UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
MESTRADO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA
UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE
SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC
Santo Antonio de Jesus
2011
WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA
UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE
SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em
História Regional e Local, Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre.
Orientador: Prof. CHARLES D’ ALMEIDA SANTANA
Santo Antonio de Jesus
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Pereira, Wadson Barbosa Calasans
Uma história de músicos do carnaval de Salvador : sindicato e axé-music / Wadson Barbosa
Calasans Pereira . – Salvador, 2011.
139f.
Orientador: Prof. Charles D’Almeida Santana.
Dissertação (Mestrado em História ) – Universidade do Estado da Bahia. Campus I. 2011.
Contém referências.
1. Músicos - Salvador(BA) - História. 2. Axé-music - História. 3. Carnaval - Salvador(BA).
4. Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado da BahiaI. I. Santana, Charles D’Almeida.
II. Universidade do Estado da Bahia.
CDD: 780.98142
TERMO DE APROVAÇÃO
WADSON BARBOSA CALASANS PEREIRA
UMA HISTÓRIA DE MÚSICOS DO CARNAVAL DE
SALVADOR: SINDICATO E AXÉ-MUSIC
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
BANCA EXAMINADORA
CHARLES D’ ALMEIDA SANTANA
Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Universidade do Estado da Bahia.
RAPHAEL RODRIGUES VIEIRA FILHO
Doutor em História do Brasil, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Universidade do Estado da Bahia.
RINALDO CESAR NASCIMENTO LEITE
Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Universidade Estadual de Feira de Santana.
Santo Antonio de Jesus, setembro de 2011.
Dedico este trabalho a Silvia Bochicchio, a minha família, aos músicos entrevistados, ao
músico e amigo Neyvan Cruz (in memorian), aos músicos brasileiros e a todos aqueles
que acreditam que é possível construir um outro modo de vida, que seja mais digno
para todos.
Agradeço a todos que contribuíram, de algum modo, para a realização deste trabalho,
aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da
UNEB, aos colegas do curso e, especialmente, aos professores Charles D’ Almeida
Santana, Raphael Vieira Filho e Rinaldo Leite, a Silvia Bochicchio, a Luciano Calazans,
Cassio Calazans, Carine Calazans, a Jamile Calazans, a minha mãe Ana Lúcia, a meu
pai Wadson Calazans e a todos os músicos baianos.
"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece
habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa
natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de
arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural,
nada deve parecer impossível de mudar".
Bertold Brecht
Resumo
Este trabalho analisa o fazer-se dos músicos de Salvador. Através do mundo
vivido daqueles trabalhadores, procuramos apontar as diversas situações nas quais os
músicos estiveram inseridos nas décadas de 1980 e 1990. Buscou-se compreender as
transformações pelas quais estes trabalhadores passaram, situando-os no processo de
mercantilização do Carnaval de Salvador. Refletimos sobre aquelas mudanças a partir
das décadas de 1980 e 1990. Discutimos, dentro daquele processo, de que maneira os
músicos se comportaram, de que forma vivenciaram aquele movimento histórico pelo
qual passou o Carnaval. Trazemos aqui aspectos do modo de vida dos músicos; a
dinâmica do espaço de trabalho daqueles profissionais; o conteúdo contraditório da
experiência daqueles trabalhadores. Há a sistematização de algumas reverberações ensejadas pelas mudanças que ocorreram no Carnaval - nos músicos da cidade.
Finalmente, apontamos também a gênese da indústria cultural carnavalesca.
Palavras-chave: músicos; trabalho; Carnaval; festa-negócio; vivência.
Abstract
This work examines the making of musicians in Salvador. Through the lived world
of those workers, we tried to point out several situations in which the musicians were
included in the 1980 and 1990. We tried to understand the transformations which these
workers passed, placing them in the process of commodification the Carnival of
Salvador. We reflect about those changes from the 1980 and 1990. We discuss, within
that process, how the musicians behaved, how they lived this historic movement through
which passed the Carnival. We are bringing aspects of the lifestyle of musicians, the
dynamic workspace of those professionals, the contradictory content of experience of
those workers. There is the systematization of some reverberations - caused by the
changes that occurred in the Carnival – in the city's musicians. Finally, we also point out
the genesis of cultural industry of Carnival
Keywords: musicians; work; Carnival; business-party; experience.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
9
1
26
VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE TRABALHADORES DA MÚSICA
1.1 Aspectos de uma profissão
26
1.2 Combatendo a exploração, as dificuldades e o desemprego
49
1.3 Gravações, direitos, lutas sindicais e Carnaval
54
2 OS MÚSICOS PROTESTAM: SINDIMÚSICOS E O CARNAVAL
61
2.1 Imprensa, músicos e suas considerações
61
2.2 Um ‘’olhar’’ panorâmico sobre o processo
87
2.3 O sindicato e o circuito dos bairros como espaços carnavalescos de
93
trabalho
3 A AXÉ-MUSIC E SEUS DESDOBRAMENTOS
98
3.1 A festa-negócio
99
3.2 Quando os músicos se profissionalizam
113
3.3 A consolidação de uma indústria fonográfica: novas possibilidades para 117
os músicos?
3.4 O trabalho dos músicos a partir da axé-music
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
128
FONTES
133
REFERÊNCIAS
136
9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Fiz este livro comigo mesmo, com minha vida e com meu coração.
Ele é fruto de minha experiência [...] Ele provém de minha
observação e de minhas relações com amigos e vizinhos; e o recolhi
nas estradas (Jules Michelet)
O Carnaval de Salvador é também um produto dos músicos da cidade. São
trabalhadores. Portanto, é sob esta consideração fundamental que se pretende
discutir sobre estes sujeitos. Os seres humanos que cumprem a ‘’função’’ de
músicos numa determinada sociedade podem expressar bem o modo através do
qual se concebe a arte e a cultura em que ele ou ela se situa. É preciso, portanto,
investigar quem são esses indivíduos, trabalhadores do Carnaval.
O que se busca é compreender um movimento histórico que tem relações
com as transformações que esta categoria de trabalhadores sofreu: o processo de
mercantilização do Carnaval de Salvador ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990.
Mas não apenas isto. É perceber, dentro deste processo, de que maneira os
músicos se comportaram, de que maneira vivenciaram aquele movimento histórico
pelo qual passou o Carnaval.
Quais foram as reverberações daquelas transformações nos músicos da
cidade? Neste movimento histórico, no qual o privado ganha ênfase, ao mesmo
tempo em que condicionantes políticos e econômicos redefinem uma tradição — o
Carnaval —, começa a se configurar uma nova realidade de mercado.
A partir daquelas características que começavam a se delinear em torno da e
na festa, tipos diversos de alongamentos daquela nova dinâmica foram criados; por
exemplo, os chamados ‘’carnavais fora de época’’. E os músicos, como outros tantos
grupos sociais que integram a dinâmica carnavalesca, não passaram incólumes
naquele movimento.
Nesse passo, buscamos situar os músicos naquelas transformações, bem
como perceber essas transformações a partir de suas experiências. Experiências
que são de ordem e natureza diversas. Escolhemos discutir sobre estes sujeitos, as
suas experiências, os papéis sociais atribuídos a eles, bem como os modos através
dos quais perceberam certas mudanças ocorridas no Carnaval, por acreditarmos
que, apesar de sua aparição constante em diversos espaços na Cidade do Salvador,
pouco se sabe a respeito da heterogeneidade desta categoria profissional.
10
Como bem nos salienta o historiador Eric J. Hobsbawm, a história de qualquer
classe não pode ser escrita se a isolarmos de outras classes, dos Estados,
instituições e idéias que fornecem sua estrutura, de sua herança histórica e,
obviamente, das transformações das economias que requerem o trabalho
assalariado industrial e que, portanto, criaram e transformaram as classes que o
executam (HOBSBAWM, 2000, p.11).
É difícil escapar da vivência, e esta pesquisa representa, de certo modo, isto.
Por ser também músico e historiador — necessariamente nesta ordem —, não
haveria outro tema mais interessante senão o de falar sobre músicos através dos
horizontes da história. Fui criado neste ambiente: o do trabalho musical. Por isso
mesmo é que muitas coisas perpassavam o nosso imaginário em relação ao que
representava, de fato, ser um músico, mais precisamente um músico em Salvador
durante as festas momescas.
Conversando com músicos mais velhos, amigos e membros da nossa família,
buscávamos sempre saber se algum dia, em algum momento e lugar da história, os
músicos haviam questionado as suas condições de trabalho em Salvador; se tinham
notado — como sujeitos da história que fazem e que vivem, enfim, como
trabalhadores que são — as mudanças ocorridas em um dos seus principais
espaços de trabalho: o Carnaval de Salvador. Perguntávamos se haviam percebido
as mudanças ocorridas, ao longo da história, nesta profissão.
Esta pesquisa representa o desdobramento de uma busca que foi iniciada em
agosto de 2005, e que certamente seguirá em andamento mais apaixonado do que
dantes. A pesquisa não gira apenas em torno de trabalhadores de um dado ramo da
produção industrial, mas também de expectativas, de descobertas fascinantes, de
busca de significados. Uma vez que cada sociedade concebe a sua maneira o que
um músico representa para ela.
Quisemos saber, entre outras coisas, através daquelas experiências, o que
ocorreu, como a sociedade soteropolitana percebia o músico e vice-versa. Como
havia ocorrido em algum momento a concretização de uma experiência de classe.
Espera-se que este trabalho possa constituir-se realmente numa memória histórica
desses indivíduos. Que possa, de alguma maneira, dar visibilidade a eles.
Nesse momento das considerações iniciais, cabe também chamarmos a
atenção para um dado específico desta pesquisa.
O autor desta é músico
profissional. Faz-se necessário destacar isto. Não deixar explícito o lugar social do
11
qual partimos é uma ‘’missão’’ impossível. E assim como a maior parte dos músicos,
profissionalizou-se muito cedo. Aos quinze anos estava nos bares da vida tocando,
iniciando a profissão.
A partir de 1998, seguiu trabalhando ativamente no circuito da música
comercial de Salvador, isto inclui evidentemente o Carnaval. Depara-se com
algumas situações semelhantes às vivenciadas pelos músicos entrevistados nesta
pesquisa. Atuou no fim da década de 1990 no Carnaval de Salvador, no circuito que
chamamos aqui de circuito hegemônico, e também nos carnavais dos bairros.
Buscou-se
realizar
nesta
investigação,
entre
outras
coisas,
uma
sistematização das experiências históricas dos músicos, uma codificação das
diversas dimensões do mundo vivido destes sujeitos. Esta empreitada se deu sob a
inquirição dos procedimentos metodológicos próprios da História.
Todavia, pelo fato de investigarmos sujeitos históricos tão específicos, os
músicos, e também pelo fato do nosso objeto de estudo estar ‘’classificado’’, do
ponto de vista temporal, como ‘’passado recente’’, algumas técnicas de pesquisa
que são largamente exploradas por outras áreas do saber foram necessárias. O
processo histórico sobre o qual discutimos neste texto está ainda em curso.
Por isto, além das técnicas de pesquisa próprias da nossa disciplina, aquela
técnica que os antropólogos sociais chamam de ‘’observação participante’’, mais as
entrevistas, foram técnicas que surgiram em nossa investigação histórica a partir das
exigências específicas do nosso estudo. O historiador Eric J. Hobsbawm chamou a
atenção dos historiadores a este respeito.
Argumentando sobre determinadas situações de pesquisa nas quais os
historiadores se vêem forçados a fazerem uso de técnicas de outras áreas, ele
afirma
[...] experimentamos igual necessidade das técnicas para a
observação e análise em profundidade de indivíduos específicos,
pequenos grupos e situações que também foram desbravados fora
da história, e que podem ser adaptados aos nossos objetivos – por
exemplo, a observação participante dos antropólogos sociais, a
entrevista em profundidade [...] No mínimo, essas várias técnicas
podem estimular a procura de adaptações e equivalentes em nosso
campo que podem ajudar a responder questões de outro modo
impenetráveis (HOBSBAWM, 2005, p. 89).
A nossa pesquisa parte em primeiro lugar, e a cima de tudo, da empiria
necessária a qualquer trabalho acadêmico. Nossas argumentações e explicações
12
estão situadas e respaldadas em um conjunto de fontes que faz parte de uma
dinâmica específica. Os jornais constituíram uma importante fonte para melhor
compreender algumas ‘’visões’’ de determinados grupos sociais existentes no
período que foi trabalhado.
A imprensa foi pensada, neste sentido, como mais uma, dentre outras,
interpretação construída sobre o ‘’fato’’, sobre o ‘’real’’. Uma das qualidades
peculiares que os jornais possuem é a periodicidade: os jornais constituem-se em
verdadeiros ‘’arquivos do cotidiano’’, nos quais podemos acompanhar a memória do
dia a dia e estabelecer a cronologia dos fatos (ESPIG, 1998, p. 274).
Desse modo, através de análises críticas dos jornais da época, buscou-se
extrair opiniões, visões e intenções de ordens diversas. Foram utilizados também
alguns documentos ‘’oficiais’’, como atas e diários oficiais. Os documentos oficiais
produzidos pela sociedade política nos forneceram algumas ‘’pistas’’ sobre o tipo de
tratamento que foi dado pelo poder público às reivindicações feitas pelos
trabalhadores da música.
Os diários oficiais explicitaram, em certo sentido, a ‘’cultura política’’ da época,
na qual estiveram imersos os líderes do sindicato, os músicos e os parlamentares. O
SindiMúsicos nos forneceu fontes riquíssimas, tais como: atas, jornais sindicais,
recibos de proventos salariais, entre outros.
Realizamos
entrevistas
com
os
músicos
sindicalizados
e
os
não
sindicalizados. Foram entrevistados os músicos que, de algum modo, trabalharam
continuamente em carnavais do período, bem como os músicos que haviam tido
algum tipo de experiência de trabalho no Carnaval, ainda que não tivessem
trabalhado continuamente no mesmo.
O que se buscou, com as entrevistas que foram realizadas, foram aspectos
de experiências compartilhadas por aqueles trabalhadores. Experiências que se
deram dentro e fora do âmbito de trabalho. Sendo assim, os depoimentos nos
revelaram contradições, antagonismos, conflitos, ‘’dubiedades’’ da identidade do
trabalhador.
Elementos que quando cruzados com fontes de outra natureza, podem
descrever melhor alguns aspectos do real. Na realidade, as fontes escritas e orais
não são mutuamente excludentes. Elas têm em comum características autônomas e
funções específicas que somente uma ou outra pode preencher, ou que um conjunto
de fontes preenche melhor que a outra (PORTELLI, 1997, p. 26).
13
Portanto, o cruzamento dessas evidências – os relatos dos sujeitos com as
fontes escritas - foi de fundamental importância para entendermos a história desse
grupo social não hegemônico. Não esqueçamos que fontes orais são uma condição
necessária para isto, embora não suficiente. Elas são menos necessárias para a
história dos grupos dominantes, que têm tido controle sobre a escrita e deixaram
atrás de si um registro escrito muito mais abundante (PORTELLI, 1997, p. 37).
Diante do que até aqui foi exposto, não podemos prescindir uma questão:
como consideramos a história, o seu fazer, a noção de ‘’prova’’, de conceito,
evidência e narrativa. Evidentemente, todas as questões mencionadas abririam
espaço para a produção de cem dissertações ou teses. Há muitas controvérsias,
vários tipos de considerações. Mas, ainda assim, indicaremos alguns caminhos nos
quais trafegamos.
Além de outras ‘’pistas’’ que fornecemos para o leitor ao longo do texto no que
se refere às nossas considerações sobre a pesquisa histórica, trazemos à luz a
seguinte consideração: a história possui uma lógica específica, algo que o
historiador Edward P. Thompson chamou de Lógica histórica. O entendimento deste
historiador do que vem a ser esta lógica, engloba grande parte das questões
levantadas no parágrafo acima. Thompson nos diz o seguinte:
Por ‘lógica histórica’ entendo um método lógico de investigação
adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a
testar hipóteses quanto à estrutura, causação etc. [...] O discurso
histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e
evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um
lado, e a pesquisa empírica, do outro. O interrogador é a lógica
histórica; o conteúdo da interrogação é uma hipótese — por exemplo,
quanto à maneira pela qual os diferentes fenômenos agiram uns
sobre os outros —; o interrogado é a evidência, com suas
propriedades determinadas (THOMPSON, 1981, p. 49).
A nossa narrativa é a expressão da natureza das perguntas que fizemos às
nossas evidências. A interrogação e a resposta são mutuamente determinantes, e a
relação só pode ser compreendida como um diálogo. Há formas de diálogos que são
reveladas com determinadas evidências. A arte de contar histórias é, por si só, um
tema histórico que desperta grande interesse (BURKE, 2002, p. 179).
É importante salientarmos que a nossa narrativa pode parecer, à primeira
vista, para o leitor, uma narrativa não seqüenciada. E pode ser verdade. A tentativa
de entender as experiências de uma categoria de trabalhadores, de compreender
aspectos diversos ligados à classe trabalhadora, talvez tenha nos levado a incorrer
14
neste tipo de narrativa. Há, evidentemente, uma série de assuntos correlatos que
discutimos ao longo dos capítulos.
Mas por ser a classe trabalhadora um fenômeno histórico, que unifica uma
série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na
matéria-prima da experiência como na consciência (THOMPSON, 1987, p. 9),
acabamos também por gerar, talvez por termos acompanhado inconscientemente
esta dinâmica, uma narrativa não seqüenciada, como mencionamos.
Devemos esclarecer outros aspectos da trajetória desta pesquisa. Fizemos
menção a alguns. Quando nos metemos a escarafunchar a vida dos músicos de
Salvador, já possuíamos muitas ‘’peças’’ do ‘’quebra-cabeça’’ que representa esta
pesquisa.
É como se já soubéssemos a resposta de algumas perguntas que foram
lançadas, inicialmente. A pesquisa histórica, com todo seu aparato metodológico,
trouxe complexidade àquelas inquietações. Através da pesquisa histórica, uma
curiosidade
ingênua,
ainda
fragmentada,
transforma-se
em
curiosidade
epistemológica.
Sabe-se que os músicos compõem uma categoria heterogênea de
trabalhadores. Algumas fontes foram buscadas aqui no sentido de evidenciar esta
situação. O ''desigual'', o ''irregular'', os componentes diferentes, enfim, estes
elementos que compõem as características de um dado heterogêneo, no caso dos
músicos, tanto na sua dimensão socioeconômica como também na dimensão
simbólica.
De tal forma que, na esfera simbólica, por exemplo, observamos que apenas
a dimensão da ''fama'', do músico ''bem sucedido'' porque é famoso e vice-versa,
esta dimensão específica, tendeu a aparecer mais para alguns setores da sociedade
civil soteropolitana quando do processo de mercantilização do Carnaval de Salvador.
E para alguns músicos, aquela dimensão havia se tornado um fim em si mesmo.
Para outros, o sentido de ser musicista no Carnaval não tinha relação, tão somente,
com aquela dimensão.
Há um grande esforço em apreender isto ao longo do texto, de modo que a
explicitação da heterogeneidade aparece ‘’diluída’’ no corpo do trabalho, e não numa
parte específica.
A partir da espetacularização do Carnaval de Salvador, o público consumidor
— fundamentalmente a classe-média soteropolitana— daquele Carnaval-espetáculo
15
não compreendia bem os traços daquela heterogeneidade dos músicos enquanto
uma categoria de trabalhadores. E isto por vários motivos. Não vamos retomar aqui
nas considerações iniciais alguns dos motivos, eles estão presentes nas linhas que
se seguem.
Ao que tudo indica, aquele processo de mercantilização, de espetacularização
do Carnaval apresentou os seus contornos, nitidamente, na década de 1980. Assim,
na segunda metade da década de 1980 é possível observar um Carnaval regido por
um forte ‘’aparelho publicitário’’, cujo objetivo foi apresentar o Carnaval nos moldes
de um produto a ser consumido.
A noção
de mercantilização é a própria noção de mercadoria. Ou seja,
mercantilizar é transformar algo em mercadoria, ou simplesmente lançar mão única
e exclusivamente de um mesmo processo que caracteriza a mercadoria numa
sociedade capitalista. O filósofo e crítico literário Georg Lukács afirmou que
‘’A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias
vezes. Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o
caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma ‘objetividade
fantasmagórica’ que, em sua legalidade própria, rigorosa,
aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de
sua essência fundamental: a relação entre os homens’’(LUKÁCS,
2003, p. 194).
E quanto ao espetáculo? O espetáculo é o ‘’mundo da mercadoria’’
absolutizado. O filósofo e diretor de cinema Guy Debord afirmou em seu livro A
sociedade do espetáculo que o ‘’espetáculo é o momento em que a mercadoria
ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível,
mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo’’
(DEBORD, 1997, p.30).
Depois de explicitar alguns termos, cabe fazer mais uma pergunta: e os
músicos? Onde eles aparecem em meio a tudo que até aqui foi exposto? Os
músicos constituem um importante elemento dentro da dinâmica carnavalesca, seja
por conta da sua produção — no sentido mais amplo do termo— musical, seja por
conta da própria natureza da festa.
A partir daquelas transformações sofridas pelo Carnaval — o surgimento de
uma indústria carnavalesca robusta—, os músicos profissionais passaram a permear
o imaginário da sociedade baiana sob diversos aspectos. Um deles foi a relação,
quase que mecânica, que alguns setores da sociedade soteropolitana passaram a
16
fazer entre a aparição de um músico nos espaços midiáticos e sua condição
socioeconômica ‘’privilegiada’’ por conta de ele ou ela — o musicista — haver se
tornado ‘’famoso’’.
De fato, não se sabe ao certo como esses trabalhadores vivenciaram —
naquele processo de mercantilização do Carnaval — as suas experiências
cotidianas; tampouco sabe-se a respeito das contradições existentes dentro e fora
do âmbito do seu trabalho. Investigar aquele processo histórico, situando os
músicos, o lugar social destes sujeitos, foi um mote para alcançarmos algumas
análises sobre estes indivíduos.
Buscamos situações diversas, tais como: a exploração generalizada no seio
da categoria, praticada muitas vezes por músicos-empresários — de níveis e
categorias diversos —; o tipo de relação que o poder público manteve na época com
estes sujeitos; e de que forma — e o porquê— ‘’apareceram’’ nos discursos
produzidos pelos diversos setores da sociedade civil soteropolitana no período ora
tratado, isto é, as décadas de 1980 e 1990.
O motivo da escolha das décadas de 1980 e 1990 para a realização da
pesquisa decorre da observação de evidências que apontaram mudanças
significativas no Carnaval naquele período. As bandas que surgiram e que estiveram
ligadas ao aperfeiçoamento tecnológico do qual o Carnaval se beneficiou, aquelas
bandas bem como os seus músicos acompanharam e sentiram a rápida
transformação do Carnaval num grande mercado. Este é o motivo essencial da
utilização desta demarcação.
Do ponto de vista acadêmico, pode-se argumentar que foi uma tentativa de
construir, através deste recorte temporal/espacial, uma história social dos músicos. A
relevância do tema, bem como de sua investigação, consiste na busca de uma
interpretação de um movimento histórico que tem raízes na segunda metade da
década de 1970, passando por toda a década de 1980.
Nesta pesquisa, tiramos os músicos da cena do espetáculo e trouxemos os
mesmos para o mundo do trabalho. O que equivale a argumentar que fizemos uma
história do trabalho. Aqui o trabalhador, o operário do período momesco aparece,
mas o mesmo não se pode dizer do ‘’artista’’, do ‘’indivíduo famoso’’.
É importante destacar que tem havido um ‘’renascimento’’ criativo do campo
da história do trabalho. No livro Culturas de Classe, os autores Claudio H. M.
Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes argumentam que
17
Tendências atuais da historiografia têm-se voltado cada vez mais
para a diversidade, a divisão e os conflitos internos à classe operária
[...] A classe vem cedendo terreno para estudos linguísticos, étnicos
e culturais, entre outros, abrindo a história para trocas conceituais e
abordagens transdisciplinares. O resultado é a ampliação do leque
temático da história do trabalho, compondo um quadro multifacetado
da vida dos trabalhadores (BATALHA; SILVA; FORTES , 2004, p.
13).
O historiador Eric J. Hobsbawm pontuou também mudanças substanciais na
produção da história operária. Ele afirmou que
A mudança na situação dos movimentos organizados tendeu a
ampliar as perspectivas dos historiadores do movimento operário.
Eles estão cada vez mais preocupados com as bases tanto quanto
com os líderes, tanto com os não-sindicalizados, quanto com os
sindicalizados, com o ‘trabalhador conservador’ tanto quanto com o
radical ou revolucionário – em resumo, mais com a classe, do que
com o movimento ou com o partido. Isto é bom (HOBSBAWM, 2005,
p. 20-21).
Efetivamente, a reorientação social que o Carnaval de Salvador sofreu, talvez
mais explicitamente naquelas décadas, provocou a mudança da participação das
bandas e dos músicos nesta festa, e igualmente acelerou o processo de
‘’burocratização’’ e espetacularização da mesma. Há que se destacar também a
complexa divisão social do trabalho que foi se desdobrando na festa.
Isto constitui mais um dado relevante para a escolha do recorte temporal. Foi
possível observar uma espécie de redistribuição da dinâmica carnavalesca.
Surgiram novas relações sociais de trabalho para os músicos. A reorganização que
se deu teve como fito construir e consolidar as bases de um mercado. O Carnaval
passou a ser, entre outras coisas, um mosaico de toda sorte de produtos, entre os
quais o produto ‘’música do Carnaval’’. Em outros termos, a criação de um grande
‘’supermercado da música’’.
As formas de negociações realizadas pelo poder público com os agentes
privados, e a criação de órgãos devidamente credenciados para estes fins,
constituem-se em evidências significativas em relação à burocratização. Já a
participação intensa das corporações midiáticas, com fins categoricamente
hegemônicos, mercadológicos — tanto internamente como externamente—,
expressa, sem dúvida, a espetacularização a que fizemos referência.
A explosão de blocos afro em fins da década de 1970, a sua intensa
18
participação no Carnaval dos anos 80, a importância dada pela mídia — local e
nacional — ao Carnaval de Salvador a partir da segunda metade da década de 1980
(GUERREIRO, 2000, p. 133-139), o fato de os blocos afro se tornarem uma nova
força
na
economia
local
(GÓES,
2000,
p.
106),
tudo
isso,
contribuiu
significativamente para uma mudança de postura dos músicos — consciente ou
inconscientemente— tanto no que diz respeito à sua imagem como também no que
se refere à afirmação do seu trabalho nessa nova dinâmica que o Carnaval ganhara,
sendo a década de 1990 o período de convergência desses elementos.
Sobre a relevância social do tema, pode-se talvez afirmar que tal investigação
consistiu em tentar perceber como estes diversos músicos estavam inseridos no
‘’negócio carnavalesco’’; procurou observar também como uma grande parte dos
músicos que fizeram e fazem parte dessa indústria sofreu — e ainda sofre—,
sobremaneira, necessidades materiais situadas nos níveis mais básicos da
produção da subsistência.
Discutir a mercantilização do Carnaval de Salvador foi o caminho mais
interessante que ‘’pegamos’’ para provocarmos reflexões no que diz respeito às
‘’características’’ que a profissão foi ganhando no espaço carnavalesco, ao longo
das complexas transformações pelas quais passou o Carnaval. Foi um caminho
importante para trazermos também o que é ser músico, sob alguns aspectos, no
cotidiano da Cidade do Salvador.
Deve-se salientar, no entanto, que falamos de músicos com perfis diferentes
daqueles músicos urbanos que outrora tinham uma ‘’vida simples’’, mas que
conseguiram dentro da indústria do Carnaval ascender materialmente, passando
assim, a fazer parte do show business carnavalesco.
Entre justificativas consideráveis para o tema que investigamos, uma delas é
evidenciar, através da complexa constituição desta categoria de trabalhadores, e
dos diferentes perfis dos músicos, quão pequeno foi — e ainda é— o número de
sujeitos que se transformaram em músicos-empresários e/ou artistas-empresários
nesta época.
Argumentamos que o processo de mercantilização do Carnaval de Salvador
alterou, modificou sobremaneira, num curto espaço de tempo, o sentido amplo que a
noção de músico traz consigo, pelo menos quando vista a partir do espaço
circunscrito ao Carnaval, no qual indivíduos com habilidades melódicas, harmônicas
e rítmicas de alguma maneira tenderam a aparecer naquele espaço/tempo
19
momesco.
Mas que sentido amplo é este? O que é ser um músico? Todo ser humano
aficionado ou amante de música pode ser considerado músico ou musicista. Só tem
que há aqueles que escolhem cumprir a função, exercer a função de músico numa
dada sociedade. Os indivíduos que exercem a função de musicista – às vezes ao
lado de outro ofício qualquer – numa dada sociedade desempenham tal função a
partir de uma infinidade de situações sociais e culturais.
Se música é a arte de expressar a combinação de sons, sendo ela dividida
em três partes, melodia, harmonia e ritmo, um músico é então todo e qualquer
indivíduo capaz de articular, fruir e apreciar de maneira consciente ou não estas
propriedades (BONA, 1999, p. 3).
Os músicos com os quais dialogamos nesta pesquisa estão situados no
universo carnavalesco. E naquele universo, músicos partícipes de bandas ou
conjuntos musicais com formação específica: guitarra, baixo, instrumentos
percussivos e voz. Estes tipos de instrumentistas aparecem, na história do Carnaval
baiano, associados ao trio elétrico. Bandas ou conjuntos musicais que ficaram
ligados à revolução tecnológica que acompanhou o trio elétrico.
Contudo, aqueles tipos de conjuntos não ficaram restritos, em termos de
exibição no Carnaval, ao espaço do trio. Aqueles conjuntos musicais se
apresentavam também em outros tipos de palcos com características diferentes dos
''palcos andantes'' dos trios elétricos. Eram os chamados palcos fixos. Nesta
investigação, trouxemos guitarristas, baixistas e percussionistas.
Cabem ainda nas considerações iniciais alguns comentários sobre os
músicos entrevistados, embora tenhamos apresentado muitos aspectos da vida
deles ao longo do texto. Nikolaus Hatzinikolaou, um dos entrevistados, tem uma
ligação de longa data com a família do autor. Realizamos a entrevista em sua casa.
Quando tivemos o primeiro contato com Nikolaus, estávamos com sete anos
de idade. Companheiro de trabalho do músico Luciano Calazans, a quem estamos
ligados pelos laços de consangüinidade, Nikolaus era naquele ano de 1990 um
músico atuante na noite de Salvador. A entrevista que nos concedeu, assim como as
outras que aqui se encontram, foi importante e esclarecedora em todos os sentidos.
Helder Mello de Araújo foi outro músico que nos forneceu importantes relatos.
Tínhamos conhecimento da existência desse profissional. Além do músico Luciano
Calazans, outros músicos haviam comentado dele para nós. Helder tornou-se
20
professor de História. Mas, segundo ele mesmo, não deixou por isso de ser músico.
Segundo ele, as razões pelas quais assumiu a docência são diversas.
Dentre as muitas razões que expôs, enquanto conversávamos, destacamos
especialmente uma: as diversas incertezas, sobretudo a econômica, que acometem
o profissional da música. Fizemos a entrevista com ele em uma sala de aula. Helder
também trabalhou muitas vezes no Carnaval de Salvador. Trabalhou com alguns
grupos famosos na década de 1990.
Outro profissional com quem dialogamos foi Jorge Patrício Solovera.
Solovera, como costumamos chamá-lo, também é um músico próximo da família do
autor. Trabalhou inúmeras vezes no Carnaval de Salvador. Ele nos concedeu a
entrevista em sua casa, onde tem um estúdio no qual trabalha diariamente fazendo
gravações, produções e edições musicais. Foi justamente nestas circunstâncias,
trabalhando no estúdio em uma música, que ele nos forneceu o seu relato.
O músico Ivan Bastos nos deu a entrevista em sua casa. Conhecíamos a
trajetória desse profissional. Receptivo, ao explicarmos sobre os objetivos da
pesquisa, os assuntos abordados etc., argumentou que a proposta era legítima e
que apoiaria a difusão do trabalho. Afirmou isto deixando escapar, segundo a nossa
interpretação, uma mistura de empolgação e satisfação com a nossa temática.
O músico profissional Gerson Silva foi entrevistado num estúdio de gravação.
Em um ensaio com o músico Luciano Calazans, contou-nos sobre o início da
carreira como músico profissional, sobre suas conquistas e dificuldades. Gerson
Silva é também, como alguns músicos que mencionamos anteriormente, muito
próximo à família do autor.
O baixista Luciano Calazans, irmão do autor, também concedeu a entrevista
em sua residência. Ao lado dos filhos, falou da sua vida profissional, expôs
insatisfações e reconheceu alguns avanços em seu âmbito de trabalho. Pelo fato de
conhecermos Luciano há 28 anos, isto nos colocou numa posição confortável para a
realização das perguntas. Tivemos a oportunidade de fazer algumas perguntas que
geralmente são mais ‘’delicadas’’, tanto para o entrevistado quanto para o
entrevistador.
Por fim, entrevistamos também o músico profissional Ivan Huol. Ele nos deu a
entrevista em sua residência, a mais extensa deste trabalho. Sozinho em sua casa,
na qual existe uma produtora ‘’improvisada’’, conversou longamente conosco. Ivan
Huol é responsável por um grande projeto musical que existe em Salvador. O projeto
21
chama-se Jam no Mam.
De qualquer maneira, fizemos estes comentários breves intencionalmente. Os
próprios músicos expõem, de forma mais detalhada, aspectos importantes de suas
vidas ao longo das linhas que se seguem. Temos certeza que a exposição deles irá
complementar — dando um sentido mais concreto— a nossa sucinta descrição das
circunstâncias nas quais as entrevistas ocorreram.
Faz-se necessário destacar que as preocupações, as reflexões, enfim, o
‘’olhar’’ empregado neste trabalho encontra-se no ‘’terreno fértil’’ da história social. E
uma pesquisa que se arroga ser construída e pensada no terreno daquilo que alguns
historiadores chamam de história social, não pode prescindir as diversas esferas
sociais nas quais as ideias, visões e intenções se apresentam e se consubstanciam.
O historiador que busca trabalhar no terreno da história social não deve e não
pode deixar de apontar, na medida do possível, aspectos diversos do organismo
social. O historiador Eric Hobsbawm admoestou os historiadores quanto ao
significado e a prática daquilo que chamamos de história social. Ele diz que
A história social nunca pode ser mais uma especialização, como
história econômica ou outras histórias hifenizadas, porque seu tema
não pode ser isolado. É possível definir certas atividades humanas
como econômicas, pelo menos para fins analíticos, e depois estudálas historicamente. Embora isso possa ser artificial [...] ou irreal, não
é impraticável. [...] Mas os aspectos sociais ou societais da essência
do homem não podem ser separados dos outros aspectos de seu
ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização. Não
podem ser separados, mais que por um momento, dos modos pelos
quais os homens obtêm seu sustento e seu ambiente material
(HOBSBAWM, 2005, p. 87).
Partiu-se, nesta investigação, de uma situação-problema. Havíamos notado
que alguns estudiosos do Carnaval de Salvador afirmavam que a festa havia
passado por um processo de mercantilização. À medida que nos debruçávamos
sobre algumas teses e dissertações que apresentavam aquelas circunstâncias —
alguns desses estudos aparecem aqui—, fomos percebendo que os músicos não
haviam sido inseridos naquele contexto.
De fato, a partir daqueles estudos, bem como de outras referências, fomos
convencidos de que aquele processo se desdobrou. Mas, e os músicos? Como
ficaram naquele fenômeno? Nasceram daí as nossas inquietações. Ora, houve
aquele processo, mas quais foram as implicações efetivas dele no modo de vida,
22
bem como no cotidiano dos músicos da cidade? Como perceberam, enquanto uma
categoria de trabalhadores, as reverberações daquele processo?
Fomos aprofundando as nossas perguntas. Começamos então a nos indagar:
quais os tipos de experiências, daqueles sujeitos, que podemos retirar dessa
associação: transformações sofridas pelo Carnaval de Salvador e o fazer-se dos
músicos enquanto uma categoria de trabalhadores? A rigor, é basicamente este
conjunto de reflexões que nos pôs nesta investigação. Estas reflexões traduzem o
sentido da nossa problemática.
