWM, 2005, p. 20-21). Efetivamente, a reorientação social que o Carnaval de Salvador sofreu, talvez mais explicitamente naquelas décadas, provocou a mudança da participação das bandas e dos músicos nesta festa, e igualmente acelerou o processo de ‘’burocratização’’ e espetacularização da mesma. Há que se destacar também a complexa divisão social do trabalho que foi se desdobrando na festa. Isto constitui mais um dado relevante para a escolha do recorte temporal. Foi possível observar uma espécie de redistribuição da dinâmica carnavalesca. Surgiram novas relações sociais de trabalho para os músicos. A reorganização que se deu teve como fito construir e consolidar as bases de um mercado. O Carnaval passou a ser, entre outras coisas, um mosaico de toda sorte de produtos, entre os quais o produto ‘’música do Carnaval’’. Em outros termos, a criação de um grande ‘’supermercado da música’’. As formas de negociações realizadas pelo poder público com os agentes privados, e a criação de órgãos devidamente credenciados para estes fins, constituem-se em evidências significativas em relação à burocratização. Já a participação intensa das corporações midiáticas, com fins categoricamente hegemônicos, mercadológicos — tanto internamente como externamente—, expressa, sem dúvida, a espetacularização a que fizemos referência. A explosão de blocos afro em fins da década de 1970, a sua intensa 18 participação no Carnaval dos anos 80, a importância dada pela mídia — local e nacional — ao Carnaval de Salvador a partir da segunda metade da década de 1980 (GUERREIRO, 2000, p. 133-139), o fato de os blocos afro se tornarem uma nova força na economia local (GÓES, 2000, p. 106), tudo isso, contribuiu significativamente para uma mudança de postura dos músicos — consciente ou inconscientemente— tanto no que diz respeito à sua imagem como também no que se refere à afirmação do seu trabalho nessa nova dinâmica que o Carnaval ganhara, sendo a década de 1990 o período de convergência desses elementos. Sobre a relevância social do tema, pode-se talvez afirmar que tal investigação consistiu em tentar perceber como estes diversos músicos estavam inseridos no ‘’negócio carnavalesco’’; procurou observar também como uma grande parte dos músicos que fizeram e fazem parte dessa indústria sofreu — e ainda sofre—, sobremaneira, necessidades materiais situadas nos níveis mais básicos da produção da subsistência. Discutir a mercantilização do Carnaval de Salvador foi o caminho mais interessante que ‘’pegamos’’ para provocarmos reflexões no que diz respeito às ‘’características’’ que a profissão foi ganhando no espaço carnavalesco, ao longo das complexas transformações pelas quais passou o Carnaval. Foi um caminho importante para trazermos também o que é ser músico, sob alguns aspectos, no cotidiano da Cidade do Salvador. Deve-se salientar, no entanto, que falamos de músicos com perfis diferentes daqueles músicos urbanos que outrora tinham uma ‘’vida simples’’, mas que conseguiram dentro da indústria do Carnaval ascender materialmente, passando assim, a fazer parte do show business carnavalesco. Entre justificativas consideráveis para o tema que investigamos, uma delas é evidenciar, através da complexa constituição desta categoria de trabalhadores, e dos diferentes perfis dos músicos, quão pequeno foi — e ainda é— o número de sujeitos que se transformaram em músicos-empresários e/ou artistas-empresários nesta época. Argumentamos que o processo de mercantilização do Carnaval de Salvador alterou, modificou sobremaneira, num curto espaço de tempo, o sentido amplo que a noção de músico traz consigo, pelo menos quando vista a partir do espaço circunscrito ao Carnaval, no qual indivíduos com habilidades melódicas, harmônicas e rítmicas de alguma maneira tenderam a aparecer naquele espaço/tempo 19 momesco. Mas que sentido amplo é este? O que é ser um músico? Todo ser humano aficionado ou amante de música pode ser considerado músico ou musicista. Só tem que há aqueles que escolhem cumprir a função, exercer a função de músico numa dada sociedade. Os indivíduos que exercem a função de musicista – às vezes ao lado de outro ofício qualquer – numa dada sociedade desempenham tal função a partir de uma infinidade de situações sociais e culturais. Se música é a arte de expressar a combinação de sons, sendo ela dividida em três partes, melodia, harmonia e ritmo, um músico é então todo e qualquer indivíduo capaz de articular, fruir e apreciar de maneira consciente ou não estas propriedades (BONA, 1999, p. 3). Os músicos com os quais dialogamos nesta pesquisa estão situados no universo carnavalesco. E naquele universo, músicos partícipes de bandas ou conjuntos musicais com formação específica: guitarra, baixo, instrumentos percussivos e voz. Estes tipos de instrumentistas aparecem, na história do Carnaval baiano, associados ao trio elétrico. Bandas ou conjuntos musicais que ficaram ligados à revolução tecnológica que acompanhou o trio elétrico. Contudo, aqueles tipos de conjuntos não ficaram restritos, em termos de exibição no Carnaval, ao espaço do trio. Aqueles conjuntos musicais se apresentavam também em outros tipos de palcos com características diferentes dos ''palcos andantes'' dos trios elétricos. Eram os chamados palcos fixos. Nesta investigação, trouxemos guitarristas, baixistas e percussionistas. Cabem ainda nas considerações iniciais alguns comentários sobre os músicos entrevistados, embora tenhamos apresentado muitos aspectos da vida deles ao longo do texto. Nikolaus Hatzinikolaou, um dos entrevistados, tem uma ligação de longa data com a família do autor. Realizamos a entrevista em sua casa. Quando tivemos o primeiro contato com Nikolaus, estávamos com sete anos de idade. Companheiro de trabalho do músico Luciano Calazans, a quem estamos ligados pelos laços de consangüinidade, Nikolaus era naquele ano de 1990 um músico atuante na noite de Salvador. A entrevista que nos concedeu, assim como as outras que aqui se encontram, foi importante e esclarecedora em todos os sentidos. Helder Mello de Araújo foi outro músico que nos forneceu importantes relatos. Tínhamos conhecimento da existência desse profissional. Além do músico Luciano Calazans, outros músicos haviam comentado dele para nós. Helder tornou-se 20 professor de História. Mas, segundo ele mesmo, não deixou por isso de ser músico. Segundo ele, as razões pelas quais assumiu a docência são diversas. Dentre as muitas razões que expôs, enquanto conversávamos, destacamos especialmente uma: as diversas incertezas, sobretudo a econômica, que acometem o profissional da música. Fizemos a entrevista com ele em uma sala de aula. Helder também trabalhou muitas vezes no Carnaval de Salvador. Trabalhou com alguns grupos famosos na década de 1990. Outro profissional com quem dialogamos foi Jorge Patrício Solovera. Solovera, como costumamos chamá-lo, também é um músico próximo da família do autor. Trabalhou inúmeras vezes no Carnaval de Salvador. Ele nos concedeu a entrevista em sua casa, onde tem um estúdio no qual trabalha diariamente fazendo gravações, produções e edições musicais. Foi justamente nestas circunstâncias, trabalhando no estúdio em uma música, que ele nos forneceu o seu relato. O músico Ivan Bastos nos deu a entrevista em sua casa. Conhecíamos a trajetória desse profissional. Receptivo, ao explicarmos sobre os objetivos da pesquisa, os assuntos abordados etc., argumentou que a proposta era legítima e que apoiaria a difusão do trabalho. Afirmou isto deixando escapar, segundo a nossa interpretação, uma mistura de empolgação e satisfação com a nossa temática. O músico profissional Gerson Silva foi entrevistado num estúdio de gravação. Em um ensaio com o músico Luciano Calazans, contou-nos sobre o início da carreira como músico profissional, sobre suas conquistas e dificuldades. Gerson Silva é também, como alguns músicos que mencionamos anteriormente, muito próximo à família do autor. O baixista Luciano Calazans, irmão do autor, também concedeu a entrevista em sua residência. Ao lado dos filhos, falou da sua vida profissional, expôs insatisfações e reconheceu alguns avanços em seu âmbito de trabalho. Pelo fato de conhecermos Luciano há 28 anos, isto nos colocou numa posição confortável para a realização das perguntas. Tivemos a oportunidade de fazer algumas perguntas que geralmente são mais ‘’delicadas’’, tanto para o entrevistado quanto para o entrevistador. Por fim, entrevistamos também o músico profissional Ivan Huol. Ele nos deu a entrevista em sua residência, a mais extensa deste trabalho. Sozinho em sua casa, na qual existe uma produtora ‘’improvisada’’, conversou longamente conosco. Ivan Huol é responsável por um grande projeto musical que existe em Salvador. O projeto 21 chama-se Jam no Mam. De qualquer maneira, fizemos estes comentários breves intencionalmente. Os próprios músicos expõem, de forma mais detalhada, aspectos importantes de suas vidas ao longo das linhas que se seguem. Temos certeza que a exposição deles irá complementar — dando um sentido mais concreto— a nossa sucinta descrição das circunstâncias nas quais as entrevistas ocorreram. Faz-se necessário destacar que as preocupações, as reflexões, enfim, o ‘’olhar’’ empregado neste trabalho encontra-se no ‘’terreno fértil’’ da história social. E uma pesquisa que se arroga ser construída e pensada no terreno daquilo que alguns historiadores chamam de história social, não pode prescindir as diversas esferas sociais nas quais as ideias, visões e intenções se apresentam e se consubstanciam. O historiador que busca trabalhar no terreno da história social não deve e não pode deixar de apontar, na medida do possível, aspectos diversos do organismo social. O historiador Eric Hobsbawm admoestou os historiadores quanto ao significado e a prática daquilo que chamamos de história social. Ele diz que A história social nunca pode ser mais uma especialização, como história econômica ou outras histórias hifenizadas, porque seu tema não pode ser isolado. É possível definir certas atividades humanas como econômicas, pelo menos para fins analíticos, e depois estudálas historicamente. Embora isso possa ser artificial [...] ou irreal, não é impraticável. [...] Mas os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser separados dos outros aspectos de seu ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização. Não podem ser separados, mais que por um momento, dos modos pelos quais os homens obtêm seu sustento e seu ambiente material (HOBSBAWM, 2005, p. 87). Partiu-se, nesta investigação, de uma situação-problema. Havíamos notado que alguns estudiosos do Carnaval de Salvador afirmavam que a festa havia passado por um processo de mercantilização. À medida que nos debruçávamos sobre algumas teses e dissertações que apresentavam aquelas circunstâncias — alguns desses estudos aparecem aqui—, fomos percebendo que os músicos não haviam sido inseridos naquele contexto. De fato, a partir daqueles estudos, bem como de outras referências, fomos convencidos de que aquele processo se desdobrou. Mas, e os músicos? Como ficaram naquele fenômeno? Nasceram daí as nossas inquietações. Ora, houve aquele processo, mas quais foram as implicações efetivas dele no modo de vida, 22 bem como no cotidiano dos músicos da cidade? Como perceberam, enquanto uma categoria de trabalhadores, as reverberações daquele processo? Fomos aprofundando as nossas perguntas. Começamos então a nos indagar: quais os tipos de experiências, daqueles sujeitos, que podemos retirar dessa associação: transformações sofridas pelo Carnaval de Salvador e o fazer-se dos músicos enquanto uma categoria de trabalhadores? A rigor, é basicamente este conjunto de reflexões que nos pôs nesta investigação. Estas reflexões traduzem o sentido da nossa problemática. Destas reflexões, alguns objetivos se apresentaram no horizonte da pesquisa. Surgiu a necessidade de Investigar como foram ‘’apresentadas’’ pelas sociedades civil e política baiana as ações do sindicato dos músicos; como os músicos viram o sindicato, qual havia sido a importância do sindicato para eles. Sabíamos, evidentemente, da existência do sindicato dos músicos. Quisemos apreender como os músicos que trabalharam nos carnavais de bairro viram aqueles que trabalharam no Carnaval do circuito hegemônico. Buscouse investigar também, naquele contexto, sobre possíveis diferenças em relação às remunerações recebidas para tocar no Carnaval. Tentou-se perceber, através do processo de mercantilização do Carnaval, certas ‘’forças hegemônicas’’, impostas tanto pelo Estado como pelos agentes privados. Até que ponto os músicos resistiram àquelas forças? Até que ponto eles consentiram? Estabelecemos uma relação, por exemplo, entre o processo de mercantilização do Carnaval de Salvador e as ações dos organismos midiáticos, locais e nacionais. Outros agentes importantes entraram nesta relação, tais como a indústria fonográfica e o Estado. Finalmente, objetivou-se ‘’descortinar’’ a vida e o perfil dos músicos. Quais eram os perfis desses músicos — classe, renda, faixa etária, origem, escolaridade, filiação a partido etc. —? Todas as perguntas/reflexões lançadas consubstanciam este trabalho. E a partir dos arquivos visitados, dos vestígios encontrados, dos exaustivos diálogos com as evidências com as quais nos deparamos, algumas formas de abordagens foram sendo delineadas. Fomos levados a abordar as experiências dos músicos naquelas circunstâncias considerando dois aspectos: as condições materiais daqueles indivíduos, como também algumas considerações e visões construídas sobre eles. 23 Assim sendo, tomamos o caminho de algumas reflexões postas por alguns estudiosos. Saliente-se que tal fato não significa o nosso ‘’enquadramento’’ numa determinada ‘’camisa de força’’. Efetivamente, o diálogo estabelecido pelo historiador com as evidências é mediado pelas reflexões do historiador que se utiliza também, durante todo o processo de pesquisa, de reflexões feitas por outras disciplinas e por estudiosos diversos. Nesse passo, é desse diálogo que surgem os conceitos que o historiador vai elaborar (VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY, 1991, p. 26). Desse modo, a discussão estabelecida pelo historiador inglês E. P. Thompson sobre a noção de experiência acabou por nos fornecer algumas pistas sobre determinados modos através dos quais os indivíduos fazem e percebem a sua história. Refletindo com este historiador, percebemos a importância de não apenas investigar os antecedentes sócio-econômicos dos sujeitos, — o que consideramos também extremamente válido e imprescindível—, mas também decodificar e compreender as dinâmicas específicas das ações desses sujeitos, com a finalidade de descobrir a percepção que eles têm deles próprios, e a validade de suas diversas situações vividas, o significado que atribuem a tais situações (HUNT, 2001, p.64). A discussão sobre experiência feita por Thompson aparece, de modo categórico, no célebre ensaio que escreveu chamado A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Debruçamo-nos neste ensaio, entre outras referências produzidas por este historiador. Este ensaio aparece em vários momentos neste trabalho. Entretanto, além do próprio Thompson, trazemos algumas considerações de outros autores a respeito do termo que foi trabalhado pelo historiador inglês. Aproveitamos para ressaltar a nossa dívida com este que foi um dos maiores historiadores do século XX. Quando, por exemplo, o sindicato dos músicos foi criado, oficialmente em 1982, aquela instituição protagonizou ao longo da década de 1980 e 1990, uma série de protestos. Num desses protestos, percebemos nos jornais de grande circulação da época que uma parte extremamente significativa dos manifestantes não havia sido contemplada com a sua ‘’fala’’ nas reportagens; além deles terem sido ‘’alvo’’ de diversos tipos de projeções. O protesto de 1993, a criação da Associação dos Músicos do Estado da Bahia, embates jurídicos, enfim, todos esses fenômenos mantiveram relações estreitas com a atuação dos músicos no Carnaval. Estes fenômenos ‘’denunciavam’’ 24 certas mudanças pelas quais o Carnaval de Salvador passava. Os jornais tendiam a privilegiar as falas das ‘’lideranças’’ do sindicato e de alguns parlamentares do poder público municipal que estabeleciam, em cada período, ‘’diálogos’’ com aquelas lideranças. Assim sendo, a partir daqueles músicos sindicalizados — e dos não sindicalizados— trouxemos à luz, entre outras coisas, as suas experiências; o seu espaço e tempo vividos naquelas circunstâncias específicas de mercantilização e burocratização do Carnaval. Tentou-se perceber o que sentiram, o que pensaram e o que desejaram naquele momento histórico. Com este raciocínio, conseguimos compreender melhor aquelas transformações ocorridas no Carnaval. E identificamos, em certa medida, alguns desdobramentos na vida dos músicos. Com isso, notaram-se também alguns conflitos que existiram entre Estado e músicos — o campo de forças naquele momento existente. Acreditamos que algumas reflexões postas a partir da noção de experiência invocada por Thompson, deram conta, pelo menos num primeiro momento, tanto da situação material concreta vivenciada pelos sujeitos como também de sua visão de mundo, dos antagonismos vivenciados, do que está na e além da estrutura de classes. Estamos falando do campo de forças que é a sociedade. ‘’A experiência — descobrimos— foi, em última instância, gerada na ‘’vida material’’, foi estruturada em termos de classe, e, conseqüentemente o ‘’ser social’’ pressionou a ‘’consciência social’’ (THOMPSON, 1981, p. 189). Outra importante discussão, que se fez necessária, foi a de hegemonia do filósofo italiano Antonio Gramsci. Para uma maior visibilidade das ações da sociedade política — seus interesses reais, seus mecanismos de deferência, a utilização de meios coercitivos estatais etc. —, bem como da relação que alguns setores da sociedade civil mantiveram com o Estado e com os músicos, foi importante, num primeiro momento, estabelecermos um diálogo com algumas das muitas reflexões proporcionadas pelo filósofo. Nos limites das considerações iniciais sobre o trabalho, não podemos, agora, ir além de apresentar ao leitor, rapidamente, alguns dos temas fundamentais que aparecem nos capítulos que sucedem. No primeiro capítulo, abordamos as vivências e as experiências dos músicos. Aspectos e situações diversas da vida dos 25 musicistas são elencados. A relação daqueles trabalhadores com o espaço carnavalesco é objeto de reflexão, neste primeiro momento. No segundo capítulo discutimos sobre um protesto dos músicos que ocorreu em 1993. Refletimos sobre as formas, bem como sobre os conteúdos dos discursos que foram produzidos e reproduzidos naquela situação específica na qual o protesto ocorreu. Algumas questões referentes ao período do goveno da prefeita Lídice da Mata aparecem neste segundo momento. No terceiro capítulo, buscou-se perceber através do processo de mercantilização do Carnaval, algumas forças hegemônicas. É neste capítulo que delineamos os traços da festa-negócio. Finalmente, há ainda no terceiro capítulo uma discussão sobre a axé-music. Este é um dos pontos culminantes do trabalho. Nele refletimos sobre o desenvolvimento da indústria cultural baiana, entre outras questões. 26 1. VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE TRABALHADORES DA MÚSICA. Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou — como supõem alguns praticantes teóricos— como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou — através de formas mais elaboradas— na arte ou convicções religiosas. Essa metade da cultura — e é uma metade completa— pode ser descrita como consciência afetiva e moral (Edward P. Thompson). Abordamos neste capítulo as vivências e as experiências dos músicos. Com isso, desejou-se perceber conflitos, contradições e antagonismos de ordens diversas. Destacamos também alguns aspectos sobre as primeiras formas de organização dos músicos. Estas formas aparecem aqui como um meio interessante não para construirmos uma história institucional ou algo do gênero, mas para compreendermos o que estava em ‘’jogo’’ na ordem do dia, como se davam as relações dos músicos com o espaço de trabalho carnavalesco; quais eram os projetos e as visões de mundo que motivavam aqueles indivíduos. Argumentar-se-á, nesta parte específica, sobre questões salariais; sobre emprego e desemprego, entre outros assuntos. 1.1 Aspectos de uma profissão Os músicos da Cidade do Salvador mantiveram, ao longo do desenvolvimento histórico de suas atividades, relações complexas com o espaço carnavalesco ali existente. Se tomarmos, por exemplo, a década de 1980, período situado na demarcação temporal do nosso estudo, ver-se-á musicistas famosos ou os que começaram a despontar na TV : O ano era 1986. Uma jovem cantora invadia os lares brasileiros, dançando e cantando uma musiquinha de letra fácil e ritmo contagiante. O Fantástico, da Rede Globo, a apresentava como a grande revelação da música baiana. Seu nome: Sarajane. A música: A roda. Começava ali a carreira dessa soteropolitana, que estreou aos 14 anos no trio elétrico Novos Bárbaros. Desde a primeira aparição em rede nacional, a nova promessa da música brasileira transformou-se rapidamente numa estrela. E prometia (Revista Muito, 30/11/2008, p. 28). 27 Como também encontraremos, dois anos antes, em 1984, musicistas que viviam o reverso das circunstâncias apresentadas acima. Viviam um ‘’dissídio no Tribunal Regional do Trabalho, buscando a fixação de condições de trabalho e uma tabela de preços mínimos para os cerca de três mil músicos que trabalham durante o Carnaval’’(A TARDE, 3/1/1984, p. 5). As evidências citadas acima indicam apenas uma parte da complexidade de que falamos. Há evidentemente outras formas, outros modos, através dos quais apontaríamos a forma bem como o conteúdo das relações sociais, econômicas, políticas e culturais complexas que afirmamos ter havido entre os músicos e o seu importante espaço de trabalho: o Carnaval. A rigor, tal complexidade daquelas relações se apresenta de maneira contínua ao longo do corpo do trabalho, seja através dos tipos de evidências escritas que expomos — e as situações apresentadas por cada uma—, seja por conta das evidências orais nas quais nos debruçamos para extrair os tipos diversos de significados, atitudes, enfim, os modos diversos do mundo vivido daqueles trabalhadores. Na situação apresentada acima, destacamos um problema que é discutido e aprofundado ao longo do texto. O problema diz respeito à importância econômica e cultural que os cantores e cantoras do Carnaval de Salvador foram adquirindo. Esses musicistas, os cantores e cantoras, abriram um abismo econômico significativo em relação aos demais. Antes da chegada do cantor ou da cantora no Carnaval de Salvador, as apresentações dos grupos musicais eram fundamentalmente instrumentais. ‘’[…], 'as conversas' instrumentais se estabeleciam entre as guitarras baianas […] A partir de 1976, o contrabaixo elétrico é introduzido no conjunto’’ (GOÉS, 2000, p. 58) Mesmo havendo uma situação de fama, de ‘’aparição’’ exagerada de um musicista-líder do grupo, não havia, em 1980, uma quantidade razoável de líderes de grupos musicais instrumentais cuja situação econômica fosse marcadamente desigual, se comparada aos outros musicistas do mesmo grupo. Ocorre que a situação econômica adquirida posteriormente, num curto espaço de tempo, pelos cantores e cantoras, torna-se algo descomunal face aos outros musicistas. O Carnaval de Salvador era — como ainda hoje — um dos eventos mais importantes para os músicos. Importante porque proporcionava ganhos materiais interessantes no que dizia respeito à produção da vida; significava, em resumo, um 28 bom período para ganharem “um dinheiro a mais”. Sobre a importância desse período para os músicos, entre outras coisas, dialogamos com Nikolaus Hatzinikolaou. Nikolaus Hatzinikolaou nasceu em 07/1/1971 em Santos, município do estado de São Paulo. Veio para a Bahia aos 7 anos. Morou a maior parte da sua vida em Cajazeiras, um bairro de Salvador cujo perfil dos moradores, do ponto de vista sócioeconômico, é de trabalhadores negros não “qualificados”, desempregados e pobres (SOARES, 2006, p.20). Este guitarrista profissional completou 39 anos em 2010. Nikolaus foi entrevistado em junho de 2009. Aos 19 anos fazia baile na noite de Salvador. Ele argumentou – ao rememorar os carnavais das décadas de 1980 e 1990 – que: Com certeza, o cachê pago — naqueles carnavais— era bem razoável e bem melhor até se comparado ao que é pago hoje à maioria dos músicos de mesma projeção em Salvador no carnaval. Todos os que tocavam dependiam desses cachês, apesar de alguns terem outros trabalhos além do carnaval feito pelo sindicato (Nikolaus). Ele fez esta afirmação quando conversávamos sobre os cachês pagos pela prefeitura aos músicos naqueles carnavais dos anos 80 e 90. Falávamos, entre outras coisas, sobre o “nível” de dependência, por parte dos músicos, daqueles cachês. A verba para o financiamento dos espetáculos musicais públicos no Carnaval era repassada, pela prefeitura, para o Sindicato dos Músicos que, por conseguinte, organizava e selecionava, através de concursos, as bandas que atuariam em espaços carnavalescos “oficiais”. Não é necessário fazer muito esforço para perceber que, ao longo do desenvolvimento do Carnaval, tanto o poder público quanto os agentes privados se posicionaram face ao Carnaval de Salvador de uma maneira até então ‘’pouco habitual’’. A ingerência do Estado, multifacetada, na festa era algo observável para alguns músicos. De alguma maneira o Estado ainda estabelecia uma espécie de ‘’pacto de reciprocidade’’ ou de ‘’reconhecimento’’, ainda que relativo, da importância dos diversos grupos sociais construtores da festa. Aquela importância do Carnaval para os músicos advinha também em função da ‘’certeza’’ que tinham em relação ao ‘’cumprimento’’ do poder público de suas ‘’obrigações’’ pecuniárias para com aquele grupo social. 29 Nikolaus começou cedo na profissão. Como ele, o músico Helder Mello de Araújo também ‘’pôs os pés’’ ainda jovem na ‘’estrada’’, a despeito de ter considerado a idade com a qual efetivamente começou a trabalhar avançada para um musicista profissional. Helder Mello de Araújo nasceu em 21/04/1968 em Goiânia, capital do Estado de Goiás. Este guitarrista profissional completou em abril de 2010 42 anos. Morou a maior parte de sua vida, em Salvador, num bairro chamado Joana Angélica. No diálogo que tivemos, mencionou sobre a sua casa que ficava em frente ao colégio Central. Ele argumentou que ‘’no mercado não existia a proliferação profissional de qualquer pessoa pra ser músico [...] Era difícil você encontrar emprego, mas era fácil ser músico [...] Não existia essa quantidade de músicos desempregados como tem hoje, essa quantidade de bandas como tem hoje’’. Helder toca numa questão acima sobre a qual refletimos mais adiante: o ''rearranjo'' que sofreu aquele conjunto de indivíduos musicistas que atuava no Carnaval de Salvador. A partir da demanda musical que havia no Carnaval enquanto ''entretenimento espontâneo'', bem como da demanda criada pelos mecanismos nascentes da indústria carnavalesca, isto é, do entretenimento estritamente comercial, uma produção em larga escala, em série, de bandas ou conjuntos musicais foi levada a cabo. No período inicial da indústria carnavalesca não havia uma quantidade significativa de músicos especializados ou músicos cuja formação técnica atendia aos novos parâmetros estabelecidos pela complexa e nova divisão do trabalho que se apresentou naquele Carnaval-negócio. Esta questão é melhor discutida no terceiro capítulo. Contudo, cabe ainda refletirmos sobre a massa de músicos desempregados que começou a surgir. Sabe-se que a existência de uma reserva de força de trabalho desempregada e parcialmente empregada é uma característica inerente à sociedade capitalista, é o chamado exército de reserva do trabalho ou exército industrial de reserva. A acumulação do capital significa o crescimento daquele exército; há novos métodos de produção, de maior escala que a própria concorrência obriga os capitalistas a adotar. E a quantidade de dinheiro que começou a pairar na festa, os diferentes interesses dos agentes privados, o rápido acúmulo de capital conseguido por agentes privados específicos, todas estas questões contribuíram na formação 30 daquele novo cenário carnavalesco. [...] ‘’A economia da cidade movimenta mais de 100 milhões de dólares durante o Carnaval [...]’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 15/12/1993). ‘’[...] tem-se que levar em conta a mobilização de vários segmentos do comércio, indústria e serviços como transportes, a rede hoteleira, a indústria de bebidas [...], cujo faturamento ultrapassa cifras muito além das dezenas de milhões de dólares’’ (GÓES, 2000, p. 100). Helder nos disse que Era fácil você entrar nesse mercado... Então eu entrei. Comecei a freqüentar o sindicato dos músicos em noventa e um, noventa e dois... Era um meio muito fragmentado, existia união entre as bandas momentaneamente, baseado no interesse de se tocar no Carnaval. Mas a minha entrada no ramo musical foi algo assim prematuro e eu não estava preparado para aquilo ali profissionalmente, fui aprendendo no meio. Havia uma contradição, e ainda há nos dias de hoje, um tanto intrigante nos músicos. De um modo geral, no plano da consciência, alguns músicos não se percebiam como um grupo ‘’unido’’, estruturado nos termos clássicos de uma classe trabalhadora. Em longas conversas que tivemos com alguns deles, sempre mencionavam o fato de o músico não possuir um local de trabalho fixo, o fato de os músicos serem um grupo de trabalhadores que vivem uma eterna ‘’diáspora’’. Ao mesmo tempo em que o desejo de se tornarem um grupo unitário, como solução de muitos problemas que vivenciavam, era presente. Para outros, os músicos se constituíam num grupo de trabalhadores unido de fato, mas o que atrapalhava as ações políticas do grupo era o que circundava a profissão, isto é, a fama, o glamour, o espetáculo do Carnaval etc. Entretanto, do ponto de vista palpável, muitos sabiam que precisavam de uma união momentânea — ainda que fosse numa ‘’teatralização’’ — para pressionar a sociedade política no que dizia respeito ao pagamento de um cachê significativo. Helder também destacou a importância do Carnaval de Salvador na vida dos músicos da cidade. Quando perguntamos se havia uma expectativa, uma dependência daquele dinheiro que o município liberava para custear as apresentações das bandas no Carnaval, ele afirmou: Sim, havia. Vários músicos de influências e culturas diferentes estavam ali reunidos em torno da necessidade dos cachês. Desde músicos oriundos da região suburbana de Salvador e até mesmo de músicos dos bairros da Pituba e Itaigara, claramente com realidades 31 sócio-econômicas bastante diferentes. O dinheiro representava tudo. Havia inclusive substituições de músicos durante as apresentações das bandas no carnaval. Geralmente, eram poucas as bandas que se apresentavam com a mesma formação feita no concurso. É necessário destacarmos um elemento importante sobre o qual Helder faz referência: a heterogeneidade da categoria. Diante da projeção nacional e internacional alcançada pelo Carnaval de Salvador, projeção fomentada principalmente pelos veículos de comunicação — seja em nível local ou nacional—, houve um processo de ‘’enquadramento’’, uma ‘’padronização’’ das diversas e múltiplas circunstâncias sociais e culturais sob as quais o Carnaval se concretizava efetivamente. Nikolaus nos disse que ‘’[...] quando você vê o Carnaval na televisão é sempre a mesma coisa. Todo ano o Carnaval é melhor do que o ano que passou, e na verdade teve um monte de problema, equipamento ruim [...] mas ninguém fica sabendo’’. Aquele ‘’leque’’ de fenômenos díspares, disformes, quando era apresentado através do paradigma nascente do espetáculo, do glamour, quando era difundido sob as lentes do show business, desaparecia — e ainda hoje é assim— como num passe de mágica. E os músicos, agentes fundamentais da dinâmica carnavalesca, não ficaram de fora daquela inversão ou distorção das situações palpáveis — contradições de ordens diversas— que a festa trazia consigo, e a partir de 1980 houve um recrudescimento das contradições socioeconômicas no Carnaval de Salvador. De modo que, o músico do Carnaval, quando passou a gravitar os espaços midiáticos, em diversas situações, foi levado a apresentar certas posturas, certos tipos de comportamento e atitudes que, a partir dos desdobramentos industriais do Carnaval, tornavam-se mais ‘’condizentes’’ com a figura do artista — intocável, distanciado da sociedade— da TV. O músico Jorge Solovera disse que a ‘’[...] banda do bairro imitava as bandas conhecidas. Teve um cara que eu toquei que se vestia igual a Netinho rs’’. Efetivamente, isto gerou algumas implicações. Como o modelo hegemônico apresentado pelas mídias era o modelo dos ‘’artistas’’ bem-sucedidos, dos famosos, dos artistas que serviam como uma grande ‘’moeda de troca’’, todos os demais, e estamos falando de uma grande massa de artistas não famosos, deveriam seguir aquela bula. Não que isso fosse expresso, houvesse força. 