Destas reflexões, alguns objetivos se apresentaram no horizonte da pesquisa.
Surgiu a necessidade de Investigar como foram ‘’apresentadas’’ pelas sociedades
civil e política baiana as ações do sindicato dos músicos; como os músicos viram o
sindicato, qual havia sido a importância do sindicato para eles. Sabíamos,
evidentemente, da existência do sindicato dos músicos.
Quisemos apreender como os músicos que trabalharam nos carnavais de
bairro viram aqueles que trabalharam no Carnaval do circuito hegemônico. Buscouse investigar também, naquele contexto, sobre possíveis diferenças em relação às
remunerações recebidas para tocar no Carnaval. Tentou-se perceber, através do
processo de mercantilização do Carnaval, certas ‘’forças hegemônicas’’, impostas
tanto pelo Estado como pelos agentes privados. Até que ponto os músicos resistiram
àquelas forças? Até que ponto eles consentiram?
Estabelecemos
uma
relação,
por
exemplo,
entre
o
processo
de
mercantilização do Carnaval de Salvador e as ações dos organismos midiáticos,
locais e nacionais. Outros agentes importantes entraram nesta relação, tais como a
indústria fonográfica e o Estado. Finalmente, objetivou-se ‘’descortinar’’ a vida e o
perfil dos músicos. Quais eram os perfis desses músicos — classe, renda, faixa
etária, origem, escolaridade, filiação a partido etc. —?
Todas as perguntas/reflexões lançadas consubstanciam este trabalho. E a
partir dos arquivos visitados, dos vestígios encontrados, dos exaustivos diálogos
com as evidências com as quais nos deparamos, algumas formas de abordagens
foram sendo delineadas. Fomos levados a abordar as experiências dos músicos
naquelas circunstâncias considerando dois aspectos: as condições materiais
daqueles indivíduos, como também algumas considerações e visões construídas
sobre eles.
23
Assim sendo, tomamos o caminho de algumas reflexões postas por alguns
estudiosos. Saliente-se que tal fato não significa o nosso ‘’enquadramento’’ numa
determinada ‘’camisa de força’’. Efetivamente, o diálogo estabelecido pelo
historiador com as evidências é mediado pelas reflexões do historiador que se utiliza
também, durante todo o processo de pesquisa, de reflexões feitas por outras
disciplinas e por estudiosos diversos. Nesse passo, é desse diálogo que surgem os
conceitos que o historiador vai elaborar (VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY, 1991, p. 26).
Desse modo, a discussão estabelecida pelo historiador inglês E. P. Thompson
sobre a noção de experiência acabou por nos fornecer algumas pistas sobre
determinados modos através dos quais os indivíduos fazem e percebem a sua
história.
Refletindo com este historiador, percebemos a importância de não apenas
investigar os antecedentes sócio-econômicos dos sujeitos, — o que consideramos
também extremamente válido e imprescindível—, mas também decodificar e
compreender as dinâmicas específicas das ações desses sujeitos, com a finalidade
de descobrir a percepção que eles têm deles próprios, e a validade de suas diversas
situações vividas, o significado que atribuem a tais situações (HUNT, 2001, p.64).
A discussão sobre experiência feita por Thompson aparece, de modo
categórico, no célebre ensaio que escreveu chamado A miséria da teoria ou um
planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Debruçamo-nos neste
ensaio, entre outras referências produzidas por este historiador.
Este ensaio aparece em vários momentos neste trabalho. Entretanto, além
do próprio Thompson, trazemos algumas considerações de outros autores a respeito
do termo que foi trabalhado pelo historiador inglês. Aproveitamos para ressaltar a
nossa dívida com este que foi um dos maiores historiadores do século XX.
Quando, por exemplo, o sindicato dos músicos foi criado, oficialmente em
1982, aquela instituição protagonizou ao longo da década de 1980 e 1990, uma
série de protestos. Num desses protestos, percebemos nos jornais de grande
circulação da época que uma parte extremamente significativa dos manifestantes
não havia sido contemplada com a sua ‘’fala’’ nas reportagens; além deles terem
sido ‘’alvo’’ de diversos tipos de projeções.
O protesto de 1993, a criação da Associação dos Músicos do Estado da
Bahia, embates jurídicos, enfim, todos esses fenômenos mantiveram relações
estreitas com a atuação dos músicos no Carnaval. Estes fenômenos ‘’denunciavam’’
24
certas mudanças pelas quais o Carnaval de Salvador passava. Os jornais tendiam a
privilegiar as falas das ‘’lideranças’’ do sindicato e de alguns parlamentares do poder
público municipal que estabeleciam, em cada período, ‘’diálogos’’ com aquelas
lideranças.
Assim sendo, a partir daqueles músicos sindicalizados — e dos não
sindicalizados— trouxemos à luz, entre outras coisas, as suas experiências; o seu
espaço e tempo vividos naquelas circunstâncias específicas de mercantilização e
burocratização do Carnaval. Tentou-se perceber o que sentiram, o que pensaram e
o que desejaram naquele momento histórico.
Com
este
raciocínio,
conseguimos
compreender
melhor
aquelas
transformações ocorridas no Carnaval. E identificamos, em certa medida, alguns
desdobramentos na vida dos músicos. Com isso, notaram-se também alguns
conflitos que existiram entre Estado e músicos — o campo de forças naquele
momento existente.
Acreditamos que algumas reflexões postas a partir da noção de experiência
invocada por Thompson, deram conta, pelo menos num primeiro momento, tanto da
situação material concreta vivenciada pelos sujeitos como também de sua visão de
mundo, dos antagonismos vivenciados, do que está na e além da estrutura de
classes.
Estamos falando do campo de forças que é a sociedade. ‘’A experiência —
descobrimos— foi, em última instância, gerada na ‘’vida material’’, foi estruturada em
termos de classe, e, conseqüentemente o ‘’ser social’’ pressionou a ‘’consciência
social’’ (THOMPSON, 1981, p. 189).
Outra importante discussão, que se fez necessária, foi a de hegemonia do
filósofo italiano Antonio Gramsci. Para uma maior visibilidade das ações da
sociedade política — seus interesses reais, seus mecanismos de deferência, a
utilização de meios coercitivos estatais etc. —, bem como da relação que alguns
setores da sociedade civil mantiveram com o Estado e com os músicos, foi
importante, num primeiro momento, estabelecermos um diálogo com algumas das
muitas reflexões proporcionadas pelo filósofo.
Nos limites das considerações iniciais sobre o trabalho, não podemos, agora,
ir além de apresentar ao leitor, rapidamente, alguns dos temas fundamentais que
aparecem nos capítulos que sucedem. No primeiro capítulo, abordamos as vivências
e as experiências dos músicos. Aspectos e situações diversas da vida dos
25
musicistas são elencados. A relação daqueles trabalhadores com o espaço
carnavalesco é objeto de reflexão, neste primeiro momento.
No segundo capítulo discutimos sobre um protesto dos músicos que ocorreu
em 1993. Refletimos sobre as formas, bem como sobre os conteúdos dos discursos
que foram produzidos e reproduzidos naquela situação específica na qual o protesto
ocorreu. Algumas questões referentes ao período do goveno da prefeita Lídice da
Mata aparecem neste segundo momento.
No
terceiro
capítulo,
buscou-se
perceber
através
do
processo
de
mercantilização do Carnaval, algumas forças hegemônicas. É neste capítulo que
delineamos os traços da festa-negócio. Finalmente, há ainda no terceiro capítulo
uma discussão sobre a axé-music. Este é um dos pontos culminantes do trabalho.
Nele refletimos sobre o desenvolvimento da indústria cultural baiana, entre outras
questões.
26
1. VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE TRABALHADORES DA MÚSICA.
Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas
como idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou
— como supõem alguns praticantes teóricos— como instinto
proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como
sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas,
obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como
valores ou — através de formas mais elaboradas— na arte ou
convicções religiosas. Essa metade da cultura — e é uma metade
completa— pode ser descrita como consciência afetiva e moral
(Edward P. Thompson).
Abordamos neste capítulo as vivências e as experiências dos músicos. Com
isso, desejou-se perceber conflitos, contradições e antagonismos de ordens
diversas. Destacamos também alguns aspectos sobre as primeiras formas de
organização dos músicos. Estas formas aparecem aqui como um meio interessante
não para construirmos uma história institucional ou algo do gênero, mas para
compreendermos o que estava em ‘’jogo’’ na ordem do dia, como se davam as
relações dos músicos com o espaço de trabalho carnavalesco; quais eram os
projetos e as visões de mundo que motivavam aqueles indivíduos. Argumentar-se-á,
nesta parte específica, sobre questões salariais; sobre emprego e desemprego,
entre outros assuntos.
1.1 Aspectos de uma profissão
Os músicos da Cidade do Salvador mantiveram, ao longo do desenvolvimento
histórico de suas atividades, relações complexas com o espaço carnavalesco ali
existente. Se tomarmos, por exemplo, a década de 1980, período situado na
demarcação temporal do nosso estudo, ver-se-á musicistas famosos ou os que
começaram a despontar na TV :
O ano era 1986. Uma jovem cantora invadia os lares brasileiros,
dançando e cantando uma musiquinha de letra fácil e ritmo
contagiante. O Fantástico, da Rede Globo, a apresentava como a
grande revelação da música baiana. Seu nome: Sarajane. A música:
A roda. Começava ali a carreira dessa soteropolitana, que estreou
aos 14 anos no trio elétrico Novos Bárbaros. Desde a primeira
aparição em rede nacional, a nova promessa da música brasileira
transformou-se rapidamente numa estrela. E prometia (Revista
Muito, 30/11/2008, p. 28).
27
Como também encontraremos, dois anos antes, em 1984, musicistas que
viviam o reverso das circunstâncias apresentadas acima. Viviam um ‘’dissídio no
Tribunal Regional do Trabalho, buscando a fixação de condições de trabalho e uma
tabela de preços mínimos para os cerca de três mil músicos que trabalham durante
o Carnaval’’(A TARDE, 3/1/1984, p. 5).
As evidências citadas acima indicam apenas uma parte da complexidade de
que falamos. Há evidentemente outras formas, outros modos, através dos quais
apontaríamos a forma bem como o conteúdo das relações sociais, econômicas,
políticas e culturais complexas que afirmamos ter havido entre os músicos e o seu
importante espaço de trabalho: o Carnaval.
A rigor, tal complexidade daquelas relações se apresenta de maneira
contínua ao longo do corpo do trabalho, seja através dos tipos de evidências escritas
que expomos — e as situações apresentadas por cada uma—, seja por conta das
evidências orais nas quais nos debruçamos para extrair os tipos diversos de
significados, atitudes, enfim, os modos diversos do mundo vivido daqueles
trabalhadores.
Na situação apresentada acima, destacamos um problema que é discutido e
aprofundado ao longo do texto. O problema diz respeito à importância econômica e
cultural que os cantores e cantoras do Carnaval de Salvador foram adquirindo.
Esses musicistas, os cantores e cantoras, abriram um abismo econômico
significativo em relação aos demais. Antes da chegada do cantor ou da cantora no
Carnaval
de
Salvador,
as
apresentações
dos
grupos
musicais
eram
fundamentalmente instrumentais. ‘’[…], 'as conversas' instrumentais se estabeleciam
entre as guitarras baianas […] A partir de 1976, o contrabaixo elétrico é introduzido
no conjunto’’ (GOÉS, 2000, p. 58)
Mesmo havendo uma situação de fama, de ‘’aparição’’ exagerada de um
musicista-líder do grupo, não havia, em 1980, uma quantidade razoável de líderes
de grupos musicais instrumentais cuja situação econômica fosse marcadamente
desigual, se comparada aos outros musicistas do mesmo grupo. Ocorre que a
situação econômica adquirida posteriormente, num curto espaço de tempo, pelos
cantores e cantoras, torna-se algo descomunal face aos outros musicistas.
O Carnaval de Salvador era — como ainda hoje — um dos eventos mais
importantes para os músicos. Importante porque proporcionava ganhos materiais
interessantes no que dizia respeito à produção da vida; significava, em resumo, um
28
bom período para ganharem “um dinheiro a mais”. Sobre a importância desse
período para os músicos, entre outras coisas, dialogamos com Nikolaus
Hatzinikolaou.
Nikolaus Hatzinikolaou nasceu em 07/1/1971 em Santos, município do estado
de São Paulo. Veio para a Bahia aos 7 anos. Morou a maior parte da sua vida em
Cajazeiras, um bairro de Salvador cujo perfil dos moradores, do ponto de vista sócioeconômico, é de trabalhadores negros não “qualificados”, desempregados e pobres
(SOARES, 2006, p.20).
Este guitarrista profissional completou 39 anos em 2010. Nikolaus foi
entrevistado em junho de 2009. Aos 19 anos fazia baile na noite de Salvador. Ele
argumentou – ao rememorar os carnavais das décadas de 1980 e 1990 – que:
Com certeza, o cachê pago — naqueles carnavais— era bem
razoável e bem melhor até se comparado ao que é pago hoje à
maioria dos músicos de mesma projeção em Salvador no carnaval.
Todos os que tocavam dependiam desses cachês, apesar de alguns
terem outros trabalhos além do carnaval feito pelo sindicato
(Nikolaus).
Ele fez esta afirmação quando conversávamos sobre os cachês pagos pela
prefeitura aos músicos naqueles carnavais dos anos 80 e 90. Falávamos, entre
outras coisas, sobre o “nível” de dependência, por parte dos músicos, daqueles
cachês. A verba para o financiamento dos espetáculos musicais públicos no
Carnaval era repassada, pela prefeitura, para o Sindicato dos Músicos que, por
conseguinte, organizava e selecionava, através de concursos, as bandas que
atuariam em espaços carnavalescos “oficiais”.
Não é necessário fazer muito esforço para perceber que, ao longo do
desenvolvimento do Carnaval, tanto o poder público quanto os agentes privados se
posicionaram face ao Carnaval de Salvador de uma maneira até então ‘’pouco
habitual’’. A ingerência do Estado, multifacetada, na festa era algo observável para
alguns músicos.
De alguma maneira o Estado ainda estabelecia uma espécie de ‘’pacto de
reciprocidade’’ ou de ‘’reconhecimento’’, ainda que relativo, da importância dos
diversos grupos sociais construtores da festa. Aquela importância do Carnaval para
os músicos advinha também em função da ‘’certeza’’ que tinham em relação ao
‘’cumprimento’’ do poder público de suas ‘’obrigações’’ pecuniárias para com aquele
grupo social.
29
Nikolaus começou cedo na profissão. Como ele, o músico Helder Mello de
Araújo também ‘’pôs os pés’’ ainda jovem na ‘’estrada’’, a despeito de ter
considerado a idade com a qual efetivamente começou a trabalhar avançada para
um musicista profissional.
Helder Mello de Araújo nasceu em 21/04/1968 em Goiânia, capital do Estado
de Goiás. Este guitarrista profissional completou em abril de 2010 42 anos. Morou a
maior parte de sua vida, em Salvador, num bairro chamado Joana Angélica. No
diálogo que tivemos, mencionou sobre a sua casa que ficava em frente ao colégio
Central. Ele argumentou que ‘’no mercado não existia a proliferação profissional de
qualquer pessoa pra ser músico [...] Era difícil você encontrar emprego, mas era fácil
ser músico [...] Não existia essa quantidade de músicos desempregados como tem
hoje, essa quantidade de bandas como tem hoje’’.
Helder toca numa questão acima sobre a qual refletimos mais adiante: o
''rearranjo'' que sofreu aquele conjunto de indivíduos musicistas que atuava no
Carnaval de Salvador. A partir da demanda musical que havia no Carnaval enquanto
''entretenimento espontâneo'', bem como da demanda criada pelos mecanismos
nascentes da indústria carnavalesca, isto é, do entretenimento estritamente
comercial, uma produção em larga escala, em série, de bandas ou conjuntos
musicais foi levada a cabo.
No período inicial da indústria carnavalesca não havia uma quantidade
significativa de músicos especializados ou músicos cuja formação técnica atendia
aos novos parâmetros estabelecidos pela complexa e nova divisão do trabalho que
se apresentou naquele Carnaval-negócio. Esta questão é melhor discutida no
terceiro capítulo.
Contudo, cabe ainda refletirmos sobre a massa de músicos desempregados
que começou a surgir. Sabe-se que a existência de uma reserva de força de
trabalho desempregada e parcialmente empregada é uma característica inerente à
sociedade capitalista, é o chamado exército de reserva do trabalho ou exército
industrial de reserva.
A acumulação do capital significa o crescimento daquele exército; há novos
métodos de produção, de maior escala que a própria concorrência obriga os
capitalistas a adotar. E a quantidade de dinheiro que começou a pairar na festa, os
diferentes interesses dos agentes privados, o rápido acúmulo de capital conseguido
por agentes privados específicos, todas estas questões contribuíram na formação
30
daquele novo cenário carnavalesco. [...] ‘’A economia da cidade movimenta mais de
100 milhões de dólares durante o Carnaval [...]’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO,
15/12/1993). ‘’[...] tem-se que levar em conta a mobilização de vários segmentos do
comércio, indústria e serviços como transportes, a rede hoteleira, a indústria de
bebidas [...], cujo faturamento ultrapassa cifras muito além das dezenas de milhões
de dólares’’ (GÓES, 2000, p. 100).
Helder nos disse que
Era fácil você entrar nesse mercado... Então eu entrei. Comecei a
freqüentar o sindicato dos músicos em noventa e um, noventa e
dois... Era um meio muito fragmentado, existia união entre as bandas
momentaneamente, baseado no interesse de se tocar no Carnaval.
Mas a minha entrada no ramo musical foi algo assim prematuro e eu
não estava preparado para aquilo ali profissionalmente, fui
aprendendo no meio.
Havia uma contradição, e ainda há nos dias de hoje, um tanto intrigante nos
músicos. De um modo geral, no plano da consciência, alguns músicos não se
percebiam como um grupo ‘’unido’’, estruturado nos termos clássicos de uma classe
trabalhadora.
Em longas conversas que tivemos com alguns deles, sempre mencionavam o
fato de o músico não possuir um local de trabalho fixo, o fato de os músicos serem
um grupo de trabalhadores que vivem uma eterna ‘’diáspora’’. Ao mesmo tempo em
que o desejo de se tornarem um grupo unitário, como solução de muitos problemas
que vivenciavam, era presente.
Para outros, os músicos se constituíam num grupo de trabalhadores unido de
fato, mas o que atrapalhava as ações políticas do grupo era o que circundava a
profissão, isto é, a fama, o glamour, o espetáculo do Carnaval etc. Entretanto, do
ponto de vista palpável, muitos sabiam que precisavam de uma união momentânea
— ainda que fosse numa ‘’teatralização’’ — para pressionar a sociedade política no
que dizia respeito ao pagamento de um cachê significativo.
Helder também destacou a importância do Carnaval de Salvador na vida dos
músicos da cidade. Quando perguntamos se havia uma expectativa, uma
dependência daquele dinheiro que o município liberava para custear as
apresentações das bandas no Carnaval, ele afirmou:
Sim, havia. Vários músicos de influências e culturas diferentes
estavam ali reunidos em torno da necessidade dos cachês. Desde
músicos oriundos da região suburbana de Salvador e até mesmo de
músicos dos bairros da Pituba e Itaigara, claramente com realidades
31
sócio-econômicas bastante diferentes. O dinheiro representava tudo.
Havia inclusive substituições de músicos durante as apresentações
das bandas no carnaval. Geralmente, eram poucas as bandas que se
apresentavam com a mesma formação feita no concurso.
É necessário destacarmos um elemento importante sobre o qual Helder faz
referência: a heterogeneidade da categoria. Diante da projeção nacional e
internacional
alcançada
pelo
Carnaval
de
Salvador,
projeção
fomentada
principalmente pelos veículos de comunicação — seja em nível local ou nacional—,
houve um processo de ‘’enquadramento’’, uma ‘’padronização’’ das diversas e
múltiplas circunstâncias sociais e culturais sob as quais o Carnaval se concretizava
efetivamente. Nikolaus nos disse que ‘’[...] quando você vê o Carnaval na televisão é
sempre a mesma coisa. Todo ano o Carnaval é melhor do que o ano que passou, e
na verdade teve um monte de problema, equipamento ruim [...] mas ninguém fica
sabendo’’.
Aquele ‘’leque’’ de fenômenos díspares, disformes, quando era apresentado
através do paradigma nascente do espetáculo, do glamour, quando era difundido
sob as lentes do show business, desaparecia — e ainda hoje é assim— como num
passe de mágica.
E os músicos, agentes fundamentais da dinâmica carnavalesca, não ficaram
de fora daquela inversão ou distorção das situações palpáveis — contradições de
ordens diversas— que a festa trazia consigo, e a partir de 1980 houve um
recrudescimento das contradições socioeconômicas no Carnaval de Salvador.
De modo que, o músico do Carnaval, quando passou a gravitar os espaços
midiáticos, em diversas situações, foi levado a apresentar certas posturas, certos
tipos de comportamento e atitudes que, a partir dos desdobramentos industriais do
Carnaval, tornavam-se mais ‘’condizentes’’ com a figura do artista — intocável,
distanciado da sociedade— da TV. O músico Jorge Solovera disse que a ‘’[...] banda
do bairro imitava as bandas conhecidas. Teve um cara que eu toquei que se vestia
igual a Netinho rs’’.
Efetivamente, isto gerou algumas implicações. Como o modelo hegemônico
apresentado pelas mídias era o modelo dos ‘’artistas’’ bem-sucedidos, dos famosos,
dos artistas que serviam como uma grande ‘’moeda de troca’’, todos os demais, e
estamos falando de uma grande massa de artistas não famosos, deveriam seguir
aquela bula. Não que isso fosse expresso, houvesse força.
32
A partir dos relatos dos músicos, bem como através de alguns jornais, foi
possível notar que os grupos musicais que não serviam de atrativo para as
propagandas
turísticas
oficiais,
os
que
se
apresentavam
em
circuitos
marginalizados, se fizessem uma aparição rápida em algum veículo de comunicação
para efeito de divulgação da sua apresentação, tinham de fazê-lo sob certos
critérios: um bom figurino, músicos que gozavam de ‘’boa aparência’’ no grupo,
músicos que se expressassem bem no momento da entrevista etc. Nikolaus nos
relatou que
Tinha uma escolha de linha de frente nas bandas... Em muita banda
de axé a aparência começou a contar, começou a ser importante... O
músico que falava melhor, que ficava legal no figurino sempre era
chamado para as entrevistas (Nikolaus).
É evidente que isso não era condição imposta pelos veículos de
comunicação. Essa moral já fazia parte das estratégias dos produtores ou donos das
bandas, que tomavam como exemplo o modelo dos artistas do ‘’topo da pirâmide’’.
Aquilo trouxe situações interessantes. Em primeiro lugar, no campo das
‘’projeções’’ difundidas, produzidas e reproduzidas. A despeito de todos os
problemas infra-estruturais existentes nos circuitos dos carnavais de bairros, apesar
de os músicos haverem disputado ferrenhamente, através do concurso promovido
pelo sindicato, uma vaga de trabalho no Carnaval de Salvador, apesar de muitos
músicos que faziam os carnavais através do sindicato apresentarem condições
econômicas limitadas, ainda assim, quando apareciam numa fotografia de um jornal
qualquer, por exemplo, surgiam sob o manto daqueles critérios mencionados
anteriormente.
Quanto ao concurso, o presidente do SindiMúsicos Franklin Oliveira
argumentou que [...] ‘’pela primeira vez vai haver uma seleção rigorosa. Os músicos
não eram acostumados a passarem por seleção com critérios e, por isso, sempre
foram manipulados’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 10/12/1993). O músico
Luciano Calazans afirmou que ‘’[...] quem fazia a seleção do sindicato era o músico
paupérrimo, o músico precisado’’.
Em segundo lugar, como a imagem do grupo a ser apresentada para a
sociedade era nivelada por cima, pelos objetos, estética, atitudes e comportamentos
que constituíam as bandas famosas que se apresentavam no circuito hegemônico,
os músicos do circuito marginalizado apareciam — eram difundidos—, e isso se dava
33
sob diversos matizes — material, simbólico, social etc. —, num patamar não muito
distante daqueles que levavam, efetivamente, uma vida socioeconômica privilegiada.
Em terceiro lugar, os músicos acabaram contraindo uma espécie de
glamourização das atividades. O músico Jorge Patrício Solovera afirmou que
A mídia vende o Carnaval falso. Um Carnaval que não acontece. O
músico não tem sindicato, não se organiza, então o que acontece, o
acerto do músico acaba sendo individual, o que é péssimo, tem
bandas que acontece isso, nem todas, mas em muitas bandas
acontece isso...
Quanto ao cachê dos músicos, Jorge Patrício Solovera argumentou que
Tem músico que ganha o dobro, tem músico que ganha o dobro do
cachê normal, e tem músico que ganha muito abaixo. É por isso que
acontece essa desunião. O que acontece é que na música, na arte,
tem essa coisa do glamour, a mídia é o glamour. Uma coisa que eu
percebo muito inclusive... eu não considero o axé uma arte. Quase
todas as pessoas envolvidas na parte musical, por exemplo, elas não
almejam tanto a coisa da arte em si, da composição, do tocar bem...
Elas almejam o glamour, o que ele pode ser...
Isto é, por conta do ‘’arquétipo’’ carnavalesco que foi se consolidando, o da
festa-mercadoria, muitos músicos acabaram adquirindo um desejo ávido de
aparecer em cima de um trio elétrico sob as filmagens de alguma emissora de TV,
ou sob os flashes de algum jornal impresso – ainda que estivesse tocando por
cachês baixos — abaixo até mesmo da média estabelecida pelos empresários da
indústria carnavalesca, conforme o relato anterior de Jorge Patrício Solovera—.
Detalharemos a vida de Jorge Patrício Solovera mais adiante.
Ainda em relação à aproximação do musicista do Carnaval com a mídia,
justamente sobre algumas questões que levantamos anteriormente, Solovera nos
diz o seguinte:
Por exemplo, o músico fica pensando que ele vai ficar rico, ou que
vai ficar famoso; o cantor fica pensando que um dia ele vai ficar
famoso também, que vai tá dirigindo uma Ferrari, entendeu... e daí
ninguém ta preocupado com a parte técnica. Eu acho que a própria
deterioração do axé se dá por conta disso. Porque é um monte de
gente que tá interessada na verdade numa satisfação pessoal e não
com a parte artística, entendeu... Eu acho que isso aí é o ponto
chave pra que a coisa não ande, inclusive profissionalmente...
Porque você pega um monte de gente que tá com ambição, que tem
uma visão muito pouca do que pode vir a ser, no meio desse pessoal
artístico ou até profissional, entendeu... Tipo o cara vem do interior,
vem pra Salvador com o sonho de tocar com Ivete Sangalo, como a
gente tava conversando... E ele vai fazer qualquer coisa... Se Ivete
Sangalo der dez reais a ele, ele vai tocar, porque ele acha que aquilo
34
vai levar ele a um glamour, que ele vai conhecer o mundo... Só que
daí ele tá se desvalorizando, é o que acontece muito aqui.
O conteúdo do relato de Solovera diz respeito às formas de mercado que
foram se estruturando na festa, formas responsáveis pelas, e produtores das
‘’estruturas fâmicas’’, digamos. Aqueles mecanismos homogeneizaram, em termos
de difusão, as circunstâncias culturais, sociais e econômicas dos músicos. E
Solovera é enfático ao traçar o perfil daqueles músicos imersos no show business:
É o músico que faz o trabalho não pela questão financeira, nem
tecnicamente, mas unicamente pela coisa do glamour, pela festa,
vou conhecer gente, vou ficar famoso, vou ficar gatinho... e daí acaba
tudo rs.
Os diversos tipos de contradições — contradições que se dão em níveis
diversos da vida social—, as diversas situações existentes na atividade do
profissional da música do mercado carnavalesco de Salvador, aparecem, surgem
para uma grande parte da sociedade soteropolitana, de modo um tanto obscuro. É
esta situação citada pelo músico Solovera que passou a existir, em grande medida.
Talvez isto seja um ponto muito importante a ser descortinado, pois continua
ocorrendo até hoje.
O músico que passou a se submeter — e se submete ainda hoje— ao jogo do
espetáculo o fez porque começou a haver uma valorização excessiva — por parte de
muitos indivíduos que consumiam aquele modelo carnavalesco— do músico que
gravitava os espaços dos famosos por excelência: a mídia. Luciano Calazans
afirmou que ‘’[...] a gente aparece no programa de TV a gente tem ibope rs, todo
mundo te liga, quer convite pra show. Daí você cai fora da banda que tá estourada,
some todo mundo rs’’.
Ainda hoje há um senso comum partilhado pelos consumidores da festanegócio que é o seguinte: os músicos que ganham dinheiro são aqueles que
aparecem na mídia, que aparecem na TV, que aparecem em algum momento numa
fotografia no jornal impresso etc. Nikolaus argumentou que [...] ‘’ninguém sabe que a
gente não ganha nada pra tocar no Gugu ou no Faustão’’. Há um problema que se
constata, quando relacionamos aquele senso comum existente com as experiências
palpáveis de uma grande parte de músicos que trabalharam — e trabalham— no
Carnaval de Salvador: o problema da projeção.
A projeção existente, o sentido de tais projeções, nesse caso, não
corresponde efetivamente ao cotidiano vivenciado por centenas de músicos. No
35
entanto, tal consideração não é fruto do acaso, mero ‘’invencionismo’’ barato. Esta
consideração tem relação, em primeiro lugar, com os cantores e cantoras; em
segundo lugar, ela é estendida para os músicos que circundam tal ou qual artista
famoso. ‘’ Você lembra daquela banda Calcinha Preta, tava aí na mídia... Vá ver
quanto os músicos ganham, mixaria’’, argumentou Luciano Calazans.
Em terceiro lugar, ela é respaldada numa certa parte de ‘’músicosfuncionários’’, que obtiveram ascensão econômica — mobilidade social—, em médio
prazo, por terem trabalhado com cantores ou cantoras famosos que freqüentemente
apareciam nos diversos veículos de comunicação.‘’[...] eu fiz muitos trabalhos,
muitas viagens internacionais com alguns artistas que trabalhei, deu pra tirar um
dinheiro legal depois que a coisa se profissionalizou’’, afirmou o músico Gerson
Silva.
Nesse passo, foi por conta de termos notado — através dos nossos
diálogos com os músicos, através das situações específicas geradas pela natureza
do seu trabalho, enfim, através do contato mais estreito com o seu mundo vivido —
estas questões, dentre outras, que falamos da aparição descontextualizada
daqueles profissionais. A apreensão da heterogeneidade, por parte do público
consumidor do Carnaval-espetáculo, daquela categoria, foi se tornando difícil diante
daqueles complicadores que foram surgindo.
Os músicos que por razões sociais diversas haviam ascendido materialmente
naquelas décadas — ou estavam em plena ascensão material no momento histórico
estudado—, apareciam, nos veículos de comunicação, ao lado de outros músicos
com características econômicas e sociais diametralmente opostas.
Tentar-se-á, ao longo das reflexões postas no texto, explicitar melhor esta
situação. De todo modo, refletindo ainda sobre a importância do Carnaval de
Salvador para aqueles trabalhadores, conversamos com o contrabaixista Ivan
Bastos.
Ivan Bastos é baiano, nasceu 11/10/1963. Entrou na Escola Técnica da Bahia
em 1971. Morou grande parte da sua vida no bairro da Caixa D’água, em Salvador.
Tornou-se músico profissional ainda muito jovem, segundo ele mesmo descreve:
Rapaz, eu entrei na escola técnica em 1971. Já tocava em casa,
meus irmãos já eram músicos de baile... Aí lá — na escola—, eu
conheci outros músicos...Engraçado que nesse período, na década
de 70, o trio elétrico estava passando por uma transformação que era
justamente a chegada do cantor... Nessa época, esse mercado de
carnaval...ele ainda estava incipiente. Você tinha alguns trios
36
elétricos, alguns blocos... e era o único lugar onde aquele músico
que tava estudando pra caramba guitarra baiana, inspirado em
Armandinho, porque até então era música instrumental...E aí eu
conheci muitas pessoas nessa época na escola técnica que já
tocavam, muito jovem, inclusive era muito comum se
profissionalizarem muito cedo... Mou Brasil mesmo — um músico de
Salvador, amigo do entrevistado—, novinho já tava pipocando. Eu
mesmo comecei a tocar profissionalmente com dezesseis, dezessete
anos. Logo que comecei a tocar, surgiu o convite para tocar no
carnaval, porque realmente era o único mercado que tinha; mas fora
isso não tinha muitos lugares pra tocar na noite... na década de 80 é
que vai aparecer mais bares pra tocar na noite.
Mesmo sendo um espaço de trabalho importante já no início da década de
1980, apesar de incipiente, como fora dito pelo nosso entrevistado, nota-se que a
relação social e cultural de alguns músicos com os carnavais daquele período
ultrapassava o sentido de espaço carnavalesco como ‘’ganha pão’’ apenas. Havia
uma relação ‘’afetiva’’ com aqueles carnavais, um tipo de relação que não se reduzia
à ‘’impessoalidade’’ do músico-funcionário de uma banda-empresa. Ivan Bastos
prosseguiu nos informando a sua formação musical quando do início da carreira:
Na realidade eu comecei tocando de tudo... Eu gostava muito de
música brasileira... Chico Buarque, Bethânia... e aí eu tive também
uma fase rockeira, depois entrei pelo jazz; escutava Hermeto
Pascoal... Mas, enfim, fundamentalmente o lugar onde dava dinheiro
já era o carnaval, apesar de não ser como hoje, mas aqueles dias de
carnaval o cara conseguia ganhar uma soma que dava pra ele
comprar um carrinho usado, antes mesmo da década de 80; ainda
era muito desorganizado, o carnaval em si era muito desorganizado.
Não é demais lembrar que foi na década de 1980 que o poder público tentava
colocar em prática ações que visavam a garantir algum tipo de organização
institucional na realização do Carnaval. Algumas dessas tentativas foram
apresentadas na gestão do prefeito Manoel Castro, 1981-1984, e igualmente na
gestão do prefeito Mário Kertész, 1985-1988, quando se destacam a criação do
Grupo Executivo do Carnaval através do Decreto n. 6.985 e a ampliação do circuito
tradicional da festa com a incorporação do bairro da Barra (HEBER, 1999, p.183).
Há questões levantadas no depoimento do contrabaixista Ivan Bastos que
devemos refletir. Nota-se que tocar no Carnaval de Salvador significava também
para o musicista, entre outras coisas, uma oportunidade importante de “aparição”,
uma oportunidade de ganhar visibilidade.
37
Os músicos que se apresentavam no Carnaval de Salvador, deduz-se, eram
considerados profissionais, dado que o Carnaval representava a principal “área de
atuação” daqueles trabalhadores. O mercado no qual se obtinha ganhos materiais
significativos, sendo músico, era o Carnaval.
Confrontando o depoimento de Ivan Bastos com a pesquisa empreendida por
Fred Góes em seu livro 50 anos do trio elétrico, percebemos que a afirmação do
baixista quanto às mudanças pelas quais passava o trio elétrico na década de 1970,
mais precisamente por conta da chegada do cantor no trio, não é infundada.
Fred Góes é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
desenvolve pesquisas na área da literatura e da música popular. Escreveu e
pesquisou sobre o Carnaval da Bahia.
O autor nos diz que ‘’Salvador se preparava, então, para o maior Carnaval. O
Frevo do trio elétrico, por uma feliz coincidência, ganhara projeção nacional, incluído
na
trilha
sonora
da
novela
Rede
Globo
‘Super
Manuela’,
ainda
que,
equivocadamente, tocado toda vez que apareciam cenas externas do Recife’’
(GÓES, 2000, p. 86-88).
Fred Góes afirma ainda que ‘’o trio elétrico de Dodô e Osmar ensaiava o
repertório tradicional que acabara de ser gravado pela Continental, no primeiro longplay do grupo, produzido por Moraes Moreira, o novo membro do conjunto e primeiro
cantor de trio elétrico’’ (GÓES, 2000, p. 86-88).
É evidente que esta citação traz outras situações. Mas fazemos uso dela
apenas para mostrar o fato da chegada do primeiro cantor de trio elétrico, algo sobre
o qual Ivan Bastos faz referência, ao fazer uso da memória. Esta pesquisa de Fred
Góes, pesquisa que abarca também esse momento da chegada do cantor, articulase com a memória do nosso entrevistado.
Outra afirmação igualmente importante de Ivan Bastos é a de que o Carnaval,
na década de 1970 era um mercado incipiente. O músico diz que havia alguns trios
elétricos e alguns blocos. Mais uma vez o relato do baixista, a sua lembrança, vai ao
encontro das análises feitas por Fred Góes, análises que correspondem ao mesmo
período mencionado pelo nosso entrevistado:
O trio elétrico, a maior atração do carnaval de rua, torna-se mais e
mais um negócio custoso, os equipamentos se sofisticam, os
músicos se profissionalizam, os patrocinadores seguram as verbas.
Em contrapartida, organizar bloco se torna um bom negócio. É no
final da década de 70 que começa a se esboçar uma tendência que
viria a se generalizar no carnaval baiano – o trio de bloco — dentro
38
de cordas—. Podemos estabelecer o ano de fundação do bloco
Camaleão como marco da profissionalização dos blocos de trio (Ibid.,
p. 84).
Aqui também aparece outra citação que se articula com a memória do
músico. O objetivo aqui é relacionar o resultado da entrevista com a pesquisa
empreendida por Fred Góes, pesquisa que possui um conjunto de fontes de outra
natureza.
Uma passagem rápida da fala do músico nos remete a uma indagação
importante: por que ele utilizou o ‘’apesar de não ser como hoje’’, ao se referir à
soma de dinheiro que os músicos obtinham nos carnavais da década de 1970?
Refletimos sobre esta passagem específica do relato do baixista pelo fato de outros
músicos terem argumentado algo similar.
Conversando com Jorge Patrício Solovera, perguntamos a ele se havia de
fato uma dependência, por parte dos músicos, dos cachês pagos pela prefeitura
para custear as apresentações. Ele argumentou que ‘’[...] dava pra comprar um
instrumento pelo menos. Eu sei que depois foi caindo — o cachê—, mas não lembro
direito’’. Nikolaus afirmou anteriormente a mesma coisa: o dinheiro obtido no
Carnaval, se comparado hoje, era melhor, segundo o guitarrista.
Jorge Patrício Solovera é chileno, nasceu em 05/07/1974. Este músico fez 36
anos em 2010. Veio para a Bahia ainda garoto. Em Salvador, morou a maior parte
da sua vida na Avenida Garibalde. Começou a tocar na noite de Salvador ainda bem
jovem, aos 14 anos, como boa parte dos músicos. Descrevendo a sua trajetória, ele
nos traz as seguintes informações:
Eu comecei a tocar por causa do meu pai, que era concertista.
Ele morreu quando eu tinha dois anos. Aí veio a curiosidade de
tocar violão... Daí eu comecei a tocar eu tinha mais ou menos
uns cinco anos. Aí de sete pra oito anos eu entrei na faculdade,
no conservatório de música do Chile, fiquei lá um ano. Depois a
gente veio pro Brasil, eu passei um ano no Rio sem estudar.
Quando agente veio pra Bahia eu fiz o concurso... na época
tinha concurso pra entrar no curso livre, na época era curso
pré-básico que chamava, da Universidade Federal.
Em Salvador, o músico que buscava adquirir conhecimentos sobre teoria
elementar da música, tendia a buscar tais conhecimentos nos cursos livres e oficinas
musicais oferecidos pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Era
difícil encontrar conservatórios musicais com uma infra-estrutura adequada. O
39
músico Luciano Calazans nos disse ‘’[...] eu fiz a oficina da UFBA, foi o único lugar
que eu encontrei [...], ganhei uma bolsa pra estudar’’.
E apesar da formação musical, oferecida pela Universidade Federal da Bahia,
ser estritamente ligada à música clássica européia, alguns músicos, ainda que
aquele aprendizado não tivesse ligação, pelo menos de forma imediata, com a
música popular baiana, aprendiam as suas primeiras lições naquela escola. Mas o
fato é que uma grande parcela não possuia condições materiais que permitissem
realizar um aprendizado sistêmico e duradouro. Jorge Solovera continuou
argumentando:
Ali eu passei quatro anos estudando teoria, estudando violão.
Comecei a ouvir Rock... fudeu [rs]. Comecei a tocar Rock e comecei
a tocar na noite. Comecei a tocar na noite com quatorze anos mais
ou menos, num barzinho da minha mãe, minha mãe tinha um bar. Aí
entre um barzinho e outro eu fui chamado pra tocar... Entrei numa
banda... na época, nos anos noventa, existia uma febre de banda
couvert. Começaram a fazer um monte de banda couvert, Blitz, Raúl
Seixas... Daí me chamaram pra entrar numa banda, até na época eu
queria ser baixista. Só que aí me colocaram pra tocar guitarra, daí eu
virei guitarrista. Isso em Salvador, no início dos anos 90. De 89 pra
90... Eu fiquei tocando com essa banda até 92. Eu tava com
dezesseis, dezessete anos. Aí, uma coisa vai levando a outra, eu
comecei a tocar axé.
Mesmo havendo os espaços de trabalho dos bares, nota-se que o caminho
percorrido pela maior parte dos músicos, após uma ‘’temporada’’ nas noites de
Salvador, desembocava no Carnaval; costumavam tocar com grupos musicais cujo
repertório apresentava, em grande medida, canções de sucessos carnavalescos. O
músico Gerson Silva, ao mencionar os carnavais do início da década de 1990, nos
diz o seguinte:
Pra mim significava uma boa época pra ganhar um melhor cachê já
que sempre o carnaval foi uma festa que se pagava melhor aos
músicos. Eu nunca gostei de depender disso pra manter minha
profissão e sim achava que com aquele dinheiro eu sempre poderia
comprar melhores instrumentos além de livros, vídeos, CDs, que me
desse maiores condições de aperfeiçoamento na minha profissão.
Infelizmente isso não era aplicado pela maioria dos músicos que
conhecia e muitos desses pararam de tocar já faz tempo.
Uma questão que se nota, como argumentamos acima, é a relação presente
que os músicos fazem entre os carnavais passados, com as suas condições gerais
de trabalho, e o momento carnavalesco atual. Tal relação indica para estes músicos
que houve mudanças, no sentido de que no período passado, apesar de suas
40
contradições existentes, as condições de trabalho eram melhores, se comparadas
às atuais. Parece-nos que as mudanças ocorridas no espaço de trabalho
carnavalesco, que neste caso não foram boas, tem relação direta com a inserção
significativa da mídia no Carnaval de Salvador.
A afirmação segundo a qual antes — passado em oposição ao presente— o
Carnaval era melhor para a atividade musical, esta afirmação específica, é presente
nas falas dos músicos entrevistados. E se o termo ‘’melhor’’ aparece associado às
questões econômicas, isto é um fato revelador das subjetividades envolvidas, ou
seja, de como elas se materializam no terreno da memória de nossos entrevistados,
dos significados atribuídos às situações vivenciadas.
E essas afirmações acabam se transformando numa resposta possível a um
dos problemas centrais da nossa investigação: tentar apreender as reverberações
do processo de mercantilização do Carnaval de Salvador nos músicos da cidade.
Esse processo houve, é ponto pacífico para muitos estudiosos da festa. E é fato que
esse processo trouxe implicações, se não para todos os grupos sociais inseridos na
construção da festa, pelo menos para a maior parte desses grupos.
Mas o que realmente é importante aqui é a relação entre a oralidade e a
memória. Busca-se fazer e pensar a história oral nesta investigação. Em história
oral, o ‘’grupal’’, ‘’social’’ ou ‘’coletivo’’ não corresponde à soma dos particulares.
Porém, a repetição — dos músicos entrevistados—, por exemplo, de que eram
melhores, em termos econômicos, os carnavais das décadas estudadas, é algo
relevante.
Durante a nossa conversa com Nikolaus, quisemos saber como era naquela
época ser músico em Salvador; se havia, de fato, a participação de um grande
número de bandas atuando no Carnaval; se eles sentiam algum tipo de hostilidade
por parte da sociedade soteropolitana:
Não. Creio que os músicos tinham mais oportunidade de mostrar seu
trabalho em Salvador, já que o Carnaval não era feito por artistas que
apenas apareciam na TV, e sim por artistas às vezes desconhecidos,
mas que tinham um bom trabalho para mostrar ao público, e tinham
aceitação e apreciação deste, como os famosos também tinham. Um
artista anônimo poderia ficar famoso no Carnaval, se fosse talentoso
e fizesse um bom trabalho, coisa que não acontece hoje, já que os
artistas dependem da mídia para ficarem famosos. Antes eles
dependiam da aprovação do público, hoje dependem de marketing e
dos empresários (Nikolaus).
41
Parece que ser músico profissional no contexto do espaço carnavalesco atual
tem uma relação profunda com a noção de fama e espetáculo1, em oposição ao
reconhecimento da criatividade espontânea do indivíduo. É isso que notamos a partir
das experiências desses músicos com os quais dialogamos. Nessa forma atual, por
exemplo, de se conceber a arte e o indivíduo criativo, o espetáculo se apresenta
como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível.
Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude
que por princípio a noção de “fama” exige é a da aceitação passiva que obteve por
seu modo de aparecer sem réplica — e isto ocorre em muitos momentos da vida
cotidiana —, por seu “monopólio” da aparência (DEBORD, 2004, p.17). O relato
dado por Nikolaus toca muito bem nesta questão.
O Carnaval, para ele, não era feito só por “artistas” que apareciam na TV e
sim por artistas “desconhecidos” também. É importante reconhecer a necessidade
de se criticar esta forma atual. Torná-la objeto de discussão “popular” 2. Por conta
desse “modelo” carnavalesco atual apresentar à sociedade baiana alguns poucos
músicos urbanos que passaram a fazer parte, por razões sociais diversas, do
“espetáculo” e da “fama” proporcionados pela festa-mercadoria3, uma das principais
considerações que se tem desta categoria é a de que os trabalhadores levam uma
vida “privilegiada” dentro do espaço sócio-econômico da cidade.
Assim, a maior parte desses músicos aparece para a população local de um
modo descontextualizado. E um dos principais agentes produtores desse processo é
a mídia. Mas não somente a mídia, em si mesma. Esse processo envolve a mídia
associada aos mecanismos de mercado. Juntos, esses ‘’ingredientes’’ promovem a
chave mestra da cortina de fumaça que concretiza o fenômeno da inversão das
circunstâncias: a noção de fama e do que é ser, de fato, alguém famoso. ‘’[...] a
nossa profissão tá ligada a rádio, a TV [...], a galera quando vê isso só vê dinheiro
[...] acho que todo artista passa por isso’’, afirmou Jorge Solovera.
1
Os espaços espetacularizados são os utilizados nas propagandas turísticas promovidas
tanto pelo
poder público como pelos agentes particulares. O espaço espetaculariazado é o espaçomercadoria. O espaço é inserido no mundo do espetáculo. O espetáculo é o momento em que a
mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas
não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo (DEBORD, 1997, p.30).
2
Para um aprofundamento da noção de ‘’popular’’, ver HALL, 2003, p. 262; ver também
CHARTIER, 1995, p. 179-192.
3
A idéia de mercadoria com a qual fazemos uma discussão encontra-se em LUKÁCS, 2003,
p. 194.
42
Outra forma de expressar o que buscamos apontar é argumentando que
estamos tentando ‘’desvendar’’, entre outras coisas, com a nossa investigação, a
relação entre os músicos do Carnaval tal como nos fazem ver, isto é, sob as lentes
dos veículos de comunicação, e os músicos do Carnaval tal como eles são,
trabalhadores que sofrem exploração e hostilização de diversas formas.
Apenas para trazer um exemplo, que envolve todas as questões levantadas
anteriormente, citaremos algo que ocorreu com um músico do grupo afro Olodum. O
Olodum tornou-se um grupo musical difundido. Ficou conhecido tanto em nível
nacional como também internacional. ‘’O ano de 1987 marca o estouro musical do
Olodum. A canção ‘Faraó’ foi a mais tocada no Carnaval da Bahia. Pela primeira
vez, os grandes trios elétricos tocaram um trabalho de um bloco afro [...]’’
(SCHAEBER, 1999, p. 60-61).
O Olodum se apresentou com cantores conhecidos. ‘’Paul Simon veio à Bahia
em 1988 em busca de novos e autênticos ritmos. O Olodum viaja à Europa. No
mesmo ano gravou-se o videoclipe no Pelourinho, exibido em 140 países [...]’’
(SCHAEBER, 1999, p. 60-61).
Dois anos depois, mais precisamente em 1990, novas bandas de sambareggae surgiram, foram formadas por antigos membros do Olodum. E eles
denunciaram os motivos pelos quais haviam saído do grupo. Vejamos o que o
músico ex-integrante nos revela:
Nós gostávamos do bloco, éramos fundadores, mas não recebíamos
nem respeito nem garantias. Éramos tratados como escravos, muitas
vezes tivemos que carregar caixotes no carnaval, e nosso esforço
não era reconhecido. Levávamos de dois a três meses para receber
dinheiro e muitos nem recebiam. [...] Eles se sentem os donos da
gente (GUERREIRO, 2000, p. 167).
Vejamos agora o que um mestre de percussão e ex-músico do Olodum
argumenta:
No Olodum não tem ninguém pra lutar pela causa da gente e eles
dão o que querem. Quando aparece um compromisso, eles querem
que a gente esteja pronto imediatamente sem acertar grana. Ainda
descontam as roupas da gente, e até das bailarinas, do nosso
dinheiro’’ (Ibid., p. 167).
Esta situação que as evidências acima trazem, tem relação com ‘’aquilo que
nos fazem ver’’ — os músicos sob a ótica do show business, do espetáculo em
perfeita harmonia— e ‘’aquilo tal como realmente é’’ — músicos imersos em
contradições no âmbito de trabalho, explorações, conflitos etc. —.
43
A “padronização” das pessoas é a condição sine quanon através da qual a
mídia tenta difundir e “impor” o seu mundo. Nesse passo, quando os cantores e
cantoras se consolidaram no Carnaval de Salvador, alcançando alguns poucos uma
ascensão material significativa, fruto da reorientação social, por assim dizer, por que
passou a produção carnavalesca, houve uma tendência, por parte de muitos setores
da sociedade civil baiana — e a natureza da difusão midiática do Carnaval contribuiu
muito para tanto —, de considerar o músico trabalhador como sendo uma extensão
imediata do modo de vida daqueles artistas-empresários:
Olha... Você aparecia na televisão...Pronto... A galera já dizia logo, tá
bem... tá nadando no dinheiro rs... Neguinho te via e perguntava
logo: tá tocando com quem fulano... Ah, tô tocando com Daniela
Mercury... Ah, então tá bem. Um amigo meu até brincava comigo
dizendo que não caisse nessa, porque quando acabava o show e a
galera batia palma, a galera não tava batendo pra você não, era pro
cantor (Nikolaus).
Como os cantores e cantoras passaram a permear os espaços midiáticos,
espaços que somente os “famosos” gravitavam, os músicos acompanhantes
daqueles cantores e cantoras ganhavam ‘’automaticamente’’, a partir do modo pelo
qual passou a ocorrer a ‘’exibição’’, a difusão da imagem, o status de “artistaprofissional bem sucedido”. E tal projeção acabava sendo estendida a todos os
músicos, havendo uma homogeneização da categoria.
Ao mencionar o modo de vida daqueles artistas-empresários, estamos
falando de uma produção dos meios de vida na qual não havia as mesmas
limitações materiais encontradas na vida do músico-acompanhante. Os cantores e
cantoras passaram a dispor de meios de produção das suas vidas gerados pela
espetacularização, bem como pelo mundo da fama.
O indivíduo produz a sua existência a partir dos meios de vida encontrados e
a reproduzir. “Ao produzir os seus meios de vida, os homens produzem
indiretamente a sua própria vida material. O modo como os homens produzem os
seus meios de vida depende [...] da natureza dos próprios meios de vida
encontrados e a reproduzir” (MARX, 2002, p.15).
Não queremos dizer que não havia músicos profissionais com uma vida
econômica relativamente estável. Em muitos casos, não em todos, os músicos que
tocavam com cantores e cantoras famosos tinham realmente uma vida econômica
mais estável; mas esses músicos não eram maioria. Por baixo desse pequeno grupo
44
de músicos havia uma grande maioria que realizava a produção material da vida
com muita dificuldade, que vivia em condições materiais hostis.
O interessante é que essa maioria acabava sendo enquadrada, a partir das
considerações e valores gerais produzidos pela mídia, como “artistas famosos”, caso
aparecesse em algum momento, ainda que rapidamente, nos espaços de
informação e comunicação. Como os cantores e cantoras famosos passaram a ser
considerados musicistas4 também, e quase sempre tinham ganhos materiais
significativos, o “instrumentista comum” era inserido, pela mídia, no mesmo contexto.
Para que se tenha uma dimensão mais explícita das afirmações que fazemos,
tentaremos apontar, a partir de algumas evidências, situações que, de alguma
maneira, apresentam a dinâmica do show business no período estudado. Ao lado
dessa dinâmica, apresentaremos as circunstâncias específicas nas quais os
“músicos comuns” estavam imersos.
Os cantores e cantoras, insistimos em destacar isto, eram difundidos como
uma espécie de alongamento dos ‘’músicos-acompanhantes’’, apesar de serem –
não em todos os casos, mas em muitos – donos dos conjuntos musicais de que
participavam. Vejamos então um jornal da época:
O axé baiano balança o Brasil. A música popular voltou a ser a
principal expressão artística do povo da Bahia, num ano em que o
volume de exportações de talentos deu goleada nas importações. Os
cachês dos músicos baianos cobrados para tocar no Carnaval
assustam os incautos. Chiclete com Banana — uma banda muito
famosa da época—, US$ 200 mil; Ricardo Chaves — outro cantor
famoso— US$ 80 mil e assim sucessivamente [...] (A TARDE,
31/12/1992).
A evidência citada acima é um caso emblemático da ‘’confusão dos espíritos’’.
O termo músicos, no plural, é revelador da não distinção dos sujeitos. Faz parecer,
numa leitura apressada, que os músicos da banda Chiclete com Banana, por
exemplo, todos, faziam parte, em termos de distribuição de ganhos, daquela
situação que estava ocorrendo.
4
É evidente que os cantores e cantoras famosos são musicistas. Só que não apenas isto. A fama
descomunal dos cantores e cantoras face aos outros integrantes do grupo musical, os ganhos
materiais significativos obtidos, entre outras coisas, fizeram com que os cantores e cantoras
agregassem em si outras funções que não apenas a de musicista na banda ou grupo musical. O que
quisemos argumentar é que eles eram vistos apenas como musicistas. Entretanto, eram também
atores em propagandas dos seus respectivos patrocinadores; eram empresários donos de trios
elétricos e de produtoras de shows; vendedores e distribuidores de grupos musicais emergentes que
eram produtos da sua empresa de produção etc. E os outros músicos? Os outros músicos eram
apenas funcionários de um grupo musical cuja existência se dava através, fundamentalmente, da
imagem do cantor ou cantora famosos.
45
Um caso curioso, e que precisa ser lembrado, é o do Cacik Jonne da banda
Chiclete com Banana. Este caso aponta, concretamente, a relação que um cantorempresário ou musicista-empresário bem sucedido do Carnaval — neste caso, tratase do cantor Bell Marques — estabeleceu com um ''musicista-funcionário''.
É necessário destacar que o Cacik Jonne era visto, a partir do discurso da
imprensa do período trabalhado, não como músico-funcionário, mas sim como
''membro da banda Chiclete com Banana'' na qual gozava de ''isonomia econômica''
em relação aos demais membros. ‘’Fui, durante quase 21 anos — 1980/ 2001—,
guitarrista da Banda Chiclete com Banana’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p).
O músico se afastou da banda Chiclete com Banana por motivos de saúde.
‘’Portador de doença — Ataxia Cerebelar— venho sofrendo limitações progressivas
de movimentos no decorrer dos últimos 8 a 10 anos, um problema de equilíbrio no
cerebelo. Não pude mais exercer minha profissão’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p).
O músico argumentou que ‘’em conversa que mantive com os dirigentes da
banda, ficou acertado, verbalmente, que sairia da banda, mas ela assumiria o
pagamento de meus honorários como se estivesse tocando e depois faríamos um
acordo’’(MUSICBLOG, 2011, s/p).
.
Os acordos verbais, no seio dos músicos ligados ao espaço de trabalho
carnavalesco, de um modo ou de outro, eram — e continuam sendo ainda hoje—
comuns. Jonne afirmou que ‘’o compromisso verbal não foi cumprido integralmente,
porque os honorários prometidos foram sendo reduzidos gradativamente. De forma
integral o acordo foi cumprido apenas no período de junho a dezembro de 2001 a
janeiro de 2002’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p).
E o guitarrista continuou esclarecendo que ‘’movido pela necessidade e pelo
propósito de ter meus direitos [...] busquei a Justiça. Meus antigos parceiros
permaneceram indiferentes e irredutíveis à esta situação’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p).
Por fim, ele pergunta se ‘’é justo que alguém que colaborou de forma íntegra
a uma banda e a uma história musical baiana sofra este processo de
constrangimento? Pois pra os ricos nada pega, não deixarei de falar até que a morte
me leve’’ (MUSICBLOG, 2011, s/p).
Sabe-se que as circunstâncias que levaram o guitarrista a deixar a banda
foram inabituais, podendo até ser caracterizada como uma fatalidade, talvez.
Contudo, o conteúdo de sua ‘’revolta’’, e a sua denúncia quanto à indiferença a partir
da qual os dirigentes da banda agiram, tendo em vista o tempo de trabalho que o
46
gutarrista possuía na empresa, estas questões são sintomáticas no que dizem
respeito ao tipo de relação que uma ‘’banda-empresa’’ mantinha com o seu
funcionário.
É evidente que não podemos fazer generalizações, argumentando que toda e
qualquer ‘’banda-empresa’’ incorria naquele tipo de tratamento dado ao guitarrista
Jonne. Mas o fato é que Jonne, o ‘’guitarrista trabalhador’’, se encaixava na maior
parte dos casos denunciados por outros músicos, casos de relações de poder e
participação no grupo desiguais, conteúdo este que não aparecia no jogo do
espetáculo. Algo parecido com o que ocorreu no caso dos músicos do Olodum, o
qual fizemos menção anteriormente.
O caso daquela matéria jornalística citada antes do relato curioso do exguitarrista do Chiclete com Banana, entra no fenômeno das projeções difundidas.
Aquele texto impresso, jornalístico, reforça a idéia e a escrita ao promover a
mudança do som para o espaço visual. Notar-se-á, entretanto, no mesmo período, a
seguinte situação dos “músicos” que, segundo aquele jornal citado anteriormente,
‘’ganhavam cachês altos para tocar no Carnaval’’:
Músicos querem transparência com as verbas do carnaval.
Nos últimos dias algumas pessoas tem divulgado informações
distorcidas sobre as divergências dos músicos com a Prefeitura em
relação ao Carnaval 94. Este folheto visa esclarecer a população de
Salvador. 1. OS ARTISTAS SÃO OS PRINCIPAIS RESPONSÁVEIS
PELA BAHIA TER A MAIOR FESTA POPULAR DO MUNDO. Nossas
músicas e o nosso trabalho ajudam a trazer dólares, turistas e
propaganda para o Carnaval. 2. ATE 1992 ERA SÓ O DINHEIRO
PÚBLICO QUE FINANCIAVA O CARNAVAL, MAS ISTO ESTÁ
MUDANDO. A PREFEITURA JÁ FALA EM TER LUCRO COM A
FESTA. Em 1993 as empresas privadas entraram com quase 20%.
Em 94 espera-se que a maior parte do Carnaval seja patrocinada. 3.
Apesar do sucesso do Carnaval da Bahia a Prefeitura a 60 dias da
festa diz que não tem qualquer patrocínio acertado (SINDIMÚSICOS,
dezembro 1993, s/p).
Este documento produzido pelo SindiMúsicos, aponta algumas questões que
aparecem em outros documentos trabalhados no mesmo período; ao mesmo tempo
em que reitera algumas análises feitas por alguns estudiosos em Salvador a respeito
das mudanças que foram tomando corpo no evento.
A diminuição da participação do poder estatal na festa é um daqueles
fenômenos de mudanças que vieram se desenrolando; a apropriação do Carnaval
de Salvador por parte de grandes empresas — apenas— de ramos diversos da
47
atividade industrial — tendo as empresas de bebidas um peso significativo naquela
apropriação—; diminuição, gradativa, do número de bandas que atuavam no
Carnaval através da liberação do dinheiro público por parte do poder estatal etc. Os
dirigentes do sindicato dos músicos pareciam estar atentos àquelas transformações:
4. Ao contrário do que se diz, A MAIOR FATIA DO ORÇAMENTO
DO CARNAVAL NÃO É DOS MÚSICOS E SIM DAS
EMPREITEIRAS EM ESTRUTURAS TUBULARES. 5. Se for mantida
a proposta da prefeitura para os músicos, será efetivada uma política
de redução da participação dos artistas no Carnaval (Ibid., s/p).
Ainda no mesmo documento citado acima, os dirigentes do sindicato
elencaram no folheto as suas insatisfações com o poder público, afirmando que ‘’até
o momento não tivemos informações sobre o que a Prefeitura pretende fazer com os
4,7 milhões de dólares que constam do orçamento para o Carnaval, onde serão
empregados’’ (Ibid., s/p).
Certos dos seus direitos, afirmaram que ‘’a Constituição proíbe a redução dos
salários. Os artistas, como trabalhadores esperam que a Prefeitura não pretenda
reduzir os seus ‘’cachês’’ em relação ao ano passado’’ (Ibid., s/p). Os gastos dos
músicos para realizarem a preparação dos seus grupos para atuarem no Carnaval
foi lembrado aos dirigentes da prefeitura.
‘’Para nos apresentarmos no Carnaval ensaiamos três meses pagando studio,
gravação de fitas, reposição de materiais: — encordoamento, peles, etc— e
transportes. Além disto, temos que ter bons instrumentos musicais’’ (Ibid., s/p). O
SindiMúsicos queria uma prova das dificuldades financeiras da prefeitura.
‘’Se ficar provado que a Prefeitura está em dificuldade financeira estaremos
abertos a reconsiderar nossas propostas. Até agora, porém, não obtivemos
informações concretas sobre o seqüestro de verbas da Prefeitura’’(Ibid., s/p).
Note-se que o tipo de relação de trabalho que o musicista estabelecia com as
produtoras privadas é também denunciando, ao afirmarem que ‘’o Sindicato dos
Músicos não ’cobra comissão’. 80% dos artistas estão inscritos para tocar no
Carnaval pelo Sindicato. Querem fugir da exploração das empresas que chegam a
cobrar até 40% do cachê dos colegas’’ (Ibid., s/p).
É verdade que utilizamos um documento que foi produzido pelo Sindicato dos
Músicos da Bahia. Mas este documento nos fornece um contraponto à
homogeneização da categoria difundida, na época, pela imprensa. O que estamos
48
tentando explicitar não é um argumento que justificaria desconsiderarmos o cantor
ou a cantora como sendo musicista. Antes de mais, o que chamamos atenção é que
músicos-empresários, ou, como preferirem, artistas-empresários eram colocados, no
discurso da imprensa, no mesmo lugar social dos músicos acompanhantes ou
“músicos-funcionários”.
Desse modo, ainda que pareça ser óbvio que a nota do jornal da época se
referia aos músicos famosos ou “músicos cantores” do show business, o que tende a
aparecer é a produção de um discurso, em relação àqueles trabalhadores,
enviesado, um discurso que partia do “alto”. Certamente aqueles valores
mencionados pelo jornal não correspondiam a uma redistribuição equitativa para
todos os componentes da banda, grupo ou conjunto musical.
O interessante é que, a partir do final da década de 1980 e início da década
de 1990, houve uma expansão significativa da economia carnavalesca:
E a Warner, que no ano passado experimentou a pior crise de sua
história em território nacional — a ponto de investir sem pudores no
breganejo—, também tirou o pé da lama em 93 se recuperando
significativamente. Mercadologicamente, o grande filão das
gravadoras em 93 foi mesmo a axé-music e os grupos de pagode.
[...] (A TARDE, dezembro de 1993).
Mas ao mesmo tempo em que ocorria aquela expansão, a partir do gênero
musical que veio a ficar conhecido como axé-music, parece não ter havido
rebatimentos significativos para a maior parte dos músicos da cidade. O que nos
leva a acreditar que os ganhos obtidos através de tal expansão econômica foram
parar nas mãos de alguns poucos músicos.
No mesmo ano, e mês, da matéria citada acima, houve um protesto dos
músicos de Salvador organizado pelo sindicato da categoria. O protesto gerou um
grande impacto político e social naquele ano. Discutimos e analisamos as
circunstâncias daquele protesto no segundo capítulo. Faz-se necessário situarmos,
cronologicamente, o processo de criação da Associação dos Músicos Profissionais
do Estado da Bahia, ‘’embrião’’ do que veio a ser depois o SindiMúsicos. A
reconstituição da criação daquela entidade é o que trazemos na próxima seção.
49
1.2 Combatendo a exploração, as dificuldades e o desemprego
A Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia surge no
contexto do ‘’carnaval-turismo’’, algo que já se desdobrava desde o início dos anos
80. Um jornal da época, informava que ‘’como vem ocorrendo todos os anos,
Salvador é uma das cidades brasileiras que obtém a preferência dos turistas [...]
Nesta época do ano, em plena temporada de verão e com o ciclo de festas
populares, turistas nacionais e estrangeiros dão prioridade a Salvador’’ (A TARDE,
28/1/1981).
Nesse contexto, a Bahia e sua capital transformam-se em produtos turísticopublicitários, com a distribuição desigual e segregadora de equipamentos culturais
no tecido urbano-regional. Assistimos à emergência de um ‘‘novo’’ Carnaval –
Carnaval espetáculo das TVS, Carnaval negócio pré-organizado dos blocos - e de
‘‘novas’’ tradições reinventadas a cada dia para um consumo turístico cada vez mais
segmentado e diferenciado (SERPA, 2007, p.114).
A entidade havia sido criada por músicos da Escola de Música da
Universidade Federal da Bahia. Aquele organismo havia sido criado, entre outros
propósitos, com o objetivo de buscar negociações tanto com as instituições públicas
como
particulares.‘’Para
discutir
diversos
aspectos
ligados
à
criação
do
Departamento de Apoio e Promoção de Espetáculos Musicais, recentemente
implantado, a Associação dos Músicos Profissionais do Estado da Bahia realiza uma
assembléia geral’’ (A TARDE, p.4, caderno 2, 3/1/1981).
O presidente da Associação, Franklin Júnior, esclareceu que ‘’[...] a
Associação vem buscando a colaboração de entidade e instituições públicas e
particulares, no sentido de melhorar a situação dos músicos baianos e reduzir as
despesas com som, iluminação e produção em geral’’ (A TARDE, p.4, caderno 2,
3/1/1981).
Observem que é empregada a expressão ‘’melhorar a situação dos músicos
baianos’’, como sendo um dos objetivos daquele departamento. Naquele contexto,
parece que tal expressão não foi utilizada com ‘’leviandade’’, ou ainda como
‘’discurso pronto’’. Mais à frente, ainda nesta seção, veremos as queixas dos
músicos em relação ao nível de desemprego no qual se encontrava a categoria. O
presidente da entidade argumentou que
50
A assinatura de dois convênios – um entre a Associação e a
Fundação Cultural do Estado, no valor de Cr$ 575 mil, para a compra
de aparelhagem de som, e outro com o Acap que funcionará todo o
material gráfico para a Associação, deverá ser um dos assuntos da
assembléia de hoje, quando também deverão ser discutidos o
regimento do novo departamento, seus objetivos e as promoções
para o primeiro semestre de 81. A assembléia da Associação dos
Músicos será iniciada às 15 horas, na sede da entidade, à Avenida
Joana Angélica 1028, apto. 402, Edifício David (A TARDE, p.4,
caderno 2, 3/1/1981).
Aqueles músicos que haviam criado a Associação eram, em grande parte,
músicos oriundos de uma classe média. O próprio presidente da instituição na
época, Franklin Júnior, advinha da Universidade Federal da Bahia. A realidade de
freqüentar os espaços acadêmicos não era acessível para boa parte dos músicos de
Salvador. Gerson Silva põe isto em evidência, no momento em que conversávamos
sobre as diversas dificuldades encontradas e vivenciadas pelos músicos ao
escolherem esta profissão:
Acho que por culpa do próprio músico esse tema sempre foi muito
confuso. Eu nunca brinquei de ser músico e me decidi por essa
profissão muito claramente, embora tenha trabalhado no BANEB —
Banco do Estado—, durante alguns anos. Quando eu me decidi por
ser músico profissional, aí que fui estudar mais ainda e não me
arrependo de ter feito essa escolha até hoje.
Gerson Silva atuou bastante nos carnavais da segunda metade da década de
1980. Convém notar que muitos músicos que trabalhavam no Carnaval naquele
período possuíam outros ofícios, algo que foi desaparecendo quando da
especialização, cada vez mais intensa, da categoria. Gerson Silva afirmou:
Sempre me preocupei com a formação dos músicos. Eu me sentia
meio sozinho com as informações que fui buscar fora daqui e que
aplicava em trabalhos de bandas que eu tocava. Em Cuba se aplica
uma coisa que poderia elevar muito a qualidade musical aqui na
Bahia como se elevou lá. Eles tem categorias de músicos em classes
A,B,C e D. De quatro em quatro anos, se faz testes pelo Sindicato
pra saber se os músicos podem estar na categoria que ele quer
estar. Isso faz com que os músicos sempre estudem e nivela o
mercado profissional de música sempre por cima. Quem está na
classe A sempre é melhor remunerado através de uma tabela e
sempre têm apoio do governo pra estudarem . O detalhe principal
disso é que só se pode estar trabalhando com música, e no mercado
musical de trabalho, quem tem ao menos um ano de escola de
música comprovado. Isso é simplesmente fantástico e por isso que o
nível dos músicos e da música cubana é sempre tão alto. Se
aplicássemos isso aqui na Bahia teríamos um sério problema, pois
51
95% dos músicos que se tornaram profissionais não têm formação
musical.
É bem verdade que a maior parte dos músicos aprendia a tocar
profissionalmente, bem como a ter conhecimentos básicos sobre música no próprio
exercício de sua atividade. Muitos exerciam, ou haviam exercido durante algum
tempo, outras profissões. O músico que se destacava chegava a assinar contratos
com blocos carnavalescos famosos. Poderia ter também a sua banda contratada por
algum trio elétrico famoso, o que proporcionava ganhos materiais interessantes. Mas
é evidente que era um número pequeno de músicos que conseguiam tais
realizações.
Isto dependia de uma série de fatores, até mesmo de saber gerir a sua
própria carreira e de saber aproveitar bem as oportunidades que surgiam pela frente.
A fanfarrice e a boemia, neste particular, não eram grandes aliados. Estes
‘’ingredientes’’ acabavam muitas vezes se tornando um empecilho na ascensão da
carreira de um músico, embora muitos que se tornaram bem ‘’sucedidos’’
incorressem naqueles hábitos. Segundo Ivan Bastos, ‘’o músico — que trabalha na
indústria carnavalesca— quer tocar, quer curtir, quer ganhar o dinheiro, quer arranjar
a namorada’’. Ivan bastos nos disse o seguinte:
Conheci muitos músicos que se deram mal nesse lance de drogas...