32 A partir dos relatos dos músicos, bem como através de alguns jornais, foi possível notar que os grupos musicais que não serviam de atrativo para as propagandas turísticas oficiais, os que se apresentavam em circuitos marginalizados, se fizessem uma aparição rápida em algum veículo de comunicação para efeito de divulgação da sua apresentação, tinham de fazê-lo sob certos critérios: um bom figurino, músicos que gozavam de ‘’boa aparência’’ no grupo, músicos que se expressassem bem no momento da entrevista etc. Nikolaus nos relatou que Tinha uma escolha de linha de frente nas bandas... Em muita banda de axé a aparência começou a contar, começou a ser importante... O músico que falava melhor, que ficava legal no figurino sempre era chamado para as entrevistas (Nikolaus). É evidente que isso não era condição imposta pelos veículos de comunicação. Essa moral já fazia parte das estratégias dos produtores ou donos das bandas, que tomavam como exemplo o modelo dos artistas do ‘’topo da pirâmide’’. Aquilo trouxe situações interessantes. Em primeiro lugar, no campo das ‘’projeções’’ difundidas, produzidas e reproduzidas. A despeito de todos os problemas infra-estruturais existentes nos circuitos dos carnavais de bairros, apesar de os músicos haverem disputado ferrenhamente, através do concurso promovido pelo sindicato, uma vaga de trabalho no Carnaval de Salvador, apesar de muitos músicos que faziam os carnavais através do sindicato apresentarem condições econômicas limitadas, ainda assim, quando apareciam numa fotografia de um jornal qualquer, por exemplo, surgiam sob o manto daqueles critérios mencionados anteriormente. Quanto ao concurso, o presidente do SindiMúsicos Franklin Oliveira argumentou que [...] ‘’pela primeira vez vai haver uma seleção rigorosa. Os músicos não eram acostumados a passarem por seleção com critérios e, por isso, sempre foram manipulados’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 10/12/1993). O músico Luciano Calazans afirmou que ‘’[...] quem fazia a seleção do sindicato era o músico paupérrimo, o músico precisado’’. Em segundo lugar, como a imagem do grupo a ser apresentada para a sociedade era nivelada por cima, pelos objetos, estética, atitudes e comportamentos que constituíam as bandas famosas que se apresentavam no circuito hegemônico, os músicos do circuito marginalizado apareciam — eram difundidos—, e isso se dava 33 sob diversos matizes — material, simbólico, social etc. —, num patamar não muito distante daqueles que levavam, efetivamente, uma vida socioeconômica privilegiada. Em terceiro lugar, os músicos acabaram contraindo uma espécie de glamourização das atividades. O músico Jorge Patrício Solovera afirmou que A mídia vende o Carnaval falso. Um Carnaval que não acontece. O músico não tem sindicato, não se organiza, então o que acontece, o acerto do músico acaba sendo individual, o que é péssimo, tem bandas que acontece isso, nem todas, mas em muitas bandas acontece isso... Quanto ao cachê dos músicos, Jorge Patrício Solovera argumentou que Tem músico que ganha o dobro, tem músico que ganha o dobro do cachê normal, e tem músico que ganha muito abaixo. É por isso que acontece essa desunião. O que acontece é que na música, na arte, tem essa coisa do glamour, a mídia é o glamour. Uma coisa que eu percebo muito inclusive... eu não considero o axé uma arte. Quase todas as pessoas envolvidas na parte musical, por exemplo, elas não almejam tanto a coisa da arte em si, da composição, do tocar bem... Elas almejam o glamour, o que ele pode ser... Isto é, por conta do ‘’arquétipo’’ carnavalesco que foi se consolidando, o da festa-mercadoria, muitos músicos acabaram adquirindo um desejo ávido de aparecer em cima de um trio elétrico sob as filmagens de alguma emissora de TV, ou sob os flashes de algum jornal impresso – ainda que estivesse tocando por cachês baixos — abaixo até mesmo da média estabelecida pelos empresários da indústria carnavalesca, conforme o relato anterior de Jorge Patrício Solovera—. Detalharemos a vida de Jorge Patrício Solovera mais adiante. Ainda em relação à aproximação do musicista do Carnaval com a mídia, justamente sobre algumas questões que levantamos anteriormente, Solovera nos diz o seguinte: Por exemplo, o músico fica pensando que ele vai ficar rico, ou que vai ficar famoso; o cantor fica pensando que um dia ele vai ficar famoso também, que vai tá dirigindo uma Ferrari, entendeu... e daí ninguém ta preocupado com a parte técnica. Eu acho que a própria deterioração do axé se dá por conta disso. Porque é um monte de gente que tá interessada na verdade numa satisfação pessoal e não com a parte artística, entendeu... Eu acho que isso aí é o ponto chave pra que a coisa não ande, inclusive profissionalmente... Porque você pega um monte de gente que tá com ambição, que tem uma visão muito pouca do que pode vir a ser, no meio desse pessoal artístico ou até profissional, entendeu... Tipo o cara vem do interior, vem pra Salvador com o sonho de tocar com Ivete Sangalo, como a gente tava conversando... E ele vai fazer qualquer coisa... Se Ivete Sangalo der dez reais a ele, ele vai tocar, porque ele acha que aquilo 34 vai levar ele a um glamour, que ele vai conhecer o mundo... Só que daí ele tá se desvalorizando, é o que acontece muito aqui. O conteúdo do relato de Solovera diz respeito às formas de mercado que foram se estruturando na festa, formas responsáveis pelas, e produtores das ‘’estruturas fâmicas’’, digamos. Aqueles mecanismos homogeneizaram, em termos de difusão, as circunstâncias culturais, sociais e econômicas dos músicos. E Solovera é enfático ao traçar o perfil daqueles músicos imersos no show business: É o músico que faz o trabalho não pela questão financeira, nem tecnicamente, mas unicamente pela coisa do glamour, pela festa, vou conhecer gente, vou ficar famoso, vou ficar gatinho... e daí acaba tudo rs. Os diversos tipos de contradições — contradições que se dão em níveis diversos da vida social—, as diversas situações existentes na atividade do profissional da música do mercado carnavalesco de Salvador, aparecem, surgem para uma grande parte da sociedade soteropolitana, de modo um tanto obscuro. É esta situação citada pelo músico Solovera que passou a existir, em grande medida. Talvez isto seja um ponto muito importante a ser descortinado, pois continua ocorrendo até hoje. O músico que passou a se submeter — e se submete ainda hoje— ao jogo do espetáculo o fez porque começou a haver uma valorização excessiva — por parte de muitos indivíduos que consumiam aquele modelo carnavalesco— do músico que gravitava os espaços dos famosos por excelência: a mídia. Luciano Calazans afirmou que ‘’[...] a gente aparece no programa de TV a gente tem ibope rs, todo mundo te liga, quer convite pra show. Daí você cai fora da banda que tá estourada, some todo mundo rs’’. Ainda hoje há um senso comum partilhado pelos consumidores da festanegócio que é o seguinte: os músicos que ganham dinheiro são aqueles que aparecem na mídia, que aparecem na TV, que aparecem em algum momento numa fotografia no jornal impresso etc. Nikolaus argumentou que [...] ‘’ninguém sabe que a gente não ganha nada pra tocar no Gugu ou no Faustão’’. Há um problema que se constata, quando relacionamos aquele senso comum existente com as experiências palpáveis de uma grande parte de músicos que trabalharam — e trabalham— no Carnaval de Salvador: o problema da projeção. A projeção existente, o sentido de tais projeções, nesse caso, não corresponde efetivamente ao cotidiano vivenciado por centenas de músicos. No 35 entanto, tal consideração não é fruto do acaso, mero ‘’invencionismo’’ barato. Esta consideração tem relação, em primeiro lugar, com os cantores e cantoras; em segundo lugar, ela é estendida para os músicos que circundam tal ou qual artista famoso. ‘’ Você lembra daquela banda Calcinha Preta, tava aí na mídia... Vá ver quanto os músicos ganham, mixaria’’, argumentou Luciano Calazans. Em terceiro lugar, ela é respaldada numa certa parte de ‘’músicosfuncionários’’, que obtiveram ascensão econômica — mobilidade social—, em médio prazo, por terem trabalhado com cantores ou cantoras famosos que freqüentemente apareciam nos diversos veículos de comunicação.‘’[...] eu fiz muitos trabalhos, muitas viagens internacionais com alguns artistas que trabalhei, deu pra tirar um dinheiro legal depois que a coisa se profissionalizou’’, afirmou o músico Gerson Silva. Nesse passo, foi por conta de termos notado — através dos nossos diálogos com os músicos, através das situações específicas geradas pela natureza do seu trabalho, enfim, através do contato mais estreito com o seu mundo vivido — estas questões, dentre outras, que falamos da aparição descontextualizada daqueles profissionais. A apreensão da heterogeneidade, por parte do público consumidor do Carnaval-espetáculo, daquela categoria, foi se tornando difícil diante daqueles complicadores que foram surgindo. Os músicos que por razões sociais diversas haviam ascendido materialmente naquelas décadas — ou estavam em plena ascensão material no momento histórico estudado—, apareciam, nos veículos de comunicação, ao lado de outros músicos com características econômicas e sociais diametralmente opostas. Tentar-se-á, ao longo das reflexões postas no texto, explicitar melhor esta situação. De todo modo, refletindo ainda sobre a importância do Carnaval de Salvador para aqueles trabalhadores, conversamos com o contrabaixista Ivan Bastos. Ivan Bastos é baiano, nasceu 11/10/1963. Entrou na Escola Técnica da Bahia em 1971. Morou grande parte da sua vida no bairro da Caixa D’água, em Salvador. Tornou-se músico profissional ainda muito jovem, segundo ele mesmo descreve: Rapaz, eu entrei na escola técnica em 1971. Já tocava em casa, meus irmãos já eram músicos de baile... Aí lá — na escola—, eu conheci outros músicos...Engraçado que nesse período, na década de 70, o trio elétrico estava passando por uma transformação que era justamente a chegada do cantor... Nessa época, esse mercado de carnaval...ele ainda estava incipiente. Você tinha alguns trios 36 elétricos, alguns blocos... e era o único lugar onde aquele músico que tava estudando pra caramba guitarra baiana, inspirado em Armandinho, porque até então era música instrumental...E aí eu conheci muitas pessoas nessa época na escola técnica que já tocavam, muito jovem, inclusive era muito comum se profissionalizarem muito cedo... Mou Brasil mesmo — um músico de Salvador, amigo do entrevistado—, novinho já tava pipocando. Eu mesmo comecei a tocar profissionalmente com dezesseis, dezessete anos. Logo que comecei a tocar, surgiu o convite para tocar no carnaval, porque realmente era o único mercado que tinha; mas fora isso não tinha muitos lugares pra tocar na noite... na década de 80 é que vai aparecer mais bares pra tocar na noite. Mesmo sendo um espaço de trabalho importante já no início da década de 1980, apesar de incipiente, como fora dito pelo nosso entrevistado, nota-se que a relação social e cultural de alguns músicos com os carnavais daquele período ultrapassava o sentido de espaço carnavalesco como ‘’ganha pão’’ apenas. Havia uma relação ‘’afetiva’’ com aqueles carnavais, um tipo de relação que não se reduzia à ‘’impessoalidade’’ do músico-funcionário de uma banda-empresa. Ivan Bastos prosseguiu nos informando a sua formação musical quando do início da carreira: Na realidade eu comecei tocando de tudo... Eu gostava muito de música brasileira... Chico Buarque, Bethânia... e aí eu tive também uma fase rockeira, depois entrei pelo jazz; escutava Hermeto Pascoal... Mas, enfim, fundamentalmente o lugar onde dava dinheiro já era o carnaval, apesar de não ser como hoje, mas aqueles dias de carnaval o cara conseguia ganhar uma soma que dava pra ele comprar um carrinho usado, antes mesmo da década de 80; ainda era muito desorganizado, o carnaval em si era muito desorganizado. Não é demais lembrar que foi na década de 1980 que o poder público tentava colocar em prática ações que visavam a garantir algum tipo de organização institucional na realização do Carnaval. Algumas dessas tentativas foram apresentadas na gestão do prefeito Manoel Castro, 1981-1984, e igualmente na gestão do prefeito Mário Kertész, 1985-1988, quando se destacam a criação do Grupo Executivo do Carnaval através do Decreto n. 6.985 e a ampliação do circuito tradicional da festa com a incorporação do bairro da Barra (HEBER, 1999, p.183). Há questões levantadas no depoimento do contrabaixista Ivan Bastos que devemos refletir. Nota-se que tocar no Carnaval de Salvador significava também para o musicista, entre outras coisas, uma oportunidade importante de “aparição”, uma oportunidade de ganhar visibilidade. 37 Os músicos que se apresentavam no Carnaval de Salvador, deduz-se, eram considerados profissionais, dado que o Carnaval representava a principal “área de atuação” daqueles trabalhadores. O mercado no qual se obtinha ganhos materiais significativos, sendo músico, era o Carnaval. Confrontando o depoimento de Ivan Bastos com a pesquisa empreendida por Fred Góes em seu livro 50 anos do trio elétrico, percebemos que a afirmação do baixista quanto às mudanças pelas quais passava o trio elétrico na década de 1970, mais precisamente por conta da chegada do cantor no trio, não é infundada. Fred Góes é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro; desenvolve pesquisas na área da literatura e da música popular. Escreveu e pesquisou sobre o Carnaval da Bahia. O autor nos diz que ‘’Salvador se preparava, então, para o maior Carnaval. O Frevo do trio elétrico, por uma feliz coincidência, ganhara projeção nacional, incluído na trilha sonora da novela Rede Globo ‘Super Manuela’, ainda que, equivocadamente, tocado toda vez que apareciam cenas externas do Recife’’ (GÓES, 2000, p. 86-88). Fred Góes afirma ainda que ‘’o trio elétrico de Dodô e Osmar ensaiava o repertório tradicional que acabara de ser gravado pela Continental, no primeiro longplay do grupo, produzido por Moraes Moreira, o novo membro do conjunto e primeiro cantor de trio elétrico’’ (GÓES, 2000, p. 86-88). É evidente que esta citação traz outras situações. Mas fazemos uso dela apenas para mostrar o fato da chegada do primeiro cantor de trio elétrico, algo sobre o qual Ivan Bastos faz referência, ao fazer uso da memória. Esta pesquisa de Fred Góes, pesquisa que abarca também esse momento da chegada do cantor, articulase com a memória do nosso entrevistado. Outra afirmação igualmente importante de Ivan Bastos é a de que o Carnaval, na década de 1970 era um mercado incipiente. O músico diz que havia alguns trios elétricos e alguns blocos. Mais uma vez o relato do baixista, a sua lembrança, vai ao encontro das análises feitas por Fred Góes, análises que correspondem ao mesmo período mencionado pelo nosso entrevistado: O trio elétrico, a maior atração do carnaval de rua, torna-se mais e mais um negócio custoso, os equipamentos se sofisticam, os músicos se profissionalizam, os patrocinadores seguram as verbas. Em contrapartida, organizar bloco se torna um bom negócio. É no final da década de 70 que começa a se esboçar uma tendência que viria a se generalizar no carnaval baiano – o trio de bloco — dentro 38 de cordas—. Podemos estabelecer o ano de fundação do bloco Camaleão como marco da profissionalização dos blocos de trio (Ibid., p. 84). Aqui também aparece outra citação que se articula com a memória do músico. O objetivo aqui é relacionar o resultado da entrevista com a pesquisa empreendida por Fred Góes, pesquisa que possui um conjunto de fontes de outra natureza. Uma passagem rápida da fala do músico nos remete a uma indagação importante: por que ele utilizou o ‘’apesar de não ser como hoje’’, ao se referir à soma de dinheiro que os músicos obtinham nos carnavais da década de 1970? Refletimos sobre esta passagem específica do relato do baixista pelo fato de outros músicos terem argumentado algo similar. Conversando com Jorge Patrício Solovera, perguntamos a ele se havia de fato uma dependência, por parte dos músicos, dos cachês pagos pela prefeitura para custear as apresentações. Ele argumentou que ‘’[...] dava pra comprar um instrumento pelo menos. Eu sei que depois foi caindo — o cachê—, mas não lembro direito’’. Nikolaus afirmou anteriormente a mesma coisa: o dinheiro obtido no Carnaval, se comparado hoje, era melhor, segundo o guitarrista. Jorge Patrício Solovera é chileno, nasceu em 05/07/1974. Este músico fez 36 anos em 2010. Veio para a Bahia ainda garoto. Em Salvador, morou a maior parte da sua vida na Avenida Garibalde. Começou a tocar na noite de Salvador ainda bem jovem, aos 14 anos, como boa parte dos músicos. Descrevendo a sua trajetória, ele nos traz as seguintes informações: Eu comecei a tocar por causa do meu pai, que era concertista. Ele morreu quando eu tinha dois anos. Aí veio a curiosidade de tocar violão... Daí eu comecei a tocar eu tinha mais ou menos uns cinco anos. Aí de sete pra oito anos eu entrei na faculdade, no conservatório de música do Chile, fiquei lá um ano. Depois a gente veio pro Brasil, eu passei um ano no Rio sem estudar. Quando agente veio pra Bahia eu fiz o concurso... na época tinha concurso pra entrar no curso livre, na época era curso pré-básico que chamava, da Universidade Federal. Em Salvador, o músico que buscava adquirir conhecimentos sobre teoria elementar da música, tendia a buscar tais conhecimentos nos cursos livres e oficinas musicais oferecidos pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Era difícil encontrar conservatórios musicais com uma infra-estrutura adequada. O 39 músico Luciano Calazans nos disse ‘’[...] eu fiz a oficina da UFBA, foi o único lugar que eu encontrei [...], ganhei uma bolsa pra estudar’’. E apesar da formação musical, oferecida pela Universidade Federal da Bahia, ser estritamente ligada à música clássica européia, alguns músicos, ainda que aquele aprendizado não tivesse ligação, pelo menos de forma imediata, com a música popular baiana, aprendiam as suas primeiras lições naquela escola. Mas o fato é que uma grande parcela não possuia condições materiais que permitissem realizar um aprendizado sistêmico e duradouro. Jorge Solovera continuou argumentando: Ali eu passei quatro anos estudando teoria, estudando violão. Comecei a ouvir Rock... fudeu [rs]. Comecei a tocar Rock e comecei a tocar na noite. Comecei a tocar na noite com quatorze anos mais ou menos, num barzinho da minha mãe, minha mãe tinha um bar. Aí entre um barzinho e outro eu fui chamado pra tocar... Entrei numa banda... na época, nos anos noventa, existia uma febre de banda couvert. Começaram a fazer um monte de banda couvert, Blitz, Raúl Seixas... Daí me chamaram pra entrar numa banda, até na época eu queria ser baixista. Só que aí me colocaram pra tocar guitarra, daí eu virei guitarrista. Isso em Salvador, no início dos anos 90. De 89 pra 90... Eu fiquei tocando com essa banda até 92. Eu tava com dezesseis, dezessete anos. Aí, uma coisa vai levando a outra, eu comecei a tocar axé. Mesmo havendo os espaços de trabalho dos bares, nota-se que o caminho percorrido pela maior parte dos músicos, após uma ‘’temporada’’ nas noites de Salvador, desembocava no Carnaval; costumavam tocar com grupos musicais cujo repertório apresentava, em grande medida, canções de sucessos carnavalescos. O músico Gerson Silva, ao mencionar os carnavais do início da década de 1990, nos diz o seguinte: Pra mim significava uma boa época pra ganhar um melhor cachê já que sempre o carnaval foi uma festa que se pagava melhor aos músicos. Eu nunca gostei de depender disso pra manter minha profissão e sim achava que com aquele dinheiro eu sempre poderia comprar melhores instrumentos além de livros, vídeos, CDs, que me desse maiores condições de aperfeiçoamento na minha profissão. Infelizmente isso não era aplicado pela maioria dos músicos que conhecia e muitos desses pararam de tocar já faz tempo. Uma questão que se nota, como argumentamos acima, é a relação presente que os músicos fazem entre os carnavais passados, com as suas condições gerais de trabalho, e o momento carnavalesco atual. Tal relação indica para estes músicos que houve mudanças, no sentido de que no período passado, apesar de suas 40 contradições existentes, as condições de trabalho eram melhores, se comparadas às atuais. Parece-nos que as mudanças ocorridas no espaço de trabalho carnavalesco, que neste caso não foram boas, tem relação direta com a inserção significativa da mídia no Carnaval de Salvador. A afirmação segundo a qual antes — passado em oposição ao presente— o Carnaval era melhor para a atividade musical, esta afirmação específica, é presente nas falas dos músicos entrevistados. E se o termo ‘’melhor’’ aparece associado às questões econômicas, isto é um fato revelador das subjetividades envolvidas, ou seja, de como elas se materializam no terreno da memória de nossos entrevistados, dos significados atribuídos às situações vivenciadas. E essas afirmações acabam se transformando numa resposta possível a um dos problemas centrais da nossa investigação: tentar apreender as reverberações do processo de mercantilização do Carnaval de Salvador nos músicos da cidade. Esse processo houve, é ponto pacífico para muitos estudiosos da festa. E é fato que esse processo trouxe implicações, se não para todos os grupos sociais inseridos na construção da festa, pelo menos para a maior parte desses grupos. Mas o que realmente é importante aqui é a relação entre a oralidade e a memória. Busca-se fazer e pensar a história oral nesta investigação. Em história oral, o ‘’grupal’’, ‘’social’’ ou ‘’coletivo’’ não corresponde à soma dos particulares. Porém, a repetição — dos músicos entrevistados—, por exemplo, de que eram melhores, em termos econômicos, os carnavais das décadas estudadas, é algo relevante. Durante a nossa conversa com Nikolaus, quisemos saber como era naquela época ser músico em Salvador; se havia, de fato, a participação de um grande número de bandas atuando no Carnaval; se eles sentiam algum tipo de hostilidade por parte da sociedade soteropolitana: Não. Creio que os músicos tinham mais oportunidade de mostrar seu trabalho em Salvador, já que o Carnaval não era feito por artistas que apenas apareciam na TV, e sim por artistas às vezes desconhecidos, mas que tinham um bom trabalho para mostrar ao público, e tinham aceitação e apreciação deste, como os famosos também tinham. Um artista anônimo poderia ficar famoso no Carnaval, se fosse talentoso e fizesse um bom trabalho, coisa que não acontece hoje, já que os artistas dependem da mídia para ficarem famosos. Antes eles dependiam da aprovação do público, hoje dependem de marketing e dos empresários (Nikolaus). 41 Parece que ser músico profissional no contexto do espaço carnavalesco atual tem uma relação profunda com a noção de fama e espetáculo1, em oposição ao reconhecimento da criatividade espontânea do indivíduo. É isso que notamos a partir das experiências desses músicos com os quais dialogamos. Nessa forma atual, por exemplo, de se conceber a arte e o indivíduo criativo, o espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por princípio a noção de “fama” exige é a da aceitação passiva que obteve por seu modo de aparecer sem réplica — e isto ocorre em muitos momentos da vida cotidiana —, por seu “monopólio” da aparência (DEBORD, 2004, p.17). O relato dado por Nikolaus toca muito bem nesta questão. O Carnaval, para ele, não era feito só por “artistas” que apareciam na TV e sim por artistas “desconhecidos” também. É importante reconhecer a necessidade de se criticar esta forma atual. Torná-la objeto de discussão “popular” 2. Por conta desse “modelo” carnavalesco atual apresentar à sociedade baiana alguns poucos músicos urbanos que passaram a fazer parte, por razões sociais diversas, do “espetáculo” e da “fama” proporcionados pela festa-mercadoria3, uma das principais considerações que se tem desta categoria é a de que os trabalhadores levam uma vida “privilegiada” dentro do espaço sócio-econômico da cidade. Assim, a maior parte desses músicos aparece para a população local de um modo descontextualizado. E um dos principais agentes produtores desse processo é a mídia. Mas não somente a mídia, em si mesma. Esse processo envolve a mídia associada aos mecanismos de mercado. Juntos, esses ‘’ingredientes’’ promovem a chave mestra da cortina de fumaça que concretiza o fenômeno da inversão das circunstâncias: a noção de fama e do que é ser, de fato, alguém famoso. ‘’[...] a nossa profissão tá ligada a rádio, a TV [...], a galera quando vê isso só vê dinheiro [...] acho que todo artista passa por isso’’, afirmou Jorge Solovera. 1 Os espaços espetacularizados são os utilizados nas propagandas turísticas promovidas tanto pelo poder público como pelos agentes particulares. O espaço espetaculariazado é o espaçomercadoria. O espaço é inserido no mundo do espetáculo. O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo (DEBORD, 1997, p.30). 2 Para um aprofundamento da noção de ‘’popular’’, ver HALL, 2003, p. 262; ver também CHARTIER, 1995, p. 179-192. 3 A idéia de mercadoria com a qual fazemos uma discussão encontra-se em LUKÁCS, 2003, p. 194. 42 Outra forma de expressar o que buscamos apontar é argumentando que estamos tentando ‘’desvendar’’, entre outras coisas, com a nossa investigação, a relação entre os músicos do Carnaval tal como nos fazem ver, isto é, sob as lentes dos veículos de comunicação, e os músicos do Carnaval tal como eles são, trabalhadores que sofrem exploração e hostilização de diversas formas. Apenas para trazer um exemplo, que envolve todas as questões levantadas anteriormente, citaremos algo que ocorreu com um músico do grupo afro Olodum. O Olodum tornou-se um grupo musical difundido. Ficou conhecido tanto em nível nacional como também internacional. ‘’O ano de 1987 marca o estouro musical do Olodum. A canção ‘Faraó’ foi a mais tocada no Carnaval da Bahia. Pela primeira vez, os grandes trios elétricos tocaram um trabalho de um bloco afro [...]’’ (SCHAEBER, 1999, p. 60-61). O Olodum se apresentou com cantores conhecidos. ‘’Paul Simon veio à Bahia em 1988 em busca de novos e autênticos ritmos. O Olodum viaja à Europa. No mesmo ano gravou-se o videoclipe no Pelourinho, exibido em 140 países [...]’’ (SCHAEBER, 1999, p. 60-61). Dois anos depois, mais precisamente em 1990, novas bandas de sambareggae surgiram, foram formadas por antigos membros do Olodum. E eles denunciaram os motivos pelos quais haviam saído do grupo. Vejamos o que o músico ex-integrante nos revela: Nós gostávamos do bloco, éramos fundadores, mas não recebíamos nem respeito nem garantias. Éramos tratados como escravos, muitas vezes tivemos que carregar caixotes no carnaval, e nosso esforço não era reconhecido. Levávamos de dois a três meses para receber dinheiro e muitos nem recebiam. [...] Eles se sentem os donos da gente (GUERREIRO, 2000, p. 167). Vejamos agora o que um mestre de percussão e ex-músico do Olodum argumenta: No Olodum não tem ninguém pra lutar pela causa da gente e eles dão o que querem. Quando aparece um compromisso, eles querem que a gente esteja pronto imediatamente sem acertar grana. Ainda descontam as roupas da gente, e até das bailarinas, do nosso dinheiro’’ (Ibid., p. 167). Esta situação que as evidências acima trazem, tem relação com ‘’aquilo que nos fazem ver’’ — os músicos sob a ótica do show business, do espetáculo em perfeita harmonia— e ‘’aquilo tal como realmente é’’ — músicos imersos em contradições no âmbito de trabalho, explorações, conflitos etc. —. 43 A “padronização” das pessoas é a condição sine quanon através da qual a mídia tenta difundir e “impor” o seu mundo. Nesse passo, quando os cantores e cantoras se consolidaram no Carnaval de Salvador, alcançando alguns poucos uma ascensão material significativa, fruto da reorientação social, por assim dizer, por que passou a produção carnavalesca, houve uma tendência, por parte de muitos setores da sociedade civil baiana — e a natureza da difusão midiática do Carnaval contribuiu muito para tanto —, de considerar o músico trabalhador como sendo uma extensão imediata do modo de vida daqueles artistas-empresários: Olha... Você aparecia na televisão...Pronto... A galera já dizia logo, tá bem... tá nadando no dinheiro rs... Neguinho te via e perguntava logo: tá tocando com quem fulano... Ah, tô tocando com Daniela Mercury... Ah, então tá bem. Um amigo meu até brincava comigo dizendo que não caisse nessa, porque quando acabava o show e a galera batia palma, a galera não tava batendo pra você não, era pro cantor (Nikolaus). Como os cantores e cantoras passaram a permear os espaços midiáticos, espaços que somente os “famosos” gravitavam, os músicos acompanhantes daqueles cantores e cantoras ganhavam ‘’automaticamente’’, a partir do modo pelo qual passou a ocorrer a ‘’exibição’’, a difusão da imagem, o status de “artistaprofissional bem sucedido”. E tal projeção acabava sendo estendida a todos os músicos, havendo uma homogeneização da categoria. Ao mencionar o modo de vida daqueles artistas-empresários, estamos falando de uma produção dos meios de vida na qual não havia as mesmas limitações materiais encontradas na vida do músico-acompanhante. Os cantores e cantoras passaram a dispor de meios de produção das suas vidas gerados pela espetacularização, bem como pelo mundo da fama. O indivíduo produz a sua existência a partir dos meios de vida encontrados e a reproduzir. “Ao produzir os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende [...] da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir” (MARX, 2002, p.15). Não queremos dizer que não havia músicos profissionais com uma vida econômica relativamente estável. Em muitos casos, não em todos, os músicos que tocavam com cantores e cantoras famosos tinham realmente uma vida econômica mais estável; mas esses músicos não eram maioria. Por baixo desse pequeno grupo 44 de músicos havia uma grande maioria que realizava a produção material da vida com muita dificuldade, que vivia em condições materiais hostis. O interessante é que essa maioria acabava sendo enquadrada, a partir das considerações e valores gerais produzidos pela mídia, como “artistas famosos”, caso aparecesse em algum momento, ainda que rapidamente, nos espaços de informação e comunicação. Como os cantores e cantoras famosos passaram a ser considerados musicistas4 também, e quase sempre tinham ganhos materiais significativos, o “instrumentista comum” era inserido, pela mídia, no mesmo contexto. Para que se tenha uma dimensão mais explícita das afirmações que fazemos, tentaremos apontar, a partir de algumas evidências, situações que, de alguma maneira, apresentam a dinâmica do show business no período estudado. Ao lado dessa dinâmica, apresentaremos as circunstâncias específicas nas quais os “músicos comuns” estavam imersos. Os cantores e cantoras, insistimos em destacar isto, eram difundidos como uma espécie de alongamento dos ‘’músicos-acompanhantes’’, apesar de serem – não em todos os casos, mas em muitos – donos dos conjuntos musicais de que participavam. Vejamos então um jornal da época: O axé baiano balança o Brasil. A música popular voltou a ser a principal expressão artística do povo da Bahia, num ano em que o volume de exportações de talentos deu goleada nas importações. Os cachês dos músicos baianos cobrados para tocar no Carnaval assustam os incautos. Chiclete com Banana — uma banda muito famosa da época—, US$ 200 mil; Ricardo Chaves — outro cantor famoso— US$ 80 mil e assim sucessivamente [...] (A TARDE, 31/12/1992). A evidência citada acima é um caso emblemático da ‘’confusão dos espíritos’’. O termo músicos, no plural, é revelador da não distinção dos sujeitos. Faz parecer, numa leitura apressada, que os músicos da banda Chiclete com Banana, por exemplo, todos, faziam parte, em termos de distribuição de ganhos, daquela situação que estava ocorrendo. 4 É evidente que os cantores e cantoras famosos são musicistas. Só que não apenas isto. A fama descomunal dos cantores e cantoras face aos outros integrantes do grupo musical, os ganhos materiais significativos obtidos, entre outras coisas, fizeram com que os cantores e cantoras agregassem em si outras funções que não apenas a de musicista na banda ou grupo musical. O que quisemos argumentar é que eles eram vistos apenas como musicistas. Entretanto, eram também atores em propagandas dos seus respectivos patrocinadores; eram empresários donos de trios elétricos e de produtoras de shows; vendedores e distribuidores de grupos musicais emergentes que eram produtos da sua empresa de produção etc. E os outros músicos? Os outros músicos eram apenas funcionários de um grupo musical cuja existência se dava através, fundamentalmente, da imagem do cantor ou cantora famosos. 45 Um caso curioso, e que precisa ser lembrado, é o do Cacik Jonne da banda Chiclete com Banana. Este caso aponta, concretamente, a relação que um cantorempresário ou musicista-empresário bem sucedido do Carnaval — neste caso, tratase do cantor Bell Marques — estabeleceu com um ''musicista-funcionário''. É necessário destacar que o Cacik Jonne era visto, a partir do discurso da imprensa do período trabalhado, não como músico-funcionário, mas sim como ''membro da banda Chiclete com Banana'' na qual gozava de ''isonomia econômica'' em relação aos demais membros. ‘’Fui, durante quase 21 anos — 1980/ 2001—, guitarrista da Banda Chiclete com Banana’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p). O músico se afastou da banda Chiclete com Banana por motivos de saúde. ‘’Portador de doença — Ataxia Cerebelar— venho sofrendo limitações progressivas de movimentos no decorrer dos últimos 8 a 10 anos, um problema de equilíbrio no cerebelo. Não pude mais exercer minha profissão’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p). O músico argumentou que ‘’em conversa que mantive com os dirigentes da banda, ficou acertado, verbalmente, que sairia da banda, mas ela assumiria o pagamento de meus honorários como se estivesse tocando e depois faríamos um acordo’’(MUSICBLOG, 2011, s/p). . Os acordos verbais, no seio dos músicos ligados ao espaço de trabalho carnavalesco, de um modo ou de outro, eram — e continuam sendo ainda hoje— comuns. Jonne afirmou que ‘’o compromisso verbal não foi cumprido integralmente, porque os honorários prometidos foram sendo reduzidos gradativamente. De forma integral o acordo foi cumprido apenas no período de junho a dezembro de 2001 a janeiro de 2002’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p). E o guitarrista continuou esclarecendo que ‘’movido pela necessidade e pelo propósito de ter meus direitos [...] busquei a Justiça. Meus antigos parceiros permaneceram indiferentes e irredutíveis à esta situação’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p). Por fim, ele pergunta se ‘’é justo que alguém que colaborou de forma íntegra a uma banda e a uma história musical baiana sofra este processo de constrangimento? Pois pra os ricos nada pega, não deixarei de falar até que a morte me leve’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p). Sabe-se que as circunstâncias que levaram o guitarrista a deixar a banda foram inabituais, podendo até ser caracterizada como uma fatalidade, talvez. Contudo, o conteúdo de sua ‘’revolta’’, e a sua denúncia quanto à indiferença a partir da qual os dirigentes da banda agiram, tendo em vista o tempo de trabalho que o 46 gutarrista possuía na empresa, estas questões são sintomáticas no que dizem respeito ao tipo de relação que uma ‘’banda-empresa’’ mantinha com o seu funcionário. É evidente que não podemos fazer generalizações, argumentando que toda e qualquer ‘’banda-empresa’’ incorria naquele tipo de tratamento dado ao guitarrista Jonne. Mas o fato é que Jonne, o ‘’guitarrista trabalhador’’, se encaixava na maior parte dos casos denunciados por outros músicos, casos de relações de poder e participação no grupo desiguais, conteúdo este que não aparecia no jogo do espetáculo. Algo parecido com o que ocorreu no caso dos músicos do Olodum, o qual fizemos menção anteriormente. O caso daquela matéria jornalística citada antes do relato curioso do exguitarrista do Chiclete com Banana, entra no fenômeno das projeções difundidas. Aquele texto impresso, jornalístico, reforça a idéia e a escrita ao promover a mudança do som para o espaço visual. Notar-se-á, entretanto, no mesmo período, a seguinte situação dos “músicos” que, segundo aquele jornal citado anteriormente, ‘’ganhavam cachês altos para tocar no Carnaval’’: Músicos querem transparência com as verbas do carnaval. Nos últimos dias algumas pessoas tem divulgado informações distorcidas sobre as divergências dos músicos com a Prefeitura em relação ao Carnaval 94. Este folheto visa esclarecer a população de Salvador. 