O cara perdia vôo, chegava atrasado no ensaio... Ficava com fama
de problemático... O pior que muitos eram bons... Mas a fama
atrapalhava... Tive muitos amigos... Eu não vou citar nomes, mas tive
muitos amigos assim
De todo modo, o início da década de 1980, que coincide com a criação da
Associação, foi um período difícil para os músicos de Salvador. Há que se destacar
que naquela década o Brasil passava por instabilidades políticas e econômicas;
altos índices de desemprego, bem como altos índices inflacionários acometiam o
país naquele momento:
Desemprego atinge 90% dos músicos da Bahia. A Associação dos
Músicos Profissionais da Bahia está protestando contra falta de
ocupação da classe durante o verão de Salvador. O presidente da
Associação, Franklin Júnior argumenta que a razão é a falta de uma
política governamental que aproveite o grande fluxo turístico dos
verões baianos e privilegie o artista local. Os músicos denunciam
também uma certa discriminação que sofrem já que, enquanto os
grandes cartazes nacionais que se apresentam nessa temporada no
projeto ‘’O sol se põe no Farol’’, ganham cachês de até Cr$1 milhão,
os músicos locais estão tocando no mesmo projeto sem nada
receberem da prefeitura ou da Bahiatursa, que são co-patrocinadores
52
dos espetáculos. Na visita que fez à redação de ‘’A TARDE’’, o
presidente da Associação dos Músicos, Franklin Júnior, que se fez
acompanhar de outros diretores da entidade, disse que cinco
projetos que empregariam mais de 200 músicos nesse início de ano
estão, à esta altura, inviáveis, pela falta de resposta dos órgãos
públicos. O único desses projetos que ainda poderá ser realizado é o
‘’Musicamping’’, que já foi realizado em 1980 e 1981 com muito
sucesso (A TARDE, 08/1/1982).
Os músicos não passaram ilesos por aquele cenário hostil. Além disso, não
havia, por parte do Estado, senão em momentos sazonais, a aplicação de políticas
específicas que viessem a garantir um volume de trabalho significativo para aqueles
trabalhadores.
Mesmo com o contexto de recessão econômica, como foi a década de 1980,
ainda assim fica perceptível uma espécie de ‘’cobrança’’ que os músicos faziam ao
poder público a fim de que ele cumprisse
a sua ‘’obrigação’’ com a massa de
indivíduos músicos desempregados.
Algo que na primeira metade da década de 1990 foi visto por alguns setores
da sociedade civil soteropolitana como uma ‘’vagabundagem’’, ‘’oportunismo’’ dos
músicos, já que o profissional da música interessado em se apresentar no espaço
carnavalesco havia de buscar financiamento para tal empreitada na iniciativa
privada, não no Estado. Mas para Franklin Júnior, era o Estado o principal agente
responsável pelo ‘’eterno desemprego do músico’’:
Este ano, muito embora tenha sido aprovado pela prefeitura e
Bahiatursa, até agora nenhum dos dois órgãos se pronunciou quanto
à verba a ser destinada para cobrir as despesas orçadas em
Cr$2.650 mil. Esse projeto, segundo explicou, seria realizado nos
dias seis e sete de fevereiro, na Praia de Piatã, e além de integrar
artistas locais e do Sul do país seria, como foi nos anos anteriores,
importante para mostrar a arte de cada um, a um público bastante
numeroso, o que não ocorre com freqüência na Bahia,
particularmente em Salvador. Nos dois anos anteriores, o projeto
chegou a atrair sete mil pessoas para assistirem 100 músicos. Esse
ano participaram 80 artistas e a platéia prevista para os dois dias
seria de 10 mil. Explicou o presidente da associação que existem na
Bahia sete mil músicos e em Salvador quatro mil, dos quais 90 por
cento estão desempregados. Em 1980 – disse – a associação tomou
a iniciativa de criar o ‘’Mutirão da Música’’, que contou inicialmente
com 12 compositores e teve o show inicial realizado com a presença
de Gilberto Gil. Com o mutirão os músicos baianos conseguiram
apresentação em diversos teatros no verão passado, contando com
o apoio do governo, mas infelizmente, o mesmo não ocorre este ano,
fazendo com que o músico baiano continue um eterno
desempregado (Ibid.).
53
Decerto, os músicos partícipes de bandas que possuíam alguma fama no
cenário local, bem como os músicos que eram ligados diretamente à esfera privada
— os contratados por donos de trios famosos, por blocos bem estruturados etc—,
estes, não tiveram tantos problemas materiais como os que atuavam nos
espetáculos, na maior parte dos casos, através do patrocínio público.
Por outro lado, é evidente que os músicos não dependiam somente do
dinheiro do Estado para sobreviver. Havia outros meios, porém não tão rentáveis.
Meios como o da noite — apresentações em casas noturnas—; festas particulares —
casamentos, aniversários, formaturas etc—; gravações de discos, dentre outros.
O músico Ivan Bastos, que fez parte da AMPEB — Associação dos Músicos
Profissionais do Estado da Bahia, chamada de AMPEB, a partir daqui—, destaca em
seu depoimento as conquistas realizadas pela instituição — é bom ter em mente que
se trata de um ex-membro da instituição! —, e expõe também as condições, na
época, sob as quais os músicos trabalhavam:
Eu fui convidado para participar. Eu já tava tocando aqui e ali, daí eu
acabei entrando numa chapa lá. A gente conseguiu grandes
conquistas que hoje se perderam. A gente conseguiu acabar com a
política do couvert, quer dizer o músico ter que tocar por couvert;
conseguimos fazer com que o músico tivesse direito a um jantar no
cardápio...o cara tocava, e daí faziam qualquer gororoba lá...Hoje
essas conquistas se perderam, realmente está muito complicado. Daí
pra completar veio aquela lei do silêncio, aí os bares mais simples
não podiam botar uma musiquinha, tinha que botar num volume
menor (Ivan Bastos).
O mercado musical baiano se desenvolveu significativamente ao longo da
década de 1980. E as gravações de discos passaram a ter um peso significativo na
vida econômica dos músicos. Enquanto a primeira entidade dos músicos buscava
dissolver alguns tipos de exploração específicos daquele período, novas formas de
exploração foram geradas com o rápido desenvolvimento do mercado fonográfico.
O baterista profissional Ivan Huol nasceu em 13/05/1963. Ele acompanhou
muitos artistas no Carnaval, sobretudo os artistas ligados à axé-music. O músico nos
deu o seguinte relato:
Hoje em dia, na axé-music, o dinheiro chegou e os músicos se
profissionalizaram numa situação meio perversa... Começou a
encher os olhos de muitos empresários... Já tinham muitos
empresários... Por exemplo, existia o laranja institucionalizado do
Carnaval. Existia um comércio de nota fiscal, e isso existia até pouco
tempo... Existiam empresários extrativistas... Se pudessem pagar
vinte reais por show eles pagavam mesmo, dependendo do que o
músico acertasse... Rapaz, os músicos eram muito explorados...
54
Melhorou um pouco para os músicos... Mas foi uma melhora meio
perversa, sabe.
A relação de exploração que ocorre num determinado período histórico é mais
que a soma de injustiças e antagonismos mútuos. É uma relação que pode ser
encontrada em diferentes contextos históricos sob formas distintas, que estão
relacionadas
a
formas
correspondentes
de
propriedade
e
poder
estatal
(THOMPSON, 2002, p. 28).
Há uma reflexão importante a ser feita, neste relato do músico Ivan Huol.
Note-se que ao mesmo tempo em que houve uma ‘’melhoria’’ nos padrões das
relações profissionais dos músicos — algo destacado pelo entrevistado—, uma
melhoria derivada das novas relações de trabalho trazidas pela indústria do axémusic no final da década de 1980, no mesmo período, percebe-se a intensificação
da exploração, uma sensação relatada, de modos diferentes, por alguns músicos
entrevistados.
O que nos leva a argumentar que aquela ‘’melhora’’ nas relações profissionais
não foi sentida de forma unívoca pelos músicos. Para alguns, aquela melhora foi
sentida como uma experiência ‘’questionável’’, ou relativa.
Nem todos os músicos que formavam o quadro de um grupo musical
qualquer, seja ele famoso ou não, tinham habilidades suficientes para as técnicas de
gravação em estúdio; além disso, o primeiro estúdio que surge em Salvador em
1975, a WR, do empresário Wesley Rangel, possuía uma equipe de músicos
selecionados pelo próprio empresário, equipe esta que gravava todos os discos ali
produzidos. Elencamos, na seção que sucede, alguns desdobramentos daquele
incipiente mercado fonográfico.
1.3 Gravações, direitos, lutas sindicais e Carnaval
O estúdio WR chegou a produzir cerca de 90% de todo material fonográfico
que, na década de 1980, saiu da Bahia para o mercado nacional (GUERREIRO,
2000, p.117). Inicialmente, o próprio fato de o estúdio possuir os seus músicos já
inviabilizava a participação de qualquer outro – ainda que possuísse habilidades e
experiência com gravações em estúdio.
Isso, com o passar dos anos, foi mudando à medida que o acesso às novas
aparelhagens técnicas ocorreu. Porém, é importante destacar que foi o estúdio WR
55
que impulsionou a criação e a consolidação de um mercado fonográfico local mais
amplo. Com o avanço dos anos, muitos músicos passaram a gravar mais e mais, por
conta de uma demanda local significativa que se apresentava (GUERREIRO, 2000,
p.117-119).
Com o relativo crescimento das gravações, outra questão veio à baila para os
músicos: a questão dos direitos autorais. Ao que parece, na década de 1980, essa
questão passava ao largo. Deduz-se, através de uma reportagem de um jornal da
época, que o debate público sobre os direitos autorais, bem como sobre instituições
com a função de recolhê-los não eram questões “corriqueiras”.
Em 1981, um jornal da época divulgou na Bahia a existência de uma
Associação de Autores e Compositores. ‘’Criada em abril do ano passado, [...] a
Anacim, já conta com cerca de cem sócios nos estados do Rio de Janeiro, São
Paulo e Brasília, não tendo no entanto registrado nenhum sócio baiano’’ (A TARDE,
26/1/1981, p.3).
A matéria esclarecia que ‘’[...] Valter Levita, que é natural de Ilhéus, está em
Salvador para divulgar as atividades da entidade [...] Um dos objetivos da
Associação é evitar que os autores fora do eixo Rio — São Paulo demorem para
receber seus direitos autorais’’ (A TARDE, 26/1/1981, p.3).
E os objetivos eram ‘’[...] melhor divulgar as atividades da Anacim e
esclarecer aos compositores e intérpretes como ela funciona’’ (A TARDE, 26/1/1981,
p.3). Note-se que, além de promover a divulgação da instituição à qual os músicos
poderiam se associar, havia o objetivo de ‘’melhorar’’ o recolhimento dos direitos
autorais daqueles autores e compositores baianos.
Sabe-se que um percentual pequeno dos direitos recolhidos daqueles autores
associados ficava com aquelas instituições. Acompanhemos o conteúdo da matéria
publicada:
Outra atribuição da associação é de promover maior contato
entre os autores e editoras, criando condições para que os
compositores possam gravar suas músicas e colocá-las no mercado.
Isto pelos contatos já estabelecidos com as gravadoras, além de
estar sediada em Brasília, onde são tomadas todas as decisões.
Residindo em Brasília há pouco mais de um ano, Valter Levita foi
campeão de dez carnavais, destacando-se entre suas músicas mais
conhecidas ‘Índio quer apito’, ‘Nega do Congo’, e ‘A Maria tá’. Sem
esquecer suas raízes, Valter quer difundir a entidade aqui por
entender que o autor baiano tem dificuldades em mostrar seu
trabalho e colocá-lo efetivamente no mercado. Os compositores e
intérpretes interessados em obter maiores informações sobre a
56
Anacim poderão entrar em contato com seu presidente, através do
telefone, 3243-2463, até hoje, quando ele viajará para Brasília, a fim
de manter novos contatos (Ibid., p.3).
É evidente que Valter Levita buscava alargar o número de associados para
aquela instituição. Mas o que é importante é a sua opinião sobre as “dificuldades
encontradas pelo autor baiano”. Esta fala do compositor não era de todo demagógic.
O ECAD — Escritório Central de Arrecadação e Distribuição havia sido criado oito
anos antes da publicação desta matéria citada, mais precisamente, em 1973, e
ficava localizado no Rio de Janeiro.
Com exceção dos poucos músicos baianos que conseguiam gravar suas
músicas em estúdios no Rio de Janeiro e São Paulo, muitos músicos de Salvador
fizeram as suas primeiras gravações no estúdio WR, criado em 1975, como já
afirmamos anteriormente.
Assim sendo, acreditamos que naquele pouco tempo de existência — do
estúdio WR— e, ao que tudo indica, pouco tempo também de produção e difusão de
gravações locais que possivelmente eram executadas publicamente, não havia
ainda condições materiais concretas e eficazes para um “adequado” recolhimento
dos direitos autorais dos músicos baianos, muito embora já houvesse sociedades de
direitos autorais.
Mas para além disto, há também um traço histórico importante que deve ser
mencionado: em geral, o “olhar nacional”, o que realmente gozava de importância
nacional, pelo menos no plano simbólico, advinha do chamado eixo Rio - São Paulo.
Portanto, o fato de o músico residir na Bahia ou em qualquer outro lugar da Região
Nordeste, isto por si mesmo, já se tornava um “óbice” em sua vida, em muitos
aspectos, e não era diferente no que dizia respeito ao recolhimento dos seus direitos
autorais. Toda aquela discussão sobre direitos autorais, bem como a possibilidade
de ganhar algum dinheiro com tais direitos autorais etc., tudo isso era muito “novo”
naquele contexto.
O interessante é perceber, dentro do que até aqui discutimos, que a situação
profissional, econômica e cultural5 dos músicos de Salvador, mais precisamente dos
músicos que atuavam na indústria carnavalesca, em seus diversos ramos, não era
homogênea. Insistimos em chamar a atenção para esta questão.
5
Sobre cultura, ver THOMPSON, 2005, p. 17.
57
Volta e meia o sindicato apresentava alguma proposta à Prefeitura — quase
sempre em períodos próximos à festa — no sentido de garantir um número razoável
de trabalho para os músicos que dependiam estritamente do financiamento público
para atuarem no Carnaval.
Não é demais lembrar que havia um número significativo de músicos
profissionais — isto é, músicos que executavam bem a “música-produto” nascente
na Bahia, oriunda do novo modelo de Carnaval que se desenrolava— dependentes
do dinheiro público, o qual viabilizava à banda ou conjunto musical a oportunidade
de mostrar seu trabalho, a oportunidade de poder pagar não apenas o cachê do
músico, mas também de produtores, aluguel de som etc. Vejamos então um destes
momentos, nos quais o sindicato procurou a Prefeitura para negociar:
Situação dos músicos. Os representantes do Sindicato dos
Músicos e da Associação de Músicos de Carnaval e Festejos da
Bahia foram recebidos pelo prefeito Fernando José na tarde de
ontem, o qual recebeu o projeto de revitalização do carnaval nos
bairros e prometeu encaminhá-lo ao coordenador do Carnaval,
Cristóvão Rodrigues, para discussão, prometendo uma posição
sobre o assunto na próxima terça-feira. Rodrigues, por seu lado, diz
que um palco fixo com as orquestras e bandas do Sindicato dos
Músicos não conseguem prender os foliões nos bairros, coisa que só
seria possível com a presença de grandes atrações nestes locais.
Segundo ele, se depender somente da prefeitura, haverá apenas
carnaval na Barra e na Liberdade, onde espera contar com a
colaboração dos trios e blocos para animar a festa. ‘Não iremos
cobrar ISS e taxa de publicidade dos blocos de trios e esperamos
que em contrapartida eles toquem para o povão nos horários
disponíveis, como vai fazer, por exemplo, o Eva e o Camaleão, na
Barra.
Observa-se que o poder público foi se distanciando do Carnaval. E as
justificativas para
isentar os principais blocos de trio do imposto sobre serviço,
dentre outros, estiveram ancoradas no ‘’velho’’ discurso das limitações financeiras
da prefeitura. Naquele contexto, tratava-se de deixar a realização da festa sob os
auspícios e ‘’boa vontade’’ da iniciativa privada:
Na Liberdade, pedimos a colaboração dos blocos afro e iremos
fornecer transporte para que eles cheguem até a Liberdade’, disse
Cristóvão. O coordenador afirma que na Barra é a comunidade
empresarial local que garante a festa. Ele promete que no ano que
vem a prefeitura deverá aumentar o número de bairros incluído na
programação e aponta os bairros de São Caetano e Cajazeiras como
os que deverão ser contemplados. ‘Carnaval nos bairros só com
grandes atrações. Fora isso, é atender ao clientelismo’, assinala (A
TARDE, 26/1/1990, p. 4, seção: Geral).
58
A matéria acima apresenta, em certa medida, uma situação de ‘’mal-estar
político’’ entre o coordenador do Carnaval e o sindicato. Nota-se também uma idéia
de Carnaval feito a partir das e para as grandes atrações, isto é, atrações famosas
sem as quais o Carnaval não teria sentido para o ‘’povo’’. Carnaval e atrações
famosas são sinônimos. Dissociar essas duas coisas é praticar, no dizer do
coordenador do Carnaval, o clientelismo. Ele mesmo afirma que o Carnaval nos
bairros6 só ocorreria, de fato, com grandes atrações.
Os Carnavais de Bairros constituíram, de certo modo, um pano de fundo no
modelo carnavalesco hegemônico que se desenrolava. Os princípios hegemônicos
que caracterizavam o Carnaval dos circuitos principais destoavam sobremaneira das
condições sob as quais efetivamente ocorria o dito ‘’Carnaval de Bairro’’.
Tanto do ponto de vista estratégico-administrativo – o poder público não
utilizava as imagens dos carnavais de bairros em suas ‘’propagandas oficiais’’ para
promover a atração de turistas à cidade – como do ponto de vista das próprias
bandas – não havia uma coexistência nos chamados Carnavais de Bairros entre
bandas locais pouco conhecidas ou bandas da própria comunidade e as bandas
consolidadas pelo mercado, as chamadas bandas famosas.
Estas últimas, quase que inexistiam nas listas das bandas que se
apresentavam comumente naquele tipo de Carnaval. Por fim, poderíamos ainda
colocar que os fins a que estiveram submetidos os carnavais de bairros foram um
tanto ambíguos, se considerarmos o contexto de segregação e exploração
crescentes no bojo do Carnaval de Salvador.
O coordenador do Carnaval Cristóvão Rodrigues faz menção às orquestras e
bandas do sindicato dos músicos, alegando que tais conjuntos não teriam a
capacidade de prender os foliões nos bairros. A matéria citada é de 1990, momento
no qual os blocos de trio, que traziam consigo as bandas de axé-music, estavam
consolidando a sua hegemonia7 no Carnaval de Salvador.
Entretanto, parece que eram as orquestras que tinham algum tipo de prestígio
em 1981. Uma festa particular, promovida por um clube tradicional do Carnaval de
6
A respeito dos Carnavais de Bairro, ver GUERREIRO, 2000, p. 211
Para Gramsci, o exercício “normal” da hegemonia (...) caracteriza-se pela combinação da força e do
consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas,
ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria (...) (GRAMSCI,
2002, p. 95).
7
59
Salvador, Fantoches da Euterpe, teve como atração principal uma orquestra e não
um bloco de trio.
Os blocos de trio, posteriormente, ganharam tamanha notoriedade que eram
contratados por agentes privados até mesmo na condição de permanecerem
parados. Mas vejamos então como eram vistas as orquestras anos antes das
questões apresentadas sobre o Carnaval nos bairros. No clube Fantoches da
Euterpe, ‘’[...] A Orquestra Piatã, considerada a melhor dos últimos carnavais,
integrada de cem músicos, fará a animação do baile que tem início previsto para às
23 horas e só terminará nas primeiras horas da manhã de domingo. Estão
esgotadas as mesas [...]’’ (A TARDE, 06/02/1981, p. 7).
Atuavam, nos blocos de trio, as bandas ou conjuntos musicais com uma
formação reduzida — guitarra, baixo, bateria, teclado, percussão e cantor —, se
comparada à formação de uma orquestra, por exemplo. Mas o que fica evidente é a
seguinte questão: o Carnaval de Salvador se transformou significativamente durante
e depois da década de 1980. E como os músicos, bem como o sindicato, se
comportaram naquele processo? Conversando com Ivan Bastos sobre o sindicato,
ele argumentou o seguinte:
O sindicato tinha uma idéia de tentar aglutinar. É complicado, uma
classe que não tem um local específico de trabalho. É uma diáspora
soteropolitana espalhada pelo município todo, pelo estado todo. Na
época da associação eu tava começando, acompanhei porque eu já
tava em contato com o pessoal da escola de música...eu não lembro
exatamente, mas eu sei que em 83, eu acho que é isso mesmo, em
83 houve um congresso da CUT, eu fui com a delegação do
sindicato, tava o nosso presidente Lula...a gente tava conseguindo
construir uma relação próxima com os músicos porque conseguimos
colocar na primeira diretoria pessoas representativas, apesar de eu
ser muito jovem eu já tava tocando com muita gente...aí a gente tinha
Geisel que era da OSBA, Papapa, não precisa nem falar, todo
mundo atuante.
O músico e ex-integrante do sindicato nos traz o pefil de alguns dirigentes da
entidade. Muitos ligados à Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. O
problema específico, decorrente da natureza do trabalho do musicista do Carnaval,
da falta de unidade da categoria era um tema recorrente entre os musicistas que
atuavam naquele espaço de trabalho. Ele argumentou que aquilo era
um problema complicado. Agora mesmo o pessoal critica as
pessoas que estão no sindicato porque não são músicos, não estão
atuando, mas também você acaba largando o outro lado...mas nessa
época a gente saía fazendo ronda, a gente pegava o carro de
Patriarca, fazia uma vaquinha, botava gasolina e saía fazendo ronda
60
pelos bares pra ver como é que tava a situação, isso tudo a gente
fazia. Era uma coisa meio romântica, mas a gente conseguiu
algumas coisas (Ivan Bastos).
Como argumentamos anteriormente, os músicos ligados à AMPEB eram
oriundos, inicialmente, da escola de música. Numa dessas ações dos músicos
ligados à instituição — que então já havia se transformado em SindiMúsicos —, o
protesto de 1993 foi possivelmente uma das mais impactantes. Depois de
apresentar, ainda que de forma breve, as primeiras ações da AMPEB, bem como
alguns dos seus propósitos iniciais, discorreremos, mais detidamente, sobre o
protesto e seus desdobramentos no capítulo que se segue.
61
2 – OS MÚSICOS PROTESTAM: SINDIMÚSICOS E O CARNAVAL
Na sociedade industrial, as perturbações mais suscetíveis de
significação histórica tomam a forma de greves e outras disputas
trabalhistas, ou de reuniões públicas de massa [...] Seus objetivos
tendem — embora nem sempre— a ser bem definidos, voltados para
a frente e bastante racionais, mesmo se apenas aceitáveis, à
primeira vista, a um dos lados da disputa. E os participantes tendem,
exceto em comunidades camponesas distintas, a ser trabalhadores
assalariados ou industriais (George Rudé).
Discorremos neste capítulo sobre um protesto realizado pelos músicos no ano
de 1993. Refletimos sobre as formas, bem como sobre os conteúdos das visões e
opiniões que foram produzidas e reproduzidas naquela situação específica na qual o
protesto ocorreu. Os discursos dos jornais e dos políticos sobre o protesto
desencadeado naquele ano são trabalhados. Ademais, apresentamos também os
discursos dos músicos sobre o ocorrido. Discutimos e aprofundamos neste capítulo
como as ações do sindicato dos músicos foram vistas pela sociedade soteropolitana.
Finalmente, retomamos a discussão sobre a relação dos músicos com o sindicato da
categoria e, igualmente, a importância daquela instituição para os musicistas. Todas
estas questões aparecem aqui.
2.1 Os músicos, a imprensa e suas considerações.
Estamos diante de uma experiência8 histórica interessante da classe9
trabalhadora, desse grupo de trabalhadores: músicos que fizeram um protesto para
pressionar a prefeitura de Salvador para que esta pagasse salários mais
significativos àqueles profissionais. Os músicos que tomaram a Praça Municipal, em
frente ao prédio da prefeitura, o Palácio Tomé de Souza, foram ‘’alvo’’, ao que
parece, de diversos tipos de considerações, opiniões e discursos forjados por
determinados setores da sociedade civil soteropolitana.
8
“Os homens e mulheres também retornam como sujeitos (...) como pessoas que experimentam
suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como
antagonismos, e em seguida ‘’tratam’’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das
mais complexas maneiras (sim, ‘’relativamente autônomas’’) e em seguida (muitas vezes, mas nem
sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação
determinada’’ (THOMPSON, 1981. p. 182). Efetivamente, não consideramos as experiências dos
seres humanos a partir da estrutura de classes somente. Há outras variáveis, como bem salienta o
Thompson, em ‘’jogo’’.
9
Sobre a noção de classe, ver MARX, 1997, 127-128; THOMPSON, 1997, p.9-12.
62
Elencamos e discutimos algumas projeções no capítulo anterior. Ao afirmarmos
que os músicos fizeram parte daqueles discursos, estamos nos referindo
fundamentalmente às intenções produzidas e difundidas pelos jornais impressos.
Os indivíduos e os interesses que permeiam as empresas do ramo da informação
são reais, e partem de um lugar social.
A linguagem jornalística é forjada no acontecer social, visto como experiência de
classe. Porque os jornais definem papéis sociais, entendemos que o destinatário
está presente o tempo todo, ora fornecendo os parâmetros do discurso através da
idealização que o emissor faz dele, ora como tipo padrão de leitor que o emissor
quer formar (VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY, 1991, p. 54). Vejamos então alguns
termos usados por este jornal que noticiou aquele conflito entre a prefeitura e o
sindicato:
Lídice suspende diálogo com músicos. Alguns músicos,
capitaneados pelo sindicato da categoria, proporcionaram um triste
espetáculo ao invadir e depredar um bem público que é a sede da
Prefeitura. E eles não reivindicavam salas de aulas, saneamento
básico, serviço médico ou creche. Queriam ‘’apenas’’ um cachê mais
recheado de dólares para se apresentar no Carnaval. Está na hora
da prefeita Lídice da Mata dar um basta nessa bandalheira e
desrespeito ao povo da Bahia, que tem de pagar mais aos músicos
do que aos médicos que estarão fazendo plantão nos dias de folia
(JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993).
Se considerássemos o ocorrido a partir desta evidência apenas, teríamos não
sujeitos históricos se movimentando, mas sim uma ‘’bandalheira’’ sem rumo.
Observem que de início, o jornal cita alguns ‘’temas sociais’’ moralmente
fundamentais, num discurso moralizante, para em seguida argumentar, numa tônica
simplista, que os músicos queriam somente um cachê robusto para atuarem no
Carnaval. E um bacharel em medicina, um médico, é posto num lugar social
hierarquicamente superior em relação àquela ‘’bandalheira de artistas’’. E num tom
agressivo, o mesmo jornal argumentou que ‘’a prefeita deveria ter a coragem de
deixar de patrocinar a diversão dos outros. Quem tem competência que consiga
patrocínio particular para suas empreitadas carnavalescas’’ (JORNAL DA BAHIA,
31/12/1993).
63
Afirmou ainda que ‘’a prefeitura deve garantir somente a infra-estrutura da
festa, uma vez que ela dá um bom retorno à cidade, especialmente em termos de
turismo’’ (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993). Aqui temos novamente um discurso que
procurou enviesar os motivos pelos quais os músicos fizeram o protesto.
Não é necessário dizer que o deslocamento para a iniciativa privada,
eximindo o poder público de qualquer reponsabilidade quanto ao financiamento dos
cachês dos músicos que realizavam espetáculos públicos, é algo presente,
recorrente naquele contexto.
Contudo, cabe falarmos do significado daquela manifestação. Foi uma
experiência histórica importante. E por diversos motivos. Pode-se considerar uma
experiência histórica significativa não apenas pelo protesto e as reivindicações de
cerca de 200 músicos.
Houve relevância, dentre outros motivos, pelo fato daquela ação política —
num sentido amplo da expressão— ter partido de um tipo de segmento social que,
não raro, ‘’aparecia’’ — e ainda aparece— para a sociedade baiana sob uma ‘’cortina
de fumaça’’, algo que já afirmamos anteriormente.
A forma enviesada através da qual soteropolitanos tomavam contato com
aquela categoria, a partir do espetáculo, indicava desconhecimento do modo de vida
daqueles indivíduos: como viviam; como produziam a sua existência; quais eram as
suas angústias etc.
Há mais a ser dito antes de adentrarmos no protesto. Como afirmamos nas
considerações iniciais do trabalho, o Carnaval de Salvador é também um produto
dos músicos. É preciso, portanto, descobrir quem são eles. Há muitas referências
que discorrem sobre os músicos ou musicistas diversos de Salvador. Geralmente, os
famosos — tanto os que estão no “rol da fama” como também os que já estiveram lá
em algum momento de suas vidas—, tais como: Carlinhos Brown, Ivete Sangalo,
Daniela Mercury etc. Estes são musicistas que fazem parte do show business da
cidade.
No entanto, embora tragam, consideravelmente, elementos importantes para
se discutir e pensar como se dava — e como se dá— a idéia de ser um musicista
famoso em certos períodos da sociedade soteropolitana, o diálogo apenas com eles
negligencia, quase que totalmente, outros aspectos que estiveram — e estão—
presentes na vida desta categoria de trabalhadores.
64
É isso também que tentaremos indicar através do protesto. A manifestação
dos músicos em 1993 está inserida em uma dinâmica muito ampla, que passa por
vários setores da vida social, tais como a sociedade política, as organizações
representativas, a luta e os interesses de classes, a indústria cultural etc.
O protesto dos músicos aconteceu no dia vinte e nove de dezembro de 1993,
às 15:00 horas, na Praça Municipal, em Salvador, em frente ao Palácio Tomé de
Souza. O protesto foi organizado pelo sindicato dos músicos,
SindiMúsicos. O
sindicato negociava com o poder público o cachê destes profissionais para que
pudessem desempenhar seu trabalho nos diversos circuitos carnavalescos
espalhados pela cidade. ‘’A entidade ajustou com a prefeitura os cachês dos
músicos aprovados num concurso promovido, em parceria, pelas instituições –
SindiMúsicos e prefeitura’’ (A TARDE, 30/12/1993).
Num primeiro momento, o sindicato havia consensualizado com a Prefeita –
na época Lídice da Mata – uma liberação de verba para a instituição no valor de
US$ 1.340.000,00, cerca de 30% dos US$ 4.600.000,00 do orçamento do poder
público destinado para o Carnaval de 1994. Houve um acordo ‘’[...] entre o município
e os músicos, para que estes tocassem durante o Carnaval de 94 em troca de um
cachê global de US$ 1,3 milhão [...]’’ (A TARDE, 30/12/1993).
Este valor correspondia ao pagamento tanto das bandas que se
apresentariam nos chamados “carnavais de bairros” como das bandas selecionadas
para os circuitos principais. O concurso tinha um número limitado de vagas. Nota-se
que as bandas selecionadas para as primeiras posições se apresentavam, por
direito, nos principais circuitos carnavalescos da cidade.
As bandas bem colocadas ganhavam também melhores cachês em relação
às demais. Os grupos musicais que não alcançavam uma nota significativa
geralmente eram destinados aos circuitos secundários, isto é, os carnavais de
bairros e os palcos localizados em pontos específicos próximos aos circuitos
principais.
O sindicato, ao negociar com a prefeitura, propôs que o montante reivindicado
fosse apenas para o pagamento das atrações selecionadas por concurso. Com isso,
a instituição entendia que as atrações consolidadas pelo mercado não deveriam ser
incluídas na verba acordada. Ao longo das negociações, várias propostas foram
apresentadas pelo SindiMúsicos à Prefeitura. Uma das quais, por exemplo, foi o
pedido inicial de 46% do orçamento para o Carnaval de 1994:
65
Prefeita tem encontro com músicos da Bahia. A Prefeita Lídice da
Mata reúne-se hoje às 17 horas, com representantes do Sindicato
dos Músicos para tentar chegar a um acordo sobre a verba que os
músicos pleiteiam, de 46% do orçamento total destinado ao
Carnaval. De antemão, a prefeitura tem em conta estar propondo o
maior volume de verba já destinado para esse fim e que a proposta
defendida pelo sindicato não está respaldada em informações
financeiras que permitam qualquer projeção percentual. A questão,
no entanto, será definida a partir desse encontro (DIÁRIO OFICIAL
DO MUNICÍPIO, 07/12/1993).
Com efeito, a EMTURSA, um dos órgãos responsáveis pela administração da
verba a ser destinada para o Carnaval, ofereceu como contra proposta 27%. ‘’[...] a
prefeitura, através da EMTURSA [...] acena com um cachê de US$ 1, 240 milhão’’
(TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993). Depois de muita conversa fixou-se em 30% do
orçamento, conforme afirmamos anteriormente.
Assim, a comissão de negociação do sindicato argumentou que além deste
percentual, seria necessário, para que nenhuma banda saísse prejudicada, tanto as
atrações aprovadas no concurso como as bandas consolidadas pelo mercado, um
cachê adicional, sendo este último para o pagamento apenas das atrações
consolidadas nos espaços carnavalescos principais.
Entretanto, com a entrada da Comissão especial do Carnaval – comissão
formada para redefinir alguns pontos acordados – nas reuniões, a negociação tomou
outro rumo. A comissão do Carnaval era formada por vereadores e o Secretário de
Comunicação do município, Domingos Leonelli. Aquela comissão saiu da Secretaria
Municipal de Comunicação Social. De acordo com o presidente da Comissão do
Carnaval, Domingos Leonelli, ‘’[...] a prefeitura não pode se comprometer a pagar
mais de US$ 1, 5 milhão somente para um setor no Carnaval [...]’’ (TRIBUNA DA
BAHIA, 30/12/1993).
A criação desta comissão representou, em certo sentido, um descompasso
entre determinados setores do governo municipal. Setores que, de um lado,
apoiavam não os músicos, mas sim o sindicato; e de outro, setores que hostilizavam
as facções políticas inseridas no sindicato.
Estes últimos, reduziam os interesses de aproximadamente duzentos músicos
aos interesses dos dirigentes do SindiMúsicos. O vereador João Bacelar, do Partido
do Movimento Democrático Brasileiro — PMDB —, ficou ‘’[...] indignado com a
atitude do Sindicato dos Músicos de invadir a prefeitura. Este ato de força é
66
antidemocrático e atropela o processo de negociações que estava em andamento’’
(A TARDE, 30/12/1993).
João Bacelar afirmou que ‘’as negociações devem ser retomadas agora com
outros interlocutores. [...] Há mais de duas semanas a Câmara de Vereadores vinha
mediando as negociações entre a Comissão do Carnaval e o Sindimúsicos’’ (A
TARDE, 30/12/1993). Segundo o presidente do SindiMúsicos, na época Franklin
Oliveira Júnior, ‘’o secretário Domingos Leonelli orientou a prefeita a voltar atrás nas
negociações que já haviam se concretizado em fins de novembro’’ (A TARDE,
30/12/1993).
De certo, depois da intervenção da comissão do Carnaval nas negociações, a
prefeita Lídice entendeu que os 30% negociado com o sindicato, com vistas ao
pagamento apenas das atrações aprovadas em concurso, deveria levar também em
consideração as atrações consolidadas pelo mercado.
Há que se destacar a participação da Federação dos Clubes Carnavalescos
nas negociações. Esta instituição era contra a quantia acordada — no valor de US$
1.340.000— entre a prefeitura e o sindicato dos músicos. A instituição não aceitava
que aquele montante fosse destinado somente para o pagamento dos músicos
participantes do processo de seleção organizado pelo sindicato.
Desse modo, o SindiMúsicos organizou um protesto com a intenção de tentar
marcar uma nova audiência e ao mesmo tempo de fazer a prefeitura renegociar e
rever a sua posição. Um jornal da época informou que ‘’a maior parte dos
manifestantes entrou no Palácio Municipal na tentativa de conseguir uma audiência
com a prefeita [...] para resolver o impasse em torno dos cachês’’ (Ibid.). É com esta
intenção, portanto, que cerca de 200 músicos acompanharam Franklin Oliveira
Junior, na tentativa de ocupação da sede da prefeitura da cidade do Salvador.
Imediatamente à ocupação, o secretário de comunicação da prefeitura,
Domingos Leonelli, convocara o 18º batalhão da Polícia Militar para reprimir a
manifestação considerada por ele como ‘’ato de vandalismo’’. Dezenove pessoas
feridas, uma com fratura de costela, sete com hematomas na cabeça, braços e
punhos, e os demais, com arranhões e machucados.