1. OS ARTISTAS SÃO OS PRINCIPAIS RESPONSÁVEIS PELA BAHIA TER A MAIOR FESTA POPULAR DO MUNDO. Nossas músicas e o nosso trabalho ajudam a trazer dólares, turistas e propaganda para o Carnaval. 2. ATE 1992 ERA SÓ O DINHEIRO PÚBLICO QUE FINANCIAVA O CARNAVAL, MAS ISTO ESTÁ MUDANDO. A PREFEITURA JÁ FALA EM TER LUCRO COM A FESTA. Em 1993 as empresas privadas entraram com quase 20%. Em 94 espera-se que a maior parte do Carnaval seja patrocinada. 3. Apesar do sucesso do Carnaval da Bahia a Prefeitura a 60 dias da festa diz que não tem qualquer patrocínio acertado (SINDIMÚSICOS, dezembro 1993, s/p). Este documento produzido pelo SindiMúsicos, aponta algumas questões que aparecem em outros documentos trabalhados no mesmo período; ao mesmo tempo em que reitera algumas análises feitas por alguns estudiosos em Salvador a respeito das mudanças que foram tomando corpo no evento. A diminuição da participação do poder estatal na festa é um daqueles fenômenos de mudanças que vieram se desenrolando; a apropriação do Carnaval de Salvador por parte de grandes empresas — apenas— de ramos diversos da 47 atividade industrial — tendo as empresas de bebidas um peso significativo naquela apropriação—; diminuição, gradativa, do número de bandas que atuavam no Carnaval através da liberação do dinheiro público por parte do poder estatal etc. Os dirigentes do sindicato dos músicos pareciam estar atentos àquelas transformações: 4. Ao contrário do que se diz, A MAIOR FATIA DO ORÇAMENTO DO CARNAVAL NÃO É DOS MÚSICOS E SIM DAS EMPREITEIRAS EM ESTRUTURAS TUBULARES. 5. Se for mantida a proposta da prefeitura para os músicos, será efetivada uma política de redução da participação dos artistas no Carnaval (Ibid., s/p). Ainda no mesmo documento citado acima, os dirigentes do sindicato elencaram no folheto as suas insatisfações com o poder público, afirmando que ‘’até o momento não tivemos informações sobre o que a Prefeitura pretende fazer com os 4,7 milhões de dólares que constam do orçamento para o Carnaval, onde serão empregados’’ (Ibid., s/p). Certos dos seus direitos, afirmaram que ‘’a Constituição proíbe a redução dos salários. Os artistas, como trabalhadores esperam que a Prefeitura não pretenda reduzir os seus ‘’cachês’’ em relação ao ano passado’’ (Ibid., s/p). Os gastos dos músicos para realizarem a preparação dos seus grupos para atuarem no Carnaval foi lembrado aos dirigentes da prefeitura. ‘’Para nos apresentarmos no Carnaval ensaiamos três meses pagando studio, gravação de fitas, reposição de materiais: — encordoamento, peles, etc— e transportes. Além disto, temos que ter bons instrumentos musicais’’ (Ibid., s/p). O SindiMúsicos queria uma prova das dificuldades financeiras da prefeitura. ‘’Se ficar provado que a Prefeitura está em dificuldade financeira estaremos abertos a reconsiderar nossas propostas. Até agora, porém, não obtivemos informações concretas sobre o seqüestro de verbas da Prefeitura’’(Ibid., s/p). Note-se que o tipo de relação de trabalho que o musicista estabelecia com as produtoras privadas é também denunciando, ao afirmarem que ‘’o Sindicato dos Músicos não ’cobra comissão’. 80% dos artistas estão inscritos para tocar no Carnaval pelo Sindicato. Querem fugir da exploração das empresas que chegam a cobrar até 40% do cachê dos colegas’’ (Ibid., s/p). É verdade que utilizamos um documento que foi produzido pelo Sindicato dos Músicos da Bahia. Mas este documento nos fornece um contraponto à homogeneização da categoria difundida, na época, pela imprensa. O que estamos 48 tentando explicitar não é um argumento que justificaria desconsiderarmos o cantor ou a cantora como sendo musicista. Antes de mais, o que chamamos atenção é que músicos-empresários, ou, como preferirem, artistas-empresários eram colocados, no discurso da imprensa, no mesmo lugar social dos músicos acompanhantes ou “músicos-funcionários”. Desse modo, ainda que pareça ser óbvio que a nota do jornal da época se referia aos músicos famosos ou “músicos cantores” do show business, o que tende a aparecer é a produção de um discurso, em relação àqueles trabalhadores, enviesado, um discurso que partia do “alto”. Certamente aqueles valores mencionados pelo jornal não correspondiam a uma redistribuição equitativa para todos os componentes da banda, grupo ou conjunto musical. O interessante é que, a partir do final da década de 1980 e início da década de 1990, houve uma expansão significativa da economia carnavalesca: E a Warner, que no ano passado experimentou a pior crise de sua história em território nacional — a ponto de investir sem pudores no breganejo—, também tirou o pé da lama em 93 se recuperando significativamente. Mercadologicamente, o grande filão das gravadoras em 93 foi mesmo a axé-music e os grupos de pagode. [...] (A TARDE, dezembro de 1993). Mas ao mesmo tempo em que ocorria aquela expansão, a partir do gênero musical que veio a ficar conhecido como axé-music, parece não ter havido rebatimentos significativos para a maior parte dos músicos da cidade. O que nos leva a acreditar que os ganhos obtidos através de tal expansão econômica foram parar nas mãos de alguns poucos músicos. No mesmo ano, e mês, da matéria citada acima, houve um protesto dos músicos de Salvador organizado pelo sindicato da categoria. O protesto gerou um grande impacto político e social naquele ano. Discutimos e analisamos as circunstâncias daquele protesto no segundo capítulo. Faz-se necessário situarmos, cronologicamente, o processo de criação da Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia, ‘’embrião’’ do que veio a ser depois o SindiMúsicos. A reconstituição da criação daquela entidade é o que trazemos na próxima seção. 49 1.2 Combatendo a exploração, as dificuldades e o desemprego A Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia surge no contexto do ‘’carnaval-turismo’’, algo que já se desdobrava desde o início dos anos 80. Um jornal da época, informava que ‘’como vem ocorrendo todos os anos, Salvador é uma das cidades brasileiras que obtém a preferência dos turistas [...] Nesta época do ano, em plena temporada de verão e com o ciclo de festas populares, turistas nacionais e estrangeiros dão prioridade a Salvador’’ (A TARDE, 28/1/1981). Nesse contexto, a Bahia e sua capital transformam-se em produtos turísticopublicitários, com a distribuição desigual e segregadora de equipamentos culturais no tecido urbano-regional. Assistimos à emergência de um ‘‘novo’’ Carnaval – Carnaval espetáculo das TVS, Carnaval negócio pré-organizado dos blocos - e de ‘‘novas’’ tradições reinventadas a cada dia para um consumo turístico cada vez mais segmentado e diferenciado (SERPA, 2007, p.114). A entidade havia sido criada por músicos da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Aquele organismo havia sido criado, entre outros propósitos, com o objetivo de buscar negociações tanto com as instituições públicas como particulares.‘’Para discutir diversos aspectos ligados à criação do Departamento de Apoio e Promoção de Espetáculos Musicais, recentemente implantado, a Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia realiza uma assembléia geral’’ (A TARDE, p.4, caderno 2, 3/1/1981). O presidente da Associação, Franklin Júnior, esclareceu que ‘’[...] a Associação vem buscando a colaboração de entidade e instituições públicas e particulares, no sentido de melhorar a situação dos músicos baianos e reduzir as despesas com som, iluminação e produção em geral’’ (A TARDE, p.4, caderno 2, 3/1/1981). Observem que é empregada a expressão ‘’melhorar a situação dos músicos baianos’’, como sendo um dos objetivos daquele departamento. Naquele contexto, parece que tal expressão não foi utilizada com ‘’leviandade’’, ou ainda como ‘’discurso pronto’’. Mais à frente, ainda nesta seção, veremos as queixas dos músicos em relação ao nível de desemprego no qual se encontrava a categoria. O presidente da entidade argumentou que 50 A assinatura de dois convênios – um entre a Associação e a Fundação Cultural do Estado, no valor de Cr$ 575 mil, para a compra de aparelhagem de som, e outro com o Acap que funcionará todo o material gráfico para a Associação, deverá ser um dos assuntos da assembléia de hoje, quando também deverão ser discutidos o regimento do novo departamento, seus objetivos e as promoções para o primeiro semestre de 81. A assembléia da Associação dos Músicos será iniciada às 15 horas, na sede da entidade, à Avenida Joana Angélica 1028, apto. 402, Edifício David (A TARDE, p.4, caderno 2, 3/1/1981). Aqueles músicos que haviam criado a Associação eram, em grande parte, músicos oriundos de uma classe média. O próprio presidente da instituição na época, Franklin Júnior, advinha da Universidade Federal da Bahia. A realidade de freqüentar os espaços acadêmicos não era acessível para boa parte dos músicos de Salvador. Gerson Silva põe isto em evidência, no momento em que conversávamos sobre as diversas dificuldades encontradas e vivenciadas pelos músicos ao escolherem esta profissão: Acho que por culpa do próprio músico esse tema sempre foi muito confuso. Eu nunca brinquei de ser músico e me decidi por essa profissão muito claramente, embora tenha trabalhado no BANEB — Banco do Estado—, durante alguns anos. Quando eu me decidi por ser músico profissional, aí que fui estudar mais ainda e não me arrependo de ter feito essa escolha até hoje. Gerson Silva atuou bastante nos carnavais da segunda metade da década de 1980. Convém notar que muitos músicos que trabalhavam no Carnaval naquele período possuíam outros ofícios, algo que foi desaparecendo quando da especialização, cada vez mais intensa, da categoria. Gerson Silva afirmou: Sempre me preocupei com a formação dos músicos. Eu me sentia meio sozinho com as informações que fui buscar fora daqui e que aplicava em trabalhos de bandas que eu tocava. Em Cuba se aplica uma coisa que poderia elevar muito a qualidade musical aqui na Bahia como se elevou lá. Eles tem categorias de músicos em classes A,B,C e D. De quatro em quatro anos, se faz testes pelo Sindicato pra saber se os músicos podem estar na categoria que ele quer estar. Isso faz com que os músicos sempre estudem e nivela o mercado profissional de música sempre por cima. Quem está na classe A sempre é melhor remunerado através de uma tabela e sempre têm apoio do governo pra estudarem . O detalhe principal disso é que só se pode estar trabalhando com música, e no mercado musical de trabalho, quem tem ao menos um ano de escola de música comprovado. Isso é simplesmente fantástico e por isso que o nível dos músicos e da música cubana é sempre tão alto. Se aplicássemos isso aqui na Bahia teríamos um sério problema, pois 51 95% dos músicos que se tornaram profissionais não têm formação musical. É bem verdade que a maior parte dos músicos aprendia a tocar profissionalmente, bem como a ter conhecimentos básicos sobre música no próprio exercício de sua atividade. Muitos exerciam, ou haviam exercido durante algum tempo, outras profissões. O músico que se destacava chegava a assinar contratos com blocos carnavalescos famosos. Poderia ter também a sua banda contratada por algum trio elétrico famoso, o que proporcionava ganhos materiais interessantes. Mas é evidente que era um número pequeno de músicos que conseguiam tais realizações. Isto dependia de uma série de fatores, até mesmo de saber gerir a sua própria carreira e de saber aproveitar bem as oportunidades que surgiam pela frente. A fanfarrice e a boemia, neste particular, não eram grandes aliados. Estes ‘’ingredientes’’ acabavam muitas vezes se tornando um empecilho na ascensão da carreira de um músico, embora muitos que se tornaram bem ‘’sucedidos’’ incorressem naqueles hábitos. Segundo Ivan Bastos, ‘’o músico — que trabalha na indústria carnavalesca— quer tocar, quer curtir, quer ganhar o dinheiro, quer arranjar a namorada’’. Ivan bastos nos disse o seguinte: Conheci muitos músicos que se deram mal nesse lance de drogas... O cara perdia vôo, chegava atrasado no ensaio... Ficava com fama de problemático... O pior que muitos eram bons... Mas a fama atrapalhava... Tive muitos amigos... Eu não vou citar nomes, mas tive muitos amigos assim De todo modo, o início da década de 1980, que coincide com a criação da Associação, foi um período difícil para os músicos de Salvador. Há que se destacar que naquela década o Brasil passava por instabilidades políticas e econômicas; altos índices de desemprego, bem como altos índices inflacionários acometiam o país naquele momento: Desemprego atinge 90% dos músicos da Bahia. A Associação dos Músicos Profissionais da Bahia está protestando contra falta de ocupação da classe durante o verão de Salvador. O presidente da Associação, Franklin Júnior argumenta que a razão é a falta de uma política governamental que aproveite o grande fluxo turístico dos verões baianos e privilegie o artista local. Os músicos denunciam também uma certa discriminação que sofrem já que, enquanto os grandes cartazes nacionais que se apresentam nessa temporada no projeto ‘’O sol se põe no Farol’’, ganham cachês de até Cr$1 milhão, os músicos locais estão tocando no mesmo projeto sem nada receberem da prefeitura ou da Bahiatursa, que são co-patrocinadores 52 dos espetáculos. Na visita que fez à redação de ‘’A TARDE’’, o presidente da Associação dos Músicos, Franklin Júnior, que se fez acompanhar de outros diretores da entidade, disse que cinco projetos que empregariam mais de 200 músicos nesse início de ano estão, à esta altura, inviáveis, pela falta de resposta dos órgãos públicos. O único desses projetos que ainda poderá ser realizado é o ‘’Musicamping’’, que já foi realizado em 1980 e 1981 com muito sucesso (A TARDE, 08/1/1982). Os músicos não passaram ilesos por aquele cenário hostil. Além disso, não havia, por parte do Estado, senão em momentos sazonais, a aplicação de políticas específicas que viessem a garantir um volume de trabalho significativo para aqueles trabalhadores. Mesmo com o contexto de recessão econômica, como foi a década de 1980, ainda assim fica perceptível uma espécie de ‘’cobrança’’ que os músicos faziam ao poder público a fim de que ele cumprisse a sua ‘’obrigação’’ com a massa de indivíduos músicos desempregados. Algo que na primeira metade da década de 1990 foi visto por alguns setores da sociedade civil soteropolitana como uma ‘’vagabundagem’’, ‘’oportunismo’’ dos músicos, já que o profissional da música interessado em se apresentar no espaço carnavalesco havia de buscar financiamento para tal empreitada na iniciativa privada, não no Estado. Mas para Franklin Júnior, era o Estado o principal agente responsável pelo ‘’eterno desemprego do músico’’: Este ano, muito embora tenha sido aprovado pela prefeitura e Bahiatursa, até agora nenhum dos dois órgãos se pronunciou quanto à verba a ser destinada para cobrir as despesas orçadas em Cr$2.650 mil. Esse projeto, segundo explicou, seria realizado nos dias seis e sete de fevereiro, na Praia de Piatã, e além de integrar artistas locais e do Sul do país seria, como foi nos anos anteriores, importante para mostrar a arte de cada um, a um público bastante numeroso, o que não ocorre com freqüência na Bahia, particularmente em Salvador. Nos dois anos anteriores, o projeto chegou a atrair sete mil pessoas para assistirem 100 músicos. Esse ano participaram 80 artistas e a platéia prevista para os dois dias seria de 10 mil. Explicou o presidente da associação que existem na Bahia sete mil músicos e em Salvador quatro mil, dos quais 90 por cento estão desempregados. Em 1980 – disse – a associação tomou a iniciativa de criar o ‘’Mutirão da Música’’, que contou inicialmente com 12 compositores e teve o show inicial realizado com a presença de Gilberto Gil. Com o mutirão os músicos baianos conseguiram apresentação em diversos teatros no verão passado, contando com o apoio do governo, mas infelizmente, o mesmo não ocorre este ano, fazendo com que o músico baiano continue um eterno desempregado (Ibid.). 53 Decerto, os músicos partícipes de bandas que possuíam alguma fama no cenário local, bem como os músicos que eram ligados diretamente à esfera privada — os contratados por donos de trios famosos, por blocos bem estruturados etc—, estes, não tiveram tantos problemas materiais como os que atuavam nos espetáculos, na maior parte dos casos, através do patrocínio público. Por outro lado, é evidente que os músicos não dependiam somente do dinheiro do Estado para sobreviver. Havia outros meios, porém não tão rentáveis. Meios como o da noite — apresentações em casas noturnas—; festas particulares — casamentos, aniversários, formaturas etc—; gravações de discos, dentre outros. O músico Ivan Bastos, que fez parte da AMPEB — Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia, chamada de AMPEB, a partir daqui—, destaca em seu depoimento as conquistas realizadas pela instituição — é bom ter em mente que se trata de um ex-membro da instituição! —, e expõe também as condições, na época, sob as quais os músicos trabalhavam: Eu fui convidado para participar. Eu já tava tocando aqui e ali, daí eu acabei entrando numa chapa lá. A gente conseguiu grandes conquistas que hoje se perderam. A gente conseguiu acabar com a política do couvert, quer dizer o músico ter que tocar por couvert; conseguimos fazer com que o músico tivesse direito a um jantar no cardápio...o cara tocava, e daí faziam qualquer gororoba lá...Hoje essas conquistas se perderam, realmente está muito complicado. Daí pra completar veio aquela lei do silêncio, aí os bares mais simples não podiam botar uma musiquinha, tinha que botar num volume menor (Ivan Bastos). O mercado musical baiano se desenvolveu significativamente ao longo da década de 1980. E as gravações de discos passaram a ter um peso significativo na vida econômica dos músicos. Enquanto a primeira entidade dos músicos buscava dissolver alguns tipos de exploração específicos daquele período, novas formas de exploração foram geradas com o rápido desenvolvimento do mercado fonográfico. O baterista profissional Ivan Huol nasceu em 13/05/1963. Ele acompanhou muitos artistas no Carnaval, sobretudo os artistas ligados à axé-music. O músico nos deu o seguinte relato: Hoje em dia, na axé-music, o dinheiro chegou e os músicos se profissionalizaram numa situação meio perversa... Começou a encher os olhos de muitos empresários... Já tinham muitos empresários... Por exemplo, existia o laranja institucionalizado do Carnaval. Existia um comércio de nota fiscal, e isso existia até pouco tempo... Existiam empresários extrativistas... Se pudessem pagar vinte reais por show eles pagavam mesmo, dependendo do que o músico acertasse... Rapaz, os músicos eram muito explorados... 54 Melhorou um pouco para os músicos... Mas foi uma melhora meio perversa, sabe. A relação de exploração que ocorre num determinado período histórico é mais que a soma de injustiças e antagonismos mútuos. É uma relação que pode ser encontrada em diferentes contextos históricos sob formas distintas, que estão relacionadas a formas correspondentes de propriedade e poder estatal (THOMPSON, 2002, p. 28). Há uma reflexão importante a ser feita, neste relato do músico Ivan Huol. Note-se que ao mesmo tempo em que houve uma ‘’melhoria’’ nos padrões das relações profissionais dos músicos — algo destacado pelo entrevistado—, uma melhoria derivada das novas relações de trabalho trazidas pela indústria do axémusic no final da década de 1980, no mesmo período, percebe-se a intensificação da exploração, uma sensação relatada, de modos diferentes, por alguns músicos entrevistados. O que nos leva a argumentar que aquela ‘’melhora’’ nas relações profissionais não foi sentida de forma unívoca pelos músicos. Para alguns, aquela melhora foi sentida como uma experiência ‘’questionável’’, ou relativa. Nem todos os músicos que formavam o quadro de um grupo musical qualquer, seja ele famoso ou não, tinham habilidades suficientes para as técnicas de gravação em estúdio; além disso, o primeiro estúdio que surge em Salvador em 1975, a WR, do empresário Wesley Rangel, possuía uma equipe de músicos selecionados pelo próprio empresário, equipe esta que gravava todos os discos ali produzidos. Elencamos, na seção que sucede, alguns desdobramentos daquele incipiente mercado fonográfico. 1.3 Gravações, direitos, lutas sindicais e Carnaval O estúdio WR chegou a produzir cerca de 90% de todo material fonográfico que, na década de 1980, saiu da Bahia para o mercado nacional (GUERREIRO, 2000, p.117). Inicialmente, o próprio fato de o estúdio possuir os seus músicos já inviabilizava a participação de qualquer outro – ainda que possuísse habilidades e experiência com gravações em estúdio. Isso, com o passar dos anos, foi mudando à medida que o acesso às novas aparelhagens técnicas ocorreu. Porém, é importante destacar que foi o estúdio WR 55 que impulsionou a criação e a consolidação de um mercado fonográfico local mais amplo. Com o avanço dos anos, muitos músicos passaram a gravar mais e mais, por conta de uma demanda local significativa que se apresentava (GUERREIRO, 2000, p.117-119). Com o relativo crescimento das gravações, outra questão veio à baila para os músicos: a questão dos direitos autorais. Ao que parece, na década de 1980, essa questão passava ao largo. Deduz-se, através de uma reportagem de um jornal da época, que o debate público sobre os direitos autorais, bem como sobre instituições com a função de recolhê-los não eram questões “corriqueiras”. Em 1981, um jornal da época divulgou na Bahia a existência de uma Associação de Autores e Compositores. ‘’Criada em abril do ano passado, [...] a Anacim, já conta com cerca de cem sócios nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, não tendo no entanto registrado nenhum sócio baiano’’ (A TARDE, 26/1/1981, p.3). A matéria esclarecia que ‘’[...] Valter Levita, que é natural de Ilhéus, está em Salvador para divulgar as atividades da entidade [...] Um dos objetivos da Associação é evitar que os autores fora do eixo Rio — São Paulo demorem para receber seus direitos autorais’’ (A TARDE, 26/1/1981, p.3). E os objetivos eram ‘’[...] melhor divulgar as atividades da Anacim e esclarecer aos compositores e intérpretes como ela funciona’’ (A TARDE, 26/1/1981, p.3). Note-se que, além de promover a divulgação da instituição à qual os músicos poderiam se associar, havia o objetivo de ‘’melhorar’’ o recolhimento dos direitos autorais daqueles autores e compositores baianos. Sabe-se que um percentual pequeno dos direitos recolhidos daqueles autores associados ficava com aquelas instituições. Acompanhemos o conteúdo da matéria publicada: Outra atribuição da associação é de promover maior contato entre os autores e editoras, criando condições para que os compositores possam gravar suas músicas e colocá-las no mercado. Isto pelos contatos já estabelecidos com as gravadoras, além de estar sediada em Brasília, onde são tomadas todas as decisões. Residindo em Brasília há pouco mais de um ano, Valter Levita foi campeão de dez carnavais, destacando-se entre suas músicas mais conhecidas ‘Índio quer apito’, ‘Nega do Congo’, e ‘A Maria tá’. Sem esquecer suas raízes, Valter quer difundir a entidade aqui por entender que o autor baiano tem dificuldades em mostrar seu trabalho e colocá-lo efetivamente no mercado. Os compositores e intérpretes interessados em obter maiores informações sobre a 56 Anacim poderão entrar em contato com seu presidente, através do telefone, 3243-2463, até hoje, quando ele viajará para Brasília, a fim de manter novos contatos (Ibid., p.3). É evidente que Valter Levita buscava alargar o número de associados para aquela instituição. Mas o que é importante é a sua opinião sobre as “dificuldades encontradas pelo autor baiano”. Esta fala do compositor não era de todo demagógic. O ECAD — Escritório Central de Arrecadação e Distribuição havia sido criado oito anos antes da publicação desta matéria citada, mais precisamente, em 1973, e ficava localizado no Rio de Janeiro. Com exceção dos poucos músicos baianos que conseguiam gravar suas músicas em estúdios no Rio de Janeiro e São Paulo, muitos músicos de Salvador fizeram as suas primeiras gravações no estúdio WR, criado em 1975, como já afirmamos anteriormente. Assim sendo, acreditamos que naquele pouco tempo de existência — do estúdio WR— e, ao que tudo indica, pouco tempo também de produção e difusão de gravações locais que possivelmente eram executadas publicamente, não havia ainda condições materiais concretas e eficazes para um “adequado” recolhimento dos direitos autorais dos músicos baianos, muito embora já houvesse sociedades de direitos autorais. Mas para além disto, há também um traço histórico importante que deve ser mencionado: em geral, o “olhar nacional”, o que realmente gozava de importância nacional, pelo menos no plano simbólico, advinha do chamado eixo Rio - São Paulo. Portanto, o fato de o músico residir na Bahia ou em qualquer outro lugar da Região Nordeste, isto por si mesmo, já se tornava um “óbice” em sua vida, em muitos aspectos, e não era diferente no que dizia respeito ao recolhimento dos seus direitos autorais. Toda aquela discussão sobre direitos autorais, bem como a possibilidade de ganhar algum dinheiro com tais direitos autorais etc., tudo isso era muito “novo” naquele contexto. O interessante é perceber, dentro do que até aqui discutimos, que a situação profissional, econômica e cultural5 dos músicos de Salvador, mais precisamente dos músicos que atuavam na indústria carnavalesca, em seus diversos ramos, não era homogênea. Insistimos em chamar a atenção para esta questão. 5 Sobre cultura, ver THOMPSON, 2005, p. 17. 57 Volta e meia o sindicato apresentava alguma proposta à Prefeitura — quase sempre em períodos próximos à festa — no sentido de garantir um número razoável de trabalho para os músicos que dependiam estritamente do financiamento público para atuarem no Carnaval. Não é demais lembrar que havia um número significativo de músicos profissionais — isto é, músicos que executavam bem a “música-produto” nascente na Bahia, oriunda do novo modelo de Carnaval que se desenrolava— dependentes do dinheiro público, o qual viabilizava à banda ou conjunto musical a oportunidade de mostrar seu trabalho, a oportunidade de poder pagar não apenas o cachê do músico, mas também de produtores, aluguel de som etc. Vejamos então um destes momentos, nos quais o sindicato procurou a Prefeitura para negociar: Situação dos músicos. Os representantes do Sindicato dos Músicos e da Associação de Músicos de Carnaval e Festejos da Bahia foram recebidos pelo prefeito Fernando José na tarde de ontem, o qual recebeu o projeto de revitalização do carnaval nos bairros e prometeu encaminhá-lo ao coordenador do Carnaval, Cristóvão Rodrigues, para discussão, prometendo uma posição sobre o assunto na próxima terça-feira. Rodrigues, por seu lado, diz que um palco fixo com as orquestras e bandas do Sindicato dos Músicos não conseguem prender os foliões nos bairros, coisa que só seria possível com a presença de grandes atrações nestes locais. Segundo ele, se depender somente da prefeitura, haverá apenas carnaval na Barra e na Liberdade, onde espera contar com a colaboração dos trios e blocos para animar a festa. ‘Não iremos cobrar ISS e taxa de publicidade dos blocos de trios e esperamos que em contrapartida eles toquem para o povão nos horários disponíveis, como vai fazer, por exemplo, o Eva e o Camaleão, na Barra. Observa-se que o poder público foi se distanciando do Carnaval. E as justificativas para isentar os principais blocos de trio do imposto sobre serviço, dentre outros, estiveram ancoradas no ‘’velho’’ discurso das limitações financeiras da prefeitura. Naquele contexto, tratava-se de deixar a realização da festa sob os auspícios e ‘’boa vontade’’ da iniciativa privada: Na Liberdade, pedimos a colaboração dos blocos afro e iremos fornecer transporte para que eles cheguem até a Liberdade’, disse Cristóvão. O coordenador afirma que na Barra é a comunidade empresarial local que garante a festa. Ele promete que no ano que vem a prefeitura deverá aumentar o número de bairros incluído na programação e aponta os bairros de São Caetano e Cajazeiras como os que deverão ser contemplados. ‘Carnaval nos bairros só com grandes atrações. Fora isso, é atender ao clientelismo’, assinala (A TARDE, 26/1/1990, p. 4, seção: Geral). 58 A matéria acima apresenta, em certa medida, uma situação de ‘’mal-estar político’’ entre o coordenador do Carnaval e o sindicato. Nota-se também uma idéia de Carnaval feito a partir das e para as grandes atrações, isto é, atrações famosas sem as quais o Carnaval não teria sentido para o ‘’povo’’. Carnaval e atrações famosas são sinônimos. Dissociar essas duas coisas é praticar, no dizer do coordenador do Carnaval, o clientelismo. Ele mesmo afirma que o Carnaval nos bairros6 só ocorreria, de fato, com grandes atrações. Os Carnavais de Bairros constituíram, de certo modo, um pano de fundo no modelo carnavalesco hegemônico que se desenrolava. Os princípios hegemônicos que caracterizavam o Carnaval dos circuitos principais destoavam sobremaneira das condições sob as quais efetivamente ocorria o dito ‘’Carnaval de Bairro’’. Tanto do ponto de vista estratégico-administrativo – o poder público não utilizava as imagens dos carnavais de bairros em suas ‘’propagandas oficiais’’ para promover a atração de turistas à cidade – como do ponto de vista das próprias bandas – não havia uma coexistência nos chamados Carnavais de Bairros entre bandas locais pouco conhecidas ou bandas da própria comunidade e as bandas consolidadas pelo mercado, as chamadas bandas famosas. Estas últimas, quase que inexistiam nas listas das bandas que se apresentavam comumente naquele tipo de Carnaval. Por fim, poderíamos ainda colocar que os fins a que estiveram submetidos os carnavais de bairros foram um tanto ambíguos, se considerarmos o contexto de segregação e exploração crescentes no bojo do Carnaval de Salvador. O coordenador do Carnaval Cristóvão Rodrigues faz menção às orquestras e bandas do sindicato dos músicos, alegando que tais conjuntos não teriam a capacidade de prender os foliões nos bairros. A matéria citada é de 1990, momento no qual os blocos de trio, que traziam consigo as bandas de axé-music, estavam consolidando a sua hegemonia7 no Carnaval de Salvador. Entretanto, parece que eram as orquestras que tinham algum tipo de prestígio em 1981. Uma festa particular, promovida por um clube tradicional do Carnaval de 6 A respeito dos Carnavais de Bairro, ver GUERREIRO, 2000, p. 211 Para Gramsci, o exercício “normal” da hegemonia (...) caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria (...) (GRAMSCI, 2002, p. 95). 7 59 Salvador, Fantoches da Euterpe, teve como atração principal uma orquestra e não um bloco de trio. Os blocos de trio, posteriormente, ganharam tamanha notoriedade que eram contratados por agentes privados até mesmo na condição de permanecerem parados. Mas vejamos então como eram vistas as orquestras anos antes das questões apresentadas sobre o Carnaval nos bairros. No clube Fantoches da Euterpe, ‘’[...] A Orquestra Piatã, considerada a melhor dos últimos carnavais, integrada de cem músicos, fará a animação do baile que tem início previsto para às 23 horas e só terminará nas primeiras horas da manhã de domingo. Estão esgotadas as mesas [...]’’ (A TARDE, 06/02/1981, p. 7). Atuavam, nos blocos de trio, as bandas ou conjuntos musicais com uma formação reduzida — guitarra, baixo, bateria, teclado, percussão e cantor —, se comparada à formação de uma orquestra, por exemplo. Mas o que fica evidente é a seguinte questão: o Carnaval de Salvador se transformou significativamente durante e depois da década de 1980. E como os músicos, bem como o sindicato, se comportaram naquele processo? Conversando com Ivan Bastos sobre o sindicato, ele argumentou o seguinte: O sindicato tinha uma idéia de tentar aglutinar. É complicado, uma classe que não tem um local específico de trabalho. É uma diáspora soteropolitana espalhada pelo município todo, pelo estado todo. Na época da associação eu tava começando, acompanhei porque eu já tava em contato com o pessoal da escola de música...eu não lembro exatamente, mas eu sei que em 83, eu acho que é isso mesmo, em 83 houve um congresso da CUT, eu fui com a delegação do sindicato, tava o nosso presidente Lula...a gente tava conseguindo construir uma relação próxima com os músicos porque conseguimos colocar na primeira diretoria pessoas representativas, apesar de eu ser muito jovem eu já tava tocando com muita gente...aí a gente tinha Geisel que era da OSBA, Papapa, não precisa nem falar, todo mundo atuante. O músico e ex-integrante do sindicato nos traz o pefil de alguns dirigentes da entidade. Muitos ligados à Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. O problema específico, decorrente da natureza do trabalho do musicista do Carnaval, da falta de unidade da categoria era um tema recorrente entre os musicistas que atuavam naquele espaço de trabalho. Ele argumentou que aquilo era um problema complicado. Agora mesmo o pessoal critica as pessoas que estão no sindicato porque não são músicos, não estão atuando, mas também você acaba largando o outro lado...mas nessa época a gente saía fazendo ronda, a gente pegava o carro de Patriarca, fazia uma vaquinha, botava gasolina e saía fazendo ronda 60 pelos bares pra ver como é que tava a situação, isso tudo a gente fazia. Era uma coisa meio romântica, mas a gente conseguiu algumas coisas (Ivan Bastos). Como argumentamos anteriormente, os músicos ligados à AMPEB eram oriundos, inicialmente, da escola de música. Numa dessas ações dos músicos ligados à instituição — que então já havia se transformado em SindiMúsicos —, o protesto de 1993 foi possivelmente uma das mais impactantes. Depois de apresentar, ainda que de forma breve, as primeiras ações da AMPEB, bem como alguns dos seus propósitos iniciais, discorreremos, mais detidamente, sobre o protesto e seus desdobramentos no capítulo que se segue. 61 2 – OS MÚSICOS PROTESTAM: SINDIMÚSICOS E O CARNAVAL Na sociedade industrial, as perturbações mais suscetíveis de significação histórica tomam a forma de greves e outras disputas trabalhistas, ou de reuniões públicas de massa [...] Seus objetivos tendem — embora nem sempre— a ser bem definidos, voltados para a frente e bastante racionais, mesmo se apenas aceitáveis, à primeira vista, a um dos lados da disputa. E os participantes tendem, exceto em comunidades camponesas distintas, a ser trabalhadores assalariados ou industriais (George Rudé). Discorremos neste capítulo sobre um protesto realizado pelos músicos no ano de 1993. Refletimos sobre as formas, bem como sobre os conteúdos das visões e opiniões que foram produzidas e reproduzidas naquela situação específica na qual o protesto ocorreu. Os discursos dos jornais e dos políticos sobre o protesto desencadeado naquele ano são trabalhados. Ademais, apresentamos também os discursos dos músicos sobre o ocorrido. Discutimos e aprofundamos neste capítulo como as ações do sindicato dos músicos foram vistas pela sociedade soteropolitana. Finalmente, retomamos a discussão sobre a relação dos músicos com o sindicato da categoria e, igualmente, a importância daquela instituição para os musicistas. Todas estas questões aparecem aqui. 2.1 Os músicos, a imprensa e suas considerações. Estamos diante de uma experiência8 histórica interessante da classe9 trabalhadora, desse grupo de trabalhadores: músicos que fizeram um protesto para pressionar a prefeitura de Salvador para que esta pagasse salários mais significativos àqueles profissionais. Os músicos que tomaram a Praça Municipal, em frente ao prédio da prefeitura, o Palácio Tomé de Souza, foram ‘’alvo’’, ao que parece, de diversos tipos de considerações, opiniões e discursos forjados por determinados setores da sociedade civil soteropolitana. 8 “Os homens e mulheres também retornam como sujeitos (...) como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘’tratam’’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (sim, ‘’relativamente autônomas’’) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada’’ (THOMPSON, 1981. p. 182). Efetivamente, não consideramos as experiências dos seres humanos a partir da estrutura de classes somente. Há outras variáveis, como bem salienta o Thompson, em ‘’jogo’’. 9 Sobre a noção de classe, ver MARX, 1997, 127-128; THOMPSON, 1997, p.9-12. 62 Elencamos e discutimos algumas projeções no capítulo anterior. Ao afirmarmos que os músicos fizeram parte daqueles discursos, estamos nos referindo fundamentalmente às intenções produzidas e difundidas pelos jornais impressos. Os indivíduos e os interesses que permeiam as empresas do ramo da informação são reais, e partem de um lugar social. A linguagem jornalística é forjada no acontecer social, visto como experiência de classe. Porque os jornais definem papéis sociais, entendemos que o destinatário está presente o tempo todo, ora fornecendo os parâmetros do discurso através da idealização que o emissor faz dele, ora como tipo padrão de leitor que o emissor quer formar (VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY, 1991, p. 54). Vejamos então alguns termos usados por este jornal que noticiou aquele conflito entre a prefeitura e o sindicato: Lídice suspende diálogo com músicos. Alguns músicos, capitaneados pelo sindicato da categoria, proporcionaram um triste espetáculo ao invadir e depredar um bem público que é a sede da Prefeitura. E eles não reivindicavam salas de aulas, saneamento básico, serviço médico ou creche. Queriam ‘’apenas’’ um cachê mais recheado de dólares para se apresentar no Carnaval. Está na hora da prefeita Lídice da Mata dar um basta nessa bandalheira e desrespeito ao povo da Bahia, que tem de pagar mais aos músicos do que aos médicos que estarão fazendo plantão nos dias de folia (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993). Se considerássemos o ocorrido a partir desta evidência apenas, teríamos não sujeitos históricos se movimentando, mas sim uma ‘’bandalheira’’ sem rumo. Observem que de início, o jornal cita alguns ‘’temas sociais’’ moralmente fundamentais, num discurso moralizante, para em seguida argumentar, numa tônica simplista, que os músicos queriam somente um cachê robusto para atuarem no Carnaval. E um bacharel em medicina, um médico, é posto num lugar social hierarquicamente superior em relação àquela ‘’bandalheira de artistas’’. E num tom agressivo, o mesmo jornal argumentou que ‘’a prefeita deveria ter a coragem de deixar de patrocinar a diversão dos outros. Quem tem competência que consiga patrocínio particular para suas empreitadas carnavalescas’’ (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993). 63 Afirmou ainda que ‘’a prefeitura deve garantir somente a infra-estrutura da festa, uma vez que ela dá um bom retorno à cidade, especialmente em termos de turismo’’ (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993). Aqui temos novamente um discurso que procurou enviesar os motivos pelos quais os músicos fizeram o protesto. Não é necessário dizer que o deslocamento para a iniciativa privada, eximindo o poder público de qualquer reponsabilidade quanto ao financiamento dos cachês dos músicos que realizavam espetáculos públicos, é algo presente, recorrente naquele contexto. Contudo, cabe falarmos do significado daquela manifestação. Foi uma experiência histórica importante. E por diversos motivos. Pode-se considerar uma experiência histórica significativa não apenas pelo protesto e as reivindicações de cerca de 200 músicos. Houve relevância, dentre outros motivos, pelo fato daquela ação política — num sentido amplo da expressão— ter partido de um tipo de segmento social que, não raro, ‘’aparecia’’ — e ainda aparece— para a sociedade baiana sob uma ‘’cortina de fumaça’’, algo que já afirmamos anteriormente. A forma enviesada através da qual soteropolitanos tomavam contato com aquela categoria, a partir do espetáculo, indicava desconhecimento do modo de vida daqueles indivíduos: como viviam; como produziam a sua existência; quais eram as suas angústias etc. Há mais a ser dito antes de adentrarmos no protesto. Como afirmamos nas considerações iniciais do trabalho, o Carnaval de Salvador é também um produto dos músicos. É preciso, portanto, descobrir quem são eles. Há muitas referências que discorrem sobre os músicos ou musicistas diversos de Salvador. Geralmente, os famosos — tanto os que estão no “rol da fama” como também os que já estiveram lá em algum momento de suas vidas—, tais como: Carlinhos Brown, Ivete Sangalo, Daniela Mercury etc. Estes são musicistas que fazem parte do show business da cidade. No entanto, embora tragam, consideravelmente, elementos importantes para se discutir e pensar como se dava — e como se dá— a idéia de ser um musicista famoso em certos períodos da sociedade soteropolitana, o diálogo apenas com eles negligencia, quase que totalmente, outros aspectos que estiveram — e estão— presentes na vida desta categoria de trabalhadores. 64 É isso também que tentaremos indicar através do protesto. A manifestação dos músicos em 1993 está inserida em uma dinâmica muito ampla, que passa por vários setores da vida social, tais como a sociedade política, as organizações representativas, a luta e os interesses de classes, a indústria cultural etc. O protesto dos músicos aconteceu no dia vinte e nove de dezembro de 1993, às 15:00 horas, na Praça Municipal, em Salvador, em frente ao Palácio Tomé de Souza. O protesto foi organizado pelo sindicato dos músicos, SindiMúsicos. O sindicato negociava com o poder público o cachê destes profissionais para que pudessem desempenhar seu trabalho nos diversos circuitos carnavalescos espalhados pela cidade. ‘’A entidade ajustou com a prefeitura os cachês dos músicos aprovados num concurso promovido, em parceria, pelas instituições – SindiMúsicos e prefeitura’’ (A TARDE, 30/12/1993). Num primeiro momento, o sindicato havia consensualizado com a Prefeita – na época Lídice da Mata – uma liberação de verba para a instituição no valor de US$ 1.340.000,00, cerca de 30% dos US$ 4.600.000,00 do orçamento do poder público destinado para o Carnaval de 1994. Houve um acordo ‘’[...] entre o município e os músicos, para que estes tocassem durante o Carnaval de 94 em troca de um cachê global de US$ 1,3 milhão [...]’’ (A TARDE, 30/12/1993). Este valor correspondia ao pagamento tanto das bandas que se apresentariam nos chamados “carnavais de bairros” como das bandas selecionadas para os circuitos principais. O concurso tinha um número limitado de vagas. Nota-se que as bandas selecionadas para as primeiras posições se apresentavam, por direito, nos principais circuitos carnavalescos da cidade. As bandas bem colocadas ganhavam também melhores cachês em relação às demais. Os grupos musicais que não alcançavam uma nota significativa geralmente eram destinados aos circuitos secundários, isto é, os carnavais de bairros e os palcos localizados em pontos específicos próximos aos circuitos principais. O sindicato, ao negociar com a prefeitura, propôs que o montante reivindicado fosse apenas para o pagamento das atrações selecionadas por concurso. Com isso, a instituição entendia que as atrações consolidadas pelo mercado não deveriam ser incluídas na verba acordada. Ao longo das negociações, várias propostas foram apresentadas pelo SindiMúsicos à Prefeitura. Uma das quais, por exemplo, foi o pedido inicial de 46% do orçamento para o Carnaval de 1994: 65 Prefeita tem encontro com músicos da Bahia. A Prefeita Lídice da Mata reúne-se hoje às 17 horas, com representantes do Sindicato dos Músicos para tentar chegar a um acordo sobre a verba que os músicos pleiteiam, de 46% do orçamento total destinado ao Carnaval. De antemão, a prefeitura tem em conta estar propondo o maior volume de verba já destinado para esse fim e que a proposta defendida pelo sindicato não está respaldada em informações financeiras que permitam qualquer projeção percentual. A questão, no entanto, será definida a partir desse encontro (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 07/12/1993). Com efeito, a EMTURSA, um dos órgãos responsáveis pela administração da verba a ser destinada para o Carnaval, ofereceu como contra proposta 27%. ‘’[...] a prefeitura, através da EMTURSA [...] acena com um cachê de US$ 1, 240 milhão’’ (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Depois de muita conversa fixou-se em 30% do orçamento, conforme afirmamos anteriormente. Assim, a comissão de negociação do sindicato argumentou que além deste percentual, seria necessário, para que nenhuma banda saísse prejudicada, tanto as atrações aprovadas no concurso como as bandas consolidadas pelo mercado, um cachê adicional, sendo este último para o pagamento apenas das atrações consolidadas nos espaços carnavalescos principais. Entretanto, com a entrada da Comissão especial do Carnaval – comissão formada para redefinir alguns pontos acordados – nas reuniões, a negociação tomou outro rumo. A comissão do Carnaval era formada por vereadores e o Secretário de Comunicação do município, Domingos Leonelli. Aquela comissão saiu da Secretaria Municipal de Comunicação Social. De acordo com o presidente da Comissão do Carnaval, Domingos Leonelli, ‘’[...] a prefeitura não pode se comprometer a pagar mais de US$ 1, 5 milhão somente para um setor no Carnaval [...]’’ (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). A criação desta comissão representou, em certo sentido, um descompasso entre determinados setores do governo municipal. Setores que, de um lado, apoiavam não os músicos, mas sim o sindicato; e de outro, setores que hostilizavam as facções políticas inseridas no sindicato. Estes últimos, reduziam os interesses de aproximadamente duzentos músicos aos interesses dos dirigentes do SindiMúsicos. O vereador João Bacelar, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro — PMDB —, ficou ‘’[...] indignado com a atitude do Sindicato dos Músicos de invadir a prefeitura. Este ato de força é 66 antidemocrático e atropela o processo de negociações que estava em andamento’’ (A TARDE, 30/12/1993). João Bacelar afirmou que ‘’as negociações devem ser retomadas agora com outros interlocutores. [...] Há mais de duas semanas a Câmara de Vereadores vinha mediando as negociações entre a Comissão do Carnaval e o Sindimúsicos’’ (A TARDE, 30/12/1993). Segundo o presidente do SindiMúsicos, na época Franklin Oliveira Júnior, ‘’o secretário Domingos Leonelli orientou a prefeita a voltar atrás nas negociações que já haviam se concretizado em fins de novembro’’ (A TARDE, 30/12/1993). De certo, depois da intervenção da comissão do Carnaval nas negociações, a prefeita Lídice entendeu que os 30% negociado com o sindicato, com vistas ao pagamento apenas das atrações aprovadas em concurso, deveria levar também em consideração as atrações consolidadas pelo mercado. Há que se destacar a participação da Federação dos Clubes Carnavalescos nas negociações. Esta instituição era contra a quantia acordada — no valor de US$ 1.340.000— entre a prefeitura e o sindicato dos músicos. A instituição não aceitava que aquele montante fosse destinado somente para o pagamento dos músicos participantes do processo de seleção organizado pelo sindicato. Desse modo, o SindiMúsicos organizou um protesto com a intenção de tentar marcar uma nova audiência e ao mesmo tempo de fazer a prefeitura renegociar e rever a sua posição. Um jornal da época informou que ‘’a maior parte dos manifestantes entrou no Palácio Municipal na tentativa de conseguir uma audiência com a prefeita [...] para resolver o impasse em torno dos cachês’’ (Ibid.). É com esta intenção, portanto, que cerca de 200 músicos acompanharam Franklin Oliveira Junior, na tentativa de ocupação da sede da prefeitura da cidade do Salvador. Imediatamente à ocupação, o secretário de comunicação da prefeitura, Domingos Leonelli, convocara o 18º batalhão da Polícia Militar para reprimir a manifestação considerada por ele como ‘’ato de vandalismo’’. Dezenove pessoas feridas, uma com fratura de costela, sete com hematomas na cabeça, braços e punhos, e os demais, com arranhões e machucados. Este foi o saldo que a polícia militar deixara para os manifestantes. No dia seguinte ao ocorrido, alguns jornais de grande circulação no Estado trouxeram em suas manchetes aquele evento: 67 Músicos pedem cachê e ganham socos e tapas. A pressão feita pelo Sindicato dos Músicos para ser recebido em mais uma reunião, pela prefeita Lídice da Mata, a fim de negociar o cachê dos músicos durante o carnaval de 94, terminou em pancadaria, com o número de 19 feridos. A confusão começou quando cerca de 200 músicos ocuparam o térreo e o primeiro andar do Palácio Tomé de Souza para forçar mais uma audiência com a prefeita e a EMTURSA e foram reprimidos pelos PMs que fazem a segurança do local. Imediatamente teve início um festival de pancadaria, com direito a socos, pontapés, cassetetadas e bombas de gás lacrimogênio. Os músicos revidaram atirando pedras nas vidraças do prédio (BAHIA HOJE, 30/12/1993). Todo discurso parte de um lugar social, algo que já foi afirmado insistentemente aqui. Este jornal tendeu, pelo menos implicitamente, para o lado dos músicos, ao colocar aquela situação como sendo fruto de uma reação daqueles sujeitos, um revide às forças repressoras. Isentou os músicos porque, ao que tudo indica, era um jornal de oposição a algumas forças políticas que formavam o governo do munícipio. Este jornal destacou que o protesto ocorreu por conta do sindicato dos músicos ter buscado, através da manifestação, a concretização de uma audiência com a prefeita Lídice da Mata. Afirmou que depois da ocupação do palácio Tomé de Souza, os músicos foram reprimidos pelos policiais que faziam segurança no local. Percebe-se na pequena matéria do Bahia Hoje, uma preocupação em narrar o acontecido como sendo uma reação dos músicos à repressão da polícia militar. Com efeito, a matéria aponta uma situação para o leitor de uma ação praticada primeiro pelos policiais, gerando como conseqüência, a reação dos manifestantes. Mas é interessante observar como um ‘’fato’’ pode realmente ser interpretado de diversas formas. O fato existe, as notícias são interpretações dos fatos, interpretações que muitas vezes são desprovidas de ‘’pudor’’, ou redutoras deste último. Os jornais tem seus editoriais que imprimem uma visão sobre o que se passa no mundo, sobre o que está acontecendo. Este organismo privado – que é sociedade civil e, nem sempre, mas muitas vezes, sociedade política a um só tempo – precisa vender notícia, ‘’plantar notícia’’. É justamente pelo peso que as diversas mídias adquiriram na contemporaneidade, e pela sua característica histórica de formar, conformar e deformar opiniões e visões políticas, é por tudo isto que se faz necessário compreender o significado e o funcionamento dos veículos de comunicação na sociedade contemporânea. Vejamos o conteúdo de outro jornal da época:. 68 Pancadaria acaba com protesto dos músicos. Um confronto entre policiais e músicos resultou em 15 feridos, durante um protesto organizado pelo Sindicato dos Músicos, em frente ao prédio da prefeitura, na Praça Municipal. Inconformados com a decisão do secretário municipal de comunicação, Domingos Leonelli, de desautorizar um acordo entre o município e os músicos, para que estes tocassem durante o carnaval de 94 em troca de um cachê global de US$ 1,3 milhão, 400 membros da categoria se concentraram defronte da prefeitura e, em dado momento, com os ânimos exaltados, passaram a apedrejar os vidros laterais. Domingos Leonelli solicitou a presença do 18º Batalhão da PM; para conter os manifestantes, os policiais deram tiros para o alto, jogaram bombas de gás lacrimogênio e bateram à esmo nas pessoas com cassetetes. O presidente do Sindimúsicos, Franklin de Carvalho, disse que os depredadores não pertenciam ao movimento e acusou os seguranças da prefeitura de terem iniciado as agressões (ATARDE, 30/12/1993). Este jornal narrou o mesmo fato com uma perspectiva diferente. Ele passa uma mensagem, para o seu leitor, de um protesto que tem como causa um inconformismo por parte dos manifestantes em relação à decisão da prefeita, de desautorizar, influenciada pelo secretário de comunicação da prefeitura, o acordo que já tinha sido firmado entre o sindicato e o município. O jornal não coloca como sendo a causa do protesto, isto é, o motivo precípuo, a tentativa de marcar mais uma audiência com a prefeita. Ao contrário, demonstra, efetivamente, uma intolerância e igualmente uma ‘’predisposição’’ dos músicos, por conta das circunstâncias, para apedrejarem os vidros do palácio Tomé de Souza. Neste sentido, a ação dos policiais é vista de outro ângulo: como sendo uma ação necessária e inevitável, já que os manifestantes se concentraram em frente à prefeitura, já inconformados com a situação, e começaram por este motivo o apedrejamento. Contrastar os diferentes discursos produzidos pelos jornais é uma tarefa árdua, exige paciência e atenção do receptor. Perceber o encadeamento dos argumentos apresentados, o que veio a ser considerado como causa e conseqüência — muitas vezes mecanicamente apresentadas pelos jornais — do ocorrido, enfim, todas estas questões devem ser relevadas. Observemos o conteúdo de outro importante jornal da época: Músicos fazem barulho na praça. Os músicos fizeram ontem uma manifestação na Praça Municipal e a polícia militar precisou intervir com rigor para evitar a invasão do prédio da prefeitura. O conflito gerou um mal-estar e algumas pessoas se feriram. O secretário de 69 comunicação, Domingos Leonelli, considera o episódio um ato de vandalismo dos músicos, conseqüência de incitação irresponsável por parte do sindicato dos profissionais e alguns políticos contraditoriamente unidos (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Vamos amarrar esta argumentação. O objetivo é situar melhor as contradições internas das chamadas. O jornal Tribuna da Bahia não informa para o seu leitor ao menos o motivo do protesto. Expõe somente que os músicos fizeram uma manifestação e que a polícia militar precisou intervir com rigor. Isto por si já denota a posição do Jornal ante a manifestação. Diferente do Bahia hoje, que citou o nome da prefeita de Salvador, sem, contudo, emitir o juízo dela sobre o protesto, o Tribuna privilegia a opinião de um ator apenas: o ator ligado ao poder público. O jornal A Tarde, por exemplo, cita a ação praticada pelo secretário de comunicação e cita também a ação dos músicos, e, por fim, traz a fala do presidente do sindicato, Franklin de Carvalho. Segundo a matéria do Tribuna, a polícia precisou agir a fim de evitar a ‘’invasão’’ dos músicos ao prédio da prefeitura. Sobre a repressão da manifestação, informa vagamente que o conflito gerou um mal-estar e que algumas pessoas se feriram. Em última análise, o jornal emite para o leitor o julgamento do secretário de comunicação sobre a ação do sindicato e igualmente a sua interpretação dos motivos que levaram os músicos a realizarem o protesto: ‘’conseqüência de incitação irresponsável por parte do sindicato dos profissionais e alguns políticos contraditoriamente unidos’’ (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Esta última passagem da matéria põe em relevo uma questão interessante: havia, ao que tudo indica, uma situação de disputa ‘’político-partidária-ideológica’’, por assim dizer, tanto da parte do sindicato – os partidos que compunham o sindicato dos músicos, bem como os indivíduos indiretamente ligados a uma militância partidária – como da parte de alguns parlamentares e dos quadros do governo municipal. Em conversa com o baixista Luciano Calazans, ele nos revelou algumas questões que vão ao encontro desta observação. Luciano Calazans argumentou que ‘’o Sindicato dos Músicos da Bahia nunca serviu pra nada, nunca foi efetivo em nada pra classe, exceto nas épocas pré-carnavalescas [...], o próprio sindicato não tinha sede, ou quando tinha era muito pequena pra demanda de músicos’’. 70 Disse ainda que ‘’[...] o único elemento realmente desse sindicato efetivo, enquanto sindicato, era fazer esses espaços... E também tinha um grande cunho partidário na época. Tinha muita gente ligada a partido, eu lembro disso’’. A chamada do Correio da Bahia, um jornal de oposição ao sindicato, bem como ao governo do município, foi a seguinte: Músicos fazem quebre-quebra na prefeitura. Liderados por gente do sindicato da categoria, um grupo de músicos invadiu ontem o prédio da prefeitura, arrombando portas e quebrando vidraças. Segundo os músicos, uma comissão eleita por eles entrou no prédio para discutir o cachê para o próximo carnaval com a prefeita Lídice da Mata, mas não foi atendida. Soldados da polícia militar foram acionados para controlar o tumulto. Os PMs cercaram a prefeitura e retiraram os manifestantes do local. No confronto, alguns músicos acabaram feridos, inclusive o presidente do sindicato, Franklin Oliveira (CORREIO DA BAHIA, 30/12/1993). O Correio da Bahia não apresentou aquele protesto como uma ‘’briga’’ por melhores salários. O jornal evidencia nas primeiras linhas de sua matéria o ‘’estrago’’ provocado por um grupo de músicos que, segundo o jornal, invadiu o prédio da prefeitura e destruiu portas e vidraças. Sobre o motivo da ‘’invasão’’ e suas conseqüências, coloca para o leitor que uma comissão eleita pelos músicos entrou no prédio da prefeitura – o jornal não deixa claro se tal comissão teve o aval ou não para entrar no prédio – para discutir o cachê do Carnaval com a prefeita, mas não foi atendida. Nesse passo, o jornal traz uma relação de causa e conseqüência entre o não atendimento da prefeita à comissão e o estrago deixado por esta ao prédio da prefeitura. O jornal não informa ao seu leitor a existência de um protesto e o motivo deste. Ao contrário, informa apenas a existência de uma invasão feita por um grupo de músicos liderados, nas palavras do jornal, ‘’por gente do sindicato da categoria’’. Sobre a ação da polícia, não deixa muito claro o motivo pelo qual esta foi acionada. Apresenta uma situação de tumulto, provocada, infere-se, pelos músicos, e a necessidade da polícia retirar os manifestantes do prédio da prefeitura. Finalmente, demonstra uma realidade de confronto entre a polícia e os manifestantes, bem como a existência de alguns músicos feridos, destacando o presidente do sindicato. Fica a impressão, de que a imprensa preferiu destacar e enfatizar o “confronto” entre os dirigentes sindicais e os parlamentares que formavam o quadro do governo municipal. As falas e considerações dos participantes do protesto 71 haviam sido postos de lado. Marginalizaram-se as experiências da maior parte dos músicos imersos em todo o processo de discussão e negociação. Finalmente, há o Jornal da Bahia, um jornal que fazia oposição ao sindicato. Vejamos sua chamada: Músicos invadem prefeitura para ganhar mais no carnaval. Acabou em tumulto, quebre-quebra e muitos feridos a manifestação do sindicato dos músicos, ontem à tarde, na Praça Municipal. Tentando obter cachês mais altos para tocar no carnaval – exigem 300 dólares por hora –, eles se concentraram na frente do Palácio Tomé de Souza e em assembléia decidiram pelo que chamaram de “ocupação pacífica”. Os ânimos exaltados, no entanto, transformaram a ocupação em invasão, que não pôde ser contida pelos 11 seguranças civis e militares que estavam em serviço. Os invasores deixaram, um rastro de vidraças quebradas, portas danificadas e extintores de incêndio arrancados (JORNAL DA BAHIA, 30/12/1993). Para o Jornal da Bahia, o sindicato dos músicos buscava apenas arrecadar mais dinheiro. O jornal traz para o seu leitor as seguintes informações: expõe nas primeiras linhas a existência de uma manifestação, bem como o turno e o local nos quais ela ocorreu. Destaca também suas conseqüências. Mais adiante, afirma que o motivo da manifestação era a tentativa dos músicos de conseguirem cachês mais altos para tocar no Carnaval. Segundo a matéria, os músicos exigiam 300 dólares por hora para trabalharem na festa. O jornal afirma que a categoria, por decisão em assembléia, se concentrou em frente ao palácio e decidiu, num dado momento, ocupar o prédio da prefeitura pacificamente – o jornal não deixa explicito, contudo, o motivo desta decisão. Em seguida informa que, como os ‘’ânimos estavam exaltados’’, a ocupação se transformou em ‘’invasão’’. Com efeito, após o uso do termo invasão, a matéria descreve imediatamente uma situação dos policiais tendo dificuldade de conter os ‘’invasores’’ que, deduz-se, estavam dispostos a ‘’tudo’’, e por isso mesmo, deixaram um rastro de vidraças quebradas, portas danificadas e extintores de incêndio arrancados. Naquelas circunstâncias, não foi apresentada, pelos jornais, qualquer consideração dos manifestantes sobre aquele evento, exceto as opiniões dos dirigentes do sindicato. Mas trouxemos alguns relatos daqueles manifestantes da ‘’base’’. Faz-se aqui, a partir de agora, o papel que aqueles jornais deveriam ter feito, isto é, o de elencar e comparar as diferentes interpretações envolvidas em alguma 72 situação específica. Contudo, deu-se ênfase, intencionalmente, aos relatos dos músicos, os quais foram marginalizados e descreditados. O que levou os músicos a participarem daquele protesto? Helder Mello de Araújo afirmou que ‘’na época, eu fiquei sabendo que o sindicato estava encarregado de organizar um concurso público à seleção de bandas para o carnaval da Prefeitura de Salvador. Cheguei no sindicato por meio de colegas de trabalho [...]’’ Ele esclareceu que ‘’afirmavam haver garantias e benefícios aos músicos sindicalizados. Minha participação nos protestos foi direta porque estive nas manifestações que ocorreram na Avenida Sete de Setembro com a participação de centenas de pessoas [...]’’ Nikolaus Hatzinikolaou nos explicou que “na verdade a presença nas manifestações fazia parte da rotina dos participantes e concorrentes aos trabalhos de Carnaval. A presença de todos era exigida nos protestos”. Sobre aquela manifestação, Jorge Patrício Solovera nos disse: ‘’Rapaz, eu não lembro de quase nada... Eu na época só tava pela porra da assinatura, que tinha de ter... E lembro também que eu nem passei no teste’’. Luciano Calazans, este músico baiano que completou 36 anos em quinze de janeiro de 2010, vivenciou grande parte das situações internas do sindicato: É... Profissionalmente eu comecei a tocar com treze anos de idade. Nessa época era obrigação do músico ser sindicalizado, como é hoje ainda. Existiam três tipos de carteiras; a do menor, que era verde; a do estagiário, que era a coloração amarela; e a do profissional que era de coloração azul. Houve um tempo que a carteira do músico era semelhante à carteira de trabalho, era um livrinho... E eu tive a minha primeira carteira, que pagava uma taxa, aos treze anos de idade. E comecei a atuar em bandas de baile e também banda de carnaval daqui, pra tocar pelo sindicato dos músicos da Bahia. Luciano é mais um exemplo que reitera a observação realizada a respeito da pouca idade a partir da qual os músicos iniciavam o seu ofício. Houve uma questão importante que quisemos saber de Gerson Silva: perguntamos a ele por que não havia participado daquele protesto: Olha, eu estava viajando tocando com alguém que nem lembro na época, mas eu soube de tudo que aconteceu por amigos que estavam lá também. Em outras fases do sindicado eu participei dos concursos e das brigas por melhorias que a classe reivindicava também. 73 Quando perguntamos aos músicos sobre os motivos que os levaram ao protesto, nota-se que as respostas tomam direções diversas. Uma resposta destaca a importância da manifestação para a concretização de melhorias para a categoria – por melhorias se pode inferir: salários mais significativos ou dignos; outra enfoca os elementos burocráticos e formais que deveriam ser cumpridos por exigência do sindicato etc. Há também a que vai na direção de certos benefícios individuais, independente das conquistas coletivas. Quisemos saber mais: perguntamos à Helder o que de fato o sindicato desejava com aqueles tipos de manifestações: Falavam-se muito nos impasses da negociação do valor pago pela prestação de serviço e, depois, a forma de pagamento, atraso na emissão dos cheques aos músicos, etc. Confesso que o tempo me faz não lembrar de tudo, mas o protesto era sobre o baixo valor pela prestação de serviços no carnaval. O que mais se comentava nas reuniões era de que o carnaval de Salvador gerava muita renda, impostos, dinheiro para a iniciativa pública e privada. Sendo assim teríamos também direito à divisão do capital arrecadado com a festa. Curiosamente, naquele ano de 1993, os argumentos da prefeita, bem como dos seus técnicos, apontavam uma ‘’melhora’’ na relação que o poder público — quando comparado às gestões anteriores — estabeleceu com os musicistas. No entanto, não foi exatamente uma ‘’melhora’’ nas relações o que indica o relato de Helder. O Carnaval movimentava cerca de 100 milhões de dólares, esta foi a cifra propagandeada pelo governo do município quando do lançamento do Plano de Comercialização do Carnaval. Citamos esta evidência no capítulo que sucede. Aquele volume de capital, anunciado como chamariz para a iniciativa privada, não servia aos músicos, não era para ‘’aventureiros’’. Nikolaus argumentou que Aparentemente os protestos tinham como objetivo fazer a prefeitura liberar a verba para realização dos shows do carnaval. Aparentemente porque algumas vezes parecia apenas burocracia, que a verba já estava liberada, mas isso é uma hipótese, sem confirmação. Burocracia ou não, o fato é que o sindicato intermediava a relação da categoria com o poder público através de mecanismos um tanto duvidosos. Sabe-se que os sindicatos são uma espécie de produto ‘’natural’’ da indústria capitalista. Ao longo do processo histórico do capitalismo, os trabalhadores foram ‘’obrigados’’ a desenvolver laços, a se unirem. 74 Foi necessária uma união para haver defesa da classe trabalhadora em torno de várias situações, sobretudo contra as reduções salariais. Contudo, sabe-se também que esta instituição que deveria ser uma ferramenta representativa das forças sociais dos trabalhadores, caiu, sobremaneira, ao longo do seu desenvolvimento, sob o controle de uma ‘’aristocracia operária’’. líderes, foram corrompidos pelos mecanismos políticos contraditórios da democracia burguesa: a distância entre representantes e representados é uma condição daquele paradigma. Gerson Silva nos relatou a natureza das suas insatisfações quanto ao Sindicato dos Músicos. Ele argumentou que ‘’[...] o sindicato queria ter o que lhe era de direito enquanto porta-voz da categoria músicos profissionais. Acho apenas que as formas eram equivocadas e que não se investia na categoria por parte do Sindicato’’. Disse ainda que ‘’a coisa era meio feita sempre por política interna e pra benefício de algumas pessoas que se diziam ajudantes da categoria. Só que essas pessoas muitas vezes não eram músicos profissionais e não entendiam nada do mercado de trabalho’’. Contudo, quando visto sob a ótica da imprensa, os discursos que tenderam a aparecer não foram dos músicos. Ora era Franklin Oliveira Júnior quem falava por todos os participantes, ora eram os parlamentares que teciam as suas considerações sobre o ocorrido. Mais uma vez, citamos o jornal A Tarde: Praça de guerra. Enquanto o líder do PT na Câmara Municipal, Walter Pinheiro, tentava escapar de um ataque de fanta de um policial, ontem, o vereador Alcindo da Anunciação, do PP, espalhava que o secretário de Comunicação Social do município, Domingos Leonelli, estava mandando a segurança atirar contra os músicos. Silvoney Sales — PSC— reclamou com Alcindo, e pediu que todos fossem sensatos para evitar um mal maior. Os músicos, no entanto, demoraram a desistir do intento de invadir a prefeitura. A Praça Municipal ficou parecendo a Praça Celestial da China, quando a repressão chinesa atua, comparou Silvoney (A TARDE, 30/12/1993). Dos cinco maiores jornais da época que deram destaque ao protesto, nenhum destacou falas e/ou opiniões dos manifestantes acerca da situação em que se encontravam. No livro Uma História Social da Mídia: De Gutenberg à Internet, de Asa Briggs e Peter Burke, estes autores fazem referência a uma fórmula clássica elaborada pelo cientista político norte-americano Harold Lasswell. Ele descreve a comunicação em termos de quem diz o quê, para quem, em que canal — em nosso caso seria melhor em que jornal—, com que efeito. O ‘’quê’’ 75 — conteúdo—, o ‘’quem’’ — controle— e o ‘’para quem’’ — audiência— têm o mesmo peso (BRIGGS e BURKE, 2004, p. 17). Estas reflexões são fundamentais para entendermos o papel que desempenhou a imprensa naquele momento. As empresas de comunicação de Salvador que deram cobertura ao evento na época, todas elas, pertenciam a grupos ligados direta e indiretamente às estruturas políticas dominantes da cidade. Estes jornais com os quais dialogamos constituem, se quisermos entender melhor as relações de força existentes naquele momento, uma importante fonte para compreendermos as visões, idéias e opiniões produzidas pelos diversos grupos sociais naquele contexto. Entendemos a imprensa como uma representação construída sobre o real, sobre a qual incidem determinados filtros deformadores que cabe ao historiador determinar e equacionar em suas análises (ESPIG, 1998, p.276). Algo que consideramos importante comentarmos são as falas e as considerações dos músicos sobre o Sindicato. Nota-se que aquela instituição não era “bem vista” pelos seus associados, pelo menos não por estes que entrevistamos. Havia certa desconfiança, dúvidas sobre determinadas posições adotadas pela entidade. E através de uma das respostas dadas, percebemos algumas práticas internas da instituição, bem como o descontentamento em relação a elas. Fizemos uma pergunta para Helder sobre as dificuldades econômicas e sociais encontradas no exercício diário da profissão, se existiam: Sim, várias. Principalmente o não registro profissional. Geralmente tínhamos mais facilidade para trabalhar como músico profissional porque havia espaço claramente no mercado de trabalho. Muitas vezes a falta de garantias e inseguranças generalizadas que abraçam esta profissão não davam, acredito, para boa parte dos ali presentes, uma idéia ou sentimento de segurança financeira. Neste sentido, naquele específico momento, o papel do sindicato resumiase na luta por benefício momentâneo e não causa concreta, ideológica coletiva. Parece-nos que não houve expansão, da parte do sindicato, dos seus objetivos. Os objetivos ficaram restritos a buscas econômico-corporativas apenas. A amplitude das práticas e o potencial que acompanham a natureza de uma instituição desse tipo, não foram, na observação de Helder, devidamente explorados. A insegurança que há na vida de um musicista de ofício decorre, entre outros aspectos, do fato de não haver, neste tipo de trabalho específico, ingredientes sociais que compõem os outros tipos de trabalho e que foram frutos, já conquistados 76 e consolidados na maior parte das profissões existentes, do processo de lutas dos trabalhadores. Em termos históricos, algumas daquelas conquistas dos trabalhadores de outrora são, no caso dos músicos, lacunas que precisam ainda serem preenchidas. Sobre a questão levantada, Gerson afirmou que ‘’[...] sempre há dificuldades em todas as áreas e o mercado musical não ficou isento disso também. O que me prejudicou mais, e por isso eu fui buscar informação em outros lugares, é que não se tinha uma boa escola’’. O músico destacou ainda que precisou ‘’[...] sair daqui pra ter uma formação melhor como profissional em todos os sentidos. Temos uma Universidade de Música que prega a utopia pra o mercado musical profissional e não uma verdadeira formação pra os músicos’’. Gerson faz uma relação entre escola — termo entendido como sendo o espaço de diversas formas de produção do conhecimento — e mercado. Bem entendido, o mercado local é diverso e adequado para um indivíduo versátil musicalmente, o que exigiria uma maior abrangência em sua formação. A Escola de Música da Universidade Federal da Bahia caminha no pólo oposto: apresenta uma formação, segundo o entrevistado, unívoca, descompassada com o conexto e as exigências locais. Mas parece que o músico sugere uma subordinação da formação – um termo amplo e complexo – do musicista ao chamado mercado, uma noção que aparece muitas vezes como sendo um ente abstrato e harmonioso, mas que traz consigo interesses reais, muitas vezes conflitantes e desiguais numa sociedade capitalista. Gerson disse que Num estado onde a música popular é tão rica não dá pra viver achando que apenas por estar estudando Música Erudita vai se viver profissionalmente e confortavelmente com a música. Temos apenas duas Orquestras profissionais aqui no estado e pra você integrar o elenco de músicos contratados pelo estado você teria que matar umas 300 pessoas pra cada instrumento que existe na Orquestra. Ou seja, a Universidade não forma músicos pra um mercado real. Temos que ter consciência, e isso desde o início a partir das escolas de músicas em geral, que tem que se preparar o aluno pra um mercado hiper exigente e que não comporta músicos apenas com conhecimentos básicos de música. Esses se frustram ao perceberem que não podem sobreviver com a quantidade de informação que têm e viram outros profissionais, não músicos. 