Este foi o saldo que a polícia militar deixara para os manifestantes. No dia
seguinte ao ocorrido, alguns jornais de grande circulação no Estado trouxeram em
suas manchetes aquele evento:
67
Músicos pedem cachê e ganham socos e tapas. A pressão feita
pelo Sindicato dos Músicos para ser recebido em mais uma reunião,
pela prefeita Lídice da Mata, a fim de negociar o cachê dos músicos
durante o carnaval de 94, terminou em pancadaria, com o número de
19 feridos. A confusão começou quando cerca de 200 músicos
ocuparam o térreo e o primeiro andar do Palácio Tomé de Souza
para forçar mais uma audiência com a prefeita e a EMTURSA e
foram reprimidos pelos PMs que fazem a segurança do local.
Imediatamente teve início um festival de pancadaria, com direito a
socos, pontapés, cassetetadas e bombas de gás lacrimogênio. Os
músicos revidaram atirando pedras nas vidraças do prédio (BAHIA
HOJE, 30/12/1993).
Todo discurso parte de um lugar social, algo que já foi afirmado
insistentemente aqui. Este jornal tendeu, pelo menos implicitamente, para o lado dos
músicos, ao colocar aquela situação como sendo fruto de uma reação daqueles
sujeitos, um revide às forças repressoras. Isentou os músicos porque, ao que tudo
indica, era um jornal de oposição a algumas forças políticas que formavam o
governo do munícipio.
Este jornal destacou que o protesto ocorreu por conta do sindicato dos
músicos ter buscado, através da manifestação, a concretização de uma audiência
com a prefeita Lídice da Mata. Afirmou que depois da ocupação do palácio Tomé de
Souza, os músicos foram reprimidos pelos policiais que faziam segurança no local.
Percebe-se na pequena matéria do Bahia Hoje, uma preocupação em narrar
o acontecido como sendo uma reação dos músicos à repressão da polícia militar.
Com efeito, a matéria aponta uma situação para o leitor de uma ação praticada
primeiro pelos policiais, gerando como conseqüência, a reação dos manifestantes.
Mas é interessante observar como um ‘’fato’’ pode realmente ser interpretado
de diversas formas. O fato existe, as notícias são interpretações dos fatos,
interpretações que muitas vezes são desprovidas de ‘’pudor’’, ou redutoras deste
último. Os jornais tem seus editoriais que imprimem uma visão sobre o que se passa
no mundo, sobre o que está acontecendo.
Este organismo privado – que é sociedade civil e, nem sempre, mas muitas
vezes, sociedade política a um só tempo – precisa vender notícia, ‘’plantar notícia’’.
É justamente pelo peso que as diversas mídias adquiriram na contemporaneidade, e
pela sua característica histórica de formar, conformar e deformar opiniões e visões
políticas, é por tudo isto que se faz necessário compreender o significado e o
funcionamento dos veículos de comunicação na sociedade contemporânea.
Vejamos o conteúdo de outro jornal da época:.
68
Pancadaria acaba com protesto dos músicos. Um confronto entre
policiais e músicos resultou em 15 feridos, durante um protesto
organizado pelo Sindicato dos Músicos, em frente ao prédio da
prefeitura, na Praça Municipal. Inconformados com a decisão do
secretário municipal de comunicação, Domingos Leonelli, de
desautorizar um acordo entre o município e os músicos, para que
estes tocassem durante o carnaval de 94 em troca de um cachê
global de US$ 1,3 milhão, 400 membros da categoria se
concentraram defronte da prefeitura e, em dado momento, com os
ânimos exaltados, passaram a apedrejar os vidros laterais. Domingos
Leonelli solicitou a presença do 18º Batalhão da PM; para conter os
manifestantes, os policiais deram tiros para o alto, jogaram bombas
de gás lacrimogênio e bateram à esmo nas pessoas com cassetetes.
O presidente do Sindimúsicos, Franklin de Carvalho, disse que os
depredadores não pertenciam ao movimento e acusou os
seguranças da prefeitura de terem iniciado as agressões (ATARDE,
30/12/1993).
Este jornal narrou o mesmo fato com uma perspectiva diferente. Ele passa
uma mensagem, para o seu leitor, de um protesto que tem como causa um
inconformismo por parte dos manifestantes em relação à decisão da prefeita, de
desautorizar, influenciada pelo secretário de comunicação da prefeitura, o acordo
que já tinha sido firmado entre o sindicato e o município.
O jornal não coloca como sendo a causa do protesto, isto é, o motivo
precípuo, a tentativa de marcar mais uma audiência com a prefeita. Ao contrário,
demonstra, efetivamente, uma intolerância e igualmente uma ‘’predisposição’’ dos
músicos, por conta das circunstâncias, para apedrejarem os vidros do palácio Tomé
de Souza.
Neste sentido, a ação dos policiais é vista de outro ângulo: como sendo uma
ação necessária e inevitável, já que os manifestantes se concentraram em frente à
prefeitura, já inconformados com a situação, e começaram por este motivo o
apedrejamento.
Contrastar os diferentes discursos produzidos pelos jornais é uma tarefa
árdua, exige paciência e atenção do receptor. Perceber o encadeamento dos
argumentos apresentados, o que veio a ser considerado como causa e
conseqüência — muitas vezes mecanicamente apresentadas pelos jornais — do
ocorrido, enfim, todas estas questões devem ser relevadas. Observemos o conteúdo
de outro importante jornal da época:
Músicos fazem barulho na praça. Os músicos fizeram ontem uma
manifestação na Praça Municipal e a polícia militar precisou intervir
com rigor para evitar a invasão do prédio da prefeitura. O conflito
gerou um mal-estar e algumas pessoas se feriram. O secretário de
69
comunicação, Domingos Leonelli, considera o episódio um ato de
vandalismo dos músicos, conseqüência de incitação irresponsável
por parte do sindicato dos profissionais e alguns políticos
contraditoriamente unidos (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993).
Vamos amarrar esta argumentação. O objetivo é situar melhor as
contradições internas das chamadas. O jornal Tribuna da Bahia não informa para o
seu leitor ao menos o motivo do protesto. Expõe somente que os músicos fizeram
uma manifestação e que a polícia militar precisou intervir com rigor. Isto por si já
denota a posição do Jornal ante a manifestação.
Diferente do Bahia hoje, que citou o nome da prefeita de Salvador, sem,
contudo, emitir o juízo dela sobre o protesto, o Tribuna privilegia a opinião de um
ator apenas: o ator ligado ao poder público. O jornal A Tarde, por exemplo, cita a
ação praticada pelo secretário de comunicação e cita também a ação dos músicos,
e, por fim, traz a fala do presidente do sindicato, Franklin de Carvalho.
Segundo a matéria do Tribuna, a polícia precisou agir a fim de evitar a
‘’invasão’’ dos músicos ao prédio da prefeitura. Sobre a repressão da manifestação,
informa vagamente que o conflito gerou um mal-estar e que algumas pessoas se
feriram.
Em última análise, o jornal emite para o leitor o julgamento do secretário de
comunicação sobre a ação do sindicato e igualmente a sua interpretação dos
motivos que levaram os músicos a realizarem o protesto: ‘’conseqüência de
incitação irresponsável por parte do sindicato dos profissionais e alguns políticos
contraditoriamente unidos’’ (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993).
Esta última passagem da matéria põe em relevo uma questão interessante:
havia, ao que tudo indica, uma situação de disputa ‘’político-partidária-ideológica’’,
por assim dizer, tanto da parte do sindicato – os partidos que compunham o
sindicato dos músicos, bem como os indivíduos indiretamente ligados a uma
militância partidária – como da parte de alguns parlamentares e dos quadros do
governo municipal.
Em conversa com o baixista Luciano Calazans, ele nos revelou algumas
questões que vão ao encontro desta observação. Luciano Calazans argumentou que
‘’o Sindicato dos Músicos da Bahia nunca serviu pra nada, nunca foi efetivo em nada
pra classe, exceto nas épocas pré-carnavalescas [...], o próprio sindicato não tinha
sede, ou quando tinha era muito pequena pra demanda de músicos’’.
70
Disse ainda que ‘’[...] o único elemento realmente desse sindicato efetivo,
enquanto sindicato, era fazer esses espaços... E também tinha um grande cunho
partidário na época. Tinha muita gente ligada a partido, eu
lembro disso’’. A
chamada do Correio da Bahia, um jornal de oposição ao sindicato, bem como ao
governo do município, foi a seguinte:
Músicos fazem quebre-quebra na prefeitura. Liderados por gente
do sindicato da categoria, um grupo de músicos invadiu ontem o
prédio da prefeitura, arrombando portas e quebrando vidraças.
Segundo os músicos, uma comissão eleita por eles entrou no prédio
para discutir o cachê para o próximo carnaval com a prefeita Lídice
da Mata, mas não foi atendida. Soldados da polícia militar foram
acionados para controlar o tumulto. Os PMs cercaram a prefeitura e
retiraram os manifestantes do local. No confronto, alguns músicos
acabaram feridos, inclusive o presidente do sindicato, Franklin
Oliveira (CORREIO DA BAHIA, 30/12/1993).
O Correio da Bahia não apresentou aquele protesto como uma ‘’briga’’ por
melhores salários. O jornal evidencia nas primeiras linhas de sua matéria o ‘’estrago’’
provocado por um grupo de músicos que, segundo o jornal, invadiu o prédio da
prefeitura e destruiu portas e vidraças.
Sobre o motivo da ‘’invasão’’ e suas conseqüências, coloca para o leitor que
uma comissão eleita pelos músicos entrou no prédio da prefeitura – o jornal não
deixa claro se tal comissão teve o aval ou não para entrar no prédio – para discutir o
cachê do Carnaval com a prefeita, mas não foi atendida.
Nesse passo, o jornal traz uma relação de causa e conseqüência entre o não
atendimento da prefeita à comissão e o estrago deixado por esta ao prédio da
prefeitura. O jornal não informa ao seu leitor a existência de um protesto e o motivo
deste. Ao contrário, informa apenas a existência de uma invasão feita por um grupo
de músicos liderados, nas palavras do jornal, ‘’por gente do sindicato da categoria’’.
Sobre a ação da polícia, não deixa muito claro o motivo pelo qual esta foi
acionada. Apresenta uma situação de tumulto, provocada, infere-se, pelos músicos,
e a necessidade da polícia retirar os manifestantes do prédio da prefeitura.
Finalmente, demonstra uma realidade de confronto entre a polícia e os
manifestantes, bem como a existência de alguns músicos feridos, destacando o
presidente do sindicato.
Fica a impressão, de que a imprensa preferiu destacar e enfatizar o
“confronto” entre os dirigentes sindicais e os parlamentares que formavam o quadro
do governo municipal. As falas e considerações dos participantes do protesto
71
haviam sido postos de lado. Marginalizaram-se as experiências da maior parte dos
músicos imersos em todo o processo de discussão e negociação.
Finalmente, há o Jornal da Bahia, um jornal que fazia oposição ao sindicato.
Vejamos sua chamada:
Músicos invadem prefeitura para ganhar mais no carnaval.
Acabou em tumulto, quebre-quebra e muitos feridos a manifestação
do sindicato dos músicos, ontem à tarde, na Praça Municipal.
Tentando obter cachês mais altos para tocar no carnaval – exigem
300 dólares por hora –, eles se concentraram na frente do Palácio
Tomé de Souza e em assembléia decidiram pelo que chamaram de
“ocupação pacífica”. Os ânimos exaltados, no entanto,
transformaram a ocupação em invasão, que não pôde ser contida
pelos 11 seguranças civis e militares que estavam em serviço. Os
invasores deixaram, um rastro de vidraças quebradas, portas
danificadas e extintores de incêndio arrancados (JORNAL DA
BAHIA, 30/12/1993).
Para o Jornal da Bahia, o sindicato dos músicos buscava apenas arrecadar
mais dinheiro. O jornal traz para o seu leitor as seguintes informações: expõe nas
primeiras linhas a existência de uma manifestação, bem como o turno e o local nos
quais ela ocorreu. Destaca também suas conseqüências. Mais adiante, afirma que o
motivo da manifestação era a tentativa dos músicos de conseguirem cachês mais
altos para tocar no Carnaval.
Segundo a matéria, os músicos exigiam 300 dólares por hora para
trabalharem na festa. O jornal afirma que a categoria, por decisão em assembléia,
se concentrou em frente ao palácio e decidiu, num dado momento, ocupar o prédio
da prefeitura pacificamente – o jornal não deixa explicito, contudo, o motivo desta
decisão. Em seguida informa que, como os ‘’ânimos estavam exaltados’’, a
ocupação se transformou em ‘’invasão’’.
Com efeito, após o uso do termo invasão, a matéria descreve imediatamente
uma situação dos policiais tendo dificuldade de conter os ‘’invasores’’ que, deduz-se,
estavam dispostos a ‘’tudo’’, e por isso mesmo, deixaram um rastro de vidraças
quebradas, portas danificadas e extintores de incêndio arrancados.
Naquelas circunstâncias, não foi apresentada, pelos jornais, qualquer
consideração dos manifestantes sobre aquele evento, exceto as opiniões dos
dirigentes do sindicato. Mas trouxemos alguns relatos daqueles manifestantes da
‘’base’’.
Faz-se aqui, a partir de agora, o papel que aqueles jornais deveriam ter feito,
isto é, o de elencar e comparar as diferentes interpretações envolvidas em alguma
72
situação específica. Contudo, deu-se ênfase, intencionalmente, aos relatos dos
músicos, os quais foram marginalizados e descreditados.
O que levou os músicos a participarem daquele protesto? Helder Mello de
Araújo afirmou que ‘’na época, eu fiquei sabendo que o sindicato estava
encarregado de organizar um concurso público à seleção de bandas para o carnaval
da Prefeitura de Salvador. Cheguei no sindicato por meio de colegas de trabalho
[...]’’
Ele esclareceu que ‘’afirmavam haver garantias e benefícios aos músicos
sindicalizados. Minha participação nos protestos foi direta porque estive nas
manifestações que ocorreram na Avenida Sete de Setembro com a participação de
centenas de pessoas [...]’’
Nikolaus Hatzinikolaou nos explicou que “na verdade a presença nas
manifestações fazia parte da rotina dos participantes e concorrentes aos trabalhos
de Carnaval. A presença de todos era exigida nos protestos”. Sobre aquela
manifestação, Jorge Patrício Solovera nos disse: ‘’Rapaz, eu não lembro de quase
nada... Eu na época só tava pela porra da assinatura, que tinha de ter... E lembro
também que eu nem passei no teste’’.
Luciano Calazans, este músico baiano que completou 36 anos em quinze de
janeiro de 2010, vivenciou grande parte das situações internas do sindicato:
É... Profissionalmente eu comecei a tocar com treze anos de idade.
Nessa época era obrigação do músico ser sindicalizado, como é hoje
ainda. Existiam três tipos de carteiras; a do menor, que era verde; a
do estagiário, que era a coloração amarela; e a do profissional que
era de coloração azul. Houve um tempo que a carteira do músico era
semelhante à carteira de trabalho, era um livrinho... E eu tive a minha
primeira carteira, que pagava uma taxa, aos treze anos de idade. E
comecei a atuar em bandas de baile e também banda de carnaval
daqui, pra tocar pelo sindicato dos músicos da Bahia.
Luciano é mais um exemplo que reitera a observação realizada a respeito da
pouca idade a partir da qual os músicos iniciavam o seu ofício. Houve uma questão
importante que quisemos saber de Gerson Silva: perguntamos a ele por que não
havia participado daquele protesto:
Olha, eu estava viajando tocando com alguém que nem lembro na
época, mas eu soube de tudo que aconteceu por amigos que
estavam lá também. Em outras fases do sindicado eu participei dos
concursos e das brigas por melhorias que a classe reivindicava
também.
73
Quando perguntamos aos músicos sobre os motivos que os levaram ao
protesto, nota-se que as respostas tomam direções diversas. Uma resposta destaca
a importância da manifestação para a concretização de melhorias para a categoria –
por melhorias se pode inferir: salários mais significativos ou dignos; outra enfoca os
elementos burocráticos e formais que deveriam ser cumpridos por exigência do
sindicato etc.
Há também a que vai na direção de certos benefícios individuais,
independente das conquistas coletivas. Quisemos saber mais: perguntamos à
Helder o que de fato o sindicato desejava com aqueles tipos de manifestações:
Falavam-se muito nos impasses da negociação do valor pago pela
prestação de serviço e, depois, a forma de pagamento, atraso na
emissão dos cheques aos músicos, etc. Confesso que o tempo me
faz não lembrar de tudo, mas o protesto era sobre o baixo valor pela
prestação de serviços no carnaval. O que mais se comentava nas
reuniões era de que o carnaval de Salvador gerava muita renda,
impostos, dinheiro para a iniciativa pública e privada. Sendo assim
teríamos também direito à divisão do capital arrecadado com a festa.
Curiosamente, naquele ano de 1993, os argumentos da prefeita, bem como
dos seus técnicos, apontavam uma ‘’melhora’’ na relação que o poder público —
quando comparado às gestões anteriores — estabeleceu com os musicistas. No
entanto, não foi exatamente uma ‘’melhora’’ nas relações o que indica o relato de
Helder.
O Carnaval movimentava cerca de 100 milhões de dólares, esta foi a cifra
propagandeada pelo governo do município quando do lançamento do Plano de
Comercialização do Carnaval. Citamos esta evidência no capítulo que sucede.
Aquele volume de capital, anunciado como chamariz para a iniciativa privada, não
servia aos músicos, não era para ‘’aventureiros’’. Nikolaus argumentou que
Aparentemente os protestos tinham como objetivo fazer a prefeitura
liberar a verba para realização dos shows do carnaval.
Aparentemente porque algumas vezes parecia apenas burocracia,
que a verba já estava liberada, mas isso é uma hipótese, sem
confirmação.
Burocracia ou não, o fato é que o sindicato intermediava a relação da
categoria com o poder público através de mecanismos um tanto duvidosos. Sabe-se
que os sindicatos são uma espécie de produto ‘’natural’’ da indústria capitalista. Ao
longo do processo histórico do capitalismo, os trabalhadores foram ‘’obrigados’’ a
desenvolver laços, a se unirem.
74
Foi necessária uma união para haver defesa da classe trabalhadora em torno
de várias situações, sobretudo contra as reduções salariais. Contudo, sabe-se
também que esta instituição que deveria ser uma ferramenta representativa das
forças
sociais
dos
trabalhadores,
caiu,
sobremaneira,
ao
longo
do
seu
desenvolvimento, sob o controle de uma ‘’aristocracia operária’’. líderes, foram
corrompidos pelos mecanismos políticos contraditórios da democracia burguesa: a
distância entre representantes e representados é uma condição daquele paradigma.
Gerson Silva nos relatou a natureza das suas insatisfações quanto ao
Sindicato dos Músicos. Ele argumentou que ‘’[...] o sindicato queria ter o que lhe era
de direito enquanto porta-voz da categoria músicos profissionais. Acho apenas que
as formas eram equivocadas e que não se investia na categoria por parte do
Sindicato’’.
Disse ainda que ‘’a coisa era meio feita sempre por política interna e pra
benefício de algumas pessoas que se diziam ajudantes da categoria. Só que essas
pessoas muitas vezes não eram músicos profissionais e não entendiam nada do
mercado de trabalho’’.
Contudo, quando visto sob a ótica da imprensa, os discursos que tenderam a
aparecer não foram dos músicos. Ora era Franklin Oliveira Júnior quem falava por
todos os participantes, ora eram os parlamentares que teciam as suas
considerações sobre o ocorrido. Mais uma vez, citamos o jornal A Tarde:
Praça de guerra. Enquanto o líder do PT na Câmara Municipal,
Walter Pinheiro, tentava escapar de um ataque de fanta de um
policial, ontem, o vereador Alcindo da Anunciação, do PP, espalhava
que o secretário de Comunicação Social do município, Domingos
Leonelli, estava mandando a segurança atirar contra os músicos.
Silvoney Sales — PSC— reclamou com Alcindo, e pediu que todos
fossem sensatos para evitar um mal maior. Os músicos, no entanto,
demoraram a desistir do intento de invadir a prefeitura. A Praça
Municipal ficou parecendo a Praça Celestial da China, quando a
repressão chinesa atua, comparou Silvoney (A TARDE, 30/12/1993).
Dos cinco maiores jornais da época que deram destaque ao protesto, nenhum
destacou falas e/ou opiniões dos manifestantes acerca da situação em que se
encontravam. No livro Uma História Social da Mídia: De Gutenberg à Internet, de
Asa Briggs e Peter Burke, estes autores fazem referência a uma fórmula clássica
elaborada pelo cientista político norte-americano Harold Lasswell.
Ele descreve a comunicação em termos de quem diz o quê, para quem, em
que canal — em nosso caso seria melhor em que jornal—, com que efeito. O ‘’quê’’
75
— conteúdo—, o ‘’quem’’ — controle— e o ‘’para quem’’ — audiência— têm o mesmo
peso (BRIGGS e BURKE, 2004, p. 17).
Estas
reflexões
são
fundamentais
para
entendermos
o
papel
que
desempenhou a imprensa naquele momento. As empresas de comunicação de
Salvador que deram cobertura ao evento na época, todas elas, pertenciam a grupos
ligados direta e indiretamente às estruturas políticas dominantes da cidade.
Estes jornais com os quais dialogamos constituem, se quisermos entender
melhor as relações de força existentes naquele momento, uma importante fonte para
compreendermos as visões, idéias e opiniões produzidas pelos diversos grupos
sociais naquele contexto. Entendemos a imprensa como uma representação
construída sobre o real, sobre a qual incidem determinados filtros deformadores que
cabe ao historiador determinar e equacionar em suas análises (ESPIG, 1998, p.276).
Algo que consideramos importante comentarmos são as falas e as
considerações dos músicos sobre o Sindicato. Nota-se que aquela instituição não
era “bem vista” pelos seus associados, pelo menos não por estes que
entrevistamos. Havia certa desconfiança, dúvidas sobre determinadas posições
adotadas pela entidade.
E através de uma das respostas dadas, percebemos algumas práticas
internas da instituição, bem como o descontentamento em relação a elas. Fizemos
uma pergunta para Helder sobre as dificuldades econômicas e sociais encontradas
no exercício diário da profissão, se existiam:
Sim, várias. Principalmente o não registro profissional. Geralmente
tínhamos mais facilidade para trabalhar como músico profissional
porque havia espaço claramente no mercado de trabalho. Muitas
vezes a falta de garantias e inseguranças generalizadas que
abraçam esta profissão não davam, acredito, para boa parte dos ali
presentes, uma idéia ou sentimento de segurança financeira. Neste
sentido, naquele específico momento, o papel do sindicato resumiase na luta por benefício momentâneo e não causa concreta,
ideológica coletiva.
Parece-nos que não houve expansão, da parte do sindicato, dos seus
objetivos. Os objetivos ficaram restritos a buscas econômico-corporativas apenas. A
amplitude das práticas e o potencial que acompanham a natureza de uma instituição
desse tipo, não foram, na observação de Helder, devidamente explorados.
A insegurança que há na vida de um musicista de ofício decorre, entre outros
aspectos, do fato de não haver, neste tipo de trabalho específico, ingredientes
sociais que compõem os outros tipos de trabalho e que foram frutos, já conquistados
76
e consolidados na maior parte das profissões existentes, do processo de lutas dos
trabalhadores.
Em termos históricos, algumas daquelas conquistas dos trabalhadores de
outrora são, no caso dos músicos, lacunas que precisam ainda serem preenchidas.
Sobre a questão levantada, Gerson afirmou que ‘’[...] sempre há dificuldades em
todas as áreas e o mercado musical não ficou isento disso também. O que me
prejudicou mais, e por isso eu fui buscar informação em outros lugares, é que não se
tinha uma boa escola’’.
O músico destacou ainda que precisou ‘’[...] sair daqui pra ter uma formação
melhor como profissional em todos os sentidos. Temos uma Universidade de Música
que prega a utopia pra o mercado musical profissional e não uma verdadeira
formação pra os músicos’’.
Gerson faz uma relação entre escola — termo entendido como sendo o
espaço de diversas formas de produção do conhecimento — e mercado. Bem
entendido, o mercado local é diverso e adequado para um indivíduo versátil
musicalmente, o que exigiria uma maior abrangência em sua formação.
A Escola de Música da Universidade Federal da Bahia caminha no pólo
oposto: apresenta uma formação, segundo o entrevistado, unívoca, descompassada
com o conexto e as exigências locais.
Mas parece que o músico sugere uma subordinação da formação – um termo
amplo e complexo – do musicista ao chamado mercado, uma noção que aparece
muitas vezes como sendo um ente abstrato e harmonioso, mas que traz consigo
interesses reais, muitas vezes conflitantes e desiguais numa sociedade capitalista.
Gerson disse que
Num estado onde a música popular é tão rica não dá pra viver
achando que apenas por estar estudando Música Erudita vai se viver
profissionalmente e confortavelmente com a música. Temos apenas
duas Orquestras profissionais aqui no estado e pra você integrar o
elenco de músicos contratados pelo estado você teria que matar
umas 300 pessoas pra cada instrumento que existe na Orquestra. Ou
seja, a Universidade não forma músicos pra um mercado real. Temos
que ter consciência, e isso desde o início a partir das escolas de
músicas em geral, que tem que se preparar o aluno pra um mercado
hiper exigente e que não comporta músicos apenas com
conhecimentos básicos de música. Esses se frustram ao perceberem
que não podem sobreviver com a quantidade de informação que têm
e viram outros profissionais, não músicos.
77
Há uma convergência quanto às dificuldades por que passaram. Sociais
porque não havia escolas diversas e as que existiam, como no caso da Escola de
Música da Universidade Federal da Bahia, não eram de fácil acesso para todos.
Econômicas porque não se ganhava o suficiente para poder se adquirir aparelhos e
equipamentos tecnológicos necessários ao exercício da profissão. ‘’Havia a
dificuldade para aquisição de equipamento, transporte, enfim, dificuldades várias,
coisas que fazem parte da profissão; em algum momento todos passam por isso’’
(Nikolaus).
E, em muitos casos, havia dificuldades para prover ‘’adequadamente’’ a
existência com coisas básicas. Percebe-se, no entanto, que estas dificuldades
vivenciadas eram ‘’naturalizadas’’. Faziam parte de uma etapa da profissão ou eram
‘’coisas’’ pelas quais qualquer atividade profissional tinha necessariamente de
passar.
E quanto ao sindicato? Este representava, de fato, a categoria? Havia algum
sentimento de pertença àquela instituição? Perguntamos sobre esta questão. Helder
esclareceu que
Em alguns momentos acredito que sim. Na verdade, quando se fala
em sindicato a visão que se tem é de uma organização coletiva com
uma ideologia coesa, concreta de objetivos convergentes e
divergentes, mas de forma democrática. No caso específico de
minha experiência como sindicalizado percebia um jogo político
presente nas manifestações sempre contrárias ao governo municipal
da época e, no comportamento de alguns presentes na liderança do
órgão ou dos manifestantes que se destacavam durante as
movimentações de protestos pacíficos.
Parece-nos, mais uma vez, que aquele quadro de um sindicato dominado
pelos funcionários burocratas, e preocupado com questões ‘’menores’’ de emprego,
foi o que caracterizou as ações do SindiMúsicos. Há uma impressão de que a luta
econômica desencadeada pelo sindicato se dissociou da luta político-social mais
ampla.
Não é exagero afirmar que os sindicatos, fazendo uma generalização forçosa,
ganharam, ao longo do seu desenvolvimento histórico, um caráter burocrático e
conservador, em grande medida divorciado das ‘’massas’’. Nikolaus afirmou que a
movimentação do sindicato era
No sentido de criar oportunidade de trabalho no carnaval para
muitos músicos, pessoas que talvez não trabalhassem, não fosse
essa intervenção do sindicato. No mais, no decorrer do ano era
praticamente nula a participação do sindicato na vida do músico.
78
Talvez possamos considerar que muitos músicos incorreram na idéia de que
um ‘’bom’’ sindicato seria aquele que garantia o trabalho, o sustento do dia a dia.
Conflitos internos há em qualquer categoria de trabalhadores, bem como em
qualquer instituição representativa.
Interpretações diversas acerca do papel de um sindicato existe no seio de
qualquer categoria. Mas algo é observável em algumas das falas dos músicos: a
realidade de partidos políticos mediando e se confundindo com a entidade
representativa.
É como se o sindicato fosse, numa velha concepção histórica deste tipo de
estabelecimento, ‘’correia de transmissão’’ dos ideais de algum partido político.
Sobre o sindicato, Gerson Silva argumentou que ‘’[...] o papel do Sindicato seria
outro e um deles seria preservar a Classe Musical e os profissionais que trabalham
com música em geral e não apenas tocando um instrumento’’.
Ele relatou que ‘’[...] se tivéssemos uma postura mais profissional por parte do
Sindicato conseguiríamos regularizar melhor esses desdobramentos que envolvem
esse mercado tão complexo’’. Depreende-se, a partir das respostas dadas, que as
ações praticadas pelo órgão não eram “transparentes”. Isto é um elemento presente
nas falas. Jorge Patrício Solovera afirma que “o sindicato só se pronunciava no
Carnaval. Não duvido nada que tivesse gente mamando essa grana”.
Note-se que a afirmação de Solovera, a qual diz que a instituição só se
apresentava em defesa da categoria no período carnavalesco, não foi um argumento
posto por ele apenas. De todo modo, quisemos saber mais sobre o sindicato.
Perguntamos se a entidade recorria a métodos punitivos em relação à
ausência nas manifestações, ou seja, se havia a aplicação de alguma penalidade
nos músicos que não participavam dos protestos:
Se realmente o sindicato aplicou as penalidades eu não me lembro.
Mas me lembro claramente de que havia realmente um processo de
lista de assinaturas para evidenciar a presença dos sindicalizados
nas manifestações. Isso me dava uma percepção de manipulação
por meio da coerção em torno do sucesso dos objetivos traçados
pela direção do sindicato naquela altura. Hoje, com outra visão de
mundo vejo que fui manipulado sem mesmo perceber (Helder).
Aqui cabe uma reflexão acerca do poder. Se um sindicato tem peso político,
então ele tem força para deflagrar uma greve. Alguns compeendem a força como
sendo um mecanismo de canalização de uma dada potência; outros vêem na força a
79
posse de meios violentos de coerção, e não como um dado que nos permite influir
no comportamento de outros indivíduos.
O fato é que, se aquele sindicato recorreu à força como forma de
constrangimento, como um meio de manter ‘’unidade’’ a qualquer custo, isto aponta
em si mesmo um fracasso relativo da ‘’autoridade’’. Esta idéia de autoridade, que
comumente é confundida com alguma forma de violência, é entendida aqui a partir
de um raciocínio importante da filósofa Hannah Arendt.
A filósofa nos ensinou que, ‘’se a autoridade deve ser definida de alguma
forma, deve sê-lo, então, [...] em contraposição à coerção pela força [...]. A
autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade’’
(ARENDT, 1972, p. 129). Fizemos a mesma pergunta para Gerson Silva. Se havia
ou não os métodos punitivos, a respeito disto, ele nos esclareceu:
Eu não me recordo na época, mas acho que houve sim uma
represália por parte dos diretores. Isso é uma pena porque pra início
de conversa ninguém seria obrigado a ser sindicalizado e sim isso
seria uma opinião por lutar por melhoria da classe. Isso não funciona
dessa forma em Salvador e o Sindicato só aparece nas épocas de
festas e eventos importantes. Por isso a irritação de muitos músicos
e a falta de informação também. Acho que deveria sim haver um
sindicato mas que lutasse por no mínimo uma aplicação de uma
tabela onde todos que trabalham com música pudesse saber o que
devem cobrar e receber por cada serviço. Se houvesse isso e uma
conscientização por parte do Sindicato de que é importante seguir
essa tabela pra melhoria de todos acho que daríamos um bom
avanço.
Nikolaus argumentou que ‘’a ausência nas manifestações era contada como
falta no processo seletivo dos concorrentes, o que possivelmente desclassificaria o
candidato, já que havia uma lista de presença no local dos protestos’’.
Tendo em vista que naquele momento o poder público buscava reorganizar o
Carnaval, estabelecer critérios precisos de distribuição das benesses da então festamercadoria — isto ficou evidente com o Plano de Comercialização do Carnaval
apresentado pelo poder público no mesmo ano—, não fica difícil entender, entre
outras variáveis, por que houve uma resistência ‘’aguerrida’’ por parte dos setores
fundamentais do governo municipal em relação ao percentual reivindicado pelos
músicos para o pagamento dos seus respectivos cachês.
O governo argumentou que ‘’[...] nunca, em gestões anteriores, os músicos
que trabalham no Carnaval da Bahia foram tratados com atenção e consideração
como na administração atual. Não havia diálogo e o sindicato dos músicos fazia
80
esforço
de
mobilização
desgastante’’
(DIÁRIO
OFICIAL
DO
MUNICÍPIO,
03/12/1993).
Destacou que ‘’[...] a Prefeita Lídice da Mata iniciou uma nova postura no
relacionamento com este segmento tão logo assumiu a prefeitura, promovendo
várias rodadas de negociações até chegar a um acordo definitivo’’ (Ibid.). O discurso
utilizado pelos responsáveis da administração da prefeita parecia tomar o caminho
de uma das principais teses defendidas por aquele governo: a idéia de
‘’profissionalização’’ e ‘’organização’’ em todas as esferas da dinâmica carnavalesca.
De todo modo, vejamos mais uma evidência daquele conflito:
Prefeitura estudará reivindicações dos músicos. Ao receber as
propostas do Sindicato dos Músicos para o Carnaval 94, a Prefeita
Lídice da Mata reafirmou a importância da festa e a sua sensibilidade
para as reivindicações dos músicos. Não concordou porém, com a
reivindicação feita pela entidade de ficar com 46% do orçamento
destinado ao Carnaval. Lídice anunciou, inclusive, que já instruiu sua
bancada na Câmara de Vereadores para trabalhar contra a emenda
apresentada pelo Vereador Alcindo da Anunciação, determinando
esse percentual para as atrações musicais (DIÁRIO OFICIAL DO
MUNICÍPIO, 09 e 10/12/1993).
Ao que tudo indica, os músicos não se apresentavam como um problema, um
entrave de ordem econômica apenas, mas também eram um entrave político. Dado
que havia outros vereadores, além do vereador Alcindo da Anunciação, que
apoiavam o sindicato. Durante o processo de negociação houve algumas
concessões de ambos os lados. A prefeita Lídice da Mata argumentou que ‘’a
prefeitura deve assegurar a melhor remuneração possível aos músicos, observando,
no entanto, o limite financeiro do poder público municipal e, levando em conta
também que [...] a cidade tem outras carências profundas’’ (DIÁRIO OFICIAL DO
MUNICÍPIO, 09 e 10/12/1993).
A prefeita disse que ‘’foram apresentadas 594 propostas até o dia do
encerramento, sexta-feira passada, o que dá uma média de 3 mil músicos
pretendendo atuar no Carnaval. O Presidente da Comissão Especial do Carnaval
lembrou que houve avanço nas negociações’’ (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 09
e 10/12/1993).
Finalmente, consideramos necessário citar a opinião de um jornalista da
época, sobre o protesto. A nossa intenção aqui, com a argumentação deste
jornalista, é explicitar, de alguma maneira, o ‘’conteúdo’’ dos discursos forjados —por
81
setores diversos da sociedade soteropolitana— e projetados nos músicos naquele
momento:
Nota dissonante. Há um ano, mais ou menos, alertava, em artigo,
aqui na Tribuna, para a estupidez cometida pela Prefeitura de
Salvador em destinar verbas astronômicas para custear o Carnaval.
Boa parte desses recursos era, como continua sendo, exigida pelos
músicos. Minha Gente, a coisa está na cara e só não enxerga quem
não quer. Somos uma cidade falida. Temos mil problemas, alguns
deles crônicos, não há dinheiro para os programas sociais nem
mesmo para os serviços elementares de manutenção do município e,
muitas vezes, nem mesmo para pagar em dia ao funcionalismo
(TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993).