77 Há uma convergência quanto às dificuldades por que passaram. Sociais porque não havia escolas diversas e as que existiam, como no caso da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, não eram de fácil acesso para todos. Econômicas porque não se ganhava o suficiente para poder se adquirir aparelhos e equipamentos tecnológicos necessários ao exercício da profissão. ‘’Havia a dificuldade para aquisição de equipamento, transporte, enfim, dificuldades várias, coisas que fazem parte da profissão; em algum momento todos passam por isso’’ (Nikolaus). E, em muitos casos, havia dificuldades para prover ‘’adequadamente’’ a existência com coisas básicas. Percebe-se, no entanto, que estas dificuldades vivenciadas eram ‘’naturalizadas’’. Faziam parte de uma etapa da profissão ou eram ‘’coisas’’ pelas quais qualquer atividade profissional tinha necessariamente de passar. E quanto ao sindicato? Este representava, de fato, a categoria? Havia algum sentimento de pertença àquela instituição? Perguntamos sobre esta questão. Helder esclareceu que Em alguns momentos acredito que sim. Na verdade, quando se fala em sindicato a visão que se tem é de uma organização coletiva com uma ideologia coesa, concreta de objetivos convergentes e divergentes, mas de forma democrática. No caso específico de minha experiência como sindicalizado percebia um jogo político presente nas manifestações sempre contrárias ao governo municipal da época e, no comportamento de alguns presentes na liderança do órgão ou dos manifestantes que se destacavam durante as movimentações de protestos pacíficos. Parece-nos, mais uma vez, que aquele quadro de um sindicato dominado pelos funcionários burocratas, e preocupado com questões ‘’menores’’ de emprego, foi o que caracterizou as ações do SindiMúsicos. Há uma impressão de que a luta econômica desencadeada pelo sindicato se dissociou da luta político-social mais ampla. Não é exagero afirmar que os sindicatos, fazendo uma generalização forçosa, ganharam, ao longo do seu desenvolvimento histórico, um caráter burocrático e conservador, em grande medida divorciado das ‘’massas’’. Nikolaus afirmou que a movimentação do sindicato era No sentido de criar oportunidade de trabalho no carnaval para muitos músicos, pessoas que talvez não trabalhassem, não fosse essa intervenção do sindicato. No mais, no decorrer do ano era praticamente nula a participação do sindicato na vida do músico. 78 Talvez possamos considerar que muitos músicos incorreram na idéia de que um ‘’bom’’ sindicato seria aquele que garantia o trabalho, o sustento do dia a dia. Conflitos internos há em qualquer categoria de trabalhadores, bem como em qualquer instituição representativa. Interpretações diversas acerca do papel de um sindicato existe no seio de qualquer categoria. Mas algo é observável em algumas das falas dos músicos: a realidade de partidos políticos mediando e se confundindo com a entidade representativa. É como se o sindicato fosse, numa velha concepção histórica deste tipo de estabelecimento, ‘’correia de transmissão’’ dos ideais de algum partido político. Sobre o sindicato, Gerson Silva argumentou que ‘’[...] o papel do Sindicato seria outro e um deles seria preservar a Classe Musical e os profissionais que trabalham com música em geral e não apenas tocando um instrumento’’. Ele relatou que ‘’[...] se tivéssemos uma postura mais profissional por parte do Sindicato conseguiríamos regularizar melhor esses desdobramentos que envolvem esse mercado tão complexo’’. Depreende-se, a partir das respostas dadas, que as ações praticadas pelo órgão não eram “transparentes”. Isto é um elemento presente nas falas. Jorge Patrício Solovera afirma que “o sindicato só se pronunciava no Carnaval. Não duvido nada que tivesse gente mamando essa grana”. Note-se que a afirmação de Solovera, a qual diz que a instituição só se apresentava em defesa da categoria no período carnavalesco, não foi um argumento posto por ele apenas. De todo modo, quisemos saber mais sobre o sindicato. Perguntamos se a entidade recorria a métodos punitivos em relação à ausência nas manifestações, ou seja, se havia a aplicação de alguma penalidade nos músicos que não participavam dos protestos: Se realmente o sindicato aplicou as penalidades eu não me lembro. Mas me lembro claramente de que havia realmente um processo de lista de assinaturas para evidenciar a presença dos sindicalizados nas manifestações. Isso me dava uma percepção de manipulação por meio da coerção em torno do sucesso dos objetivos traçados pela direção do sindicato naquela altura. Hoje, com outra visão de mundo vejo que fui manipulado sem mesmo perceber (Helder). Aqui cabe uma reflexão acerca do poder. Se um sindicato tem peso político, então ele tem força para deflagrar uma greve. Alguns compeendem a força como sendo um mecanismo de canalização de uma dada potência; outros vêem na força a 79 posse de meios violentos de coerção, e não como um dado que nos permite influir no comportamento de outros indivíduos. O fato é que, se aquele sindicato recorreu à força como forma de constrangimento, como um meio de manter ‘’unidade’’ a qualquer custo, isto aponta em si mesmo um fracasso relativo da ‘’autoridade’’. Esta idéia de autoridade, que comumente é confundida com alguma forma de violência, é entendida aqui a partir de um raciocínio importante da filósofa Hannah Arendt. A filósofa nos ensinou que, ‘’se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, [...] em contraposição à coerção pela força [...]. A autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade’’ (ARENDT, 1972, p. 129). Fizemos a mesma pergunta para Gerson Silva. Se havia ou não os métodos punitivos, a respeito disto, ele nos esclareceu: Eu não me recordo na época, mas acho que houve sim uma represália por parte dos diretores. Isso é uma pena porque pra início de conversa ninguém seria obrigado a ser sindicalizado e sim isso seria uma opinião por lutar por melhoria da classe. Isso não funciona dessa forma em Salvador e o Sindicato só aparece nas épocas de festas e eventos importantes. Por isso a irritação de muitos músicos e a falta de informação também. Acho que deveria sim haver um sindicato mas que lutasse por no mínimo uma aplicação de uma tabela onde todos que trabalham com música pudesse saber o que devem cobrar e receber por cada serviço. Se houvesse isso e uma conscientização por parte do Sindicato de que é importante seguir essa tabela pra melhoria de todos acho que daríamos um bom avanço. Nikolaus argumentou que ‘’a ausência nas manifestações era contada como falta no processo seletivo dos concorrentes, o que possivelmente desclassificaria o candidato, já que havia uma lista de presença no local dos protestos’’. Tendo em vista que naquele momento o poder público buscava reorganizar o Carnaval, estabelecer critérios precisos de distribuição das benesses da então festamercadoria — isto ficou evidente com o Plano de Comercialização do Carnaval apresentado pelo poder público no mesmo ano—, não fica difícil entender, entre outras variáveis, por que houve uma resistência ‘’aguerrida’’ por parte dos setores fundamentais do governo municipal em relação ao percentual reivindicado pelos músicos para o pagamento dos seus respectivos cachês. O governo argumentou que ‘’[...] nunca, em gestões anteriores, os músicos que trabalham no Carnaval da Bahia foram tratados com atenção e consideração como na administração atual. Não havia diálogo e o sindicato dos músicos fazia 80 esforço de mobilização desgastante’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 03/12/1993). Destacou que ‘’[...] a Prefeita Lídice da Mata iniciou uma nova postura no relacionamento com este segmento tão logo assumiu a prefeitura, promovendo várias rodadas de negociações até chegar a um acordo definitivo’’ (Ibid.). O discurso utilizado pelos responsáveis da administração da prefeita parecia tomar o caminho de uma das principais teses defendidas por aquele governo: a idéia de ‘’profissionalização’’ e ‘’organização’’ em todas as esferas da dinâmica carnavalesca. De todo modo, vejamos mais uma evidência daquele conflito: Prefeitura estudará reivindicações dos músicos. Ao receber as propostas do Sindicato dos Músicos para o Carnaval 94, a Prefeita Lídice da Mata reafirmou a importância da festa e a sua sensibilidade para as reivindicações dos músicos. Não concordou porém, com a reivindicação feita pela entidade de ficar com 46% do orçamento destinado ao Carnaval. Lídice anunciou, inclusive, que já instruiu sua bancada na Câmara de Vereadores para trabalhar contra a emenda apresentada pelo Vereador Alcindo da Anunciação, determinando esse percentual para as atrações musicais (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 09 e 10/12/1993). Ao que tudo indica, os músicos não se apresentavam como um problema, um entrave de ordem econômica apenas, mas também eram um entrave político. Dado que havia outros vereadores, além do vereador Alcindo da Anunciação, que apoiavam o sindicato. Durante o processo de negociação houve algumas concessões de ambos os lados. A prefeita Lídice da Mata argumentou que ‘’a prefeitura deve assegurar a melhor remuneração possível aos músicos, observando, no entanto, o limite financeiro do poder público municipal e, levando em conta também que [...] a cidade tem outras carências profundas’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 09 e 10/12/1993). A prefeita disse que ‘’foram apresentadas 594 propostas até o dia do encerramento, sexta-feira passada, o que dá uma média de 3 mil músicos pretendendo atuar no Carnaval. O Presidente da Comissão Especial do Carnaval lembrou que houve avanço nas negociações’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 09 e 10/12/1993). Finalmente, consideramos necessário citar a opinião de um jornalista da época, sobre o protesto. A nossa intenção aqui, com a argumentação deste jornalista, é explicitar, de alguma maneira, o ‘’conteúdo’’ dos discursos forjados —por 81 setores diversos da sociedade soteropolitana— e projetados nos músicos naquele momento: Nota dissonante. Há um ano, mais ou menos, alertava, em artigo, aqui na Tribuna, para a estupidez cometida pela Prefeitura de Salvador em destinar verbas astronômicas para custear o Carnaval. Boa parte desses recursos era, como continua sendo, exigida pelos músicos. Minha Gente, a coisa está na cara e só não enxerga quem não quer. Somos uma cidade falida. Temos mil problemas, alguns deles crônicos, não há dinheiro para os programas sociais nem mesmo para os serviços elementares de manutenção do município e, muitas vezes, nem mesmo para pagar em dia ao funcionalismo (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Naquele contexto de reorganização do Carnaval, reorganização que se deu em instâncias diversas do poder público, houve um ‘’consenso’’ entre esfera pública e privada. A idéia básica dos agentes privados foi a de fomentar o atrelamento do Carnaval, e tudo o que ele trazia consigo em termos de lucros reais e virtuais, aos seus domínios. A idéia básica do poder público, por seu turno, foi a de distanciar-se de eventuais responsabilidades pecuniárias para com os grupos sociais realizadores da práxis carnavalesca, deixando os espaços que outrora eram preenchidos pela administração pública nas mãos dos agentes privados. Assim, os músicos foram levados, de forma mais acentuada, a vender a sua força de trabalho à iniciativa privada. Se assim não o fizessem, correriam o risco de ficar sem cachês no Carnaval, visto que a prefeitura sinalizava assumir a posição desejada pela iniciativa privada, isto é, a de apenas fornecer a ‘’infra-estrutura’’ para as bandas. De todo modo, os agentes privados interessados na festa, entre os quais figuravam as empresas de comunicação, não viam com ‘’bons olhos’’ a subvenção fornecida pelo poder público aos músicos. O mesmo jornalista afirmou que ‘’já passou da hora. A prefeitura não pode ficar assumindo a paternidade de grupos quase sempre bem-estruturados, mas que se comportam como mendigos toda vez que o Carnaval se aproxima’’(TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Ele prosseguiu argumentando que ‘’quem quer tocar na festa que arranje patrocinador. Quem precisa sobreviver de sua profissão vai à batalha. A verba pública é para ser aplicada em benefício do contribuinte. É ele quem paga impostos [...]’’(Ibid.). 82 Algumas considerações podem ser feitas. Em primeiro lugar, percebe-se, em certa medida, a idéia – de certo modo presente até os dias atuais – de que os músicos constituem uma ‘’massa homogênea’’, isto é, uma categoria de trabalhadores em cujo seio não há traços diferenciadores10. Considera-se o músicoempresário, ou artista-empresário — os cantores especificamente—, com o seu modo de vida etc., do mesmo modo que se considera o músico-acompanhante ou músico-funcionário com sua vida econômica ‘’palpável’’ diametralmente oposta àquele artista-empresário famoso. Algo sobre o qual gostaríamos de refletir também é sobre o termo banda. O que é mesmo uma banda? Se considerarmos banda uma atividade musical profissional na qual todos os músicos participam de igual modo das negociações, dos lucros provenientes das vendagens dos shows etc., teríamos um conceito radicalmente diferente e ao mesmo tempo antagônico à idéia hegemônica vigente no espaço carnavalesco a partir da segunda metade da década de oitenta. Ao lado de bandas que possuem uma historicidade e que praticam uma distribuição mais igualitária de suas conquistas materiais, há também, as chamadas bandas-empresas, isto é, bandas que geralmente são o prolongamento de uma empresa de produção musical e que, via de regra, são propriedades de um determinado ‘’músico-cantor’’. Eram estes os grupos ‘’bem-estruturados’’ a que o jornalista da época fez referência. Há diversos tipos de bandas-empresas. Mas o caso específico a que fazemos referência é o caso no qual um determinado musicista-empresário é proprietário de uma banda. Este musicistaempresário agrega outras funções para si que não só a de musicista. Foi este o caso a que fez menção o jornalista. Só tem que ele não mencionou os grupos musicais que estavam ‘’por baixo’’ daqueles ‘’bem-estruturados’’, não mencionou as limitações financeiras daqueles grupos musicais que não faziam parte, sob qualquer aspecto, do Carnaval-negócio. Outra questão a ser colocada é o direcionamento para a iniciativa privada. A opinião de que os ‘’músicos’’ deveriam procurar a iniciativa privada para poderem trabalhar no Carnaval, esta opinião específica, se coaduna com outras falas já postas neste trabalho, que vão na mesma direção. 10 Sobre as diferenças existentes no interior de uma classe, ver WILLIAMS, 2000, p. 74. 83 O próprio ato da prefeitura, de venda dos espaços públicos para iniciativa privada, sob a alegação de que tal arrecadação de dinheiro seria reinvestida na melhoria da festa, este ato mesmo, se junta ao coro proferido pela maior parte das reportagens dos jornais trabalhados. A relação é a mesma: diminuição da participação do poder público nos rumos da festa. O que fica expresso também nos argumentos do jornalista é o seguinte: ‘’A verba pública é para ser aplicada em benefício do contribuinte’’. Logo, o que se pode inferir de tal argumentação é que os indivíduos que reivindicavam uma maior participação nas estruturas econômicas da cidade, por serem músicos, por isso mesmo não contribuintes — há na fala do jornalista uma relação de causa e efeito quanto a esta questão —, não gozavam de qualquer ‘’legitimidade social’’ em relação ao que buscavam. Cabe aqui chamarmos atenção para a noção de ‘’relação de força’’. Gramsci ao discutir nos Cadernos do Cárcere a idéia de relação de força, isto é, determinadas situações histórico-sociais através das quais os grupos sociais existentes vivenciam conflitos, disputas e contradições específicas, descreve e caracteriza os diversos momentos ou graus através dos quais tal ou qual relação se processa. Um ‘’[...] terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico [...], devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados’’ (GRAMSCI, 2002, p. 41). Ainda em relação àquele momento, Gramsci esclarece que ‘’[...] é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em ’partido’, [...] determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, criando assim a hegemonia’’ (GRAMSCI, 2002, p. 41). A utilização da ‘’opinião pública’’, claramente praticada por grande parte dos jornais, representa, entre outras coisas, justamente o momento a que Gramsci se refere acima: o discurso que era defendido e apresentado à sociedade, não se materializava como sendo um determinado ponto de vista de um determinado setor da sociedade sobre as questões econômicas fundamentais. Mas, ao contrário, o discurso que era apresentado por determinados setores, aparecia como sendo um discurso tradutor dos dilemas ‘’reais e universais’’ de toda a população; era um discurso que gozava de legitimidade porque visava — 84 traduzia— a unicidade dos fins econômicos e políticos, a coerência, a lógica, a ética e a moral destes fins. As declarações do jornalista citado anteriormente estão em conformidade, em certo sentido, com o que efetivamente estava ocorrendo naquele momento. De fato, a disputa de poder existente naquela época entre as camadas políticas gerou sérias conseqüências à cidade. O descompasso existente entre o governo do Estado e o governo do Município fez com que houvesse, em ambas as esferas, disputas internas. De fato, o grupo político ligado ao Governador Antônio Carlos Magalhães tentou, na época, concentrar os mecanismos da vida social; aquele grupo político perpetrou perseguições, em diversos âmbitos, ao governo da Prefeita Lídice da Mata. Só tem que, aqueles buracos nas ruas de Salvador, a falta de dinheiro para sanar problemas básicos da cidade, enfim, todos os problemas levantados pelo jornalista, não eram um fenômeno que toda a sociedade estava passando repentinamente; ou ainda, ‘’culpa’’ dos músicos, dos quais não havia comprometimento direto com problemas da cidade. Os problemas que haviam sido gerados eram provenientes, sobretudo, das disputas de poder no seio das camadas políticas. A perseguição do então Governador Antônio Carlos Magalhães à prefeita Lídice da Mata, estimulou, sobremodo, problemas vitais à cidade. E isto sem falar das contradições gerais que assolavam o país naquele contexto. O Diário Oficial do Município esclarecia que a prefeitura estava ‘’[...] atravessando um período de muitas dificuldades financeiras, principalmente pela retomada do sequestro de verbas municipais por empreiteiras’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 14/12/1993). Percebe-se nas argumentações do jornalista, entre outras coisas, a tentativa de uma direção moral e intelectual — que se pode associar a outros discursos produzidos no período— face aos ‘’problemas da cidade’’, relacionando-os, sempre que possível, ao fato de aqueles existirem por conta de haverem grupos sociais como os músicos — os músicos como uma massa homogênea, verdadeiros ‘’sanguessugas’’ da verba pública. Houve uma tentativa de unificação dos discursos. E o principal meio utilizado para difundir as idéias então em voga, foram os veículos de comunicação. Os grupos hegemônicos buscaram reduzir o significado do protesto, ao mesmo tempo em que fornecia o ‘’receituário’’ para o governo do município no que dizia respeito às 85 atitudes e soluções que cabiam ao poder público diante daquele ‘’desrespeito promovido pelo protesto a toda sociedade baiana’’. Nesse passo, surgiram coisas desta natureza na imprensa: Ponto final. Os músicos fizeram mais uma manifestação, desta vez violenta, na porta da prefeitura, ontem. Querem porque querem sugar os recursos municipais para se apresentarem no Carnaval. O resto que se lixe (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Dólar musical. Os músicos que entraram no quebra-quebra précarnavalesco só discutem seu cachê em dólar. Mesmo não conhecendo os segredos da língua inglesa, preferem soprar e tocar os timbaus movidos pelo lema ‘’In God we trust’’. E the end! (JORNAL DA BAHIA, dezembro de 1993) Note-se que o escárnio, a tentativa de ‘’meter a ridículo’’ a manifestação feita pelos músicos aparece em jornais diferentes. O discurso utilizado naquele momento pelos grupos sociais hegemônicos convergia, de um modo ou de outro, para a idéia de os músicos buscarem no ‘’patrocínio particular’’ os meios adequados e necessários para o exercício da profissão. O autor Carlos Alberto Dória, no livro que escreveu chamado Os Federais da Cultura, levanta algumas reflexões interessantes no que diz respeito à autolimitação do Estado ante a produção cultural dos indivíduos e o tipo de relação que aquele mantém com o mercado – os agentes privados. A discussão que este autor traz no capítulo intitulado ‘’O mercado e o sonho da Paideia tropical’’, gira em torno, entre outras coisas, da apropriação feita pelo mercado dos produtos culturais em detrimento de uma participação mais efetiva do poder público em determinadas atividades cujo caráter é eminentemente público. Assim, se certas atividades culturais ficam sob os auspícios única e exclusivamente da iniciativa privada, gerando para estes agentes contrapartidas irrecusáveis — como, por exemplo, a isenção fiscal, promoção da ‘’imagem’’ de uma determinada empresa como ‘’provedora do social’’, realizando, por isso mesmo, uma espécie de ‘’favor à sociedade’’ —, é natural que o cidadão que tem dinheiro no bolso ‘’patrocine’’ um determinado ‘’produto cultural’’ de sua preferência (DÓRIA, 2003, p.58). Portanto, é igualmente natural que o empresário, ao se deparar com uma banda qualquer ou algum projeto musical, consulte, antes de decidir se vai liberar dinheiro ou não, o seu departamento de marketing para ter a certeza de que ‘’vale a pena’’ associar a imagem da sua empresa a tal banda ou a tal projeto musical, não 86 importando quão desconhecidos sejam a banda ou o indivíduo que apresentam tal ou qual projeto à sua empresa. O que importa mesmo é o nível de publicidade e lucro que aquilo pode gerar (DÓRIA, 2003, p. 58). Os argumentos utilizados pela direção do Sindicato dos Músicos tomavam este caminho: criticavam a renúncia do poder público frente à coisa pública, isto é, a sua responsabilidade direta no que dizia respeito à participação efetiva de todos os organismos construtores da maior festa popular da Bahia, o Carnaval. Aquela crítica foi um dos principais elementos centrais no desenrolar do conflito. Percebemos a hegemonia se desdobrando naquele protesto dos músicos como dominação — força—, muito embora a hegemonia se dê também através dos mecanismos de consenso. Há hegemonia porque houve resistência da parte dos músicos àquela situação. Todavia, aquela manifestação não trazia consigo uma ‘’contra-hegemonia’’ ou uma ‘’hegemonia alternativa’’11. O sindicato dos músicos promoveu o protesto dentro de uma ‘’mentalidade econômico-corporativa’’.12 Pode-se afirmar, talvez, que tenha sido esta a ‘’ação política’’ praticada pelo sindicato: uma ação apenas no âmbito do grupo profissional, não atingindo por isso mesmo uma transformação mais ampla, uma transformação que representaria também a ascensão de outros grupos sociais não-hegemônicos. Gostaríamos de continuar lançando mão de um ‘’olhar’’ mais analítico. O sindicato da categoria, segundo os músicos, apresentava-se como ‘’porta-voz’’ daqueles trabalhadores apenas em momentos próximos à realização da festa carnavalesca. Contudo, apresentava-se para a sociedade com aquela mentalidade de que falamos anteriormente. Não chamava atenção do Estado, através de suas ações políticas, para a situação simbólica e moral dos indivíduos que cumpriam a função de músicos na sociedade baiana. Resultado: as ações daquela instituição representativa adquiriam um caráter apenas político-econômico e não, simultaneamente, um caráter históricocultural. Por histórico-cultural entende-se que, ao colocar também nas resistências, sejam elas de qualquer tipo, as suas experiências geradas na vida material, as pessoas superam, neste momento, as críticas que se dirigem apenas às ‘’estruturas 11 12 Sobre possibilidade de uma hegemonia alternativa, ver WILLIAMS, 1999, p. 114. A respeito de uma ‘’mentalidade econômico-corporativa’’, ver GRAMSCI, 2002, p. 40. 87 dominantes’’. As pessoas experimentam suas experiências como sentimentos e lidam com esses sentimentos na cultura de formas diversas. Se existe contradição nas sociedades significa dizer também que toda contradição é um conflito de valor, tanto quanto um conflito de interesse; que em cada ‘’necessidade’’ há um afeto, ou ‘’vontade’’, a caminho de se transformar num ‘’dever’’; que toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores (THOMPSON, 1981, p. 189). Entende-se que um protesto ao atingir um caráter histórico-cultural ele alcançou também o nível de uma crítica histórico-moral de uma dada sociedade. Por fim, uma crítica histórico-cultural de uma dada sociedade se faz através de um amplo alcance histórico. A crítica política miúda, do dia-a-dia, que envolve os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder é substituída por uma crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente (GRAMSCI, 2002, p. 36). Entretanto, para que não venhamos a incorrer em considerações apressadas, é interessante compreendermos melhor sob quais circunstâncias o protesto ocorreu. 2.2 Um ‘’olhar’’ panorâmico sobre o processo É bem verdade que naquele ano de 1993, fins do século XX, o Brasil passava por uma série de turbulências. No quadro político, muita corrupção e uma descrença nos mecanismos democráticos caracterizaram a política formal daquele ano. Fazia pouco tempo que tínhamos passado por eleições diretas, as quais ocorreram no ano de 1989. O presidente do Brasil, na época o mineiro Itamar Franco, havia sido relacionado à corrupção no orçamento do governo federal e aos desvios de verbas que ocorreram durante o período do seu governo. No plano econômico, houve instabilidade econômica acompanhada de declínio do poder de compra das camadas subalternas; havia ocorrido a criação de novos impostos e a majoração dos já existentes. Uma tentativa de conter os altos índices inflacionários. A inflação acumulada havia atingido 2.567, 46%, a mais alta taxa anual registrada desde o ano de 1989 (CORREIO DA BAHIA, 30/12/1993). E ao atacar o sindicato e condenar o protesto dos músicos, no que chamou de ‘’invasão do prédio 88 da prefeitura’’, a prefeita Lídice da Mata utilizou o argumento de que o sindicato estava ‘’trabalhando com ingredientes perigosos’’, iludindo aqueles músicos empobrecidos por conta do contexto: Lídice considera invasão da prefeitura violência contra a democracia. A Prefeita Lídice da Mata comunicou à imprensa, na última quinta-feira em entrevista coletiva no seu gabinete, a suspensão das negociações com o Sindicato dos Músicos, que liderou a invasão e depredação do prédio do Palácio Thomé de Souza na tarde de quarta-feira. Ela considera o Sindimúsicos descredenciado para continuar como interlocutor do processo de negociação com vistas à participação dos músicos no Carnaval. Apesar de declarar a perda da legitimidade do sindicato nas negociações, Lídice anunciou que a decisão não significa, em nenhuma hipótese, a exclusão de grupos musicais ligados ao sindicato durante o Carnaval. A forma mais detalhada sobre como se dará a continuação das discussões está sendo analisada, mas pelo menos um aspecto já está decidido: os músicos aprovados no processo de seleção a ser feito no início de janeiro podem ser contratados diretamente (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 30/12/1993). Com um argumento de ‘’cima’’ — a partir do qual a prefeita neutralizou o sindicato dos músicos enquanto uma força política representativa daqueles trabalhadores —, a prefeita Lídice sentenciou o sindicato dos músicos afirmando que ‘’A invasão foi um fato muito grave, uma ameaça à instituição e à democracia’’, disse a Prefeita, que se pronunciou ‘’em defesa do poder que represento e que não pode ter a sua sede invadida e desrespeitada pela ação de um sindicato. Não há clima que permita continuar o diálogo’’, completou Lídice da Mata. A Prefeita historiou toda a negociação feita com o sindicato até então e disse ter atuado com a ‘’paciência de quem tem costume de convivência democrática’’, mas que teve que agir com firmeza para defender a instituição. Frisou ainda que o Sindimúsicos está trabalhando com ‘’ingredientes perigosos, de manipulação, uma vez que trata-se de músicos empobrecidos embalados por promessas de cachê alto’’. Ela reafirmou a sua disposição de em nenhum momento endividar o poder público ou transferir recursos de setores como saúde e limpeza, por exemplo, para atender às exigências do sindicato, que, na sua concepção, trabalha com ‘’interesses mesquinhos’’ e está praticando ‘’uma política menor’’ (Ibid.). Este documento citado foi produzido pelo município. Mas a tentativa de ‘’isolamento’’ do sindicato dos músicos não partiu apenas das estruturas políticas do governo municipal. Através de um dos jornais que apuraram o protesto, percebe-se, na reportagem apresentada, a mesma finalidade, tendo em vista que não houve, em momento algum, uma quantidade significativa de falas ou opiniões tanto dos 89 músicos sindicalizados como dos músicos não sindicalizados. Não houve o princípio defendido pela imprensa da comparação entre ‘’visões’’. Antes de citarmos o jornal mencionado, note-se que mais uma vez a prefeita destaca como causa do protesto o contexto de crise econômica pelo qual passava o Brasil na época: Depois de promover o vandalismo, sindicato da categoria perdeu condições de negociar. Mantendo uma postura solene, mas sem conseguir disfarçar o clima de pesar pelo trauma deixado após a invasão da Prefeitura de Salvador pelo Sindicato dos Músicos, a prefeita Lídice da Mata recebeu a imprensa, ontem à tarde, pra uma entrevista coletiva. Falando com voz pausada, referindo-se a invasão como ‘’uma tentativa de ocupação’’ da sede do Poder Público, a prefeita lamentou os acontecimentos, reafirmando que em nenhum momento o processo de negociação chegou a ser interrompido ou radicalizado, como disseram os músicos. Disse Lídice da Mata que, estando à frente de uma prefeitura endividada, não poderia desviar recursos de outros órgãos para atender a um ‘’pleito corporativo’’ e de ingredientes perigosos, de origem desconhecida, com a manipulação política da mentira, em favor de músicos empobrecidos pela crise econômica. A questão do Carnaval está a cargo da Emtursa – Empresa de Turismo de Salvador, Coordenação do Carnaval, Federação dos Clubes carnavalescos e a intermediação de parlamentares da Câmara Municipal e da Assembléia Legislativa. Diante do que a cidade já viu, o Sindicato dos Músicos perdeu a legitimidade como interlocutor das negociações, agora suspensas, reafirmou a prefeita. O Sindicato representa hoje apenas 20% da categoria que participa efetivamente do Carnaval, e até a Federação dos Clubes desconhece o órgão como porta-voz da categoria. A verba para a contratação de bandas e atrações chega à soma de US$ 1.340 mil. O Poder Municipal foi alvo desta soma (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993). As circunstâncias nas quais o protesto se desenrolou servem para, entre outras coisas, percebermos como o Estado se comporta em determinados contextos histórico-sociais, como ele efetivamente se manifesta nos processos político-sociais. No momento específico em que o protesto ocorreu, ele — Estado—, não representou outra coisa senão a força das estruturas de poder vigente da época. Note-se que o próprio título da matéria do jornal citado acima já traduz o prisma sob o qual o fato é apresentado. Esse período, da década de 1990, é o período de consolidação das estruturas do Carnaval-negócio, e as forças sociais dominantes naquele momento não hesitaram na concretização do objetivo traçado. Um número significativo de fontes elencadas neste capítulo aponta isto. Há claramente uma produção de consciência que buscava a unidade do discurso. 