Naquele contexto de reorganização do Carnaval, reorganização que se deu
em instâncias diversas do poder público, houve um ‘’consenso’’ entre esfera pública
e privada. A idéia básica dos agentes privados foi a de fomentar o atrelamento do
Carnaval, e tudo o que ele trazia consigo em termos de lucros reais e virtuais, aos
seus domínios.
A idéia básica do poder público, por seu turno, foi a de distanciar-se de
eventuais responsabilidades pecuniárias para com os grupos sociais realizadores da
práxis carnavalesca, deixando os espaços que outrora eram preenchidos pela
administração pública nas mãos dos agentes privados.
Assim, os músicos foram levados, de forma mais acentuada, a vender a sua
força de trabalho à iniciativa privada. Se assim não o fizessem, correriam o risco de
ficar sem cachês no Carnaval, visto que a prefeitura sinalizava assumir a posição
desejada pela iniciativa privada, isto é, a de apenas fornecer a ‘’infra-estrutura’’ para
as bandas.
De todo modo, os agentes privados interessados na festa, entre os quais
figuravam as empresas de comunicação, não viam com ‘’bons olhos’’ a subvenção
fornecida pelo poder público aos músicos. O mesmo jornalista afirmou que ‘’já
passou da hora. A prefeitura não pode ficar assumindo a paternidade de grupos
quase sempre bem-estruturados, mas que se comportam como mendigos toda vez
que o Carnaval se aproxima’’(TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993).
Ele prosseguiu argumentando que ‘’quem quer tocar na festa que arranje
patrocinador. Quem precisa sobreviver de sua profissão vai à batalha. A verba
pública é para ser aplicada em benefício do contribuinte. É ele quem paga impostos
[...]’’(Ibid.).
82
Algumas considerações podem ser feitas. Em primeiro lugar, percebe-se, em
certa medida, a idéia – de certo modo presente até os dias atuais – de que os
músicos constituem uma ‘’massa homogênea’’, isto é, uma categoria de
trabalhadores em cujo seio não há traços diferenciadores10. Considera-se o músicoempresário, ou artista-empresário — os cantores especificamente—, com o seu
modo de vida etc., do mesmo modo que se considera o músico-acompanhante ou
músico-funcionário com sua vida econômica ‘’palpável’’ diametralmente oposta
àquele artista-empresário famoso.
Algo sobre o qual gostaríamos de refletir também é sobre o termo banda. O
que é mesmo uma banda? Se considerarmos banda uma atividade musical
profissional na qual todos os músicos participam de igual modo das negociações,
dos lucros provenientes das vendagens dos shows etc., teríamos um conceito
radicalmente diferente e ao mesmo tempo antagônico à idéia hegemônica vigente no
espaço carnavalesco a partir da segunda metade da década de oitenta.
Ao lado de bandas que possuem uma historicidade e que praticam uma
distribuição mais igualitária de suas conquistas materiais, há também, as chamadas
bandas-empresas, isto é, bandas que geralmente são o prolongamento de uma
empresa de produção musical e que, via de regra, são propriedades de um
determinado ‘’músico-cantor’’. Eram estes os grupos ‘’bem-estruturados’’ a que o
jornalista da época fez referência. Há diversos tipos de bandas-empresas.
Mas o caso específico a que fazemos referência é o caso no qual um
determinado musicista-empresário é proprietário de uma banda. Este musicistaempresário agrega outras funções para si que não só a de musicista.
Foi este o caso a que fez menção o jornalista. Só tem que ele não mencionou
os grupos musicais que estavam ‘’por baixo’’ daqueles ‘’bem-estruturados’’, não
mencionou as limitações financeiras daqueles grupos musicais que não faziam
parte, sob qualquer aspecto, do Carnaval-negócio.
Outra questão a ser colocada é o direcionamento para a iniciativa privada. A
opinião de que os ‘’músicos’’ deveriam procurar a iniciativa privada para poderem
trabalhar no Carnaval, esta opinião específica, se coaduna com outras falas já
postas neste trabalho, que vão na mesma direção.
10
Sobre as diferenças existentes no interior de uma classe, ver WILLIAMS, 2000, p. 74.
83
O próprio ato da prefeitura, de venda dos espaços públicos para iniciativa
privada, sob a alegação de que tal arrecadação de dinheiro seria reinvestida na
melhoria da festa, este ato mesmo, se junta ao coro proferido pela maior parte das
reportagens dos jornais trabalhados. A relação é a mesma: diminuição da
participação do poder público nos rumos da festa.
O que fica expresso também nos argumentos do jornalista é o seguinte: ‘’A
verba pública é para ser aplicada em benefício do contribuinte’’. Logo, o que se pode
inferir de tal argumentação é que os indivíduos que reivindicavam uma maior
participação nas estruturas econômicas da cidade, por serem músicos, por isso
mesmo não contribuintes — há na fala do jornalista uma relação de causa e efeito
quanto a esta questão —, não gozavam de qualquer ‘’legitimidade social’’ em relação
ao que buscavam.
Cabe aqui chamarmos atenção para a noção de ‘’relação de força’’. Gramsci
ao discutir nos Cadernos do Cárcere a idéia de relação de força, isto é,
determinadas situações histórico-sociais através das quais os grupos sociais
existentes vivenciam conflitos, disputas e contradições específicas, descreve e
caracteriza os diversos momentos ou graus através dos quais tal ou qual relação se
processa. Um ‘’[...] terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de
que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro,
superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico [...], devem tornar-se
os interesses de outros grupos subordinados’’ (GRAMSCI, 2002, p. 41).
Ainda em relação àquele momento, Gramsci esclarece que ‘’[...] é a fase em
que as ideologias geradas anteriormente se transformam em ’partido’, [...]
determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade
intelectual e moral, criando assim a hegemonia’’ (GRAMSCI, 2002, p. 41).
A utilização da ‘’opinião pública’’, claramente praticada por grande parte dos
jornais, representa, entre outras coisas, justamente o momento a que Gramsci se
refere acima: o discurso que era defendido e apresentado à sociedade, não se
materializava como sendo um determinado ponto de vista de um determinado setor
da sociedade sobre as questões econômicas fundamentais.
Mas, ao contrário, o discurso que era apresentado por determinados setores,
aparecia como sendo um discurso tradutor dos dilemas ‘’reais e universais’’ de toda
a população; era um discurso que gozava de legitimidade porque visava —
84
traduzia— a unicidade dos fins econômicos e políticos, a coerência, a lógica, a ética
e a moral destes fins.
As declarações do jornalista citado anteriormente estão em conformidade, em
certo sentido, com o que efetivamente estava ocorrendo naquele momento. De fato,
a disputa de poder existente naquela época entre as camadas políticas gerou sérias
conseqüências à cidade.
O descompasso existente entre o governo do Estado e o governo do
Município fez com que houvesse, em ambas as esferas, disputas internas. De fato, o
grupo político ligado ao Governador Antônio Carlos Magalhães tentou, na época,
concentrar os mecanismos da vida social; aquele grupo político perpetrou
perseguições, em diversos âmbitos, ao governo da Prefeita Lídice da Mata.
Só tem que, aqueles buracos nas ruas de Salvador, a falta de dinheiro para
sanar problemas básicos da cidade, enfim, todos os problemas levantados pelo
jornalista, não eram um fenômeno que toda a sociedade estava passando
repentinamente;
ou
ainda,
‘’culpa’’
dos
músicos,
dos
quais
não
havia
comprometimento direto com problemas da cidade.
Os problemas que haviam sido gerados eram provenientes, sobretudo, das
disputas de poder no seio das camadas políticas. A perseguição do então
Governador Antônio Carlos Magalhães à prefeita Lídice da Mata, estimulou,
sobremodo, problemas vitais à cidade. E isto sem falar das contradições gerais que
assolavam o país naquele contexto. O Diário Oficial do Município esclarecia que a
prefeitura estava ‘’[...] atravessando um período de muitas dificuldades financeiras,
principalmente pela retomada do sequestro de verbas municipais por empreiteiras’’
(DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 14/12/1993).
Percebe-se nas argumentações do jornalista, entre outras coisas, a tentativa
de uma direção moral e intelectual — que se pode associar a outros discursos
produzidos no período— face aos ‘’problemas da cidade’’, relacionando-os, sempre
que possível, ao fato de aqueles existirem por conta de haverem grupos sociais
como os músicos — os músicos como uma massa homogênea, verdadeiros
‘’sanguessugas’’ da verba pública.
Houve uma tentativa de unificação dos discursos. E o principal meio utilizado
para difundir as idéias então em voga, foram os veículos de comunicação. Os
grupos hegemônicos buscaram reduzir o significado do protesto, ao mesmo tempo
em que fornecia o ‘’receituário’’ para o governo do município no que dizia respeito às
85
atitudes e soluções que cabiam ao poder público diante daquele ‘’desrespeito
promovido pelo protesto a toda sociedade baiana’’. Nesse passo, surgiram coisas
desta natureza na imprensa:
Ponto final. Os músicos fizeram mais uma manifestação, desta vez
violenta, na porta da prefeitura, ontem. Querem porque querem sugar
os recursos municipais para se apresentarem no Carnaval. O resto
que se lixe (TRIBUNA DA BAHIA, 30/12/1993).
Dólar musical. Os músicos que entraram no quebra-quebra précarnavalesco só discutem seu cachê em dólar. Mesmo não
conhecendo os segredos da língua inglesa, preferem soprar e tocar
os timbaus movidos pelo lema ‘’In God we trust’’. E the end!
(JORNAL DA BAHIA, dezembro de 1993)
Note-se que o escárnio, a tentativa de ‘’meter a ridículo’’ a manifestação feita
pelos músicos aparece em jornais diferentes. O discurso utilizado naquele momento
pelos grupos sociais hegemônicos convergia, de um modo ou de outro, para a idéia
de os músicos buscarem no ‘’patrocínio particular’’ os meios adequados e
necessários para o exercício da profissão.
O autor Carlos Alberto Dória, no livro que escreveu chamado Os Federais da
Cultura, levanta algumas reflexões interessantes no que diz respeito à autolimitação
do Estado ante a produção cultural dos indivíduos e o tipo de relação que aquele
mantém com o mercado – os agentes privados.
A discussão que este autor traz no capítulo intitulado ‘’O mercado e o sonho
da Paideia tropical’’, gira em torno, entre outras coisas, da apropriação feita pelo
mercado dos produtos culturais em detrimento de uma participação mais efetiva do
poder público em determinadas atividades cujo caráter é eminentemente público.
Assim, se certas atividades culturais ficam sob os auspícios única e
exclusivamente da iniciativa privada, gerando para estes agentes contrapartidas
irrecusáveis — como, por exemplo, a isenção fiscal, promoção da ‘’imagem’’ de uma
determinada empresa como ‘’provedora do social’’, realizando, por isso mesmo, uma
espécie de ‘’favor à sociedade’’ —, é natural que o cidadão que tem dinheiro no
bolso ‘’patrocine’’ um determinado ‘’produto cultural’’ de sua preferência (DÓRIA,
2003, p.58).
Portanto, é igualmente natural que o empresário, ao se deparar com uma
banda qualquer ou algum projeto musical, consulte, antes de decidir se vai liberar
dinheiro ou não, o seu departamento de marketing para ter a certeza de que ‘’vale a
pena’’ associar a imagem da sua empresa a tal banda ou a tal projeto musical, não
86
importando quão desconhecidos sejam a banda ou o indivíduo que apresentam tal
ou qual projeto à sua empresa. O que importa mesmo é o nível de publicidade e
lucro que aquilo pode gerar (DÓRIA, 2003, p. 58).
Os argumentos utilizados pela direção do Sindicato dos Músicos tomavam
este caminho: criticavam a renúncia do poder público frente à coisa pública, isto é, a
sua responsabilidade direta no que dizia respeito à participação efetiva de todos os
organismos construtores da maior festa popular da Bahia, o Carnaval. Aquela crítica
foi um dos principais elementos centrais no desenrolar do conflito.
Percebemos a hegemonia se desdobrando naquele protesto dos músicos
como dominação — força—, muito embora a hegemonia se dê também através dos
mecanismos de consenso. Há hegemonia porque houve resistência da parte dos
músicos àquela situação. Todavia, aquela manifestação não trazia consigo uma
‘’contra-hegemonia’’ ou uma ‘’hegemonia alternativa’’11. O sindicato dos músicos
promoveu o protesto dentro de uma ‘’mentalidade econômico-corporativa’’.12
Pode-se afirmar, talvez, que tenha sido esta a ‘’ação política’’ praticada pelo
sindicato: uma ação apenas no âmbito do grupo profissional, não atingindo por isso
mesmo uma transformação mais ampla, uma transformação que representaria
também a ascensão de outros grupos sociais não-hegemônicos.
Gostaríamos de continuar lançando mão de um ‘’olhar’’ mais analítico. O
sindicato da categoria, segundo os músicos, apresentava-se como ‘’porta-voz’’
daqueles trabalhadores apenas em momentos próximos à realização da festa
carnavalesca. Contudo, apresentava-se para a sociedade com aquela mentalidade
de que falamos anteriormente.
Não chamava atenção do Estado, através de suas ações políticas, para a
situação simbólica e moral dos indivíduos que cumpriam a função de músicos na
sociedade baiana. Resultado: as ações daquela instituição representativa adquiriam
um caráter apenas político-econômico e não, simultaneamente, um caráter históricocultural.
Por histórico-cultural entende-se que, ao colocar também nas resistências,
sejam elas de qualquer tipo, as suas experiências geradas na vida material, as
pessoas superam, neste momento, as críticas que se dirigem apenas às ‘’estruturas
11
12
Sobre possibilidade de uma hegemonia alternativa, ver WILLIAMS, 1999, p. 114.
A respeito de uma ‘’mentalidade econômico-corporativa’’, ver GRAMSCI, 2002, p. 40.
87
dominantes’’. As pessoas experimentam suas experiências como sentimentos e
lidam com esses sentimentos na cultura de formas diversas.
Se existe contradição nas sociedades significa dizer também que toda
contradição é um conflito de valor, tanto quanto um conflito de interesse; que em
cada ‘’necessidade’’ há um afeto, ou ‘’vontade’’, a caminho de se transformar num
‘’dever’’; que toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores
(THOMPSON, 1981, p. 189).
Entende-se que um protesto ao atingir um caráter histórico-cultural ele
alcançou também o nível de uma crítica histórico-moral de uma dada sociedade. Por
fim, uma crítica histórico-cultural de uma dada sociedade se faz através de um
amplo alcance histórico.
A crítica política miúda, do dia-a-dia, que envolve os pequenos grupos
dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder é substituída
por uma crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além
das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente (GRAMSCI, 2002,
p. 36). Entretanto, para que não venhamos a incorrer em considerações apressadas,
é interessante compreendermos melhor sob quais circunstâncias o protesto ocorreu.
2.2 Um ‘’olhar’’ panorâmico sobre o processo
É bem verdade que naquele ano de 1993, fins do século XX, o Brasil passava
por uma série de turbulências. No quadro político, muita corrupção e uma descrença
nos mecanismos democráticos caracterizaram a política formal daquele ano. Fazia
pouco tempo que tínhamos passado por eleições diretas, as quais ocorreram no ano
de 1989.
O presidente do Brasil, na época o mineiro Itamar Franco, havia sido
relacionado à corrupção no orçamento do governo federal e aos desvios de verbas
que ocorreram durante o período do seu governo. No plano econômico, houve
instabilidade econômica acompanhada de declínio do poder de compra das
camadas subalternas; havia ocorrido a criação de novos impostos e a majoração
dos já existentes. Uma tentativa de conter os altos índices inflacionários.
A inflação acumulada havia atingido 2.567, 46%, a mais alta taxa anual
registrada desde o ano de 1989 (CORREIO DA BAHIA, 30/12/1993). E ao atacar o
sindicato e condenar o protesto dos músicos, no que chamou de ‘’invasão do prédio
88
da prefeitura’’, a prefeita Lídice da Mata utilizou o argumento de que o sindicato
estava ‘’trabalhando com ingredientes perigosos’’, iludindo aqueles músicos
empobrecidos por conta do contexto:
Lídice considera invasão da prefeitura violência contra a
democracia. A Prefeita Lídice da Mata comunicou à imprensa, na
última quinta-feira em entrevista coletiva no seu gabinete, a
suspensão das negociações com o Sindicato dos Músicos, que
liderou a invasão e depredação do prédio do Palácio Thomé de
Souza na tarde de quarta-feira. Ela considera o Sindimúsicos
descredenciado para continuar como interlocutor do processo de
negociação com vistas à participação dos músicos no Carnaval.
Apesar de declarar a perda da legitimidade do sindicato nas
negociações, Lídice anunciou que a decisão não significa, em
nenhuma hipótese, a exclusão de grupos musicais ligados ao
sindicato durante o Carnaval. A forma mais detalhada sobre como se
dará a continuação das discussões está sendo analisada, mas pelo
menos um aspecto já está decidido: os músicos aprovados no
processo de seleção a ser feito no início de janeiro podem ser
contratados diretamente (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO,
30/12/1993).
Com um argumento de ‘’cima’’ — a partir do qual a prefeita neutralizou o
sindicato dos músicos enquanto uma força política representativa daqueles
trabalhadores —, a prefeita Lídice sentenciou o sindicato dos músicos afirmando que
‘’A invasão foi um fato muito grave, uma ameaça à instituição e à
democracia’’, disse a Prefeita, que se pronunciou ‘’em defesa do
poder que represento e que não pode ter a sua sede invadida e
desrespeitada pela ação de um sindicato. Não há clima que permita
continuar o diálogo’’, completou Lídice da Mata. A Prefeita historiou
toda a negociação feita com o sindicato até então e disse ter atuado
com a ‘’paciência de quem tem costume de convivência
democrática’’, mas que teve que agir com firmeza para defender a
instituição. Frisou ainda que o Sindimúsicos está trabalhando com
‘’ingredientes perigosos, de manipulação, uma vez que trata-se de
músicos empobrecidos embalados por promessas de cachê alto’’.
Ela reafirmou a sua disposição de em nenhum momento endividar o
poder público ou transferir recursos de setores como saúde e
limpeza, por exemplo, para atender às exigências do sindicato, que,
na sua concepção, trabalha com ‘’interesses mesquinhos’’ e está
praticando ‘’uma política menor’’ (Ibid.).
Este documento citado foi produzido pelo município. Mas a tentativa de
‘’isolamento’’ do sindicato dos músicos não partiu apenas das estruturas políticas do
governo municipal. Através de um dos jornais que apuraram o protesto, percebe-se,
na reportagem apresentada, a mesma finalidade, tendo em vista que não houve, em
momento algum, uma quantidade significativa de falas ou opiniões tanto dos
89
músicos sindicalizados como dos músicos não sindicalizados. Não houve o princípio
defendido pela imprensa da comparação entre ‘’visões’’.
Antes de citarmos o jornal mencionado, note-se que mais uma vez a prefeita
destaca como causa do protesto o contexto de crise econômica pelo qual passava o
Brasil na época:
Depois de promover o vandalismo, sindicato da categoria
perdeu condições de negociar. Mantendo uma postura solene,
mas sem conseguir disfarçar o clima de pesar pelo trauma deixado
após a invasão da Prefeitura de Salvador pelo Sindicato dos
Músicos, a prefeita Lídice da Mata recebeu a imprensa, ontem à
tarde, pra uma entrevista coletiva. Falando com voz pausada,
referindo-se a invasão como ‘’uma tentativa de ocupação’’ da sede
do Poder Público, a prefeita lamentou os acontecimentos,
reafirmando que em nenhum momento o processo de negociação
chegou a ser interrompido ou radicalizado, como disseram os
músicos. Disse Lídice da Mata que, estando à frente de uma
prefeitura endividada, não poderia desviar recursos de outros órgãos
para atender a um ‘’pleito corporativo’’ e de ingredientes perigosos,
de origem desconhecida, com a manipulação política da mentira, em
favor de músicos empobrecidos pela crise econômica. A questão do
Carnaval está a cargo da Emtursa – Empresa de Turismo de
Salvador, Coordenação do Carnaval, Federação dos Clubes
carnavalescos e a intermediação de parlamentares da Câmara
Municipal e da Assembléia Legislativa. Diante do que a cidade já viu,
o Sindicato dos Músicos perdeu a legitimidade como interlocutor das
negociações, agora suspensas, reafirmou a prefeita. O Sindicato
representa hoje apenas 20% da categoria que participa efetivamente
do Carnaval, e até a Federação dos Clubes desconhece o órgão
como porta-voz da categoria. A verba para a contratação de bandas
e atrações chega à soma de US$ 1.340 mil. O Poder Municipal foi
alvo desta soma (JORNAL DA BAHIA, 31/12/1993).
As circunstâncias nas quais o protesto se desenrolou servem para, entre
outras coisas, percebermos como o Estado se comporta em determinados contextos
histórico-sociais, como ele efetivamente se manifesta nos processos político-sociais.
No momento específico em que o protesto ocorreu, ele — Estado—, não representou
outra coisa senão a força das estruturas de poder vigente da época. Note-se que o
próprio título da matéria do jornal citado acima já traduz o prisma sob o qual o fato é
apresentado.
Esse período, da década de 1990, é o período de consolidação das estruturas
do Carnaval-negócio, e as forças sociais dominantes naquele momento não
hesitaram na concretização do objetivo traçado. Um número significativo de fontes
elencadas neste capítulo aponta isto. Há claramente uma produção de consciência
que buscava a unidade do discurso.
90
Sabe-se que a consciência dos seres humanos sobre algo e sobre eles
próprios se constitui a partir da e na história desses mesmos seres humanos.
Qualquer expressão de consciência humana será sempre, sem sobra de dúvidas,
um produto social (MARX, 2007, p. 53). É justamente por ser um produto social que
ela está envolvida, mas não subordinada, em processos complexos também ligados
a uma determinada ‘’ordem social’’.
E qual foi a produção de consciência dos músicos naquela ‘’ordem social’’?
Os músicos brigavam por seus direitos através do sindicato da categoria, mas ao
mesmo tempo se inseria no modelo carnavalesco que se desenhava, isto é, o
modelo do espetáculo. Não podemos afirmar que todos, não possuímos dados para
tal afirmação. Entretanto, podemos dizer que uma parte significativa. Os próprios
músicos entrevistados nos indicaram algumas das reverberações do Caranavalespetáculo nos músicos da cidade.
Havia uma ‘’aceitação’’, da parte de alguns músicos, do glamour
carnavalesco que se consolidava, uma aceitação e um desejo de participar dos
espaços espetacularizados oferecidos pela mídia. A única possibilidade de se
construir ou difundir uma imagem ‘’famosa’’ era a mídia.
A aceitação passiva do jogo do espetáculo que sobrevoava a festa momesca
naquele início da década de 1990 gerou a crença, em certos músicos, de que os
espaços midiáticos poderiam ser utilizados como um meio de se atingir um relativo
grau de ‘’diferenciação’’ em relação aos outros colegas de ofício.
Aqui
cabe
uma
reflexão
sobre
consciência
social
e
ser
social.
Freqüentemente consciência social e ser social entram em contradição. Um
sobrepondo o outro em diversos momentos, sem, contudo, se ‘’autodeterminarem’’.
Isso faz com que a identidade social de muitos trabalhadores seja também, ela
própria, ambígua.
Percebe-se no mesmo indivíduo identidades que se alternam, uma
legitimadora, aquiescente de uma determinada ordem social que se desdobra, e a
outra rebelde (THOMPSON, 2005, p. 20). De fato, o fenômeno do espetáculo
causado pela mídia naquele momento provocou a conformidade de uma parte dos
músicos ao status quo que se apresentava — fama, ficar famoso, aparecer na
televisão etc.
Participar das estruturas de publicidade acabava sendo ‘’necessário para a
sobrevivência’’. Isto demonstrava uma necessidade de seguir a ordenação daquele
91
‘’mundo social’’ que se desenrolava, de jogar de acordo com as regras impostas
pelos grupos hegemônicos.
Entretanto,
as
experiências
de
exploração,
dificuldades
econômicas
compartilhadas com os outros músicos companheiros de trabalho etc., tudo isto fazia
com que ocorressem, freqüentemente, insatisfações cujo conteúdo se fazia confuso
e limitado (THOMPSON, 2005, p. 20).
As circunstâncias nas quais o protesto dos músicos ocorreu apresentou um
quadro interessante de atitudes e ações dos diversos grupos sociais envolvidos. Foi
um momento de ‘’disputa’’ explícita entre os músicos sindicalizados, os quais
buscavam garantir um controle mínimo sobre a festa, e os grupos hegemônicos,
estes ‘’ávidos’’ pelo controle inequívoco do Carnaval de Salvador enquanto produto
econômico-cultural. Aquele momento específico descortinou o campo de forças13
que pairava sobre a festa.
Este importante jornal destacou considerações de parlamentares, do governo
municipal, que condenavam a manifestação realizada pelos músicos:
Vereador condena invasão. ‘’Surpreendido na tarde desta quartafeira com o episódio lamentável da invasão e depredação das
instalações do Palácio Thomé de Souza, sede do Poder Executivo
Municipal, sinto-me no dever de manifestar a minha solidariedade à
prefeita Lídice da Mata e de condenar ao mesmo tempo tão insólita
agressão. Na condição de presidente da Câmara de Vereadores e de
partícipe, em vários momentos, das negociações com vistas a definir
a participação dos músicos no Carnaval, sinto-me, neste momento,
impedido de continuar intermediando o diálogo, até que em novo
momento e em clima de respeito às instituições, à vida democrática,
as negociações possam ser retomadas. Lamentamos ainda que
parcela da categoria dos músicos tenha seguido rumo tão violento e
precipitado, que nada contribui para o êxito de um processo civilizado
de negociação, até porque o incidente aconteceu exatamente no
horário em que estava prevista uma reunião na Casa do Carnaval,
onde a questão deveria ser definida. Finalmente, apelamos para que
o bom senso prevaleça e se restabeleça o clima propício para a
retomada do entendimento que, em nenhuma hipótese, poderá
deixar de observar os interesses maiores da cidade’’ (A TARDE,
dezembro de 1993).
Para conter aqueles músicos ‘’irredutíveis’’ em suas posições, foi necessário
convocar os militares. A prefeita Lídice da Mata argumentou que o governo
13
Pensamos a idéia de campo de forças a partir da ‘’caracterização’’ feita pelo historiador
Edward P. Thompson. A rigor, Thompson toma a noção de campo de forças tal como fora
engendrada pelo pensador italiano Antônio Gramsci. Sobre a reflexão de campo de forças posta por
Thompson, ver GOHN, 2006, p. 205.
92
municipal precisou agir com rigor para ‘’barrar’’ os músicos. Lídice da Mata foi a
primeira mulher eleita para o cargo do executivo de Salvador. Uma prefeita cuja
orientação político-intelectual havia sido forjada no seio da esquerda baiana. A então
candidata Lídice da Mata – eleita pelo povo – toma posse no dia 1/1/1993.
Lídice havia disputado as eleições de outubro de 1992 com sete candidatos.
Foi para o segundo turno das eleições municipais. As eleições para prefeito e
vereadores da cidade dividiram o espaço na mídia, naquele ano, com o clima de
impeachment e os escândalos políticos gerados no governo do presidente Collor, o
qual teve seus direitos políticos cassados em dezembro do ano de 1992.
O candidato que havia disputado com Lídice o segundo turno foi um
candidato indicado por Antônio Carlos Magalhães, Manoel Castro. Antônio Carlos
Magalhães era naquela época governador da Bahia e pretendia estender os seus
domínios para a prefeitura, caso o seu candidato vencesse. Não foi o que ocorreu.
Lídice ganhou as eleições. Tal fato fez com que o governador – hostil à nova prefeita
– perseguisse politicamente a candidata eleita a fim de tornar a sua administração
‘’catastrófica’’.
Foi sob este clima de ‘’terrorismo político’’ que a prefeita governou. Um dos
principais argumentos utilizados pela administração municipal para justificar um
plano de comercialização do Carnaval de Salvador foi este: o do seqüestro de
verbas praticado pelo governo do Estado. Na falta de dinheiro para realizar a
contento a festa, a única saída seria a ‘’cessão’’ completa do Carnaval para a
iniciativa privada.
E a reivindicação dos músicos por melhores cachês, a cobrança por parte da
categoria de uma maior participação do poder público municipal nos rumos da festa,
tudo aquilo surgia como uma espécie de ‘’entrave’’. E quando há entraves para
quem exerce o poder político, logo o exercício da força legal — o monopólio legal da
violência— é posto em prática. É neste sentido que entendemos, por exemplo, a
ação praticada pelo poder público quando do acionamento do 18º batalhão da
polícia Militar.
Mas será que os músicos tinham motivos para entrar em confronto com o
poder municipal? Efetivamente, quanto recebiam da prefeitura para trabalhar nos
espaços carnavalescos da cidade? Como funcionavam as estruturas dos carnavais
de bairro? Quem eram os músicos que trabalhavam no Carnaval através da
93
prefeitura e do sindicato? São algumas destas questões, dentre outras, que veremos
na próxima seção.
2.3 O sindicato e o circuito dos bairros como espaços carnavalescos de
trabalho
Como ocorria a distribuição dos trabalhos nos carnavais de bairro para os
músicos? Ninguém melhor do que os próprios músicos para falar disso. Quando
tocamos nesta questão com Ivan Bastos, sobre a organização feita pelo sindicato
dos músicos dos trabalhos nos carnavais de bairro, ele nos deu o seguinte relato:
Essa questão é um dado legal porque a gente queria organizar e
trazer para o sindicato a distribuição desses trabalhos, porque tinha
muito trabalho no Carnaval, então a gente queria organizar isso e
democratizar... Eram verbas públicas, então a gente queria facilitar
pra poder colocar o maior número de músicos possível trabalhando.
Isso foi até uma conquista do sindicato, mas depois acabou.
Perguntamos ao nosso entrevistado se ele havia trabalhado muitas vezes nos
carnavais de bairro:
Claro! Muitas vezes! Mesmo depois desse período aí... Nesse
período a gente tava tentando conseguir fazer esses editais da
prefeitura... E depois eu fui convidado pra fazer parte da comissão
julgadora, inclusive eu conheci Luciano num desses aí, Luciano
novinho participando lá do negócio e eu lá como jurado [rs].
A maior parte dos músicos em início de carreira trabalhava no Carnaval de
Salvador pelo sindicato. Isto fica bem evidente através dos músicos entrevistados.
O músico Ivan Bastos, pelo fato de ter participado do sindicado dos músicos como
corpo administrativo, tendeu a assumir um discurso no qual ele mesmo se confundiu
com a instituição. Mas quisemos saber do músico Luciano Calazans por que ele, por
exemplo, havia se sindicalizado. Ele nos disse o seguinte:
Eu me sindicalizei em 1987. Na realidade eu não resolvi fazer parte
do sindicato, isso era uma coisa imposta. Pra poder participar, pra
poder pleitear o Carnaval pelo sindicato, nós tínhamos que ter a
carteira do sindicato e a carteira da Ordem. Quem fazia as carteiras
pra gente era o dono da banda... Ele pagava as fotos no lambelambe aqui da piedade... Tínhamos as fotos no sindicato que era aqui
nos barris... Eu esqueci o nome do edifício qual era... Bom, e ele
mesmo pagava as carteiras pleiteando um lugar no Carnaval, pra
poder fazer ainda o teste do sindicato com os jurados pra ver se
ficava entre as vinte bandas aprovadas no Carnaval.
94
O baixista Luciano Calazans demonstra, como outros músicos entrevistados,
um sentimento de desaprovação em relação a algumas práticas de sua instituição
representativa. O sindicato, aos olhos dos músicos, não servia para muita cosia.
Percebe-se que as práticas daquela instituição não se apresentavam como uma
ferramenta representativa das forças sociais daqueles trabalhadores. Luciano
continuou a nossa conversa dizendo que:
Os carnavais de bairro eram promovidos pela prefeitura em parceria
com o sindicato dos músicos; eram classificadas vinte bandas, sendo
que dessas vinte bandas três, o primeiro, o segundo e o terceiro
lugar tinham direito de tocar num trio elétrico da prefeitura. O restante
era destinado para cada bairro, São Caetano, Fazenda Grande,
Itapoan, Cajazeiras, liberdade etc. O músico que tava tocando pelo
sindicato dos músicos era aquele músico que tava à margem
mesmo... O músico de renome na época tocava no... Embora muitos
músicos de renome na época fossem fazer o teste do sindicato, para
completar o orçamento até... Porque não existia essa indústria do
axé-music na música baiana... Naquele tempo o máximo que
pudéssemos reforçar o orçamento, tocar pelo sindicato e tocar com
artistas de trio... Eu não vou citar nomes de companheiros que já
tocavam naquela época com artistas, mas que estavam lá no
sindicato fazendo teste... Isso criava até um certo atrito, dentro do
próprio sindicato porque muitos achavam que eles não tinham direito
de tocar com tal pessoa... Por exemplo: Ah... Você tá tocando com
Sarajane, Sarajane vai tocar no trio elétrico, o que é que você tá
fazendo aqui, você não precisa tá aqui no sindicato... Então, esse
tipo de atrito era bem comum nas reuniões do sindicato, de até
agressão física. Pra ser bem direto, a plebe tocava nos bairros.
Havia claramente diferenças, em níveis diversos, entre os músicos que
atuavam nos carnavais de bairro e os músicos que atuavam no circuito que passou
a ser hegemônico. No circuito Campo Grande, bem como o Barra/Ondina, havia um
grande contingente de classe-média alta. A partir da segunda metade da década de
1980, os blocos de trio começaram a transferir suas sedes para bairros de classemédia alta, acompanhando o processo de segregação que emergia no Carnaval de
Salvador.
O economista e pesquisador Paulo Miguez de Oliveira realizou uma pesquisa
sobre o Carnaval de Salvador. O título do trabalho é Carnaval Baiano: as tramas da
alegria e a teia de negócios. Ele diz o seguinte em seu trabalho:
[...] o Internacionais e também o Corujas, mais particularmente o
primeiro, são dignos de nota pelo conjunto de transformações que
experimentaram [...] Em meados dos anos 80, em consonância com
a emergência dos blocos de trio, essas duas organizações iniciaram
um processo radical de mudanças no seu perfil, no sentido da sua
transformação em blocos de trio, e na direção do público de classemédia alta: suas orquestras, com instrumentos de percussão e sopro,
95
foram substituídas por trios elétricos privados; as fantasias cederam
lugar aos abadás; a faixa etária dos associados foi reduzida; as
mulheres passaram a ser admitidas como sócios; as sedes,
originalmente localizadas em bairros de classe média-baixa [...],
foram transferidas para a Barra e Ondina, bairros de classe médiaalta [...] (OLIVEIRA, 1996, 120-121).
É bem verdade que os carnavais de bairro não dispunham da mesma
estrutura que foi se desenhando no circuito hegemônico, isto é, o circuito utilizado
pelo Estado nas propagandas publicitárias a fim de atrair turistas para o Carnaval. A
força dos blocos de trio mais seus consumidores principais, a classe-média alta
abastada, acrescentaremos ainda os diversos tipos de empresas financiadoras do
Carnaval, tudo isso criou, engendrou um status quo àqueles circuitos que vieram a
ser chamados de ‘’principais’’.
Dada a importância — material e simbólica— que o percurso Barra/Ondina,
por exemplo, foi adquirindo ao longo das transformações pelas quais passou o
Carnaval, fica a impressão de que os carnavais de bairro entravam na programação
oficial da prefeitura como uma espécie de ‘’penduricalhos’’. Conversando com o
baterista Ivan Huol sobre os carnavais de bairro, escutamos o seguinte relato:
Olha, o trabalho no bairro era sinônimo de risco à integridade física.
A estrutura de trabalho era precaríssima... Mas a gente tem que
entender que Salvador era ainda mais terceiro mundo... E o acesso à
tecnologia em Salvador ainda era muito precário. Quando aparecia
alguém que fazia parte do contexto eu acho que o Carnaval de bairro
era até justificável, mas eu nunca vi isso, eu só vi falta de
policiamento uma época... Eu soube de uma história do meu amigo
Bruno saxofonista, que ele disse que foi tocar num bairro desses com
alguém, eu não lembro quem era... O som era horrível, a banda era
horrível, e ele na época não tocava nada de Carnaval... Aí ele disse
que o povão começou a entrar embaixo do palco e dava murro nos
compensados... Ele disse que escutou um barulho, e o cara tentando
fazer o som [rs].
Este relato aponta, em certa medida, a natureza dos carnavais de bairro.
Naquele processo de construção de hegemonia por parte dos grupos dominantes e
dirigentes, o projeto do Carnaval de bairro aparece como uma concessão, um favor
que era prestado aos grupos subalternos. A atividade econômica central se
concentrava mesmo nos circuitos Campo Grande e Barra/Ondina. Esta situação
política e econômica específica se aproxima de uma reflexão importante feita por
Antônio Gramsci sobre as diversas nuances do processo que leva à construção de
uma hegemonia. Ele diz que
96
‘’ O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam
levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os
quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio
de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de
ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais
sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado
que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também
econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função
decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade
econômica’’ (GRAMSCI, 2002, p. 48).
Alguns dos impasses gerados entre os músicos que se apresentavam através
dos carnavais de bairro e o poder público têm relação com um fenômeno que se
apresentou como conseqüência direta do processo de mercantilização do Carnaval:
o número de ‘’artistas’’ de fora, que não eram oriundos da cena baiana, mas que
eram contratados pelo poder público a ‘’peso de ouro’’.
Aqueles artistas famosos eram pagos, infere-se, para ‘’enfeitar’’ a festa, para
ajudar na estratégia de atração de grupos de turistas etc. Por conta desse
favorecimento, entre outras coisas, os espaços de trabalho dos carnavais de bairro
acabavam sendo ‘’sucateados’’, recebendo menos recursos. No Carnaval de 1994,
por exemplo, os músicos alegaram que haviam sido preteridos pelo poder público
‘’em vista das atrações de fora que a prefeitura trará para o Carnaval de Salvador –
gente como Jimmy Cliff, Tim Maia e Elba Ramalho, por exemplo [...]’’(TRIBUNA DA
BAHIA, 30/12/1993).
O que começou a ocorrer na dinâmica carnavalesca — insistimos:
reverberações do modelo que estava sendo posto— dizia respeito ao financiamento,
praticado pela prefeitura, de atrações que gozavam de ampla visibilidade no
contexto nacional e, em certa medida, internacional. Atrações que vendiam uma
quantidade significativa de discos, em resumo, atrações ‘’consolidadas pelo
mercado’’. Artistas como Morais Moreira, Margareth Menezes, dentre outros,
custavam aos cofres públicos US$ 150 mil (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 27 e
28/12/1993).
Os carnavais de bairro eram vistos pelos músicos sob diversos pontos de
vista. Mas algo fica evidente: o chamado ‘’circuito principal’’ tornava-se cada vez
mais elitista. Num diálogo com o músico Gerson Silva, num momento em que
falávamos dos critérios utilizados pelo sindicato para realizar a distribuição das
bandas nos bairros, ele nos deu o seguinte testemunho:
97
Havia inscrições das bandas e músicos sindicalizados e que
estivessem com seus pagamentos em dia e se marcava os dias das
apresentações pra se ter as eliminatórias e saber quais as bandas
que iriam tocar nos vários palcos que tinham em quase todos os
bairros em Salvador. Uma forma até de descentralizar o carnaval e
levar qualidade musical pra quem não tinha condições de sair de
seus bairros pra irem brincar o carnaval nos conhecidos Blocos,
geralmente elitistas e muito caros (Gerson).
De fato, a maior parte dos músicos entendia que os carnavais de bairro
serviam como uma ‘’alternativa’’ à população espoliada, às pessoas que recebiam o
título de ‘’folião pipoca’’, mas que efetivamente quando tomavam a liberdade de
participar daquele Carnaval do circuito hegemônico, eram obrigadas, via de regra, a
dividir o espaço com o cheiro forte de urina e cerveja, cheiro oriundo dos becos das
ruas nas quais a festa ocorria.
Naquele contexto de segregação estimulada e intensificada pelo poder
público, os fins a que se propuseram os carnavais de bairro surgiam com uma
‘’aura’’
um
tanto
ambígua.
Decerto,
aqueles
carnavais
promoviam
a
descentralização, dado que havia um centro carnavalesco privilegiado e elitista.
Agora, ficam as perguntas: o intuito de descentralizar tinha relação com a
democratização da festa, fazendo com que as pessoas daqueles bairros tivessem
atrações e infra-estrutura de qualidade, sem precisar sair do entorno de seus
respectivos bairros? Ou aqueles carnavais de bairro serviam para reiterar as
diferenças entre os circuitos, para a ‘’gente feia’’ dos bairros não se imiscuir com a
‘’gente bonita’’ dos blocos de trio do circuito hegemônico?
É sobre essas transformações ocorridas no Carnaval que discutiremos no
próximo capítulo. No capítulo que sucede, buscamos apresentar, entre outras
coisas, o processo de mercantilização do Carnaval, certas lógicas hegemônicas
impostas tanto pelo Estado como pelos agentes privados. Também trazemos à luz
alguns discursos sobre a profissionalização do Carnaval.
98
3 - A AXÉ-MUSIC E SEUS DESDOBRAMENTOS
O dinheiro não é só um objeto da paixão de enriquecer; ele é o
próprio objeto. Essencialmente, essa paixão é a auri sacra fames —
a maldita sede do ouro—. A paixão de enriquecer, ao contrário da
paixão pelas riquezas naturais particulares ou pelos valores de uso
tais como o vestuário, as jóias, os rebanhos, etc., só é possível a
partir do momento em que a riqueza geral se individualiza numa
coisa particular e pode, assim, ser retida sob a forma de uma
mercadoria isolada. O dinheiro surge, portanto, como sendo o objeto
e a fonte da paixão de enriquecer. No fundo, é o valor de troca, o seu
crescimento, que se torna um fim em si. A avareza mantém o tesouro
prisioneiro, não permitindo ao dinheiro tornar-se meio de circulação,
mas a sede do ouro mantém a alma de dinheiro do tesouro, a
constante atração que exerce sobre ele a circulação (Karl Marx).
Buscamos perceber neste capítulo, através do processo de mercantilização
do Carnaval, certas forças hegemônicas impostas tanto pelo Estado como pelos
agentes privados; e até que ponto os músicos consentiam e resistiam àquelas
forças. Além da busca mencionada, há também o objetivo de empreender uma
análise que visa à obtenção de uma compreensão satisfatória sobre o discurso da
profissionalização do Carnaval. Destacamos a importância de pensar o discurso da
profissionalização do Carnaval ao lado da noção de divisão do trabalho. A discussão
sobre os meios de comunicação é retomada, bem como a relação destes com as
visões e opiniões difundidas sobre os músicos, as bandas, em suma, sobre os
espaços carnavalescos.
Há ainda neste capítulo algumas reflexões sobre a axé-music. Pode-se dizer
que este é um dos pontos culminantes do trabalho. Abordamos alguns dos diversos
desdobramentos daquele fenômeno ao longo da década de 1990. No primeiro
momento, tentou-se destacar implicações gerais sobre o fenômeno. Em seguida,
trazemos os músicos para o centro do diálogo, entendendo a axé-music a partir da
vivência deles. Aparecem aqui, questões relacionadas ao trabalho dos músicos nas
gravadoras. Há uma série de situações a partir das quais os músicos construíram,
naquele momento específico, o seu mundo vivido, as suas experiências sociais na
produção da chamada ‘’música popular’’ da Bahia.
99
3.1 A festa-negócio
Na Bahia, Estado do Brasil conhecido como um dos principais ‘’pólos
irradiadores da tradição carnavalesca’’, a festa foi adquirindo, ao longo do século
XX, contornos diferentes daqueles que, segundo cremos, estariam ligados a um
modo de carnavalizar o mundo calcado, em grande medida, nas ‘’transgressões
sociais’’, na negação do ‘’mundo oficial’’. Tais manifestações que, ressalvadas as
pressões e tensões sociais que sempre acompanharam o Carnaval, a despeito disto,
ainda mantinham uma proximidade com o tempo vivido dos sujeitos.
Em seu trabalho A africanização do Carnaval de Salvador, Bahia: a re-criação
do espaço carnavalesco, o historiador Raphael Rodrigues Vieira Filho afirma que
Entendemos o carnaval não apenas como um momento onde todos
os valores são invertidos e tudo é possível graças ao mecanismo de
inversão do cotidiano. Para nós ele, transcende ao desvelar toda a
correlação de forças existentes na sociedade. Sendo assim, as
manifestações carnavalescas podem, e devem, ser entendidas como
expressão das condições de vida do seu grupo fomentador, no caso
os afro-brasileiros (VIEIRA FILHO, 1995, p. 2-3).
Os negros em Salvador, bem como os blocos afro, embora tivessem
mostrado toda a sua força cultural quando do renascimento de suas organizações
carnavalescas na segunda metade da década de 1970, foram subordinados,
paulatinamente, pela força hegemônica dos blocos de trio. De modo que a
multiplicidade das manifestações negras, historica e culturalmente ricas, foram
perdendo espaço. Dialogando ainda com o historiador Raphael Rodrigues Vieira
Filho, ele argumenta que
[...] até o ano de 1930, [...] observamos uma série de descrições de
organizações negras - clubes, blocos e cordões - oferecendo um rico
material [...], mostrando-nos a multiplicidade das formas de
manifestação dos negros, no carnaval de Salvador, muito embora
apresentassem alguns elementos comuns (VIEIRA FILHO, 1995, p.
98).
Um exemplo, entre outros, que aponta alguns aspectos daquela mudança que
vinha ocorrendo nas chamadas festas populares de Salvador, entre elas o Carnaval,
é o das ‘’barracas de som’’. Um leitor de um jornal da época, disse que ‘’os
barraqueiros, à medida que deixaram de ser estabelecimentos pequenos e de
família, se transformaram em grandes conglomerados [...], instalaram nas barracas
estridentes serviços de som’’(A TARDE, 03/01/1981).
100
Evidentemente que trouxemos à baila, no capítulo anterior, algumas
evidências que indicavam mudanças fundamentais no Carnaval de Salvador. As
estruturas das barracas que atendiam o público consumidor que gravitava os
espaços carnavalescos da cidade haviam mudado significativamente.
A festa foi se estruturando, paulatinamente, entorno da classe-média
abastada baiana. [...] ‘’as camadas branco-mestiças de classe média e alta se
organizavam em blocos carnavalescos chamados blocos de trio elétrico’’
(GUERREIRO, 2000, p. 121). Mas a espetacularização do Carnaval da Bahia, a
despeito de suas especificidades, acompanhou uma ‘’tendência geral’’ pela qual
passou diversas festas populares no Brasil. O historiador Peter Burke expressa melhor o que estamos querendo dizer, em
parte. Ao se referir aos estágios — participação, reforma, afastamento e
redescoberta— pelos quais o Carnaval passou, ele diz que
O Brasil, como outras partes do Novo Mundo, atravessa hoje o
quarto processo, o da redescoberta da cultura popular, em particular
a cultura afro-americana, pelas elites, incluindo a ‘re-africanização’
do Carnaval. Também ocorreu — pelo menos no Recife— um retorno
da classe média ao Carnaval de rua, que se retirara para o mundo
fechado dos clubes e hotéis. Desnecessário dizer, esse quarto
estágio se relaciona com a comercialização de uma festa que se
tornou um grande negócio, e em que a televisão e gravadoras, assim
como agências de turismo — para não mencionar os proprietários de
estabelecimentos de jogo e traficantes de droga—, passaram a
envolver-se profundamente (BURKE, 2006, p.230).
Decerto, esta ‘’redescoberta’’, a que o historiador faz menção, trouxe consigo
— e continua trazendo— um quadro diferente para a chamada cultura popular na
Bahia. O modo através do qual o Carnaval surge depois de 1950, mais precisamente
nas décadas de 1970 e 1980, está totalmente atrelado à idéia de uma ‘’festanegócio’’ ou ‘’festa-mercadoria’’.
O Carnaval de Salvador sofreu uma grande mudança a partir da criação do
trio elétrico. Além das mudanças concernentes ao próprio modo de se ‘’brincar o
Carnaval’’, houve também a transformação da festa e da sua lógica cultural
específica em ‘’coisa’’, em um produto, em uma mercadoria. ‘’No final dos anos 80
[...] cerca de quarenta blocos com trios particulares se estruturaram como empresas
e privatizaram o espaço da rua, através de cordas que isolavam os blocos de trio
[...]’’ (GUERREIRO, 2000, p. 126).
101
Depois de 1950, com o trio elétrico já inserido na dinâmica carnavalesca,
passa a haver interesse de determinados setores da sociedade civil baiana na
construção da festa. Conta Osmar Macedo que ‘’em 1952, um industrial daqui da
Bahia, chamado Miguel Vita, percebeu que esse negócio de trio elétrico tinha
grandes possibilidades promocionais. [...] Foi a primeira vez que recebemos auxílio’’
(GÓES, 2000, p. 62).
Ao longo das décadas de 1950 e 1960, podem-se observar interesses ainda
‘’tímidos’’ do ponto de vista da inserção do poder público na organização políticoadministrativa do Carnaval, como também dos patrocínios privados nos rumos da
festa. ‘’A organização e realização do Carnaval de Salvador caracterizava-se
tradicionalmente pelo improviso [...], a prática comum era a de apenas preocupar-se
com a sua realização às vésperas do período momesco [...]’’ (HEBER, 1999, p. 182).
Ao longo da década de 1970, começam a se desenrolar complexas
transformações na dinâmica carnavalesca.
Diversas bandas aparecem na cena
carnavalesca; surgem vários blocos, com características diferentes. O trio elétrico
torna-se um elemento central no negócio carnavalesco. A nova divisão do trabalho
redistribui a realidade da festa.
A partir da década de 1980, na segunda metade desta década, o caráter
empresarial dos blocos, o processo de transformação das bandas em verdadeiros
‘’conglomerados empresariais’’, o crescimento vertiginoso de tipos diversos de
produtoras de eventos, tudo isso apontava para a consolidação de uma espécie de
‘’festa-mercadoria’’. ‘’Os blocos carnavalescos passam a estender as atividades de
suas respectivas bandas e se transformam em produtoras com sedes próprias e
expediente corrente, criando empregos diretos e indiretos durante todo o ano’’
(GUERREIRO, 2000, p. 153).
Em fins da década de 1980 e início da década de 1990, o Carnaval de
Salvador se consolida em torno das políticas ligadas ao movimento turístico14 da
cidade. Os blocos carnavalescos, bandas e músicos passam a se organizar –
sobretudo neste período – em torno das mídias locais e nacionais.
14
A partir da fundação da Bahiatursa, em 1968, o turismo já se apresenta como uma das
prioridades do planejamento estadual (MOURA, 2001, p. 169). Contudo, o Carnaval como moeda de
troca entre os agentes privados, como uma mercadoria turística atraente para os organismos
privados, este Carnaval começa a ganhar corpo na segunda metade da década de 1980, como já foi
dito anteriormente.
102
Grupos de músicos se transformam, de modo extremamente acentuado, em
vendedores de sua força de trabalho a outros músicos, passando a haver, nesse
momento, alguns ‘’músicos-artistas-empresários’’ —
trata-se de um número
pequeno, se comparado à totalidade dos músicos profissionais existentes no período
— ligados às empresas que buscavam no Carnaval de Salvador o máximo de lucro
possível com o evento. Para o músico Ivan Huol ‘’[...] alguns músicos que viraram
donos de banda exploravam os amigos igual aos empresários, eu olhava pro cara e
pensava: sujeito sem nenhuma consciência, né rapaz [...]’’.
Essas empresas, por sua vez, começaram a se associar com o Poder Público
no sentido de estabelecer com este, entre outras coisas, algumas ‘’estratégias’’,
alguns critérios de negociação da festa. A partir da primeira metade da década de
1980, é possível observar tais tentativas, de forma explícita:
O Carnaval do Merchandising. A estimativa inicial da ‘’Comissão
Executiva do Carnaval’’ é de que serão gastos CR$ 650 milhões na
organização e premiação do evento. Como todo mundo sabe, a
Prefeitura de Salvador enfrenta uma crônica crise financeira e não
tem recursos para bancar, sozinha, esses custos. Eles, portanto,
serão divididos com a Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo, e
empresas privadas. Até agora ninguém sabe exatamente quanto
cada órgão oficial desembolsará. Vai depender, da parte que será
absorvida pela iniciativa privada. Ou seja, o êxito das vendas do
produto carnaval. O produto é excelente. Durante os seis dias de
festejos, milhões de pessoas circularão pelas ruas da cidade e
assistirão, pela TV, a um festival de marcas, slogans e receitas
diversas. As empresas que comercializam e produzem bebidas e
alimentos já estão na ‘’guerra’’, reservando os espaços (A TARDE,
3/1/1984).
Naquele momento, o privado ganhou uma importância significativa. Os
agentes privados aprofundaram a tensão que, de um modo ou de outro,
acompanhava a dinâmica carnavalesca. A realidade de mercado, de negócio,
esboçava-se categoricamente. O valor de troca do Carnaval foi exposto na imprensa
sem problema algum.
As negociações sobre a festa, a chamada para os grupos sociais capazes de
adquirir as vantagens daquele Carnaval-produto, o detalhamento das possibilidades
de lucro, tudo isto se deu abertamente em alguns veículos de comunicação. O
discurso da profissionalização entrou ‘’na ordem do dia’’. Os diversos grupos sociais
que trabalhavam no Carnaval, bem como nas chamadas festas populares, tinham de
se profissionalizar.
Aquele discurso da profissionalização coincide com a criação de certos
103
órgãos institucionais voltados inteiramente para o estímulo e promoção do turismo
no Estado. Sobre o papel da Bahiatursa, o que ela representava na década de 1980,
vejamos a opinião de Antônio Risério numa entrevista concedida ao jornal A Tarde:
Em ‘’Carnaval Ijexá’’, você critica o comportamento da
Bahiatursa e da Fundação Cultural enquanto instituições
destinadas a promover os eventos culturais. Como é que elas
vêm agindo? Você imagina todas as manifestações culturais da
Bahia. A soma delas forma o que a gente pode chamar de espaço
cultural baiano. O governo loteou esse espaço entre a Bahiatursa e a
Fundação Cultural. A primeira, a gente pode chamar de empresa
ideológica, porque ao mesmo tempo ela está ligada ao aparelho
econômico do estado, captando recursos, ativando a vida comercial
de Salvador, gerando novos empregos etc; e ao seu aparelho
ideológico, porque pelo simples fato de lidar com turismo, tem que
promover, forjar uma imagem idealizada da Bahia. A Fundação
Cultural, por sua vez, é o órgão onde se materializa concretamente a
ideologia cultural da elite. Nessa repartição cultural, coube à
Bahiatursa se incumbir das formas culturais que ela chama de
folclóricas e populares. Essa é o que eu chamo de faixa lucrativa da
cultura. Do artesanato de Maragojipe aos capoeristas do Marciel,
tudo é parte da produção cultural baiana que dá lucro, que atrai
turistas. Curiosamente, esse lucro é dado exatamente pela parte
mais miseravelmente pobre da sociedade baiana que gera esse
lucro, mas não tem nenhum. É tão grande esse lucro que com uma
parte pequena dele o governo promove a cultura da elite, através da
Fundação Cultural, pois a cultura da elite é deficitária (A TARDE,
21/1/1982).
Para Antônio Risério, aqueles órgãos institucionais absorviam a produção
cultural subalterna, e ‘’devolviam’’ aquela produção para o organismo coletivo na
forma-mercadoria. O negro capoeirista de fato, imerso na força do costume, esse
‘’núcleo’’ da cultura tradicional, passava a fazer parte, tomando a linha de raciocínio
de Risério, de um conjunto de objetos culturais que eram passíveis de serem
utilizados como mercadoria atrativa, como uma importante moeda de troca geradora
de lucros – lucros estes que não ficavam com os verdadeiros agentes produtores.
Sem dúvida, a existência do ‘’loteamento cultural’’ sobre o qual Antônio
Risério fazia menção, tinha relação com aquele processo de mercantilização que se
imiscuía nas diversas produções culturais populares da Bahia, e o Carnaval não
ficou de fora.
A força dos blocos de trio, com sua perspectiva mercadológica, foi crescendo
vertiginosamente, a ponto de ‘’invadir’’ festas de largo em Salvador cujo conteúdo se
fazia fundamentalmente religioso. Vejamos um comentário enviado, por Herculano
Quitanilha, um leitor de um jornal da época:
104
Carnaval e festa de Largo. ‘’Mais uma vez, apesar de insistentes
apelos inclusive de D.Avelar Brandão Vilela, algumas entidades
carnavalescas se fizeram presentes na tradicional lavagem do
Bonfim que contou até com trio elétrico. É preciso dar um basta
nesse abuso pois estão querendo transformar Salvador em
carnavalópolis, com a descaracterização de nossas festas populares
e religiosas. Se não forem adotadas providências, dentro de pouco
tempo, todas as festas vão virar carnaval e não será surpresa se
esses mesmos blocos e trios elétricos que se fizeram presentes no
Bonfim, quiserem, também, participar da procissão de Sexta-feira da
Paixão, das quadrilhas juninas, do 2 de julho e do desfile de 7 de
setembro. A Bahiatursa e a Prefeitura devem encontrar, em conjunto,
uma solução para o problema no sentido de preservar festas
religiosas como a do Bonfim que merece mais respeito. Seria o caso,
talvez, de se estudar a programação de novos eventos
essencialmente carnavalescos em troca da manutenção da
autenticidade de nossas festas religiosas (A TARDE, 25/1/1982).
Herculano Quitanilha denunciou, com toda veemência de um homem cujos
valores religiosos se faziam presentes em sua vida, a investida dos blocos de trio
nas manifestações ‘’populares-religiosas’’. Assim, mostrou-nos o desenvolvimento e
expansão dos blocos de trio, um aspecto relevante, se levarmos em consideração os
tipos de conflitos e mudanças específicos que começaram a surgir naquele período
momesco. Aqueles conflitos pré-carnavalescos eram uma parte de um todo, de um
processo: o processo de mercantilização do Carnaval.
Aquele processo de mercantilização foi estimulado, sem dúvida, pelos
poderes públicos em nível estadual e municipal. Faz-se necessário tomarmos nota
de mais um elemento importante naquele movimento histórico.
Para percebermos melhor tal processo, o relatório do Carnaval de 1984,
indica de forma clara, a intencionalidade dos governos estadual e municipal de
transformar o Carnaval em um produto, como resposta a uma suposta crise que
assolava o município:
Devido ao esvaziamento financeiro e político por que vem
atravessando o município, vítima da centralização excessiva por
parte do Estado e da União, delegou-se à BAHIATURSA, como
órgão oficial de turismo do Estado, a responsabilidade de responder
pelo evento, visto agora como um produto que pela sua grandeza,
oferece enorme potencialidade como gerador de recursos.
(BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p.54)
Mais uma vez, para assegurarmos algumas das nossas afirmações no que
dizem respeito à mercantilização do Carnaval, argumentando que os ‘’contornos
precisos’’ da festa-mercadoria estão situados entre as décadas de 1980/90, citamos
105
o trabalho do geógrafo Clímaco Dias. Ele afirma que as providências para a
mercantilização e privatização do Carnaval foram, sim, devidamente tomadas, como
podem ser observadas no Relatório do Carnaval de 1984, descrito a seguir:
A venda de espaços para a publicidade no eixo Praça da Sé –
Campo Grande, do Porto ao Farol da Barra e nos palanques das
arquibancadas é talvez a única fonte de renda que a
prefeitura/BAHIATURSA podem obter para fazer frente às despesas
de decoração e organização do carnaval em Salvador. Sendo esta a
primeira vez que se propõe tal empreendimento. [grifo nosso]
(BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p. 113)
Clímaco Dias argumenta ainda em seu trabalho que,
[...] para o carnaval de 1985, dentre algumas das medidas que
visaram à profissionalização, foi contratada a empresa de
publicidade D&E como responsável por toda a comercialização da
festa. Mas, os resultados não foram os esperados pelo poder público
municipal, que além de condenar a ineficiência da empresa, criticava
duramente a Federação dos Clubes Carnavalescos de Salvador e o
Sindicato dos Músicos da Bahia por criarem “problemas” à
implantação do modelo proposto’’ (DIAS, 2002, p. 113-114 ).
O geógrafo cita O Relatório do Carnaval — sendo desta vez o referente ao
ano de 1985 — para explicitar a posição do poder público ante o ocorrido:
A empresa de publicidade responsável pela comercialização do
evento, de longe, decepcionou e não cumpriu os prazos e
determinações, a federação dos clubes carnavalescos é totalmente
desestruturada, e o sindicato dos Músicos do Estado da Bahia, que
foi chamado a colaborar de forma a mais democrática possível, criou
problemas e forneceu um repertório de baixa qualidade e mau gosto.
(BAHIATURSA apud Dias, 2002, p.114 )
Mais adiante, o mesmo relatório é absolutamente enfático em relação às
considerações do município sobre os serviços da agência de publicidade: “[...]
Lamentavelmente as mortalhas tiveram que sair com a arte final da D&E [...]”
(BAHIATURSA apud DIAS, 2002, p.114) Nove anos depois da primeira tentativa de
venda dos espaços públicos da cidade, a prefeita Lídice da Mata, viaja para São
Paulo, a fim de colocar em prática o que ela chamou de Plano de Comercialização
do Carnaval:
Prefeita mostra em SP plano para patrocínio do Carnaval.
Publicitários, anunciantes e grandes empresários conhecerão hoje,
em São Paulo, através da própria Prefeita Lídice da Mata, as
vantagens comerciais que poderão obter se investirem no patrocínio
do Carnaval de Salvador, definido como ‘’a maior festa popular do
planeta’’. Para sensibilizar os possíveis clientes, a Prefeita vai
mostrar que a economia da cidade movimenta mais de 100 milhões
106
de dólares durante o carnaval. Neste período, Salvador se
transforma numa passarela de mais de 20 quilômetros de ruas e
avenidas apenas no chamado Circuito Principal — do Pelourinho até
Ondina —, onde irão acontecer quase 500 shows, mobilizando
centenas de músicos e artistas. Além disso, há mais de 20 praças ou
sítios também beneficiados com a programação carnavalesca oficial
e outros locais isolados onde acontecem manifestações populares
espontâneas.
Aqui vemos a que ponto havia chegado as relações sociais, políticas e
econômicas que permeavam o Carnaval. Se, de uma maneira ou de outra, os
agentes privados, em diversos momentos da história do Carnaval baiano, tenderam
a barganhar no período momesmo, naquele início da década de 1990, não se
tratava apenas de barganha.
Era a própria organização da produção carnavalesca que se voltava para a
esfera privada. Aquele modelo, uma vez criado e reiterado pelos agentes públicos,
imprimiu no Carnaval características próprias de um ‘’produto’’. E aquele ‘’produto’’
passou a ser conformado como uma espécie de propriedade ‘’fundamental’’ para os
agentes particulares. Os agentes particulares passavam a ter o poder de dispor
daquele ‘’produto-Carnaval’’. A matéria citada, explicitou ainda o seguinte:
No total o Carnaval se espalha por uma área de 200 quilômetros
quadrados, ocupada durante 120 horas contínuas por uma multidão
de 1 milhão e 500 mil foliões, dos quais pelo menos um terço de
turistas. Todos esses dados estão contidos no Plano de
Comercialização do Carnaval, que a prefeita apresentará no
Restaurante São Paulo Grill – considerado um dos ‘’points’’ do
empresariado paulistano – juntamente com as bases para a sua
licitação pública nacional. É o primeiro projeto de comercialização
envolvendo direitos e concessões, já feito por uma administração
municipal, para tentar obter recursos que possam reinvestidos no
próprio Carnaval. O lançamento será feito durante um almoço no São
Paulo Grill para um grupo selecionado de dirigentes de grandes
agências de publicidade do País, anunciantes em potencial e
editores de negócios e finanças dos principais jornais do País. Para o
Secretário Domingos Leonelli, de Comunicação Social, Presidente da
Comissão Especial do Carnaval, o lançamento do plano em âmbito
nacional decorre das dificuldades financeiras enfrentadas pela
prefeitura [...] (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 15/12/1993).
As relações sociais produzidas e reproduzidas na dinâmica carnavalesca da
cidade, a partir da perspectiva mercadológica, são evidentes nas décadas de 1980 e
1990. A carnavalização do mundo passou a ser subsidiada, em grande medida, por
patrocínios privados. O Carnaval passou a ser mais uma forma de entretenimento
107
comercial realizado por ‘’artistas’’ profissionais contratados por vários tipos de
empresários particulares.
E os empresários ligados ao ramo da produção de imagens, sobretudo o das
grandes empresas do audiovisual, passaram a produzir — e cristalizar— uma idéia
da festa totalmente ligada à lógica do consumo, isto é, como sendo um objeto
passível de troca entre os agentes particulares.
A rigor, aquele modelo do Carnaval-entretenimento trouxe consigo novas
formas de linguagens, tipos novos de signos. Nos carnavais das décadas de 1980 e
1990 é possível notar, sem muito esforço, meios de produção e difusão de
linguagens
até
então
desconhecidos,
ou
melhor,
ausentes
nos
espaços
carnavalescos de outrora. A produção carnavalesca da cidade, sob o prisma do
mercado, criou ‘’novos signos’’ — reinterpretou outros já existentes naquele
momento— e suplantou os ‘’ineficazes’’ aos seus objetivos.
Numa matéria feita por um jornal da Bahia em1982, há uma descrição dos
carnavais antigos. A matéria trazia, além de um olhar sobre o Carnaval da Bahia,
uma entrevista com um dos criadores do trio elétrico, Osmar Macedo. Vejamos
aquele breve histórico:
Até 1950, todo mundo ia às ruas para ver e aplaudir o que se
chamava de ’Carnaval da Bahia’. Era o ‘corso’, uma fila de
automóveis abertos com as famílias dos negociantes abastados da
praça, segundo o professor Cid Teixeira. Todos iam sentados no
cajado dos carros ricamente fantasiados jogando confetes,
serpentinas e lança-perfume. Nos passeios das avenidas, as famílias
que não possuíam carros, postavam-se em cadeiras e bancas de
todos os tipos, amarravam umas nas outras e também nos postes e
árvores, com correntes, cordas e cadeados, garantindo assim os
seus lugares para apreciarem os desfiles dos grandes clubes, blocos
e mascarados. Os mais famosos eram: Fantoches da Euterpe, Cruz
Vermelha e Inocentes em Progresso. Estes clubes, ricamente
ornamentados e iluminados, com suas rainhas, princesas e todo
séquito eram precedidos pelos arautos com seus clarins anunciando
o que vinha atrás. Os motivos e as alegorias eram ‘segredos de
estado’, somente o restrito grupo de diretores e artífices tinha
conhecimento do que seria apresentado. Os adeptos e torcedores
ficavam nas avenidas jogando serpentinas, confetes e aplaudindo
entusiasticamente os seus preferidos [...] (A TARDE, 07/1/1982).
Falar de linguagens é o mesmo que falar de signos. Afirmamos anteriormente
que a dinâmica carnavalesca havia mudado. Os sinais evidentes daquela mudança
foram denunciados pelo próprio Osmar Macedo. A matéria citada encontra-se
situada justamente no período de rápida transformação pela qual o Carnaval estava
108
passando. As novas linguagens — signos— que haviam começado a ‘’mediar’’ o
Carnaval foram elencadas por Osmar:
O número de blocos, com ou sem trios, cresce todo ano, bem como
os afoxés, batucadas, escolas de samba. Todos querem se exibir e
têm este direito, diz Osmar. As autoridades fazem passarelas com
arquibancadas, onde fica uma minoria vendo e aplaudindo as
exibições das entidades carnavalescas, sob uma concentração de
jornalistas, fotógrafos, câmeras de tevê etc., para julgarem e dar
prêmios e classificações [...] O Carnaval pára, estaciona. Na terçafeira do Carnaval, o Trio Elétrico ‘Dodô e Osmar’ ficou parado no
Campo Grande durante três horas enquanto 600 mil foliões
aguardavam nas avenidas. Há outra passarela na Praça da Sé que
provoca o mesmo congestionamento. Dificilmente um trio ou
qualquer outra entidade completa um único circuito durante um dia
de Carnaval. [...] As passarelas estão aumentando em número e
tamanho. Brevemente teremos só uma imensa passarela e todo
mundo parado vendo e aplaudindo [...] Se as autoridades que
controlam o Carnaval, — no caso, principalmente a Bahiatursa—,
querem manter a tradição, a ‘loucura’, a participação popular, a
fórmula é simples: acabar com as passarelas, ou pelo menos, com
as exibições nas passarelas [...] Para que prêmios? Para que
classificações? O mais gratificante é sentir que se está contribuindo
para a diversão do povo (A TARDE, 07/1/1982).
A linguagem publicitária que começava a se desdobrar na dinâmica
carnavalesca, a produção e intenção de determinados tipos de fotografias, o
enquadramento feito pelas câmeras de TV etc., aquilo tudo apontava para a
produção do espetáculo, para a construção do que chamamos aqui de ‘’estrutura
fâmica’’. Raymond Williams afirmou em seu livro Marxismo e Literatura que
O verdadeiro elemento significativo da linguagem deve, desde o
início, ter uma capacidade diferente: tornar-se um signo interior, parte
de uma consciência ativa e prática. Assim, além de sua existência
social e material entre pessoas reais, o signo é também parte de uma
consciência constituída verbalmente, que permite aos indivíduos
utilizá-lo por iniciativa própria, seja em atos de comunicação social,
seja em práticas que, não sendo manifestamente sociais, podem ser
interpretadas como pessoais ou privadas (WILLIAMS, 1979, p. 46).
Buscando perceber os mecanismos — filmes-documentários, TV, rádio etc. —
de produção e difusão de signos utilizados pela racionalidade industrial do último
quartel do século XX, relacionando-os com os signos produzidos pelos sujeitos num
processo histórico mais amplo, tentou-se apreender a relação que a cultura popular
carnavalesca, e com ela a noção de tradição, manteve com aqueles tipos
específicos de linguagens.
Não é demais lembrar que o Carnaval de Salvador continuou sendo, naquele
período, uma forma importante de fazer festa; mas também passou a ser uma forma
109
importante de fazer lucros. Observem o que Fernando Bulhosa, um carnavalesco
conhecido na década de 1990, argumenta:
O Carnaval chegou mas a prefeitura não sacou. [...] Em Salvador,
os publicitários, que se dizem os melhores do mundo, não enxergam
que a melhor mídia é um trio elétrico visto por mais de um milhão de
pessoas, sem contar com as fotografias divulgadas nos jornais. E o
que acontece é todo mundo usando tais imagens gratuitamente, o
ano todo (A TARDE, 21/1/1990).
A declaração do músico baiano Armadinho, filho de um dos fundadores do
trio elétrico, indica a base — a tirania do dinheiro— sobre a qual o Carnaval de
Salvador veio — vem— sendo construído:
[...] Tem que ter uma organização, o Carnaval poderia ser pensado
mais democraticamente, levando em consideração os trios
tradicionais e os blocos afro. Pensar como um todo, senão a Bahia
não vai ter mais manifestações culturais em seu Carnaval. Elas não
podem deixar de existir em função da manipulação, do dinheiro (A
TARDE, 30/1/2007).
Tendo estas questões em mente, isto é, a dinâmica do ‘’Carnavalespetáculo’’, a ‘’estrutura fâmica’’ como condição deste, a racionalidade industrial
empregada no Carnaval etc., voltemos para a reflexão sobre os signos, sobre suas
possibilidades e limites. Vejamos, mais uma vez, o que Raymond Williams tem a nos
dizer:
O que se tem realmente que dizer é que o signo é social, mas que
em sua qualidade mesma como signo é capaz tanto de ser
internalizado – realmente, tem de ser internalizado, para que seja um
signo de relação comunicativa entre pessoas reais, usando
inicialmente apenas seus próprios poderes físicos para expressá-la –
como de ser permanentemente disponível, de maneiras sociais e
materiais, na comunicação manifesta (WILLIAMS, 1979, p. 46).