90 Sabe-se que a consciência dos seres humanos sobre algo e sobre eles próprios se constitui a partir da e na história desses mesmos seres humanos. Qualquer expressão de consciência humana será sempre, sem sobra de dúvidas, um produto social (MARX, 2007, p. 53). É justamente por ser um produto social que ela está envolvida, mas não subordinada, em processos complexos também ligados a uma determinada ‘’ordem social’’. E qual foi a produção de consciência dos músicos naquela ‘’ordem social’’? Os músicos brigavam por seus direitos através do sindicato da categoria, mas ao mesmo tempo se inseria no modelo carnavalesco que se desenhava, isto é, o modelo do espetáculo. Não podemos afirmar que todos, não possuímos dados para tal afirmação. Entretanto, podemos dizer que uma parte significativa. Os próprios músicos entrevistados nos indicaram algumas das reverberações do Caranavalespetáculo nos músicos da cidade. Havia uma ‘’aceitação’’, da parte de alguns músicos, do glamour carnavalesco que se consolidava, uma aceitação e um desejo de participar dos espaços espetacularizados oferecidos pela mídia. A única possibilidade de se construir ou difundir uma imagem ‘’famosa’’ era a mídia. A aceitação passiva do jogo do espetáculo que sobrevoava a festa momesca naquele início da década de 1990 gerou a crença, em certos músicos, de que os espaços midiáticos poderiam ser utilizados como um meio de se atingir um relativo grau de ‘’diferenciação’’ em relação aos outros colegas de ofício. Aqui cabe uma reflexão sobre consciência social e ser social. Freqüentemente consciência social e ser social entram em contradição. Um sobrepondo o outro em diversos momentos, sem, contudo, se ‘’autodeterminarem’’. Isso faz com que a identidade social de muitos trabalhadores seja também, ela própria, ambígua. Percebe-se no mesmo indivíduo identidades que se alternam, uma legitimadora, aquiescente de uma determinada ordem social que se desdobra, e a outra rebelde (THOMPSON, 2005, p. 20). De fato, o fenômeno do espetáculo causado pela mídia naquele momento provocou a conformidade de uma parte dos músicos ao status quo que se apresentava — fama, ficar famoso, aparecer na televisão etc. Participar das estruturas de publicidade acabava sendo ‘’necessário para a sobrevivência’’. Isto demonstrava uma necessidade de seguir a ordenação daquele 91 ‘’mundo social’’ que se desenrolava, de jogar de acordo com as regras impostas pelos grupos hegemônicos. Entretanto, as experiências de exploração, dificuldades econômicas compartilhadas com os outros músicos companheiros de trabalho etc., tudo isto fazia com que ocorressem, freqüentemente, insatisfações cujo conteúdo se fazia confuso e limitado (THOMPSON, 2005, p. 20). As circunstâncias nas quais o protesto dos músicos ocorreu apresentou um quadro interessante de atitudes e ações dos diversos grupos sociais envolvidos. Foi um momento de ‘’disputa’’ explícita entre os músicos sindicalizados, os quais buscavam garantir um controle mínimo sobre a festa, e os grupos hegemônicos, estes ‘’ávidos’’ pelo controle inequívoco do Carnaval de Salvador enquanto produto econômico-cultural. Aquele momento específico descortinou o campo de forças13 que pairava sobre a festa. Este importante jornal destacou considerações de parlamentares, do governo municipal, que condenavam a manifestação realizada pelos músicos: Vereador condena invasão. ‘’Surpreendido na tarde desta quartafeira com o episódio lamentável da invasão e depredação das instalações do Palácio Thomé de Souza, sede do Poder Executivo Municipal, sinto-me no dever de manifestar a minha solidariedade à prefeita Lídice da Mata e de condenar ao mesmo tempo tão insólita agressão. Na condição de presidente da Câmara de Vereadores e de partícipe, em vários momentos, das negociações com vistas a definir a participação dos músicos no Carnaval, sinto-me, neste momento, impedido de continuar intermediando o diálogo, até que em novo momento e em clima de respeito às instituições, à vida democrática, as negociações possam ser retomadas. Lamentamos ainda que parcela da categoria dos músicos tenha seguido rumo tão violento e precipitado, que nada contribui para o êxito de um processo civilizado de negociação, até porque o incidente aconteceu exatamente no horário em que estava prevista uma reunião na Casa do Carnaval, onde a questão deveria ser definida. Finalmente, apelamos para que o bom senso prevaleça e se restabeleça o clima propício para a retomada do entendimento que, em nenhuma hipótese, poderá deixar de observar os interesses maiores da cidade’’ (A TARDE, dezembro de 1993). Para conter aqueles músicos ‘’irredutíveis’’ em suas posições, foi necessário convocar os militares. A prefeita Lídice da Mata argumentou que o governo 13 Pensamos a idéia de campo de forças a partir da ‘’caracterização’’ feita pelo historiador Edward P. Thompson. A rigor, Thompson toma a noção de campo de forças tal como fora engendrada pelo pensador italiano Antônio Gramsci. Sobre a reflexão de campo de forças posta por Thompson, ver GOHN, 2006, p. 205. 92 municipal precisou agir com rigor para ‘’barrar’’ os músicos. Lídice da Mata foi a primeira mulher eleita para o cargo do executivo de Salvador. Uma prefeita cuja orientação político-intelectual havia sido forjada no seio da esquerda baiana. A então candidata Lídice da Mata – eleita pelo povo – toma posse no dia 1/1/1993. Lídice havia disputado as eleições de outubro de 1992 com sete candidatos. Foi para o segundo turno das eleições municipais. As eleições para prefeito e vereadores da cidade dividiram o espaço na mídia, naquele ano, com o clima de impeachment e os escândalos políticos gerados no governo do presidente Collor, o qual teve seus direitos políticos cassados em dezembro do ano de 1992. O candidato que havia disputado com Lídice o segundo turno foi um candidato indicado por Antônio Carlos Magalhães, Manoel Castro. Antônio Carlos Magalhães era naquela época governador da Bahia e pretendia estender os seus domínios para a prefeitura, caso o seu candidato vencesse. Não foi o que ocorreu. Lídice ganhou as eleições. Tal fato fez com que o governador – hostil à nova prefeita – perseguisse politicamente a candidata eleita a fim de tornar a sua administração ‘’catastrófica’’. Foi sob este clima de ‘’terrorismo político’’ que a prefeita governou. Um dos principais argumentos utilizados pela administração municipal para justificar um plano de comercialização do Carnaval de Salvador foi este: o do seqüestro de verbas praticado pelo governo do Estado. Na falta de dinheiro para realizar a contento a festa, a única saída seria a ‘’cessão’’ completa do Carnaval para a iniciativa privada. E a reivindicação dos músicos por melhores cachês, a cobrança por parte da categoria de uma maior participação do poder público municipal nos rumos da festa, tudo aquilo surgia como uma espécie de ‘’entrave’’. E quando há entraves para quem exerce o poder político, logo o exercício da força legal — o monopólio legal da violência— é posto em prática. É neste sentido que entendemos, por exemplo, a ação praticada pelo poder público quando do acionamento do 18º batalhão da polícia Militar. Mas será que os músicos tinham motivos para entrar em confronto com o poder municipal? Efetivamente, quanto recebiam da prefeitura para trabalhar nos espaços carnavalescos da cidade? Como funcionavam as estruturas dos carnavais de bairro? Quem eram os músicos que trabalhavam no Carnaval através da 93 prefeitura e do sindicato? São algumas destas questões, dentre outras, que veremos na próxima seção. 2.3 O sindicato e o circuito dos bairros como espaços carnavalescos de trabalho Como ocorria a distribuição dos trabalhos nos carnavais de bairro para os músicos? Ninguém melhor do que os próprios músicos para falar disso. Quando tocamos nesta questão com Ivan Bastos, sobre a organização feita pelo sindicato dos músicos dos trabalhos nos carnavais de bairro, ele nos deu o seguinte relato: Essa questão é um dado legal porque a gente queria organizar e trazer para o sindicato a distribuição desses trabalhos, porque tinha muito trabalho no Carnaval, então a gente queria organizar isso e democratizar... Eram verbas públicas, então a gente queria facilitar pra poder colocar o maior número de músicos possível trabalhando. Isso foi até uma conquista do sindicato, mas depois acabou. Perguntamos ao nosso entrevistado se ele havia trabalhado muitas vezes nos carnavais de bairro: Claro! Muitas vezes! Mesmo depois desse período aí... Nesse período a gente tava tentando conseguir fazer esses editais da prefeitura... E depois eu fui convidado pra fazer parte da comissão julgadora, inclusive eu conheci Luciano num desses aí, Luciano novinho participando lá do negócio e eu lá como jurado [rs]. A maior parte dos músicos em início de carreira trabalhava no Carnaval de Salvador pelo sindicato. Isto fica bem evidente através dos músicos entrevistados. O músico Ivan Bastos, pelo fato de ter participado do sindicado dos músicos como corpo administrativo, tendeu a assumir um discurso no qual ele mesmo se confundiu com a instituição. Mas quisemos saber do músico Luciano Calazans por que ele, por exemplo, havia se sindicalizado. Ele nos disse o seguinte: Eu me sindicalizei em 1987. Na realidade eu não resolvi fazer parte do sindicato, isso era uma coisa imposta. Pra poder participar, pra poder pleitear o Carnaval pelo sindicato, nós tínhamos que ter a carteira do sindicato e a carteira da Ordem. Quem fazia as carteiras pra gente era o dono da banda... Ele pagava as fotos no lambelambe aqui da piedade... Tínhamos as fotos no sindicato que era aqui nos barris... Eu esqueci o nome do edifício qual era... Bom, e ele mesmo pagava as carteiras pleiteando um lugar no Carnaval, pra poder fazer ainda o teste do sindicato com os jurados pra ver se ficava entre as vinte bandas aprovadas no Carnaval. 94 O baixista Luciano Calazans demonstra, como outros músicos entrevistados, um sentimento de desaprovação em relação a algumas práticas de sua instituição representativa. O sindicato, aos olhos dos músicos, não servia para muita cosia. Percebe-se que as práticas daquela instituição não se apresentavam como uma ferramenta representativa das forças sociais daqueles trabalhadores. Luciano continuou a nossa conversa dizendo que: Os carnavais de bairro eram promovidos pela prefeitura em parceria com o sindicato dos músicos; eram classificadas vinte bandas, sendo que dessas vinte bandas três, o primeiro, o segundo e o terceiro lugar tinham direito de tocar num trio elétrico da prefeitura. O restante era destinado para cada bairro, São Caetano, Fazenda Grande, Itapoan, Cajazeiras, liberdade etc. O músico que tava tocando pelo sindicato dos músicos era aquele músico que tava à margem mesmo... O músico de renome na época tocava no... Embora muitos músicos de renome na época fossem fazer o teste do sindicato, para completar o orçamento até... Porque não existia essa indústria do axé-music na música baiana... Naquele tempo o máximo que pudéssemos reforçar o orçamento, tocar pelo sindicato e tocar com artistas de trio... Eu não vou citar nomes de companheiros que já tocavam naquela época com artistas, mas que estavam lá no sindicato fazendo teste... Isso criava até um certo atrito, dentro do próprio sindicato porque muitos achavam que eles não tinham direito de tocar com tal pessoa... Por exemplo: Ah... Você tá tocando com Sarajane, Sarajane vai tocar no trio elétrico, o que é que você tá fazendo aqui, você não precisa tá aqui no sindicato... Então, esse tipo de atrito era bem comum nas reuniões do sindicato, de até agressão física. Pra ser bem direto, a plebe tocava nos bairros. Havia claramente diferenças, em níveis diversos, entre os músicos que atuavam nos carnavais de bairro e os músicos que atuavam no circuito que passou a ser hegemônico. No circuito Campo Grande, bem como o Barra/Ondina, havia um grande contingente de classe-média alta. A partir da segunda metade da década de 1980, os blocos de trio começaram a transferir suas sedes para bairros de classemédia alta, acompanhando o processo de segregação que emergia no Carnaval de Salvador. O economista e pesquisador Paulo Miguez de Oliveira realizou uma pesquisa sobre o Carnaval de Salvador. O título do trabalho é Carnaval Baiano: as tramas da alegria e a teia de negócios. Ele diz o seguinte em seu trabalho: [...] o Internacionais e também o Corujas, mais particularmente o primeiro, são dignos de nota pelo conjunto de transformações que experimentaram [...] Em meados dos anos 80, em consonância com a emergência dos blocos de trio, essas duas organizações iniciaram um processo radical de mudanças no seu perfil, no sentido da sua transformação em blocos de trio, e na direção do público de classemédia alta: suas orquestras, com instrumentos de percussão e sopro, 95 foram substituídas por trios elétricos privados; as fantasias cederam lugar aos abadás; a faixa etária dos associados foi reduzida; as mulheres passaram a ser admitidas como sócios; as sedes, originalmente localizadas em bairros de classe média-baixa [...], foram transferidas para a Barra e Ondina, bairros de classe médiaalta [...] (OLIVEIRA, 1996, 120-121). É bem verdade que os carnavais de bairro não dispunham da mesma estrutura que foi se desenhando no circuito hegemônico, isto é, o circuito utilizado pelo Estado nas propagandas publicitárias a fim de atrair turistas para o Carnaval. A força dos blocos de trio mais seus consumidores principais, a classe-média alta abastada, acrescentaremos ainda os diversos tipos de empresas financiadoras do Carnaval, tudo isso criou, engendrou um status quo àqueles circuitos que vieram a ser chamados de ‘’principais’’. Dada a importância — material e simbólica— que o percurso Barra/Ondina, por exemplo, foi adquirindo ao longo das transformações pelas quais passou o Carnaval, fica a impressão de que os carnavais de bairro entravam na programação oficial da prefeitura como uma espécie de ‘’penduricalhos’’. Conversando com o baterista Ivan Huol sobre os carnavais de bairro, escutamos o seguinte relato: Olha, o trabalho no bairro era sinônimo de risco à integridade física. A estrutura de trabalho era precaríssima... Mas a gente tem que entender que Salvador era ainda mais terceiro mundo... E o acesso à tecnologia em Salvador ainda era muito precário. Quando aparecia alguém que fazia parte do contexto eu acho que o Carnaval de bairro era até justificável, mas eu nunca vi isso, eu só vi falta de policiamento uma época... Eu soube de uma história do meu amigo Bruno saxofonista, que ele disse que foi tocar num bairro desses com alguém, eu não lembro quem era... O som era horrível, a banda era horrível, e ele na época não tocava nada de Carnaval... Aí ele disse que o povão começou a entrar embaixo do palco e dava murro nos compensados... Ele disse que escutou um barulho, e o cara tentando fazer o som [rs]. Este relato aponta, em certa medida, a natureza dos carnavais de bairro. Naquele processo de construção de hegemonia por parte dos grupos dominantes e dirigentes, o projeto do Carnaval de bairro aparece como uma concessão, um favor que era prestado aos grupos subalternos. A atividade econômica central se concentrava mesmo nos circuitos Campo Grande e Barra/Ondina. Esta situação política e econômica específica se aproxima de uma reflexão importante feita por Antônio Gramsci sobre as diversas nuances do processo que leva à construção de uma hegemonia. Ele diz que 96 ‘’ O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica’’ (GRAMSCI, 2002, p. 48). Alguns dos impasses gerados entre os músicos que se apresentavam através dos carnavais de bairro e o poder público têm relação com um fenômeno que se apresentou como conseqüência direta do processo de mercantilização do Carnaval: o número de ‘’artistas’’ de fora, que não eram oriundos da cena baiana, mas que eram contratados pelo poder público a ‘’peso de ouro’’. Aqueles artistas famosos eram pagos, infere-se, para ‘’enfeitar’’ a festa, para ajudar na estratégia de atração de grupos de turistas etc. Por conta desse favorecimento, entre outras coisas, os espaços de trabalho dos carnavais de bairro acabavam sendo ‘’sucateados’’, recebendo menos recursos. No Carnaval de 1994, por exemplo, os músicos alegaram que haviam sido preteridos pelo poder público ‘’em vista das atrações de fora que a prefeitura trará para o Carnaval de Salvador – gente como Jimmy Cliff, Tim Maia e Elba Ramalho, por exemplo [...]’’(TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). O que começou a ocorrer na dinâmica carnavalesca — insistimos: reverberações do modelo que estava sendo posto— dizia respeito ao financiamento, praticado pela prefeitura, de atrações que gozavam de ampla visibilidade no contexto nacional e, em certa medida, internacional. Atrações que vendiam uma quantidade significativa de discos, em resumo, atrações ‘’consolidadas pelo mercado’’. Artistas como Morais Moreira, Margareth Menezes, dentre outros, custavam aos cofres públicos US$ 150 mil (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 27 e 28/12/1993). Os carnavais de bairro eram vistos pelos músicos sob diversos pontos de vista. Mas algo fica evidente: o chamado ‘’circuito principal’’ tornava-se cada vez mais elitista. Num diálogo com o músico Gerson Silva, num momento em que falávamos dos critérios utilizados pelo sindicato para realizar a distribuição das bandas nos bairros, ele nos deu o seguinte testemunho: 97 Havia inscrições das bandas e músicos sindicalizados e que estivessem com seus pagamentos em dia e se marcava os dias das apresentações pra se ter as eliminatórias e saber quais as bandas que iriam tocar nos vários palcos que tinham em quase todos os bairros em Salvador. Uma forma até de descentralizar o carnaval e levar qualidade musical pra quem não tinha condições de sair de seus bairros pra irem brincar o carnaval nos conhecidos Blocos, geralmente elitistas e muito caros (Gerson). De fato, a maior parte dos músicos entendia que os carnavais de bairro serviam como uma ‘’alternativa’’ à população espoliada, às pessoas que recebiam o título de ‘’folião pipoca’’, mas que efetivamente quando tomavam a liberdade de participar daquele Carnaval do circuito hegemônico, eram obrigadas, via de regra, a dividir o espaço com o cheiro forte de urina e cerveja, cheiro oriundo dos becos das ruas nas quais a festa ocorria. Naquele contexto de segregação estimulada e intensificada pelo poder público, os fins a que se propuseram os carnavais de bairro surgiam com uma ‘’aura’’ um tanto ambígua. Decerto, aqueles carnavais promoviam a descentralização, dado que havia um centro carnavalesco privilegiado e elitista. Agora, ficam as perguntas: o intuito de descentralizar tinha relação com a democratização da festa, fazendo com que as pessoas daqueles bairros tivessem atrações e infra-estrutura de qualidade, sem precisar sair do entorno de seus respectivos bairros? Ou aqueles carnavais de bairro serviam para reiterar as diferenças entre os circuitos, para a ‘’gente feia’’ dos bairros não se imiscuir com a ‘’gente bonita’’ dos blocos de trio do circuito hegemônico? É sobre essas transformações ocorridas no Carnaval que discutiremos no próximo capítulo. No capítulo que sucede, buscamos apresentar, entre outras coisas, o processo de mercantilização do Carnaval, certas lógicas hegemônicas impostas tanto pelo Estado como pelos agentes privados. Também trazemos à luz alguns discursos sobre a profissionalização do Carnaval. 98 3 - A AXÉ-MUSIC E SEUS DESDOBRAMENTOS O dinheiro não é só um objeto da paixão de enriquecer; ele é o próprio objeto. Essencialmente, essa paixão é a auri sacra fames — a maldita sede do ouro—. A paixão de enriquecer, ao contrário da paixão pelas riquezas naturais particulares ou pelos valores de uso tais como o vestuário, as jóias, os rebanhos, etc., só é possível a partir do momento em que a riqueza geral se individualiza numa coisa particular e pode, assim, ser retida sob a forma de uma mercadoria isolada. O dinheiro surge, portanto, como sendo o objeto e a fonte da paixão de enriquecer. No fundo, é o valor de troca, o seu crescimento, que se torna um fim em si. A avareza mantém o tesouro prisioneiro, não permitindo ao dinheiro tornar-se meio de circulação, mas a sede do ouro mantém a alma de dinheiro do tesouro, a constante atração que exerce sobre ele a circulação (Karl Marx). Buscamos perceber neste capítulo, através do processo de mercantilização do Carnaval, certas forças hegemônicas impostas tanto pelo Estado como pelos agentes privados; e até que ponto os músicos consentiam e resistiam àquelas forças. Além da busca mencionada, há também o objetivo de empreender uma análise que visa à obtenção de uma compreensão satisfatória sobre o discurso da profissionalização do Carnaval. Destacamos a importância de pensar o discurso da profissionalização do Carnaval ao lado da noção de divisão do trabalho. A discussão sobre os meios de comunicação é retomada, bem como a relação destes com as visões e opiniões difundidas sobre os músicos, as bandas, em suma, sobre os espaços carnavalescos. Há ainda neste capítulo algumas reflexões sobre a axé-music. Pode-se dizer que este é um dos pontos culminantes do trabalho. Abordamos alguns dos diversos desdobramentos daquele fenômeno ao longo da década de 1990. No primeiro momento, tentou-se destacar implicações gerais sobre o fenômeno. Em seguida, trazemos os músicos para o centro do diálogo, entendendo a axé-music a partir da vivência deles. Aparecem aqui, questões relacionadas ao trabalho dos músicos nas gravadoras. Há uma série de situações a partir das quais os músicos construíram, naquele momento específico, o seu mundo vivido, as suas experiências sociais na produção da chamada ‘’música popular’’ da Bahia. 99 3.1 A festa-negócio Na Bahia, Estado do Brasil conhecido como um dos principais ‘’pólos irradiadores da tradição carnavalesca’’, a festa foi adquirindo, ao longo do século XX, contornos diferentes daqueles que, segundo cremos, estariam ligados a um modo de carnavalizar o mundo calcado, em grande medida, nas ‘’transgressões sociais’’, na negação do ‘’mundo oficial’’. Tais manifestações que, ressalvadas as pressões e tensões sociais que sempre acompanharam o Carnaval, a despeito disto, ainda mantinham uma proximidade com o tempo vivido dos sujeitos. Em seu trabalho A africanização do Carnaval de Salvador, Bahia: a re-criação do espaço carnavalesco, o historiador Raphael Rodrigues Vieira Filho afirma que Entendemos o carnaval não apenas como um momento onde todos os valores são invertidos e tudo é possível graças ao mecanismo de inversão do cotidiano. Para nós ele, transcende ao desvelar toda a correlação de forças existentes na sociedade. Sendo assim, as manifestações carnavalescas podem, e devem, ser entendidas como expressão das condições de vida do seu grupo fomentador, no caso os afro-brasileiros (VIEIRA FILHO, 1995, p. 2-3). Os negros em Salvador, bem como os blocos afro, embora tivessem mostrado toda a sua força cultural quando do renascimento de suas organizações carnavalescas na segunda metade da década de 1970, foram subordinados, paulatinamente, pela força hegemônica dos blocos de trio. De modo que a multiplicidade das manifestações negras, historica e culturalmente ricas, foram perdendo espaço. Dialogando ainda com o historiador Raphael Rodrigues Vieira Filho, ele argumenta que [...] até o ano de 1930, [...] observamos uma série de descrições de organizações negras - clubes, blocos e cordões - oferecendo um rico material [...], mostrando-nos a multiplicidade das formas de manifestação dos negros, no carnaval de Salvador, muito embora apresentassem alguns elementos comuns (VIEIRA FILHO, 1995, p. 98). Um exemplo, entre outros, que aponta alguns aspectos daquela mudança que vinha ocorrendo nas chamadas festas populares de Salvador, entre elas o Carnaval, é o das ‘’barracas de som’’. Um leitor de um jornal da época, disse que ‘’os barraqueiros, à medida que deixaram de ser estabelecimentos pequenos e de família, se transformaram em grandes conglomerados [...], instalaram nas barracas estridentes serviços de som’’(A TARDE, 03/01/1981). 100 Evidentemente que trouxemos à baila, no capítulo anterior, algumas evidências que indicavam mudanças fundamentais no Carnaval de Salvador. As estruturas das barracas que atendiam o público consumidor que gravitava os espaços carnavalescos da cidade haviam mudado significativamente. A festa foi se estruturando, paulatinamente, entorno da classe-média abastada baiana. [...] ‘’as camadas branco-mestiças de classe média e alta se organizavam em blocos carnavalescos chamados blocos de trio elétrico’’ (GUERREIRO, 2000, p. 121). Mas a espetacularização do Carnaval da Bahia, a despeito de suas especificidades, acompanhou uma ‘’tendência geral’’ pela qual passou diversas festas populares no Brasil. O historiador Peter Burke expressa melhor o que estamos querendo dizer, em parte. Ao se referir aos estágios — participação, reforma, afastamento e redescoberta— pelos quais o Carnaval passou, ele diz que O Brasil, como outras partes do Novo Mundo, atravessa hoje o quarto processo, o da redescoberta da cultura popular, em particular a cultura afro-americana, pelas elites, incluindo a ‘re-africanização’ do Carnaval. Também ocorreu — pelo menos no Recife— um retorno da classe média ao Carnaval de rua, que se retirara para o mundo fechado dos clubes e hotéis. Desnecessário dizer, esse quarto estágio se relaciona com a comercialização de uma festa que se tornou um grande negócio, e em que a televisão e gravadoras, assim como agências de turismo — para não mencionar os proprietários de estabelecimentos de jogo e traficantes de droga—, passaram a envolver-se profundamente (BURKE, 2006, p.230). Decerto, esta ‘’redescoberta’’, a que o historiador faz menção, trouxe consigo — e continua trazendo— um quadro diferente para a chamada cultura popular na Bahia. O modo através do qual o Carnaval surge depois de 1950, mais precisamente nas décadas de 1970 e 1980, está totalmente atrelado à idéia de uma ‘’festanegócio’’ ou ‘’festa-mercadoria’’. O Carnaval de Salvador sofreu uma grande mudança a partir da criação do trio elétrico. Além das mudanças concernentes ao próprio modo de se ‘’brincar o Carnaval’’, houve também a transformação da festa e da sua lógica cultural específica em ‘’coisa’’, em um produto, em uma mercadoria. ‘’No final dos anos 80 [...] cerca de quarenta blocos com trios particulares se estruturaram como empresas e privatizaram o espaço da rua, através de cordas que isolavam os blocos de trio [...]’’ (GUERREIRO, 2000, p. 126). 101 Depois de 1950, com o trio elétrico já inserido na dinâmica carnavalesca, passa a haver interesse de determinados setores da sociedade civil baiana na construção da festa. Conta Osmar Macedo que ‘’em 1952, um industrial daqui da Bahia, chamado Miguel Vita, percebeu que esse negócio de trio elétrico tinha grandes possibilidades promocionais. [...] Foi a primeira vez que recebemos auxílio’’ (GÓES, 2000, p. 62). Ao longo das décadas de 1950 e 1960, podem-se observar interesses ainda ‘’tímidos’’ do ponto de vista da inserção do poder público na organização políticoadministrativa do Carnaval, como também dos patrocínios privados nos rumos da festa. ‘’A organização e realização do Carnaval de Salvador caracterizava-se tradicionalmente pelo improviso [...], a prática comum era a de apenas preocupar-se com a sua realização às vésperas do período momesco [...]’’ (HEBER, 1999, p. 182). Ao longo da década de 1970, começam a se desenrolar complexas transformações na dinâmica carnavalesca. Diversas bandas aparecem na cena carnavalesca; surgem vários blocos, com características diferentes. O trio elétrico torna-se um elemento central no negócio carnavalesco. A nova divisão do trabalho redistribui a realidade da festa. A partir da década de 1980, na segunda metade desta década, o caráter empresarial dos blocos, o processo de transformação das bandas em verdadeiros ‘’conglomerados empresariais’’, o crescimento vertiginoso de tipos diversos de produtoras de eventos, tudo isso apontava para a consolidação de uma espécie de ‘’festa-mercadoria’’. ‘’Os blocos carnavalescos passam a estender as atividades de suas respectivas bandas e se transformam em produtoras com sedes próprias e expediente corrente, criando empregos diretos e indiretos durante todo o ano’’ (GUERREIRO, 2000, p. 153). Em fins da década de 1980 e início da década de 1990, o Carnaval de Salvador se consolida em torno das políticas ligadas ao movimento turístico14 da cidade. Os blocos carnavalescos, bandas e músicos passam a se organizar – sobretudo neste período – em torno das mídias locais e nacionais. 14 A partir da fundação da Bahiatursa, em 1968, o turismo já se apresenta como uma das prioridades do planejamento estadual (MOURA, 2001, p. 169). Contudo, o Carnaval como moeda de troca entre os agentes privados, como uma mercadoria turística atraente para os organismos privados, este Carnaval começa a ganhar corpo na segunda metade da década de 1980, como já foi dito anteriormente. 102 Grupos de músicos se transformam, de modo extremamente acentuado, em vendedores de sua força de trabalho a outros músicos, passando a haver, nesse momento, alguns ‘’músicos-artistas-empresários’’ — trata-se de um número pequeno, se comparado à totalidade dos músicos profissionais existentes no período — ligados às empresas que buscavam no Carnaval de Salvador o máximo de lucro possível com o evento. Para o músico Ivan Huol ‘’[...] alguns músicos que viraram donos de banda exploravam os amigos igual aos empresários, eu olhava pro cara e pensava: sujeito sem nenhuma consciência, né rapaz [...]’’. Essas empresas, por sua vez, começaram a se associar com o Poder Público no sentido de estabelecer com este, entre outras coisas, algumas ‘’estratégias’’, alguns critérios de negociação da festa. A partir da primeira metade da década de 1980, é possível observar tais tentativas, de forma explícita: O Carnaval do Merchandising. A estimativa inicial da ‘’Comissão Executiva do Carnaval’’ é de que serão gastos CR$ 650 milhões na organização e premiação do evento. Como todo mundo sabe, a Prefeitura de Salvador enfrenta uma crônica crise financeira e não tem recursos para bancar, sozinha, esses custos. Eles, portanto, serão divididos com a Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo, e empresas privadas. Até agora ninguém sabe exatamente quanto cada órgão oficial desembolsará. Vai depender, da parte que será absorvida pela iniciativa privada. Ou seja, o êxito das vendas do produto carnaval. O produto é excelente. Durante os seis dias de festejos, milhões de pessoas circularão pelas ruas da cidade e assistirão, pela TV, a um festival de marcas, slogans e receitas diversas. As empresas que comercializam e produzem bebidas e alimentos já estão na ‘’guerra’’, reservando os espaços (A TARDE, 3/1/1984). Naquele momento, o privado ganhou uma importância significativa. Os agentes privados aprofundaram a tensão que, de um modo ou de outro, acompanhava a dinâmica carnavalesca. A realidade de mercado, de negócio, esboçava-se categoricamente. O valor de troca do Carnaval foi exposto na imprensa sem problema algum. As negociações sobre a festa, a chamada para os grupos sociais capazes de adquirir as vantagens daquele Carnaval-produto, o detalhamento das possibilidades de lucro, tudo isto se deu abertamente em alguns veículos de comunicação. O discurso da profissionalização entrou ‘’na ordem do dia’’. Os diversos grupos sociais que trabalhavam no Carnaval, bem como nas chamadas festas populares, tinham de se profissionalizar. Aquele discurso da profissionalização coincide com a criação de certos 103 órgãos institucionais voltados inteiramente para o estímulo e promoção do turismo no Estado. Sobre o papel da Bahiatursa, o que ela representava na década de 1980, vejamos a opinião de Antônio Risério numa entrevista concedida ao jornal A Tarde: Em ‘’Carnaval Ijexá’’, você critica o comportamento da Bahiatursa e da Fundação Cultural enquanto instituições destinadas a promover os eventos culturais. Como é que elas vêm agindo? Você imagina todas as manifestações culturais da Bahia. A soma delas forma o que a gente pode chamar de espaço cultural baiano. O governo loteou esse espaço entre a Bahiatursa e a Fundação Cultural. A primeira, a gente pode chamar de empresa ideológica, porque ao mesmo tempo ela está ligada ao aparelho econômico do estado, captando recursos, ativando a vida comercial de Salvador, gerando novos empregos etc; e ao seu aparelho ideológico, porque pelo simples fato de lidar com turismo, tem que promover, forjar uma imagem idealizada da Bahia. A Fundação Cultural, por sua vez, é o órgão onde se materializa concretamente a ideologia cultural da elite. Nessa repartição cultural, coube à Bahiatursa se incumbir das formas culturais que ela chama de folclóricas e populares. Essa é o que eu chamo de faixa lucrativa da cultura. Do artesanato de Maragojipe aos capoeristas do Marciel, tudo é parte da produção cultural baiana que dá lucro, que atrai turistas. Curiosamente, esse lucro é dado exatamente pela parte mais miseravelmente pobre da sociedade baiana que gera esse lucro, mas não tem nenhum. É tão grande esse lucro que com uma parte pequena dele o governo promove a cultura da elite, através da Fundação Cultural, pois a cultura da elite é deficitária (A TARDE, 21/1/1982). Para Antônio Risério, aqueles órgãos institucionais absorviam a produção cultural subalterna, e ‘’devolviam’’ aquela produção para o organismo coletivo na forma-mercadoria. O negro capoeirista de fato, imerso na força do costume, esse ‘’núcleo’’ da cultura tradicional, passava a fazer parte, tomando a linha de raciocínio de Risério, de um conjunto de objetos culturais que eram passíveis de serem utilizados como mercadoria atrativa, como uma importante moeda de troca geradora de lucros – lucros estes que não ficavam com os verdadeiros agentes produtores. Sem dúvida, a existência do ‘’loteamento cultural’’ sobre o qual Antônio Risério fazia menção, tinha relação com aquele processo de mercantilização que se imiscuía nas diversas produções culturais populares da Bahia, e o Carnaval não ficou de fora. A força dos blocos de trio, com sua perspectiva mercadológica, foi crescendo vertiginosamente, a ponto de ‘’invadir’’ festas de largo em Salvador cujo conteúdo se fazia fundamentalmente religioso. Vejamos um comentário enviado, por Herculano Quitanilha, um leitor de um jornal da época: 104 Carnaval e festa de Largo. ‘’Mais uma vez, apesar de insistentes apelos inclusive de D.Avelar Brandão Vilela, algumas entidades carnavalescas se fizeram presentes na tradicional lavagem do Bonfim que contou até com trio elétrico. É preciso dar um basta nesse abuso pois estão querendo transformar Salvador em carnavalópolis, com a descaracterização de nossas festas populares e religiosas. Se não forem adotadas providências, dentro de pouco tempo, todas as festas vão virar carnaval e não será surpresa se esses mesmos blocos e trios elétricos que se fizeram presentes no Bonfim, quiserem, também, participar da procissão de Sexta-feira da Paixão, das quadrilhas juninas, do 2 de julho e do desfile de 7 de setembro. A Bahiatursa e a Prefeitura devem encontrar, em conjunto, uma solução para o problema no sentido de preservar festas religiosas como a do Bonfim que merece mais respeito. Seria o caso, talvez, de se estudar a programação de novos eventos essencialmente carnavalescos em troca da manutenção da autenticidade de nossas festas religiosas (A TARDE, 25/1/1982). Herculano Quitanilha denunciou, com toda veemência de um homem cujos valores religiosos se faziam presentes em sua vida, a investida dos blocos de trio nas manifestações ‘’populares-religiosas’’. Assim, mostrou-nos o desenvolvimento e expansão dos blocos de trio, um aspecto relevante, se levarmos em consideração os tipos de conflitos e mudanças específicos que começaram a surgir naquele período momesco. Aqueles conflitos pré-carnavalescos eram uma parte de um todo, de um processo: o processo de mercantilização do Carnaval. Aquele processo de mercantilização foi estimulado, sem dúvida, pelos poderes públicos em nível estadual e municipal. Faz-se necessário tomarmos nota de mais um elemento importante naquele movimento histórico. Para percebermos melhor tal processo, o relatório do Carnaval de 1984, indica de forma clara, a intencionalidade dos governos estadual e municipal de transformar o Carnaval em um produto, como resposta a uma suposta crise que assolava o município: Devido ao esvaziamento financeiro e político por que vem atravessando o município, vítima da centralização excessiva por parte do Estado e da União, delegou-se à BAHIATURSA, como órgão oficial de turismo do Estado, a responsabilidade de responder pelo evento, visto agora como um produto que pela sua grandeza, oferece enorme potencialidade como gerador de recursos. (BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p.54) Mais uma vez, para assegurarmos algumas das nossas afirmações no que dizem respeito à mercantilização do Carnaval, argumentando que os ‘’contornos precisos’’ da festa-mercadoria estão situados entre as décadas de 1980/90, citamos 105 o trabalho do geógrafo Clímaco Dias. Ele afirma que as providências para a mercantilização e privatização do Carnaval foram, sim, devidamente tomadas, como podem ser observadas no Relatório do Carnaval de 1984, descrito a seguir: A venda de espaços para a publicidade no eixo Praça da Sé – Campo Grande, do Porto ao Farol da Barra e nos palanques das arquibancadas é talvez a única fonte de renda que a prefeitura/BAHIATURSA podem obter para fazer frente às despesas de decoração e organização do carnaval em Salvador. Sendo esta a primeira vez que se propõe tal empreendimento. [grifo nosso] (BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p. 113) Clímaco Dias argumenta ainda em seu trabalho que, [...] para o carnaval de 1985, dentre algumas das medidas que visaram à profissionalização, foi contratada a empresa de publicidade D&E como responsável por toda a comercialização da festa. Mas, os resultados não foram os esperados pelo poder público municipal, que além de condenar a ineficiência da empresa, criticava duramente a Federação dos Clubes Carnavalescos de Salvador e o Sindicato dos Músicos da Bahia por criarem “problemas” à implantação do modelo proposto’’ (DIAS, 2002, p. 113-114 ). O geógrafo cita O Relatório do Carnaval — sendo desta vez o referente ao ano de 1985 — para explicitar a posição do poder público ante o ocorrido: A empresa de publicidade responsável pela comercialização do evento, de longe, decepcionou e não cumpriu os prazos e determinações, a federação dos clubes carnavalescos é totalmente desestruturada, e o sindicato dos Músicos do Estado da Bahia, que foi chamado a colaborar de forma a mais democrática possível, criou problemas e forneceu um repertório de baixa qualidade e mau gosto. (BAHIATURSA apud Dias, 2002, p.114 ) Mais adiante, o mesmo relatório é absolutamente enfático em relação às considerações do município sobre os serviços da agência de publicidade: “[...] Lamentavelmente as mortalhas tiveram que sair com a arte final da D&E [...]” (BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p.114) Nove anos depois da primeira tentativa de venda dos espaços públicos da cidade, a prefeita Lídice da Mata, viaja para São Paulo, a fim de colocar em prática o que ela chamou de Plano de Comercialização do Carnaval: Prefeita mostra em SP plano para patrocínio do Carnaval. Publicitários, anunciantes e grandes empresários conhecerão hoje, em São Paulo, através da própria Prefeita Lídice da Mata, as vantagens comerciais que poderão obter se investirem no patrocínio do Carnaval de Salvador, definido como ‘’a maior festa popular do planeta’’. Para sensibilizar os possíveis clientes, a Prefeita vai mostrar que a economia da cidade movimenta mais de 100 milhões 106 de dólares durante o carnaval. Neste período, Salvador se transforma numa passarela de mais de 20 quilômetros de ruas e avenidas apenas no chamado Circuito Principal — do Pelourinho até Ondina —, onde irão acontecer quase 500 shows, mobilizando centenas de músicos e artistas. Além disso, há mais de 20 praças ou sítios também beneficiados com a programação carnavalesca oficial e outros locais isolados onde acontecem manifestações populares espontâneas. Aqui vemos a que ponto havia chegado as relações sociais, políticas e econômicas que permeavam o Carnaval. Se, de uma maneira ou de outra, os agentes privados, em diversos momentos da história do Carnaval baiano, tenderam a barganhar no período momesmo, naquele início da década de 1990, não se tratava apenas de barganha. Era a própria organização da produção carnavalesca que se voltava para a esfera privada. Aquele modelo, uma vez criado e reiterado pelos agentes públicos, imprimiu no Carnaval características próprias de um ‘’produto’’. E aquele ‘’produto’’ passou a ser conformado como uma espécie de propriedade ‘’fundamental’’ para os agentes particulares. Os agentes particulares passavam a ter o poder de dispor daquele ‘’produto-Carnaval’’. A matéria citada, explicitou ainda o seguinte: No total o Carnaval se espalha por uma área de 200 quilômetros quadrados, ocupada durante 120 horas contínuas por uma multidão de 1 milhão e 500 mil foliões, dos quais pelo menos um terço de turistas. Todos esses dados estão contidos no Plano de Comercialização do Carnaval, que a prefeita apresentará no Restaurante São Paulo Grill – considerado um dos ‘’points’’ do empresariado paulistano – juntamente com as bases para a sua licitação pública nacional. É o primeiro projeto de comercialização envolvendo direitos e concessões, já feito por uma administração municipal, para tentar obter recursos que possam reinvestidos no próprio Carnaval. O lançamento será feito durante um almoço no São Paulo Grill para um grupo selecionado de dirigentes de grandes agências de publicidade do País, anunciantes em potencial e editores de negócios e finanças dos principais jornais do País. Para o Secretário Domingos Leonelli, de Comunicação Social, Presidente da Comissão Especial do Carnaval, o lançamento do plano em âmbito nacional decorre das dificuldades financeiras enfrentadas pela prefeitura [...] (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 15/12/1993). As relações sociais produzidas e reproduzidas na dinâmica carnavalesca da cidade, a partir da perspectiva mercadológica, são evidentes nas décadas de 1980 e 1990. A carnavalização do mundo passou a ser subsidiada, em grande medida, por patrocínios privados. O Carnaval passou a ser mais uma forma de entretenimento 107 comercial realizado por ‘’artistas’’ profissionais contratados por vários tipos de empresários particulares. E os empresários ligados ao ramo da produção de imagens, sobretudo o das grandes empresas do audiovisual, passaram a produzir — e cristalizar— uma idéia da festa totalmente ligada à lógica do consumo, isto é, como sendo um objeto passível de troca entre os agentes particulares. A rigor, aquele modelo do Carnaval-entretenimento trouxe consigo novas formas de linguagens, tipos novos de signos. Nos carnavais das décadas de 1980 e 1990 é possível notar, sem muito esforço, meios de produção e difusão de linguagens até então desconhecidos, ou melhor, ausentes nos espaços carnavalescos de outrora. A produção carnavalesca da cidade, sob o prisma do mercado, criou ‘’novos signos’’ — reinterpretou outros já existentes naquele momento— e suplantou os ‘’ineficazes’’ aos seus objetivos. Numa matéria feita por um jornal da Bahia em1982, há uma descrição dos carnavais antigos. A matéria trazia, além de um olhar sobre o Carnaval da Bahia, uma entrevista com um dos criadores do trio elétrico, Osmar Macedo. Vejamos aquele breve histórico: Até 1950, todo mundo ia às ruas para ver e aplaudir o que se chamava de ’Carnaval da Bahia’. Era o ‘corso’, uma fila de automóveis abertos com as famílias dos negociantes abastados da praça, segundo o professor Cid Teixeira. Todos iam sentados no cajado dos carros ricamente fantasiados jogando confetes, serpentinas e lança-perfume. Nos passeios das avenidas, as famílias que não possuíam carros, postavam-se em cadeiras e bancas de todos os tipos, amarravam umas nas outras e também nos postes e árvores, com correntes, cordas e cadeados, garantindo assim os seus lugares para apreciarem os desfiles dos grandes clubes, blocos e mascarados. Os mais famosos eram: Fantoches da Euterpe, Cruz Vermelha e Inocentes em Progresso. Estes clubes, ricamente ornamentados e iluminados, com suas rainhas, princesas e todo séquito eram precedidos pelos arautos com seus clarins anunciando o que vinha atrás. Os motivos e as alegorias eram ‘segredos de estado’, somente o restrito grupo de diretores e artífices tinha conhecimento do que seria apresentado. Os adeptos e torcedores ficavam nas avenidas jogando serpentinas, confetes e aplaudindo entusiasticamente os seus preferidos [...] (A TARDE, 07/1/1982). Falar de linguagens é o mesmo que falar de signos. Afirmamos anteriormente que a dinâmica carnavalesca havia mudado. Os sinais evidentes daquela mudança foram denunciados pelo próprio Osmar Macedo. A matéria citada encontra-se situada justamente no período de rápida transformação pela qual o Carnaval estava 108 passando. As novas linguagens — signos— que haviam começado a ‘’mediar’’ o Carnaval foram elencadas por Osmar: O número de blocos, com ou sem trios, cresce todo ano, bem como os afoxés, batucadas, escolas de samba. Todos querem se exibir e têm este direito, diz Osmar. As autoridades fazem passarelas com arquibancadas, onde fica uma minoria vendo e aplaudindo as exibições das entidades carnavalescas, sob uma concentração de jornalistas, fotógrafos, câmeras de tevê etc., para julgarem e dar prêmios e classificações [...] O Carnaval pára, estaciona. Na terçafeira do Carnaval, o Trio Elétrico ‘Dodô e Osmar’ ficou parado no Campo Grande durante três horas enquanto 600 mil foliões aguardavam nas avenidas. Há outra passarela na Praça da Sé que provoca o mesmo congestionamento. Dificilmente um trio ou qualquer outra entidade completa um único circuito durante um dia de Carnaval. [...] As passarelas estão aumentando em número e tamanho. Brevemente teremos só uma imensa passarela e todo mundo parado vendo e aplaudindo [...] Se as autoridades que controlam o Carnaval, — no caso, principalmente a Bahiatursa—, querem manter a tradição, a ‘loucura’, a participação popular, a fórmula é simples: acabar com as passarelas, ou pelo menos, com as exibições nas passarelas [...] Para que prêmios? Para que classificações? O mais gratificante é sentir que se está contribuindo para a diversão do povo (A TARDE, 07/1/1982). A linguagem publicitária que começava a se desdobrar na dinâmica carnavalesca, a produção e intenção de determinados tipos de fotografias, o enquadramento feito pelas câmeras de TV etc., aquilo tudo apontava para a produção do espetáculo, para a construção do que chamamos aqui de ‘’estrutura fâmica’’. Raymond Williams afirmou em seu livro Marxismo e Literatura que O verdadeiro elemento significativo da linguagem deve, desde o início, ter uma capacidade diferente: tornar-se um signo interior, parte de uma consciência ativa e prática. Assim, além de sua existência social e material entre pessoas reais, o signo é também parte de uma consciência constituída verbalmente, que permite aos indivíduos utilizá-lo por iniciativa própria, seja em atos de comunicação social, seja em práticas que, não sendo manifestamente sociais, podem ser interpretadas como pessoais ou privadas (WILLIAMS, 1979, p. 46). Buscando perceber os mecanismos — filmes-documentários, TV, rádio etc. — de produção e difusão de signos utilizados pela racionalidade industrial do último quartel do século XX, relacionando-os com os signos produzidos pelos sujeitos num processo histórico mais amplo, tentou-se apreender a relação que a cultura popular carnavalesca, e com ela a noção de tradição, manteve com aqueles tipos específicos de linguagens. Não é demais lembrar que o Carnaval de Salvador continuou sendo, naquele período, uma forma importante de fazer festa; mas também passou a ser uma forma 109 importante de fazer lucros. Observem o que Fernando Bulhosa, um carnavalesco conhecido na década de 1990, argumenta: O Carnaval chegou mas a prefeitura não sacou. [...] Em Salvador, os publicitários, que se dizem os melhores do mundo, não enxergam que a melhor mídia é um trio elétrico visto por mais de um milhão de pessoas, sem contar com as fotografias divulgadas nos jornais. E o que acontece é todo mundo usando tais imagens gratuitamente, o ano todo (A TARDE, 21/1/1990). A declaração do músico baiano Armadinho, filho de um dos fundadores do trio elétrico, indica a base — a tirania do dinheiro— sobre a qual o Carnaval de Salvador veio — vem— sendo construído: [...] Tem que ter uma organização, o Carnaval poderia ser pensado mais democraticamente, levando em consideração os trios tradicionais e os blocos afro. Pensar como um todo, senão a Bahia não vai ter mais manifestações culturais em seu Carnaval. Elas não podem deixar de existir em função da manipulação, do dinheiro (A TARDE, 30/1/2007). Tendo estas questões em mente, isto é, a dinâmica do ‘’Carnavalespetáculo’’, a ‘’estrutura fâmica’’ como condição deste, a racionalidade industrial empregada no Carnaval etc., voltemos para a reflexão sobre os signos, sobre suas possibilidades e limites. Vejamos, mais uma vez, o que Raymond Williams tem a nos dizer: O que se tem realmente que dizer é que o signo é social, mas que em sua qualidade mesma como signo é capaz tanto de ser internalizado – realmente, tem de ser internalizado, para que seja um signo de relação comunicativa entre pessoas reais, usando inicialmente apenas seus próprios poderes físicos para expressá-la – como de ser permanentemente disponível, de maneiras sociais e materiais, na comunicação manifesta (WILLIAMS, 1979, p. 46). Williams diz que ‘’caracteristicamente ele — o signo— não tem, como um sinal, um significado fixo, determinado, invariável. Deve ter um núcleo efetivo de significado, mas na prática tem uma gama variável, correspondendo à interminável variedade de situações dentro das quais é ativamente usado’’ (WILLIAMS, 1979, p. 45). Tomando as reflexões do autor, nota-se que a festa, bem como os signos sócio-historicamente criados em torno dela, deixou de se situar naquilo que outrora foram as necessidades criativas dos sujeitos e de outras variáveis do gênero. A incorporação dos signos, ao lado das diversas possibilidades sociais que estes trazem, passava a depender também da maneira como o Carnaval começou a se 110 organizar enquanto negócio, e dos diversos tipos de linguagens que começaram a mediá-lo. Os tipos de linguagens que começaram a mediar o Carnaval naquele momento têm que ver, entre outras coisas, com os códigos específicos utilizados pelo aparelho expressivo da produção publicitária. As palavras de ordem do espetáculo, as palavras que começaram a traduzir as características do mundo da fama, as palavras que passaram a organizar e dar sentido às relações de compra e venda, enfim, tudo isto fez parte da reorganização dos significados disponíveis da festa. E aqui estamos falando do significado. Como bem salientou Raymond Williams, o signo tem um núcleo efetivo de significado, mas na prática tem uma gama variável, correspondendo à interminável variedade de situações dentro das quais é ativamente usado. Digo que uma significação está adquirida, e disponível daí por diante, quando se consegue fazê-la habitar num aparelho de palavra que não lhe estava inicialmente destinado. Bem entendido, os elementos desse aparelho expressivo não a continham realmente. Foi-me preciso recentrá-los e descentrá-los para fazêlos significar aquilo a que eu visava (PONTY, 1984, p. 135). Em nossa perspectiva, é pelo fato de os signos poderem ser utilizados pelos diversos sujeitos de modos também diversos, é justamente por isso, que chamamos a atenção para o choque que houve — e há— entre uma determinada forma de difusão, distorção e reprodução de certos signos — estas ligadas a um bloco histórico de poder — e sua incorporação a partir de um material — uma memória, por assim dizer— sociohistoricamente construído e ‘’legítimo’’. Nesse passo, dado o processo no qual nos debruçamos, não é desnecessário fazermos reflexões acerca das imagens, do papel desempenhado por elas enquanto produtoras de signos, de linguagens: como são produzidas as imagens carnavalescas da TV? Que tipo de poder possui a imagem em movimento? Que discurso tais imagens produzem sobre a realidade? O Carnaval da TV é o mesmo Carnaval da ‘’rua’’? Como a linguagem do audiovisual funciona em termos técnicos? De que maneira este tipo de linguagem afeta uma compreensão satisfatória das transformações históricas pelas quais passou — e ainda passa— o Carnaval de Salvador em diversos níveis? 111 O Carnaval da TV, com seu recorte específico do real, gerou alguns rebatimentos interessantes nos músicos da cidade. Alguns rebatimentos já foram mencionados em trechos anteriores, ou melhor, foram destacados pelos próprios músicos entrevistados. O desejo ávido, apresentado por alguns músicos que trabalhavam no Carnaval, de tocar e aparecer nas câmeras de uma determinada empresa do ramo da comunicação, a qualquer custo, inclusive material, foi uma das conseqüências oriundas daquele Carnaval-espetáculo que se apresentava. Aparecer na tela da Rede Globo de televisão em cima de um trio elétrico, na tela do canal Bandeirantes, empresas que começaram a dar visibilidade ao Carnaval da Bahia, era mais importante do que ‘’exigir’’ um bom cachê para tocar no Carnaval. Pois os músicos, segundo os valores que se formavam em torno da festa, ‘’não poderiam perder a oportunidade de aparecer em lentes, em ‘’olhares’’ que somente os famosos e bem sucedidos apareciam’’. Não temos a pretensão de responder a todas as reflexões levantadas acerca das imagens, bem como do Carnaval da TV. Elas representam algumas das nossas preocupações acerca da produção e recepção do audiovisual, da sua linguagem específica enquanto registro do real. Entretanto, algumas observações sobre as imagens são válidas, ainda que sucintamente. O historiador Marcos Napolitano diz que ‘’a força das imagens, mesmo quando puramente ficcionais, tem a capacidade de criar uma ‘’realidade’’ em si mesma, ainda que limitada ao mundo da ficção, da fábula encenada e filmada’’ (NAPOLITANO, 2008, p. 237). Em relação à linguagem da TV, ele destaca o que Francesco Casetti e Roger Odin sugeriram para um mapeamento do impacto e também da recepção social daquela. Trata-se de dois conceitos: paleo e neo-televisão. O historiador diz que ‘’[...] a neo-televisão, característica da TV pós-1970, é definida por uma programação conduzida por um processo de interatividade cada vez mais sofisticado e não por um pacto pedagógico-comunicacional’’ (CASETTI; ODIN apud, NAPOLITANO 2008, p. 251). Aquela TV pós-1970 traz uma ‘’estrutura de programas que tende a diluir a fronteira de gêneros de programas direcionados a públicos específicos, substituindo a escolha — eixo paradigmático— pelo fluxo contínuo de programação — eixo sintagmático—’’ (CASETTI; ODIN apud, NAPOLITANO 2008, p. 251). Há um 112 ‘’convite à vibração emocional e, principalmente, sensorial e ao convívio virtual com as celebridades, ambientes e personagens de TV’’ [...] (CASETTI; ODIN apud, NAPOLITANO 2008, p. 251). A tendência à espetacularização, à exposição do Carnaval como peça publicitária, à cristalização de certos aspectos do real, ao mesmo tempo em que fragmenta este mesmo real, enfim, todas estas questões, de um modo ou de outro, contribuem para a existência de uma dificuldade na apreensão da realidade através da TV. Sobre esta questão, Napolitano diz que A TV favorece e amplifica a experiência do tempo, mas não a consciência do tempo. Nela, a ’atualidade’, a exigência sensorial de uma co-ação — agir junto— ganha maior dimensão, mas essa mesma ’atualidade’ é constantemente desvalorizada pelo ritmo alucinante da sucessão das transmissões televisuais, volatizando a experiência histórica (NAPOLITANO, 2008, p. 252). Mais especificamente, o Carnaval do tempo rápido, das propagandas que sugerem um leque de objetos consumíveis sem os quais a festa carnavalesca não tem sentido, esse fenômeno é específico da nossa época, do capitalismo moderno (LUKÁCS, 2003, p. 194). Há uma divisão de trabalho complexa na dinâmica da festa; uma especialização constante do trabalho dos agentes históricos produtores daquele mundo social. Por conta dessa complexa divisão do trabalho que o Carnaval da Bahia foi adquirindo, nesse modo de produzir a vida, ‘’os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais [...], a relação social determinada dos próprios homens assume uma relação entre coisas’’ (LUKÁCS, 2003, p. 199). Essas são algumas considerações que destacamos. O Carnaval é um terreno das possibilidades — transformação do mundo, anúncio de outras relações sociais— e ao mesmo tempo das permanências históricas. Mas esses elementos encontram— se hoje ao lado das implicações do modo de vida capitalista. O afastamento da festa em relação ao organismo coletivo, a perda de ‘’controle’’ da festa pela maior parte dos agentes produtores da mesma, a intensificação da noção de exploração em diversos níveis do Carnaval, enfim, tudo isto indicava o surgimento de formas novas de relações de produção daquele mundo social, bem como de um conteúdo — intenções, valores— igualmente novo. 113 E o ‘’novo sentido’’ que tomava o período momesco, considerando uma escala de análise ampliada, condicionou e transformou os diversos grupos sociais construtores da festa. E os músicos — agora ajustando a nossa escala de análise para esse grupo social específico — não ficaram à margem daquilo. Na próxima seção nos esforçaremos em refletir, entre outras coisas, sobre mais um dado que se apresentou também como condição da ‘’festa-negócio’’: a divisão do trabalho, a idéia de profissionalização etc. 3.2 Quando os músicos se profissionalizam Houve uma tendência, da parte de muitos autores que se debruçaram sobre o Carnaval de Salvador, a considerar a profissionalização da festa quando da chegada e consolidação de um pequeno número de agentes privados. O professor Milton Araújo Moura, expõe em seu trabalho Carnaval e Baianidade: Arestas e Curvas na Coreografia de Identidades do Carnaval de Salvador, que ‘’[...] uma festa destas proporções não pode acontecer sem investimentos de vulto. Não se improvisa um Carnaval. Seja um investimento público, seja privado, é preciso que uma instituição ou dezenas delas tomem a realização da grande festa’’ (MOURA, 2001, p. 64-65). Milton Araújo Moura diz ainda que ‘’tal realização supõe a especialização de tarefas de um sem número de pessoas, ou seja, a profissionalização da festa. Considerando a sofisticação de algumas destas festas, temos que alguns desempenhos são necessariamente sofisticados’’ (MOURA, 2001, p. 64-65). A idéia de especialização, profissionalização, enfim, seja lá o nome que se queira dar à organização das relações de produção e de troca, precisa ser inserida e problematizada a partir da noção de divisão do trabalho. Ninguém sairá prejudicado se revisitarmos algumas reflexões postas por Karl Marx acerca da divisão do trabalho na sociedade capitalista. Em nossa perspectiva, os músicos não se especializaram, ou vieram a se profissionalizar em sua atividade por conta dos altos investimentos exigidos pelo Carnaval de Salvador. Se pegarmos esta linha de raciocínio, acabaríamos tomando os condicionamentos econômicos e morais existentes na forma atual de organização do trabalho no Carnaval como naturais. 114 Em certa medida, trabalhar com esta noção de profissionalização sem problematizá-la, qualquer que seja o ramo da atividade desenvolvida, induz-nos a pensar o efeito da divisão do trabalho — de uma dada época histórica— como sendo a sua causa. Utilizaremos uma afirmação de Marx, em seu livro Miséria da Filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon, para situar o nosso raciocínio. Comentando as interpretações feitas por Proudhon do pensamento e obra de Adam Smith, justamente na problemática da divisão do trabalho, Marx diz que Adam Smith viu mais longe do que pensa o Sr. Proudhon. Ele viu muito bem que, ‘na realidade a diferença dos talentos naturais entre os indivíduos é bem menor do que supomos. Estas disposições tão diferentes, que parecem distinguir os homens das diversas profissões, quando chegam à idade madura, não são tanto a causa mas o efeito da divisão do trabalho’(MARX, 2003, p. 114). O que começou a haver não foi exatamente uma profissionalização dos músicos — não a profissionalização como uma categoria extemporânea — por conta das feições adquiridas pelo Carnaval de Salvador, isto é, a festa-espetáculo. O que o novo ‘’formato’’ carnavalesco gerou foi uma reorganização do trabalho musical, ao mesmo tempo em que demarcou limites — econômicos e morais— às diversas formas de trabalho que já existiam na festa. Às velhas formas do trabalho musical no Carnaval, juntaram-se as formas novas, criadas pela exigência daquele arquétipo que se desdobrava. As novas formas de trabalho foram necessárias à nova lógica que se apropriava do Carnaval: a produção em série, em larga escala para o consumo. O que estamos querendo dizer é que, no caso dos músicos, havia indivíduos que executavam aquela atividade no Carnaval da Bahia, a atividade musical. Todavia, aqueles indivíduos não eram apenas músicos, ou viviam integralmente de música na divisão do trabalho anterior. Eles exerciam outras atividades também. O trabalho organiza-se, divide-se diferentemente conforme os instrumentos de que se dispõe. Um Carnaval sem gravadoras, sem blocos com cordas, sem programas de TV é completamente diferente do Carnaval que possui estes instrumentos. Assim, a atividade musical — a divisão do trabalho no seio da categoria dos músicos—, já havia no Carnaval. Mesmo sendo a afirmação que fazemos uma 115 obviedade, é necessário que façamos. Entretanto, há que se destacar que ‘’a extensão do mercado dá à divisão do trabalho nas diversas épocas uma fisionomia’’ (MARX, 2003, p. 113). O que passou a existir com o arquétipo do Carnaval-negócio foi uma redistribuição do trabalho, ou ainda, uma nova distribuição do trabalho. A atividade musical existente no Carnaval de Salvador de 1950, por exemplo, não estava inserida nas regras da concorrência. Os músicos foram uma condição para a própria existência daquele modelo de Carnaval-negócio. Para haver produção de mercadoria é necessário que exista uma divisão do trabalho, que exista trabalho mutuamente independentes, executados isoladamente uns dos outros. Um exemplo objetivo, entre outros, da nova divisão do trabalho que o Carnaval da Bahia ganhou é a figura do cantor de trio elétrico, inexistente até a primeira metade da década de 1970. Houve, em pouco tempo, um processo de ‘’diferenciação’’ entre os cantores e demais membros de um grupo musical carnavalesco. Passou a haver um abismo econômico, social, político e cultural entre um cantor do Carnaval, com seu status de ‘’famoso’’, e um músico-acompanhante. Retomamos aqui uma das tônicas deste trabalho, pois já afirmamos isto algumas vezes. Mas é necessária a insistência. Aquela diferenciação excessiva da figura do cantor, em níveis diversos da vida social, foi o efeito da nova divisão do trabalho empregada no Carnaval da Bahia. Desnecessário dizer que aquela divisão de trabalho se assentava na racionalidade industrial que passou a operar na festa. Estas vicissitudes pela quais passou —e ainda passa— o trabalho musical no Carnaval não devem ser tomadas como naturais, ou como já dadas desde o início do mundo. Se esse processo existe em todas as profissões conhecidas, ele é oriundo do modelo de divisão do trabalho existente nas sociedades capitalistas. O historiador trabalha exaustivamente em cima da temporalidade, ainda que esta categoria chamada tempo seja controvertida. Se percebermos mudanças, quaisquer que sejam, ocorridas no tempo, em uma dada sociedade, devemos tentar apontar o seu processo, e não simplesmente tomar situações e circunstâncias específicas como já dadas, como sendo naturais ‘’porque sempre existiram’’. 116 O que nos impressiona é justamente o fato de alguns estudiosos do Carnaval tomarem as contradições existentes nas diversas profissões que perpassam a festa, dentre outras atividades existentes em nossa sociedade, como naturais, como parte de um processo, como uma espécie de etapa a ser cumprida: primeiro vem a ‘’ralação’’, depois um relativo período de dignidade alcançada com o trabalho desenvolvido, e, por fim, a ‘’prosperidade sonhada’’, se o indivíduo tiver um pouco de sorte. Vejamos o que Ieda Balogh, citada por Milton Araújo Moura, diz sobre os músicos da axé-music: Ieda Balogh, em Operários da Alegria: Motivações, Circunstâncias, êxitos e Dificuldades na Carreira do Profissional da Axé Music em Salvador, Bahia, em 1999, situa o trabalho do artista de axé music como contínuo à sua existência cotidiana e à sua história desde a infância. É todo o mundo do artista que se profissionaliza, enfim, passando pelas vicissitudes de qualquer outra profissão. Analisando a situação do músico enquanto trabalhador, podemos perceber que, em qualquer ramo de atividade, ocorre o processo de seleção, apartando os que se apresentam ou são tidos como menos qualificados. No cenário da axé music, contudo, como em muitos outros, a seleção não se baseia somente na qualificação; prepondera o fator da indicação, as relações de apadrinhamento, de modo que os músicos precisam estabelecer relações de “amizade” inclusive com agentes da imprensa, para conseguir concorrer às oportunidades da profissão. Na ausência deste esteio, o profissional está submetido a uma terrível insegurança e termina ralando e esperando seu dia, sempre de prontidão: um dia, quem sabe, sua sorte pode chegar[...] (MOURA, 2001, p.180) Para não perdermos o fio condutor da nossa perspectiva, e, outrossim, a título de comparação entre as idéias postas acima e as idéias apresentadas por Marx sobre a problemática da divisão do trabalho, vejamos esta passagem do autor, na qual ele diz que De início, um carregador difere menos de um filósofo que um mastim de um galgo. Foi a divisão do trabalho que abriu um abismo entre um e outro. Mas isso não impede que o Sr. Proudhon afirme, noutro lugar, que Adam Smith nem sequer suspeita dos inconvenientes que prova a divisão do trabalho. É isso que o faz também dizer que J. B. Say foi o primeiro a reconhecer ‘que na divisão do trabalho a mesma causa que produz o bem origina o mal’ (MARX, 2003, p. 114). A citação acima foi apenas para reiterar que as diferenças internas que começaram a se desenrolar no seio da categoria musical; as dificuldades e contradições materiais e simbólicas nas quais a maior parte dos músicos foi lançada, 117 condicionada; os valores que começaram a se imiscuir no Carnaval da Bahia, tudo isto, teve – e tem – relação com a nova divisão do trabalho que se desenhava. O que fica evidente é uma tomada de posição, de estudiosos do Carnaval, pouco problematizadora ante a divisão do trabalho capitalista. Há uma ideologia que permeia a noção de profissionalização que é bem simples e redutora da complexidade que envolve o trabalho nas sociedades capitalistas: o empresariado chegou com o capital no Carnaval de Salvador, daí então, surge como num passe de mágica, a profissionalização dos grupos sociais envolvidos na festa. É sobre as conseqüências daquela nova divisão do trabalho que discorreremos na próxima seção, dentre outras questões. É o surgimento — e os seus desdobramentos— do axé- music. Foi esse gênero musical que consolidou a indústria fonográfica local. Com ele, há a expansão do Carnaval de Salvador para todo o território nacional. A gravação de discos, e o surgimento de várias bandas ligadas ao gênero provocaram a entrada de muitos músicos nos estúdios de gravação. Veremos estas ‘’situações’’ na seção que sucede. 3.3 A consolidação de uma indústria fonográfica: novas possibilidades para os músicos? Antes de adentramos em alguns pontos que consideramos fundamentais a esta seção, faremos um ‘’sobrevôo’’ pela axé-music. Assim, o nosso objetivo com tal empreitada é tentar situar melhor as implicações provocadas por aquele fenômeno. É interessante, dada a rápida e significativa expansão do Carnaval de Salvador a partir da axé-music, apresentar um quadro no qual consigamos indicar as diversas implicações daquele fenômeno. Desse modo, estas implicações aparecem, nas primeiras linhas desta seção, em níveis diversos do espaço carnavalesco. As questões específicas, derivadas daquele fenômeno, as quais destacamos e relacionamos aos músicos, aparecem mais adiante. O rápido desenvolvimento e expansão da axé-music na Bahia nos fez olhar para a noção de tempo de uma forma diferente. As transformações ocorridas no 118 Carnaval por conta daquele gênero15 nos fazem medir em décadas aquelas mudanças. Enquanto a evolução, transformação e expansão de alguns gêneros musicais ocorrem em séculos, quando vistos sob uma determinada perspectiva histórica, o fenômeno axé-music intensificou, apresentou e provocou mudanças significativas no Carnaval que podem ser medidas, repita-se, em décadas. O termo axé-music surgiu em 1987. A antropóloga Goli Guerreiro diz que ‘’a expressão axé-music aparece pela primeira vez na imprensa baiana em 1987, na coluna do jornalista Hagamenon Brito, um crítico que cunhou o termo para designar o novo estilo’’ (GUERREIRO, 2000, p. 137). Ele conta que ‘’os roqueiros baianos chamavam este tipo de música de axé e se referiam aos músicos como ‘axezeiros’, era uma coisa pejorativa mesmo. Eu resolvi chamar de axé-music e a imprensa toda começou a usar’’ (GUERREIRO, 2000, p. 137). Pode-se dizer que aquele gênero foi o responsável pela consolidação das bandas de trio. Foi ele quem possibilitou a ascensão significativa da figura do cantor e cantora no Carnaval da Bahia. Aquele gênero trouxe à luz novas demandas. As bandas de axé de blocos de trio passaram a vender milhares de discos. De modo que, no final dos anos 80, os discos das bandas de axé-music chegaram facilmente à marca de 400 mil cópias e conseguiram farta execução nas FMs brasileiras, através de um poderoso marketing (GUERREIRO, 2000, p. 134). Por trás do rótulo comercial axé-music havia uma infinidade de linguagens musicais. O rótulo utilizado pela imprensa — local e, sobretudo, nacional— tendia a homogeneizar linguagens musicais distintas, ao mesmo tempo em que criava uma sensação de que axé era tudo — miscelânea— o que se produzia, em termos musicais, na Bahia. Na realidade, o samba-reggae, o frevo, a estética da música pop mundial, o rock n’ roll etc., todos estes ‘’ingredientes’’ juntos, que há muito faziam parte da 15 Não nos meteremos na ‘’espinhosa’’ polêmica que há entre alguns estudiosos da axé-music no sentido de considerar ou não a axé-music um gênero musical. Não é o objetivo deste trabalho. Salientamos que a expressão axé-music aparece aqui ora como gênero, ora como fenômeno, ora como estética musical etc. 119 produção musical baiana no Carnaval, eram chamados indiscriminadamente de axémusic por grande parte dos organismos midiáticos. Mas o fato é que aquele fenômeno gerou uma base sólida sobre a qual um grande supermercado musical foi se formando. Segundo Goli Guerreiro, ‘’a ampliação do mercado é uma das mudanças mais importantes do meio musical de Salvador nos anos 90, pois implica o fim da sazonalidade do consumo e a consolidação da axé-music como estilo no mercado fonográfico local e nacional’’ (GUERREIRO, 2000, p. 153). A autora afirma ainda que ‘’o processo foi favorecido pela mestiçagem musical, que se cristalizou ao longo da década. Os blocos carnavalescos passam a estender as atividades de suas respectivas bandas e se transformam em produtoras com sedes próprias [...]’’ (GUERREIRO, 2000, p. 153). A axé-music veio — e estimulou sobremaneira— no bojo das transformações acentuadas do Carnaval na década de 1990. Além de surgir como um fenômeno comercial local importante, ainda no início do seu desenvolvimento em termos musicais, se beneficiou em larga medida das estratégias do poder público de venda dos espaços públicos para agentes privados fazerem publicidade. Mencionamos algumas daquelas estratégias utilizadas pelo poder público nos capítulos anteriores. Em termos administrativos, infra-estruturais e técnicos, houve uma relativa organização da festa, ao mesmo tempo em que o evento se consolidava em torno das políticas ligadas ao movimento turístico da cidade. De todo modo, o cenário carnavalesco a partir de 1993 ganhou novos ingredientes, completamente favoráveis ao entretenimento comercial. Paulo Miguez de Oliveira argumenta que ‘’[...] é no Carnaval de 1994, e tendo como base um projeto de comercialização desenvolvido através da Casa do Carnaval, que a administração municipal vai obter resultados expressivos com a venda de espaços de publicidade’’ (COSTA apud OLIVEIRA, 1996, p. 157). O autor argumenta que foram ‘’adquiridas, pelo Banco do Brasil, Brahma e Bahiatursa, cotas de patrocínio no valor de, respectivamente, US$ 1,25 milhão, US$ 400 mil e US$ 750 mil, no conjunto, responsáveis por mais de 90% dos US$ 2.513 120 milhões arrecadados pela Prefeitura com o Carnaval’’ (COSTA apud OLIVEIRA, 1996, p. 157). A segunda metade da década de 1990, período áureo da axé-music, trouxe consigo o camarote. Aquele tipo de estabelecimento mostrou rapidamente o seu potencial. Empresas de ramos diversos começaram a investir nos camarotes. Os cantores e cantoras famosos do Carnaval adquiriram também seus camarotes. Espaço da classe média abastada por excelência, os camarotes caíram no gosto do seu público alvo. Novamente, Paulo Miguez de Oliveira argumenta que ‘’além do aperfeiçoamento das melhorias técnico-operacionais e organizativas introduzidas no ano anterior, o Carnaval de 1995 vai contar com algumas outras novidades, destacando-se a instalação de camarotes na Barra [...]’’(OLIVEIRA, 1996, p. 158). Mais uma vez o autor diz que é ‘’interessante notar que a montagem e exploração dos camarotes na Barra vai se dar, de forma pioneira, num regime de terceirização, ficando a iniciativa privada responsável pela instalação dos equipamentos e sua exploração comercial [...]’’ (OLIVEIRA, 1996, p. 159). Aquela situação ‘’nova’’, pelo menos no que diz respeito a um conjunto de ações e objetos até então inexpressivo no Carnaval, veio acompanhada da explosão comercial de diversas bandas que se autodenominavam bandas de axé. Aquelas bandas que surgiram no Carnaval de Salvador vieram a estabelecer uma hegemonia na festa. Muitos daqueles grupos concentraram — em quase todas as esferas— sobremaneira o Carnaval em ‘’suas mãos’’, tomaram as rédeas do período momesco. Aquele domínio tornava-se evidente. Prestemos a devida atenção à argumentação de Milton Araújo Moura sobre aquele período: O cenário é então dominado, na mídia e na cena da rua, pelas bandas Chiclete com Banana, Asa de Águia, Mel, Cheiro de Amor e Beijo. Despontam sucessos individuais: Daniela Mercury, com uma coreografia vibrante e um repertório eclético, alcançando êxito na sua incursão na MPB; Ricardo Chaves, fazendo o gênero do mauricinho de classe média; Márcia Freyre, identificada como o furacão do Cheiro; o guitarrista e vocal Durval Lelys, do Asa, com um humor escrachado; o baixista e vocal Bel Marques, considerado a cara do Chiclete. Anos depois, Netinho, destacando-se da banda Beijo, 121 constrói uma carreira solo e consagra o estilo aeróbico; desligandose do Eva, Ivete Sangalo investe num repertório mais plural (MOURA, 2001, p.227). As bandas de axé-music se apresentaram, inicialmente, como uma espécie de ‘’força motriz’’ do Carnaval de Salvador, alargando e consolidando o espaço do mundo dos negócios carnavalescos. No final da década de 1990, as bandas famosas de axé, bem como os seus respectivos patrocinadores — stes como uma força econômica extremamente superior a tudo e a todos que compunham o Carnaval—, reiteram o papel de condutores principais do evento. As bandas famosas criaram as suas produtoras. Aquelas instituições passaram a recrutar bandas locais que apresentavam, em alguma medida, ‘’talento’’ para atuar no circuito axé. Desse modo, se alguma banda de axé desconhecida do grande público começasse a apresentar um número relativo de pagantes em seus shows, esta banda certamente seria uma forte candidata a se tornar um produto rentável de alguma produtora. Produtoras, não raro, de propriedade de cantores e cantoras famosos do Carnaval. Vejamos uma vez mais a descrição feita por Milton Araújo Moura daquele ‘’ápice’’ a que alcançou rapidamente o cenário da axé-music: É no início da década que surge, em 2001, em cena, como articulador de clientelas, a figura do comissário de bloco [...] As bandas e blocos de maior poder empresarial estabelecem conexões com fã-clubes em diversos pontos do Brasil, como forma de garantir a presença de associados. Netinho conquista Aracaju, onde chega a gravar ao vivo; Ricardo Chaves tem presença sempre aclamada em Fortaleza; o Chiclete com Banana coleciona fã-clubes em todo o Brasil, que se fazem presentes anualmente no Camaleão. Alguns pacotes turísticos contemplam não somente a hospedagem e o translado, como também o abadá... Esse termo, que nomeia a túnica tradicional e distintiva dos iorubás e de várias outras etnias da África Ocidental, vem designar agora, de preferência, a blusa esportiva, quase sempre de tecido sintético, que quase todos os blocos passam a usar no cortejo, inclusive o Araketu, o Muzenza e o Olodum (MOURA, 2001, p. 228) Este ‘’sobrevôo’’ realizado sobre a axé-music, ainda que limitado e breve, foi com o objetivo de tentar apresentar, de alguma maneira, o nível no qual se encontrava o ‘’termômetro’’ daquele gênero ao longo da década de 1990. Novos postos de trabalho que foram gerados com aquele fenômeno; redefinição de formas de trabalho que existiam há muito no Carnaval; tipos novos de eventos 122 especificamente ligados à axé-music, enfim, tudo aquilo acabou por gerar situações igualmente novas para os músicos da cidade. E algumas das nossas observações, alguns dos nossos argumentos e afirmações feitos nesta seção sobre aquele fenômeno, vem acompanhado do coro de outros pesquisadores, de áreas diversas do saber, que não coincidentemente vai ao encontro de nossas análises. Uma vez mais, para reiterar a nossa afirmação no que diz respeito à hegemonia adquirida por aqueles grupos musicais no Carnaval de Salvador, citamos a observação do geógrafo Clímaco Dias: Os grupos organizados principalmente em torno da axé music assumem a hegemonia na produção do espaço carnavalesco, dispondo da quase totalidade da cobertura da televisão e do rádio, tendo músicas tocadas nas rádios durante todo ano, e os seus produtores e artistas a cada ano criando novas “danças”, que eram, na verdade, peças de Marketing que buscavam, como buscam até hoje, “a novidade” como um fim, sendo que os grupos que não aderem a essa “cultura novidadeira”, não conseguem projeção por serem considerados ultrapassados (DIAS, 2002, p. 129-130). Abordaremos na seção que sucede, entre outras coisas, questões sobre a vivência, sobre as experiências dos músicos no âmbito de trabalho a partir da axémusic. Refletiremos, com eles, sobre o significado daquele fenômeno para os estúdios de gravação. Num diálogo com os músicos, discutiremos como funcionavam as relações de trabalho nas gravadoras. 3.4 O trabalho dos músicos a partir da axé-music A axé-music foi importante na vida de muitos músicos que acompanharam toda a trajetória daquele movimento musical. Aquele produto proporcionou viagens nacionais e internacionais àqueles profissionais; ganhos materiais significativos para alguns; fama e sucesso. O fenômeno axé foi responsável pela entrada de muitos musicistas num estúdio de gravação. O crescimento vertiginoso do consumo dos discos de axé em fins dos anos oitenta e início dos anos noventa revelou a força, o grande potencial daquela indústria que estava se desenvolvendo. O músico Gerson Silva acompanhou grande parte do processo que transcorreu. Músico habilidoso, gravou e produziu muitos 123 discos do gênero. Chegou a ganhar troféu — troféu Caymmi— de melhor músico de gravação. Em nosso diálogo, ao perguntarmos para ele sobre a entrada de muitos músicos nos estúdios de gravação, média de cachê pago a um músico pelas gravações, entre outras coisas, ele nos deu o seguinte relato: Eu acho que a axé-music é responsável por muitos tipos de formação de trabalhos diferentes, isso dentro da indústria... O que se falava na época era que a axé-music eram músicas compostas para os orixás, músicas populares, isso era o axé... Ninguém sabe mais o que é isso. O que se fez na era Luiz Caldas foi se profissionalizar o mercado... O mercado cresceu muito, cresceu mais do que a música, hoje eu vejo claramente isso... Acho que a axé-music teve essa notoriedade pelo fato de possuir músicos mais bem preparados para os estúdios... Então não eram pessoas despreparadas... No início era, eram pessoas que tocavam na rua, daí faziam uma banda... Mas depois que o movimento cultural, mais ou menos em 84 e 85, começou a ser mais forte, começou a tomar o país, aí a necessidade de ter músicos mais bem preparados. Este relato põe em relevo muitas questões que perpassam a — tão discutida— noção de ‘’popular’’. Os elementos que constituíram aquilo que veio a ser chamado de axé-music eram elementos, formas de experiências culturais, oriundas também dos negros baianos. De fato, houve uma mistura com aquela linguagem da indústria da música pop norte-americana. O que ‘’soou’’ como uma catástrofe para alguns puristas da classe média baiana. A linguagem musical negra, baiana, havia — assim pensavam alguns setores da classe média— se ‘’imiscuído’’ na estética, tão venerada, da música pop produzida no hemisfério norte. Há uma questão que nos incomoda e que precisa ser problematizada. A axémusic pode ser, na Bahia, em sua origem e por seu caráter, música popular. E a célula rítmica dos tambores africanos foi a base sobre a qual se assentaram outras linguagens musicais.16 O legado rítmico dos tambores africanos na Bahia é algo presente no organismo coletivo. Tanto sim que o estado é um grande produtor — exportador— de musicistas que se dedicam ao mundo da percussão. A célula rítmica africana é popular, a percussão é popular, mas nem por isso pode ser considerada uma arte de amadores. Tampouco podemos afirmar que o samba-reggae — um dos principais 16 Para maiores informações sobre a origem da axé-music, entre outras coisas sobre o gênero, conferir GUERREIRO, 2000. 124 núcleos formadores do axé-music— foi um estilo musical que se profissionalizou quando da chegada dos instrumentos harmônicos — baixo, guitarra, teclado etc. Alguns estudiosos afirmam que aquela junção do samba-reggae com os instrumentos harmônicos gerou a música axé. De todo modo, o axé foi considerado, por muitos, em seu início, uma arte de amadores. O estilo passou a ser visto como sendo uma arte de ‘’profissionais’’ quando se tornou matéria-prima para a indústria musical local. Muitos comungam desta assertiva, alguns músicos inclusive. Não vemos a questão por este ângulo. Se tomarmos como exemplo os elementos percussivos que envolvem o estilo axé, desde o seu início, notaremos o alto grau de complexidade que havia na execução rítmica, ainda que a execução fosse de um ‘’amador’’. A expressão ‘’profissionais primitivos’’ — primitivos no sentido de gênese, primeiro— talvez coubesse bem. A história da música está cheia desses ‘’profissionais primitivos’’. A arte dos trovadores; artistas itinerantes; artistas virtualmente especializados como certos funcionários religiosos; os presos negros cujo trabalho consistia em ‘’puxar o canto’’ para os que realizavam trabalhos forçados (HOBSBAWM, 2004, p. 176). Contudo, há um ingrediente fundamental — talvez ele tenha induzido muitos a cometerem afirmações apressadas —, que é o seguinte: o axé-music é um estilo musical urbano. E podemos dizer, em certa medida, que foi uma música de pobres urbanos, pelo menos inicialmente. Os músicos negros percussionistas — não de todo, mas uma parte significativa— viviam em condições econômicas bastante limitadas. Inclusive alguns tiveram, com o passar dos anos, uma ascensão material astronômica dentro da indústria, como é o caso do percussionista Carlinhos Brown. A cidade não só fornece o espaço para o profissionalismo, ela o exige. Seu estilo de vida é mais especializado, menos tradicional do que o do campo, onde as artes são geralmente ligadas a eventos e ocasiões específicas da vida. As necessidades urbanas do entretenimento, por tenderem a ser mais especializadas, são muito maiores do que as do campo. Assim, os músicos urbanos, independente do fato de saberem ou não tocar algum instrumento, tendem a serem vistos como profissionais a partir da sua entrada no âmbito da Indústria cultural, a partir dos padrões de exigência específicos desta indústria. 125 A partir das necessidades do entretenimento comercial, muitos músicos especializados começaram a compor o quadro de mão-de-obra para a indústria do axé. Mas isto ocorreu quando o material cultural que estava disponível foi considerado como vendável pelo mercado musical nascente. Como a indústria é parasitária, ela não pode prover o seu próprio material. Ela só consegue processar o material disponível. Saliente-se que ela não tem quaisquer preconceitos. O que for vendável vale a pena ser vendido, e portanto é bom (HOBSBAWM, 2004, p. 184). Em todo caso, como houve o surgimento de uma demanda de gravações de discos de axé, quisemos saber de Gerson Silva como se desenrolava aquele trabalho no estúdio de gravação, como ocorriam os contratos etc. Ele nos deu o seguinte relato: Na verdade uma das primeiras gravações que foram feitas de axé não foram feitas por músicos baianos. O primeiro cara a gravar um samba-reggae foi Ramiro Musoto. Ele que gravou, ele que tinha uma visão super aberta do que tava acontecendo. Era um cara que tinha uma formação super diferenciada, era músico de orquestra lá na Argentina, veio pra cá, percebeu o que tava rolando nas ruas, foi morar no pelourinho pra aprender aquela música que tava gerando o movimento... E nisso ele começou a pesquisar, formatar as células... E naquela época não existia um mercado como hoje. O cara ia gravar por cinqüenta reais e achava ótimo... Hoje não... Cada projeto tem um valor, uma quantidade de grana. Mas na década de oitenta não se fala muito... Na década de oitenta, as pessoas que estavam na WR... Wesley Rangel que chamou as pessoas pra gravarem suas coisas... Foi assim com Sarajane, o próprio Luiz Caldas... E Isso aí até hoje vem acontecendo assim. Note-se que no início daquele mercado, a dificuldade em encontrar mãode-obra especializada, conforme os padrões ‘’novos’’ de exigência da produção industrial, foi um fato. Destacamos anteriormente, o papel pioneiro do empresário Wesley Rangel. Os elementos formadores do axé-music vieram de pessoas pobres. E como acontece com outras manifestações artísticas de pessoas pobres, aqueles elementos foram ‘’descobertos’’ por uma empresa particular — o estúdio WR—, inicialmente de pequena escala. Se o empresário Wesley Rangel tinha ou não uma mentalidade progressista, no sentido de se sentir partícipe daquela produção popular nascente, havendo um engajamento de sua parte etc., isto não nos interessa. Talvez fosse possível tal posicionamento. Todavia, tais gravações foram proporcionadas pelo empresário com 126 o fito de lucro. A percepção inicial do empresário, como a de qualquer outro, foi exclusivamente esta. Outra coisa que se nota, no início da formação daquele mercado, é o nível de exploração da mão-de-obra. É possível que a exploração, naquele momento, fosse sentida de modo mais acentuado pelos músicos, se comparada ao nível atual. Como disse Gerson Silva, o mercado cresceu mais do que a música nos tempos atuais. Uma divisão de trabalho mais complexa, um maior volume de capital, enfim, tudo isto gerou mudanças consideráveis. Como houve uma necessidade de mão-de-obra especializada para as gravações dos primeiros discos de axé-music, alguns critérios foram adotados pela indústria que se formava em torno da Bahia. Como em toda indústria de produção de massa, os produtos de longa duração e padronizados eram os ideais. O que fazia um músico ser capaz de gravar, de participar dos trabalhos das principais gravadoras que se interessaram, na época, pelo produto axé? Perguntamos isto ao baixista Luciano Calazans: Bom, o primeiro critério adotado para um músico gravar era ele ter um mínimo de técnica no instrumento... Pra tá preparado pra o que o arranjador fosse fazer... Experiência, já uma experiência bem acentuada... Basicamente isso, experiência e técnica... Leitura musical... Porque o que as gravadoras queriam, e os produtores também, era gastar menos tempo de estúdio, então por isso se chamava os músicos especializados em estúdio... Houve uma época que as gravadoras davam um prazo aos produtores pra entregar o trabalho... Então como eles tinham esse prazo, daí chamavam pessoas mais aptas pra que o trabalho fosse concebido de forma mais rápida e eficaz. Aquela música baiana, então chamada de axé-music, ganhava as mesmas formas de produção da indústria pop mundial. Observa-se que passou a haver uma complexa divisão do trabalho para a produção rápida e ‘’eficaz’’. Uma produção da música em linha de montagem. Em geral, o compositor da canção que seria gravada entregava aquela para o arranjador, que era de fato quem decidia como a música iria soar; o arranjador escolhia o seu ‘’time’’ de músicos para realizar a gravação; o produtor mantinha a gravadora informada de todo o processo; em seguida, a gravação passava para as mãos de algum ‘’figurão’’ — um diretor artístico de alguma empresa de discos— da gravadora interessada, cabia a ele escolher o veículo padrão adequado para ela. 127 O visual do cantor ou da cantora era minuciosamente trabalhado. A interpretação do cantor ou cantora da letra da música que seria gravada tinha de estar em perfeita ‘’harmonia’’ com o público alvo, com aquilo que o público buscava nos espetáculos que ocorriam na Bahia: a ‘’felicidade’’, praia, sol etc. Passou a haver uma produção mecânica, construída em cima de fórmulas. A partir da década de 1990, aquele mundo industrial se acentuou sobremodo. Os cantores e cantoras contratados começaram a ganhar um visual escandaloso. A canção de axé tinha de ser interpretada como se o cantor ‘’acreditasse nela’’. Na complexa divisão do trabalho que foi se desenrolando, até então inexistente em fins da década de 1970, esquecemos de mencionar o trabalho crucial dos supervisores de gravação, os engenheiros de som e os editores — de fitas de rolo no início. Conversando com Gerson Silva sobre as contratações dos músicos para as gravações que foram feitas no início da indústria, ele tocou na questão das fitas de rolo. Ele argumentou o seguinte: Na verdade, o que acontecia era o seguinte... O tempo de estúdio naquela época era muito caro... As fitas de rolo que compravam naquela época... Era muito caro você desperdiçar uma fita daquela com um músico que não tinha preparação pra tá num estúdio... O que fazia com que o músico fosse chamado era a qualidade técnica de leitura musical... O músico na podia ficar o dia todo gravando uma música... Porque muitas vezes, as bandas que fizeram sucesso na época, os músicos não gravavam os discos... Os discos eram gravados por outros músicos mais especializados. O músico especializado dava ‘’respostas’’ rápidas para a lógica da produção em série e em larga escala. Com o fenômeno do axé, os músicos de estúdio gravavam, em média, cerca de 12 a 30 discos anualmente, dependendo, claro, das variações do mercado e da reputação do profissional. De todo modo, foi naquela indústria emergente do axé que muitos músicos passaram a ganhar a vida. 128 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nestas considerações finais, julgamos ser oportuno tecermos alguns comentários sobre algumas possíveis contribuições da pesquisa que foi empreendida. Uma contribuição relevante para a História foi a tentativa de apresentar uma sistematização, em um tempo e espaço históricos específicos, das diversas dimensões do mundo vivido dos músicos de Salvador. Esta pesquisa se preocupou em explorar a interface entre as mudanças ocorridas no Carnaval, de um lado, e as implicações de tais mudanças em determinados músicos atuantes naquele espaço, de outro. Não houve a intenção de retomar certos debates sobre o Carnaval, como o significado das letras das músicas ditas carnavalescas, se há ou não uma ‘’baianidade’’ no Carnaval de Salvador etc. Tentou-se reconstruir um retrato bastante apurado dos músicos. Uma das idéias básicas que nos moveram foi a de tentar mostrar para a sociedade baiana o que estava por baixo dos palcos, dos espetáculos nos quais os músicos estavam inseridos. Buscou-se apresentar os músicos no quadro da sua economia palpável de sobrevivência. Outra contribuição que destacamos foi a exposição feita do fazer-se daquela classe trabalhadora. Por conta das instabilidades econômicas que acompanharam, com freqüência, a profissão, alguns conteúdos representacionais foram imputados naqueles trabalhadores. Se estivessem trabalhando com os ‘’grandes artistas famosos’’, haveriam de ter, necessariamente, uma vida socioeconômica privilegiada. Se estivessem trabalhando nos ‘’circuitos inferiores do mercado’’, não passavam de ‘’aventureiros’’. Trouxemos os meandros das duas situações. Outra contribuição dada é a que diz respeito à relação que os músicos mantiveram com o mundo do espetáculo nascente no Carnaval de Salvador. Uma reverberação de ordem prática nos músicos, proporcionada pelo jogo do espetáculo, foi o fascínio daqueles profissionais com o mundo da fama. Evidências importantes, as quais trazem uma relação com o fascínio dos músicos, não entraram no texto. Apenas nos demos conta do conteúdo importante de algumas fontes, com as quais fomos um pouco negligentes, ao término do texto. Fontes que poderiam ter acrescentado mais à discussão empreendida. 129 Aquele fascínio gerou consensos estranhos entre os músicos e o espetáculo. Muitos músicos chegaram a desvalorizar a sua mão-de-obra em troca do glamour midiático. A mídia começou a dar importância ao Carnaval de Salvador na segunda metade da década de 1980. Em troca da difusão de sua imagem, chegavam a realizar shows com ‘’artistas famosos’’ abaixo da média de cachê estabelecida pelo mercado carnavalesco. O espetáculo foi um ingrediente que contribuiu para uma relativa passividade dos músicos em relação ao interesses poderosos do ‘’mundo de mercado’’ nascente no Carnaval. Basicamente, no momento em que muitos agentes privados se apropriavam do Carnaval, fazendo assim aparecer alguns tipos de conflitos de classe, os músicos se preocuparam, em medida significativa, em ficarem famosos. Ao mesmo tempo em que havia aquela aquiescência estranha, havia também insatisfações com algumas mudanças ocorridas com o espaço de trabalho carnavalesco. Outra contribuição nossa tem relação justamente com estas insatisfações. Expomos o conteúdo daquelas insatisfações; apresentamos a relação da organização representativa da categoria com o Estado. Uma relação que foi, em muitos momentos, conflituosa. Houve protestos que foram encabeçados pelo sindicato dos músicos. E os músicos acompanharam a sua instituição representativa em muitos momentos. Entretanto, não havia da parte daqueles profissionais um sentimento de pertença àquela instituição. É bom salientar, a partir daqui, que este trabalho não quis ‘’inventar a roda’’. O que buscamos nesta investigação foi a compreensão. Isto mesmo. Compreender um processo que se realiza até hoje. Ele está em pleno vigor histórico em tempos atuais. Entender um processo histórico em suas especificidades exige evidências. Saber vagamente como transcorreu um dado movimento na história é possível para qualquer observador atento. Mas dialogar exaustivamente com um conjunto de evidências históricas, estreitando os laços com as mesmas, interrogando-as, colocando-as contra parede, sistematizando-as, enfim, tudo isto, é trabalho do historiador de ofício. O olhar panorâmico do historiador para o passado lhe permite uma espécie de sobrevôo naquele. Foi isso também que fizemos aqui. O sobrevôo que realizamos buscou encontrar carne humana. Cheiro de carne humana. Músicos que estavam se movimentando num período de mudanças significativas em um dos principais 130 espaços de trabalho daquela categoria de trabalhadores: o Carnaval. Talvez seja esta uma das principais contribuições da pesquisa. É um tanto leviano da parte daqueles que não vivenciaram, enquanto músicos, aquelas mudanças, suporem coisas vagas a partir da ‘’superfície da história’’, da qual geralmente extraem determinadas sentenças. Só fomos capazes de compreender satisfatoriamente as reverberações daquele arquétipo carnavalesco nos músicos da cidade a partir deles, com eles. Quando não conhecemos um músico, dificilmente sabemos como ele vive realmente. As suas origens sociais, os papéis que eles representam para a comunidade do bairro etc., estas questões passam despercebidas quando os músicos são vistos apenas a partir do prisma ‘’focalista’’ do show business. Expusemos os músicos nesta pesquisa fora do espetáculo. Outra questão da pesquisa foi a reflexão posta sobre a complexa divisão do trabalho que se desenvolveu no Carnaval. De muitas implicações que houve por conta daquela nova divisão do trabalho, destacamos a que diz respeito às funções que os cantores e cantoras carnavalescos foram adquirindo. Além do abismo econômico que passou a haver entre cantores e músicosacompanhantes, os cantores e cantoras reuniram neles funções como a de garoto ou garota propaganda dos seus respectivos patrocinadores; produtores de eventos, os quais eram realizados a partir das empresas daqueles cantores; donos e distribuidores de bandas emergentes no mercado musical local, entre outras funções que não somente a de cantar. Um dado também importante, e que devemos considerar, foi o desenvolvimento do gênero chamado axé-music. Trouxemos aqui os critérios de contratação dos músicos. Como os músicos eram contratados para gravarem os discos de axé. A partir da explosão da axé-music, muitos músicos passaram a gravitar os estúdios de gravação. Muitos músicos ganharam a vida com aquele novo mercado de gravações. Passou a haver o músico especializado em estúdio. Contudo, a exploração da mãode-obra, algo que apresentamos nesta pesquisa, continuou a existir naquele novo mercado – embora alguns músicos habilidosos tenham conseguido ganhar uma soma importante de dinheiro. Mas, de todo modo, as principais fontes de emprego para os músicos que trabalhavam no Carnaval, no período que foi investigado, eram: pequenos bailes, 131 shows em eventos públicos, bares, casamentos etc. Destacou-se que o Carnaval era um dos principais espaços, se não o principal, de trabalho para o músico obter ganhos materiais significativos. Outra consideração nossa, diz respeito à codificação que fizemos de vários aspectos da profissão do musicista do Carnaval. Encontramos muitos trabalhos sobre o Carnaval enquanto manifestação cultural relevante na Bahia. Mas não encontramos o músico. Quando ele aparece, aparece de pano de fundo. O que gerou dificuldades na investigação. Buscamos pesquisas realizadas por historiadores, mas não encontramos uma sequer que discutisse os músicos. É necessário argumentar que algumas coisas ficaram por serem feitas. Investigador algum consegue dar conta de tudo que aparece no objeto estudado. O estudo que fizemos é parcial. Foi o primeiro momento de uma busca. Há coisas que devem ser amadurecidas em estudos futuros. Pretendemos aprofundar, em outro momento, alguns temas que surgiram ao longo da pesquisa. De todo modo, algumas considerações ainda cabem. Alguns músicos entrevistados afirmaram que os profissionais que desejavam atuar nos carnavais de bairro, disputando uma vaga no concurso promovido pelo sindicato, eram, em medida relevante, provenientes de situações econômicas bastante limitadas. Vimos que as condições de trabalho do circuito dos bairros não eram boas. Os músicos entrevistados foram assertivos quanto a isto. O circuito hegemônico desbancou os carnavais de bairro. A maior parte das bandas ‘’famosas’’ atuava no circuito hegemônico. Era aquele circuito que muitos músicos buscavam. O estúdio WR lançou quase todos os discos dos grupos musicais famosos que atuavam naquele circuito. Além do consumo das bandas através do Carnaval, através das vendas das fantasias dos blocos — as quais se tornaram extremamente caras a partir da segunda metade da década de 1990—, o consumidor poderia obter também as bandas em forma de discos. Assim, o estúdio WR reproduzia o consumo daqueles grupos. Havia uma simbiose na qual as bandas famosas e o estúdio saiam lucrando. Do ponto de vista do músico, o ‘’boom’’ das bandas de axé foi visto de diversas formas. Para alguns músicos, tocar com uma banda famosa e aparecer nos espaços midiáticos era mais do que uma realização profissional, era a chance de ficarem famosos. Para outros, era apenas uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. 132 No início da produção do axé-music, as estruturas de um estúdio de gravação eram modestas. Com o passar dos anos, o volume de capital gerado pelo estilo musical proporcionou a construção de estúdios de última geração. Segundo os músicos, as produtoras de axé foram responsáveis pelo surgimento das bandasempresas. Inicialmente, as bandas eram formadas por amigos de longas datas. Entretanto, como foi possível para os cantores e cantoras acumularem em demasia, eles acabavam se transformando em empresários do grupo. Abriam as suas produtoras e se utilizavam da marca da banda. Naquele momento, os outros músicos se tornavam funcionários. Apesar disso, o conteúdo inicial de banda permanecia. Mas o desenvolvimento da indústria cultural da Bahia mudou radicalmente o cotidiano dos músicos da cidade. Os músicos que estiveram no circuito hegemônico passaram a fazer viagens internacionais, freqüentaram bons hotéis, fizeram um périplo pelo Brasil. Alguns dos músicos entrevistados argumentaram isto. Alguns profissionais chegavam a realizar 20 shows em um mês. Entretanto, notou-se que não necessariamente a alta quantidade de shows correspondia a uma soma significativa de dinheiro. O caso dos percussionistas do Olodum, o qual foi posto neste trabalho, é emblemático quanto a esta situação de descompasso. De qualquer maneira, as estruturas dos palcos nos quais as bandas de axé se apresentavam, bem como as estruturas dos trios elétricos, foram se desenvolvendo rapidamente. O repertório dos grupos musicais também se transformou. As letras com um apelo significativamente político dos grupos afro foram dissolvidas. O novo repertório prezava por refrões fáceis e construídos em cima de fórmulas. Em um curto espaço de tempo a indústria carnavalesca adquiriu os mesmo padrões da indústria pop mundial. Finalmente, em face do declínio atual por que vem passando a indústria cultural baiana, acreditamos que um novo horizonte se abre para os músicos. Os músicos são chamados a pensarem os possíveis caminhos musicais que a Bahia pode tomar. Fabricar uma fórmula cultural é uma verdadeira realização para aqueles que o fazem, porém até mesmo o maior entusiasta de tal fórmula se cansa da mesmice. Novas responsabilidades surgem para os músicos na contemporaneidade musical da Bahia. 133 FONTES Depoimentos Orais Helder Mello de Araújo. Entrevista concedida ao autor, em junho de 2009, em sala de aula, 40 minutos. Ivan Bastos. Entrevista concedida ao autor, em março de 2010, em sua residência, 45 minutos. Luciano Calazans. Entrevista concedida ao autor, em março de 2010, em sua residência, 90 minutos. Nikolaus Hatzinikolaou. 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