Williams diz que ‘’caracteristicamente ele — o signo— não tem, como um
sinal, um significado fixo, determinado, invariável. Deve ter um núcleo efetivo de
significado, mas na prática tem uma gama variável, correspondendo à interminável
variedade de situações dentro das quais é ativamente usado’’ (WILLIAMS, 1979, p.
45).
Tomando as reflexões do autor, nota-se que a festa, bem como os signos
sócio-historicamente criados em torno dela, deixou de se situar naquilo que outrora
foram as necessidades criativas dos sujeitos e de outras variáveis do gênero. A
incorporação dos signos, ao lado das diversas possibilidades sociais que estes
trazem, passava a depender também da maneira como o Carnaval começou a se
110
organizar enquanto negócio, e dos diversos tipos de linguagens que começaram a
mediá-lo.
Os tipos de linguagens que começaram a mediar o Carnaval naquele
momento têm que ver, entre outras coisas, com os códigos específicos utilizados
pelo aparelho expressivo da produção publicitária. As palavras de ordem do
espetáculo, as palavras que começaram a traduzir as características do mundo da
fama, as palavras que passaram a organizar e dar sentido às relações de compra e
venda, enfim, tudo isto fez parte da reorganização dos significados disponíveis da
festa.
E aqui estamos falando do significado. Como bem salientou Raymond
Williams, o signo tem um núcleo efetivo de significado, mas na prática tem uma
gama variável, correspondendo à interminável variedade de situações dentro das
quais é ativamente usado.
Digo que uma significação está adquirida, e disponível daí por diante, quando
se consegue fazê-la habitar num aparelho de palavra que não lhe estava
inicialmente destinado. Bem entendido, os elementos desse aparelho expressivo
não a continham realmente. Foi-me preciso recentrá-los e descentrá-los para fazêlos significar aquilo a que eu visava (PONTY, 1984, p. 135).
Em nossa perspectiva, é pelo fato de os signos poderem ser utilizados pelos
diversos sujeitos de modos também diversos, é justamente por isso, que chamamos
a atenção para o choque que houve — e há— entre uma determinada forma de
difusão, distorção e reprodução de certos signos — estas ligadas a um bloco
histórico de poder — e sua incorporação a partir de um material — uma memória, por
assim dizer— sociohistoricamente construído e ‘’legítimo’’.
Nesse passo, dado o processo no qual nos debruçamos, não é desnecessário
fazermos reflexões acerca das imagens, do papel desempenhado por elas enquanto
produtoras de signos, de linguagens: como são produzidas as imagens
carnavalescas da TV?
Que tipo de poder possui a imagem em movimento? Que discurso tais
imagens produzem sobre a realidade? O Carnaval da TV é o mesmo Carnaval da
‘’rua’’? Como a linguagem do audiovisual funciona em termos técnicos? De que
maneira este tipo de linguagem afeta uma compreensão satisfatória das
transformações históricas pelas quais passou — e ainda passa— o Carnaval de
Salvador em diversos níveis?
111
O Carnaval da TV, com seu recorte específico do real, gerou alguns
rebatimentos interessantes nos músicos da cidade. Alguns rebatimentos já foram
mencionados em trechos anteriores, ou melhor, foram destacados pelos próprios
músicos entrevistados.
O desejo ávido, apresentado por alguns músicos que trabalhavam no
Carnaval, de tocar e aparecer nas câmeras de uma determinada empresa do ramo
da comunicação, a qualquer custo, inclusive material, foi uma das conseqüências
oriundas daquele Carnaval-espetáculo que se apresentava.
Aparecer na tela da Rede Globo de televisão em cima de um trio elétrico, na
tela do canal Bandeirantes, empresas que começaram a dar visibilidade ao Carnaval
da Bahia, era mais importante do que ‘’exigir’’ um bom cachê para tocar no
Carnaval. Pois os músicos, segundo os valores que se formavam em torno da festa,
‘’não poderiam perder a oportunidade de aparecer em lentes, em ‘’olhares’’ que
somente os famosos e bem sucedidos apareciam’’.
Não temos a pretensão de responder a todas as reflexões levantadas acerca
das imagens, bem como do Carnaval da TV. Elas representam algumas das nossas
preocupações acerca da produção e recepção do audiovisual, da sua linguagem
específica enquanto registro do real. Entretanto, algumas observações sobre as
imagens são válidas, ainda que sucintamente.
O historiador Marcos Napolitano diz que ‘’a força das imagens, mesmo
quando puramente ficcionais, tem a capacidade de criar uma ‘’realidade’’ em si
mesma, ainda que limitada ao mundo da ficção, da fábula encenada e filmada’’
(NAPOLITANO, 2008, p. 237).
Em relação à linguagem da TV, ele destaca o que Francesco Casetti e Roger
Odin sugeriram para um mapeamento do impacto e também da recepção social
daquela. Trata-se de dois conceitos: paleo e neo-televisão. O historiador diz que
‘’[...] a neo-televisão, característica da TV pós-1970, é definida por uma
programação conduzida por um processo de interatividade cada vez mais sofisticado
e não por um pacto pedagógico-comunicacional’’ (CASETTI; ODIN apud,
NAPOLITANO 2008, p. 251).
Aquela TV pós-1970 traz uma ‘’estrutura de programas que tende a diluir a
fronteira de gêneros de programas direcionados a públicos específicos, substituindo
a escolha — eixo paradigmático— pelo fluxo contínuo de programação — eixo
sintagmático—’’ (CASETTI; ODIN apud, NAPOLITANO 2008, p. 251). Há um
112
‘’convite à vibração emocional e, principalmente, sensorial e ao convívio virtual com
as celebridades, ambientes e personagens de TV’’ [...] (CASETTI; ODIN apud,
NAPOLITANO 2008, p. 251).
A tendência à espetacularização, à exposição do Carnaval como peça
publicitária, à cristalização de certos aspectos do real, ao mesmo tempo em que
fragmenta este mesmo real, enfim, todas estas questões, de um modo ou de outro,
contribuem para a existência de uma dificuldade na apreensão da realidade através
da TV. Sobre esta questão, Napolitano diz que
A TV favorece e amplifica a experiência do tempo, mas não a
consciência do tempo. Nela, a ’atualidade’, a exigência sensorial de
uma co-ação — agir junto— ganha maior dimensão, mas essa
mesma ’atualidade’ é constantemente desvalorizada pelo ritmo
alucinante da sucessão das transmissões televisuais, volatizando a
experiência histórica (NAPOLITANO, 2008, p. 252).
Mais especificamente, o Carnaval do tempo rápido, das propagandas que
sugerem um leque de objetos consumíveis sem os quais a festa carnavalesca não
tem sentido, esse fenômeno é específico da nossa época, do capitalismo moderno
(LUKÁCS, 2003, p. 194).
Há uma divisão de trabalho complexa na dinâmica da festa; uma
especialização constante do trabalho dos agentes históricos produtores daquele
mundo social. Por conta dessa complexa divisão do trabalho que o Carnaval da
Bahia foi adquirindo, nesse modo de produzir a vida, ‘’os produtos do trabalho se
tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou
serem coisas sociais [...], a relação social determinada dos próprios homens assume
uma relação entre coisas’’ (LUKÁCS, 2003, p. 199).
Essas são algumas considerações que destacamos. O Carnaval é um terreno
das possibilidades — transformação do mundo, anúncio de outras relações sociais—
e ao mesmo tempo das permanências históricas. Mas esses elementos encontram—
se hoje ao lado das implicações do modo de vida capitalista.
O afastamento da festa em relação ao organismo coletivo, a perda de
‘’controle’’ da festa pela maior parte dos agentes produtores da mesma, a
intensificação da noção de exploração em diversos níveis do Carnaval, enfim, tudo
isto indicava o surgimento de formas novas de relações de produção daquele mundo
social, bem como de um conteúdo — intenções, valores— igualmente novo.
113
E o ‘’novo sentido’’ que tomava o período momesco, considerando uma
escala de análise ampliada, condicionou e transformou os diversos grupos sociais
construtores da festa. E os músicos — agora ajustando a nossa escala de análise
para esse grupo social específico — não ficaram à margem daquilo. Na próxima
seção nos esforçaremos em refletir, entre outras coisas, sobre mais um dado que se
apresentou também como condição da ‘’festa-negócio’’: a divisão do trabalho, a idéia
de profissionalização etc.
3.2 Quando os músicos se profissionalizam
Houve uma tendência, da parte de muitos autores que se debruçaram sobre o
Carnaval de Salvador, a considerar a profissionalização da festa quando da chegada
e consolidação de um pequeno número de agentes privados. O professor Milton
Araújo Moura, expõe em seu trabalho Carnaval e Baianidade: Arestas e Curvas na
Coreografia de Identidades do Carnaval de Salvador, que ‘’[...] uma festa destas
proporções não pode acontecer sem investimentos de vulto. Não se improvisa um
Carnaval. Seja um investimento público, seja privado, é preciso que uma instituição
ou dezenas delas tomem a realização da grande festa’’ (MOURA, 2001, p. 64-65).
Milton Araújo Moura diz ainda que ‘’tal realização supõe a especialização de
tarefas de um sem número de pessoas, ou seja, a profissionalização da festa.
Considerando a sofisticação de algumas destas festas, temos que alguns
desempenhos são necessariamente sofisticados’’ (MOURA, 2001, p. 64-65).
A idéia de especialização, profissionalização, enfim, seja lá o nome que se
queira dar à organização das relações de produção e de troca, precisa ser inserida e
problematizada a partir da noção de divisão do trabalho. Ninguém sairá prejudicado
se revisitarmos algumas reflexões postas por Karl Marx acerca da divisão do
trabalho na sociedade capitalista. Em nossa perspectiva, os músicos não se especializaram, ou vieram a se
profissionalizar em sua atividade por conta dos altos investimentos exigidos pelo
Carnaval de Salvador. Se pegarmos esta linha de raciocínio, acabaríamos tomando
os condicionamentos econômicos e morais existentes na forma atual de organização
do trabalho no Carnaval como naturais.
114
Em certa medida, trabalhar com esta noção de profissionalização sem
problematizá-la, qualquer que seja o ramo da atividade desenvolvida, induz-nos a
pensar o efeito da divisão do trabalho — de uma dada época histórica— como sendo
a sua causa. Utilizaremos uma afirmação de Marx, em seu livro Miséria da Filosofia:
Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon, para situar o nosso raciocínio.
Comentando as interpretações feitas por Proudhon do pensamento e obra de
Adam Smith, justamente na problemática da divisão do trabalho, Marx diz que
Adam Smith viu mais longe do que pensa o Sr. Proudhon. Ele viu
muito bem que, ‘na realidade a diferença dos talentos naturais entre
os indivíduos é bem menor do que supomos. Estas disposições tão
diferentes, que parecem distinguir os homens das diversas
profissões, quando chegam à idade madura, não são tanto a causa
mas o efeito da divisão do trabalho’(MARX, 2003, p. 114).
O que começou a haver não foi exatamente uma profissionalização dos
músicos — não a profissionalização como uma categoria extemporânea — por conta
das feições adquiridas pelo Carnaval de Salvador, isto é, a festa-espetáculo. O que
o novo ‘’formato’’ carnavalesco gerou foi uma reorganização do trabalho musical, ao
mesmo tempo em que demarcou limites — econômicos e morais— às diversas
formas de trabalho que já existiam na festa.
Às velhas formas do trabalho musical no Carnaval, juntaram-se as formas
novas, criadas pela exigência daquele arquétipo que se desdobrava. As novas
formas de trabalho foram necessárias à nova lógica que se apropriava do Carnaval:
a produção em série, em larga escala para o consumo.
O que estamos querendo dizer é que, no caso dos músicos, havia indivíduos
que executavam aquela atividade no Carnaval da Bahia, a atividade musical.
Todavia, aqueles indivíduos não eram apenas músicos, ou viviam integralmente de
música na divisão do trabalho anterior.
Eles exerciam outras atividades também. O trabalho organiza-se, divide-se
diferentemente conforme os instrumentos de que se dispõe. Um Carnaval sem
gravadoras, sem blocos com cordas, sem programas de TV é completamente
diferente do Carnaval que possui estes instrumentos.
Assim, a atividade musical — a divisão do trabalho no seio da categoria dos
músicos—, já havia no Carnaval. Mesmo sendo a afirmação que fazemos uma
115
obviedade, é necessário que façamos. Entretanto, há que se destacar que ‘’a
extensão do mercado dá à divisão do trabalho nas diversas épocas uma fisionomia’’
(MARX, 2003, p. 113).
O que passou a existir com o arquétipo do Carnaval-negócio foi uma
redistribuição do trabalho, ou ainda, uma nova distribuição do trabalho. A atividade
musical existente no Carnaval de Salvador de 1950, por exemplo, não estava
inserida nas regras da concorrência. Os músicos foram uma condição para a própria
existência daquele modelo de Carnaval-negócio.
Para haver produção de mercadoria é necessário que exista uma divisão do
trabalho, que exista trabalho mutuamente independentes, executados isoladamente
uns dos outros. Um exemplo objetivo, entre outros, da nova divisão do trabalho que
o Carnaval da Bahia ganhou é a figura do cantor de trio elétrico, inexistente até a
primeira metade da década de 1970.
Houve, em pouco tempo, um processo de ‘’diferenciação’’ entre os cantores e
demais membros de um grupo musical carnavalesco. Passou a haver um abismo
econômico, social, político e cultural entre um cantor do Carnaval, com seu status de
‘’famoso’’, e um músico-acompanhante. Retomamos aqui uma das tônicas deste
trabalho, pois já afirmamos isto algumas vezes.
Mas é necessária a insistência. Aquela diferenciação excessiva da figura do
cantor, em níveis diversos da vida social, foi o efeito da nova divisão do trabalho
empregada no Carnaval da Bahia. Desnecessário dizer que aquela divisão de
trabalho se assentava na racionalidade industrial que passou a operar na festa.
Estas vicissitudes pela quais passou —e ainda passa— o trabalho musical no
Carnaval não devem ser tomadas como naturais, ou como já dadas desde o início
do mundo. Se esse processo existe em todas as profissões conhecidas, ele é
oriundo do modelo de divisão do trabalho existente nas sociedades capitalistas. O
historiador trabalha exaustivamente em cima da temporalidade, ainda que esta
categoria chamada tempo seja controvertida.
Se percebermos mudanças, quaisquer que sejam, ocorridas no tempo, em
uma dada sociedade, devemos tentar apontar o seu processo, e não simplesmente
tomar situações e circunstâncias específicas como já dadas, como sendo naturais
‘’porque sempre existiram’’.
116
O que nos impressiona é justamente o fato de alguns estudiosos do Carnaval
tomarem as contradições existentes nas diversas profissões que perpassam a festa,
dentre outras atividades existentes em nossa sociedade, como naturais, como parte
de um processo, como uma espécie de etapa a ser cumprida: primeiro vem a
‘’ralação’’, depois um relativo período de dignidade alcançada com o trabalho
desenvolvido, e, por fim, a ‘’prosperidade sonhada’’, se o indivíduo tiver um pouco de
sorte.
Vejamos o que Ieda Balogh, citada por Milton Araújo Moura, diz sobre os
músicos da axé-music:
Ieda Balogh, em Operários da Alegria: Motivações, Circunstâncias,
êxitos e Dificuldades na Carreira do Profissional da Axé Music em
Salvador, Bahia, em 1999, situa o trabalho do artista de axé music
como contínuo à sua existência cotidiana e à sua história desde a
infância. É todo o mundo do artista que se profissionaliza, enfim,
passando pelas vicissitudes de qualquer outra profissão. Analisando
a situação do músico enquanto trabalhador, podemos perceber que,
em qualquer ramo de atividade, ocorre o processo de seleção,
apartando os que se apresentam ou são tidos como menos
qualificados. No cenário da axé music, contudo, como em muitos
outros, a seleção não se baseia somente na qualificação; prepondera
o fator da indicação, as relações de apadrinhamento, de modo que
os músicos precisam estabelecer relações de “amizade” inclusive
com agentes da imprensa, para conseguir concorrer às
oportunidades da profissão. Na ausência deste esteio, o profissional
está submetido a uma terrível insegurança e termina ralando e
esperando seu dia, sempre de prontidão: um dia, quem sabe, sua
sorte pode chegar[...] (MOURA, 2001, p.180)
Para não perdermos o fio condutor da nossa perspectiva, e, outrossim, a título
de comparação entre as idéias postas acima e as idéias apresentadas por Marx
sobre a problemática da divisão do trabalho, vejamos esta passagem do autor, na
qual ele diz que
De início, um carregador difere menos de um filósofo que um mastim
de um galgo. Foi a divisão do trabalho que abriu um abismo entre um
e outro. Mas isso não impede que o Sr. Proudhon afirme, noutro
lugar, que Adam Smith nem sequer suspeita dos inconvenientes que
prova a divisão do trabalho. É isso que o faz também dizer que J. B.
Say foi o primeiro a reconhecer ‘que na divisão do trabalho a mesma
causa que produz o bem origina o mal’ (MARX, 2003, p. 114).
A citação acima foi apenas para reiterar que as diferenças internas que
começaram a se desenrolar no seio da categoria musical; as dificuldades e
contradições materiais e simbólicas nas quais a maior parte dos músicos foi lançada,
117
condicionada; os valores que começaram a se imiscuir no Carnaval da Bahia, tudo
isto, teve – e tem – relação com a nova divisão do trabalho que se desenhava.
O que fica evidente é uma tomada de posição, de estudiosos do Carnaval,
pouco problematizadora ante a divisão do trabalho capitalista. Há uma ideologia que
permeia a noção de profissionalização que é bem simples e redutora da
complexidade que envolve o trabalho nas sociedades capitalistas: o empresariado
chegou com o capital no Carnaval de Salvador, daí então, surge como num passe
de mágica, a profissionalização dos grupos sociais envolvidos na festa.
É sobre as conseqüências daquela nova divisão do trabalho que
discorreremos na próxima seção, dentre outras questões. É o surgimento — e os
seus desdobramentos— do axé- music. Foi esse gênero musical que consolidou a
indústria fonográfica local. Com ele, há a expansão do Carnaval de Salvador para
todo o território nacional. A gravação de discos, e o surgimento de várias bandas
ligadas ao gênero provocaram a entrada de muitos músicos nos estúdios de
gravação. Veremos estas ‘’situações’’ na seção que sucede.
3.3 A consolidação de uma indústria fonográfica: novas possibilidades para os
músicos?
Antes de adentramos em alguns pontos que consideramos fundamentais a
esta seção, faremos um ‘’sobrevôo’’ pela axé-music. Assim, o nosso objetivo com tal
empreitada é tentar situar melhor as implicações provocadas por aquele fenômeno.
É interessante, dada a rápida e significativa expansão do Carnaval de Salvador a
partir da axé-music, apresentar um quadro no qual consigamos indicar as diversas
implicações daquele fenômeno.
Desse modo, estas implicações aparecem, nas primeiras linhas desta seção,
em níveis diversos do espaço carnavalesco. As questões específicas, derivadas
daquele fenômeno, as quais destacamos e relacionamos aos músicos, aparecem
mais adiante.
O rápido desenvolvimento e expansão da axé-music na Bahia nos fez olhar
para a noção de tempo de uma forma diferente. As transformações ocorridas no
118
Carnaval por conta daquele gênero15 nos fazem medir em décadas aquelas
mudanças.
Enquanto a evolução, transformação e expansão de alguns gêneros musicais
ocorrem em séculos, quando vistos sob uma determinada perspectiva histórica, o
fenômeno axé-music intensificou, apresentou e provocou mudanças significativas no
Carnaval que podem ser medidas, repita-se, em décadas. O termo axé-music surgiu
em 1987. A antropóloga Goli Guerreiro diz que ‘’a expressão axé-music aparece
pela primeira vez na imprensa baiana em 1987, na coluna do jornalista Hagamenon
Brito, um crítico que cunhou o termo para designar o novo estilo’’ (GUERREIRO,
2000, p. 137).
Ele conta que ‘’os roqueiros baianos chamavam este tipo de música de axé e
se referiam aos músicos como ‘axezeiros’, era uma coisa pejorativa mesmo. Eu
resolvi chamar de axé-music e a imprensa toda começou a usar’’ (GUERREIRO,
2000, p. 137).
Pode-se dizer que aquele gênero foi o responsável pela consolidação das
bandas de trio. Foi ele quem possibilitou a ascensão significativa da figura do cantor
e cantora no Carnaval da Bahia. Aquele gênero trouxe à luz novas demandas. As
bandas de axé de blocos de trio passaram a vender milhares de discos. De modo
que, no final dos anos 80, os discos das bandas de axé-music chegaram facilmente
à marca de 400 mil cópias e conseguiram farta execução nas FMs brasileiras,
através de um poderoso marketing (GUERREIRO, 2000, p. 134).
Por trás do rótulo comercial axé-music havia uma infinidade de linguagens
musicais. O rótulo utilizado pela imprensa — local e, sobretudo, nacional— tendia a
homogeneizar linguagens musicais distintas, ao mesmo tempo em que criava uma
sensação de que axé era tudo — miscelânea— o que se produzia, em termos
musicais, na Bahia.
Na realidade, o samba-reggae, o frevo, a estética da música pop mundial, o
rock n’ roll etc., todos estes ‘’ingredientes’’ juntos, que há muito faziam parte da
15
Não nos meteremos na ‘’espinhosa’’ polêmica que há entre alguns estudiosos da axé-music no
sentido de considerar ou não a axé-music um gênero musical. Não é o objetivo deste trabalho.
Salientamos que a expressão axé-music aparece aqui ora como gênero, ora como fenômeno, ora
como estética musical etc.
119
produção musical baiana no Carnaval, eram chamados indiscriminadamente de axémusic por grande parte dos organismos midiáticos.
Mas o fato é que aquele fenômeno gerou uma base sólida sobre a qual um
grande supermercado musical foi se formando. Segundo Goli Guerreiro, ‘’a
ampliação do mercado é uma das mudanças mais importantes do meio musical de
Salvador nos anos 90, pois implica o fim da sazonalidade do consumo e a
consolidação da axé-music como estilo no mercado fonográfico local e nacional’’
(GUERREIRO, 2000, p. 153).
A autora afirma ainda que ‘’o processo foi favorecido pela mestiçagem
musical, que se cristalizou ao longo da década. Os blocos carnavalescos passam a
estender as atividades de suas respectivas bandas e se transformam em produtoras
com sedes próprias [...]’’ (GUERREIRO, 2000, p. 153).
A axé-music veio — e estimulou sobremaneira— no bojo das transformações
acentuadas do Carnaval na década de 1990. Além de surgir como um fenômeno
comercial local importante, ainda no início do seu desenvolvimento em termos
musicais, se beneficiou em larga medida das estratégias do poder público de venda
dos espaços públicos para agentes privados fazerem publicidade. Mencionamos
algumas daquelas estratégias utilizadas pelo poder público nos capítulos anteriores.
Em termos administrativos, infra-estruturais e técnicos, houve uma relativa
organização da festa, ao mesmo tempo em que o evento se consolidava em torno
das políticas ligadas ao movimento turístico da cidade. De todo modo, o cenário
carnavalesco a partir de 1993 ganhou novos ingredientes, completamente favoráveis
ao entretenimento comercial. Paulo Miguez de Oliveira argumenta que ‘’[...] é no
Carnaval de 1994, e tendo como base um projeto de comercialização desenvolvido
através da Casa do Carnaval, que a administração municipal vai obter resultados
expressivos com a venda de espaços de publicidade’’ (COSTA apud OLIVEIRA,
1996, p. 157). O autor argumenta que foram ‘’adquiridas, pelo Banco do Brasil, Brahma e
Bahiatursa, cotas de patrocínio no valor de, respectivamente, US$ 1,25 milhão, US$
400 mil e US$ 750 mil, no conjunto, responsáveis por mais de 90% dos US$ 2.513
120
milhões arrecadados pela Prefeitura com o Carnaval’’ (COSTA apud OLIVEIRA,
1996, p. 157).
A segunda metade da década de 1990, período áureo da axé-music, trouxe
consigo o camarote. Aquele tipo de estabelecimento mostrou rapidamente o seu
potencial. Empresas de ramos diversos começaram a investir nos camarotes. Os
cantores e cantoras famosos do Carnaval adquiriram também seus camarotes.
Espaço da classe média abastada por excelência, os camarotes caíram no
gosto do seu público alvo. Novamente, Paulo Miguez de Oliveira argumenta que
‘’além do aperfeiçoamento das melhorias técnico-operacionais e organizativas
introduzidas no ano anterior, o Carnaval de 1995 vai contar com algumas outras
novidades, destacando-se a instalação de camarotes na Barra [...]’’(OLIVEIRA,
1996, p. 158).
Mais uma vez o autor diz que é ‘’interessante notar que a montagem e
exploração dos camarotes na Barra vai se dar, de forma pioneira, num regime de
terceirização, ficando a iniciativa privada responsável pela instalação dos
equipamentos e sua exploração comercial [...]’’ (OLIVEIRA, 1996, p. 159).
Aquela situação ‘’nova’’, pelo menos no que diz respeito a um conjunto de
ações e objetos até então inexpressivo no Carnaval, veio acompanhada da explosão
comercial de diversas bandas que se autodenominavam bandas de axé. Aquelas
bandas que surgiram no Carnaval de Salvador vieram a estabelecer uma hegemonia
na festa. Muitos daqueles grupos concentraram — em quase todas as esferas—
sobremaneira o Carnaval em ‘’suas mãos’’, tomaram as rédeas do período
momesco.
Aquele domínio tornava-se evidente. Prestemos a devida atenção à
argumentação de Milton Araújo Moura sobre aquele período:
O cenário é então dominado, na mídia e na cena da rua, pelas
bandas Chiclete com Banana, Asa de Águia, Mel, Cheiro de Amor e
Beijo. Despontam sucessos individuais: Daniela Mercury, com uma
coreografia vibrante e um repertório eclético, alcançando êxito na sua
incursão na MPB; Ricardo Chaves, fazendo o gênero do mauricinho
de classe média; Márcia Freyre, identificada como o furacão do
Cheiro; o guitarrista e vocal Durval Lelys, do Asa, com um humor
escrachado; o baixista e vocal Bel Marques, considerado a cara do
Chiclete. Anos depois, Netinho, destacando-se da banda Beijo,
121
constrói uma carreira solo e consagra o estilo aeróbico; desligandose do Eva, Ivete Sangalo investe num repertório mais plural
(MOURA, 2001, p.227).
As bandas de axé-music se apresentaram, inicialmente, como uma espécie
de ‘’força motriz’’ do Carnaval de Salvador, alargando e consolidando o espaço do
mundo dos negócios carnavalescos. No final da década de 1990, as bandas
famosas de axé, bem como os seus respectivos patrocinadores — stes como uma
força econômica extremamente superior a tudo e a todos que compunham o
Carnaval—, reiteram o papel de condutores principais do evento.
As bandas famosas criaram as suas produtoras. Aquelas instituições
passaram a recrutar bandas locais que apresentavam, em alguma medida, ‘’talento’’
para atuar no circuito axé. Desse modo, se alguma banda de axé desconhecida do
grande público começasse a apresentar um número relativo de pagantes em seus
shows, esta banda certamente seria uma forte candidata a se tornar um produto
rentável de alguma produtora. Produtoras, não raro, de propriedade de cantores e
cantoras famosos do Carnaval.
Vejamos uma vez mais a descrição feita por Milton Araújo Moura daquele
‘’ápice’’ a que alcançou rapidamente o cenário da axé-music:
É no início da década que surge, em 2001, em cena, como
articulador de clientelas, a figura do comissário de bloco [...] As
bandas e blocos de maior poder empresarial estabelecem conexões
com fã-clubes em diversos pontos do Brasil, como forma de garantir
a presença de associados. Netinho conquista Aracaju, onde chega a
gravar ao vivo; Ricardo Chaves tem presença sempre aclamada em
Fortaleza; o Chiclete com Banana coleciona fã-clubes em todo o
Brasil, que se fazem presentes anualmente no Camaleão. Alguns
pacotes turísticos contemplam não somente a hospedagem e o
translado, como também o abadá... Esse termo, que nomeia a túnica
tradicional e distintiva dos iorubás e de várias outras etnias da África
Ocidental, vem designar agora, de preferência, a blusa esportiva,
quase sempre de tecido sintético, que quase todos os blocos passam
a usar no cortejo, inclusive o Araketu, o Muzenza e o Olodum
(MOURA, 2001, p. 228)
Este ‘’sobrevôo’’ realizado sobre a axé-music, ainda que limitado e breve, foi
com o objetivo de tentar apresentar, de alguma maneira, o nível no qual se
encontrava o ‘’termômetro’’ daquele gênero ao longo da década de 1990. Novos
postos de trabalho que foram gerados com aquele fenômeno; redefinição de formas
de trabalho que existiam há muito no Carnaval; tipos novos de eventos
122
especificamente ligados à axé-music, enfim, tudo aquilo acabou por gerar situações
igualmente novas para os músicos da cidade.
E algumas das nossas observações, alguns dos nossos argumentos e
afirmações feitos nesta seção sobre aquele fenômeno, vem acompanhado do coro
de outros pesquisadores, de áreas diversas do saber, que não coincidentemente vai
ao encontro de nossas análises. Uma vez mais, para reiterar a nossa afirmação no
que diz respeito à hegemonia adquirida por aqueles grupos musicais no Carnaval de
Salvador, citamos a observação do geógrafo Clímaco Dias:
Os grupos organizados principalmente em torno da axé music
assumem a hegemonia na produção do espaço carnavalesco,
dispondo da quase totalidade da cobertura da televisão e do rádio,
tendo músicas tocadas nas rádios durante todo ano, e os seus
produtores e artistas a cada ano criando novas “danças”, que eram,
na verdade, peças de Marketing que buscavam, como buscam até
hoje, “a novidade” como um fim, sendo que os grupos que não
aderem a essa “cultura novidadeira”, não conseguem projeção por
serem considerados ultrapassados (DIAS, 2002, p. 129-130).
Abordaremos na seção que sucede, entre outras coisas, questões sobre a
vivência, sobre as experiências dos músicos no âmbito de trabalho a partir da axémusic. Refletiremos, com eles, sobre o significado daquele fenômeno para os
estúdios de gravação. Num diálogo com os músicos, discutiremos como
funcionavam as relações de trabalho nas gravadoras.
3.4 O trabalho dos músicos a partir da axé-music
A axé-music foi importante na vida de muitos músicos que acompanharam
toda a trajetória daquele movimento musical. Aquele produto proporcionou viagens
nacionais e internacionais àqueles profissionais; ganhos materiais significativos para
alguns; fama e sucesso. O fenômeno axé foi responsável pela entrada de muitos
musicistas num estúdio de gravação.
O crescimento vertiginoso do consumo dos discos de axé em fins dos anos
oitenta e início dos anos noventa revelou a força, o grande potencial daquela
indústria que estava se desenvolvendo. O músico Gerson Silva acompanhou grande
parte do processo que transcorreu. Músico habilidoso, gravou e produziu muitos
123
discos do gênero. Chegou a ganhar troféu — troféu Caymmi— de melhor músico de
gravação.
Em nosso diálogo, ao perguntarmos para ele sobre a entrada de muitos
músicos nos estúdios de gravação, média de cachê pago a um músico pelas
gravações, entre outras coisas, ele nos deu o seguinte relato:
Eu acho que a axé-music é responsável por muitos tipos de
formação de trabalhos diferentes, isso dentro da indústria... O que se
falava na época era que a axé-music eram músicas compostas para
os orixás, músicas populares, isso era o axé... Ninguém sabe mais o
que é isso. O que se fez na era Luiz Caldas foi se profissionalizar o
mercado... O mercado cresceu muito, cresceu mais do que a música,
hoje eu vejo claramente isso... Acho que a axé-music teve essa
notoriedade pelo fato de possuir músicos mais bem preparados para
os estúdios... Então não eram pessoas despreparadas... No início
era, eram pessoas que tocavam na rua, daí faziam uma banda... Mas
depois que o movimento cultural, mais ou menos em 84 e 85,
começou a ser mais forte, começou a tomar o país, aí a necessidade
de ter músicos mais bem preparados.
Este relato põe em relevo muitas questões que perpassam a — tão
discutida— noção de ‘’popular’’. Os elementos que constituíram aquilo que veio a ser
chamado de axé-music eram elementos, formas de experiências culturais, oriundas
também dos negros baianos. De fato, houve uma mistura com aquela linguagem da
indústria da música pop norte-americana.
O que ‘’soou’’ como uma catástrofe para alguns puristas da classe média
baiana. A linguagem musical negra, baiana, havia — assim pensavam alguns
setores da classe média— se ‘’imiscuído’’ na estética, tão venerada, da música pop
produzida no hemisfério norte.
Há uma questão que nos incomoda e que precisa ser problematizada. A axémusic pode ser, na Bahia, em sua origem e por seu caráter, música popular. E a
célula rítmica dos tambores africanos foi a base sobre a qual se assentaram outras
linguagens musicais.16 O legado rítmico dos tambores africanos na Bahia é algo
presente no organismo coletivo.
Tanto sim que o estado é um grande produtor — exportador— de musicistas
que se dedicam ao mundo da percussão. A célula rítmica africana é popular, a
percussão é popular, mas nem por isso pode ser considerada uma arte de
amadores. Tampouco podemos afirmar que o samba-reggae — um dos principais
16
Para maiores informações sobre a origem da axé-music, entre outras coisas sobre o gênero,
conferir GUERREIRO, 2000.
124
núcleos formadores do axé-music— foi um estilo musical que se profissionalizou
quando da chegada dos instrumentos harmônicos — baixo, guitarra, teclado etc.
Alguns estudiosos afirmam que aquela junção do samba-reggae com os
instrumentos harmônicos gerou a música axé. De todo modo, o axé foi considerado,
por muitos, em seu início, uma arte de amadores. O estilo passou a ser visto como
sendo uma arte de ‘’profissionais’’ quando se tornou matéria-prima para a indústria
musical local. Muitos comungam desta assertiva, alguns músicos inclusive.
Não vemos a questão por este ângulo. Se tomarmos como exemplo os
elementos percussivos que envolvem o estilo axé, desde o seu início, notaremos o
alto grau de complexidade que havia na execução rítmica, ainda que a execução
fosse de um ‘’amador’’.
A expressão ‘’profissionais primitivos’’ — primitivos no sentido de gênese,
primeiro— talvez coubesse bem. A história da música está cheia desses
‘’profissionais primitivos’’. A arte dos trovadores; artistas itinerantes; artistas
virtualmente especializados como certos funcionários religiosos; os presos negros
cujo trabalho consistia em ‘’puxar o canto’’ para os que realizavam trabalhos
forçados (HOBSBAWM, 2004, p. 176).
Contudo, há um ingrediente fundamental — talvez ele tenha induzido muitos a
cometerem afirmações apressadas —, que é o seguinte: o axé-music é um estilo
musical urbano. E podemos dizer, em certa medida, que foi uma música de pobres
urbanos, pelo menos inicialmente.
Os músicos negros percussionistas — não de todo, mas uma parte
significativa— viviam em condições econômicas bastante limitadas. Inclusive alguns
tiveram, com o passar dos anos, uma ascensão material astronômica dentro da
indústria, como é o caso do percussionista Carlinhos Brown.
A cidade não só fornece o espaço para o profissionalismo, ela o exige. Seu
estilo de vida é mais especializado, menos tradicional do que o do campo, onde as
artes são geralmente ligadas a eventos e ocasiões específicas da vida. As
necessidades urbanas do entretenimento, por tenderem a ser mais especializadas,
são muito maiores do que as do campo.
Assim, os músicos urbanos, independente do fato de saberem ou não tocar
algum instrumento, tendem a serem vistos como profissionais a partir da sua entrada
no âmbito da Indústria cultural, a partir dos padrões de exigência específicos desta
indústria.
125
A partir das necessidades do entretenimento comercial, muitos músicos
especializados começaram a compor o quadro de mão-de-obra para a indústria do
axé.
Mas isto ocorreu quando o material cultural que estava disponível foi
considerado como vendável pelo mercado musical nascente.
Como a indústria é parasitária, ela não pode prover o seu próprio material. Ela
só consegue processar o material disponível. Saliente-se que ela não tem quaisquer
preconceitos. O que for vendável vale a pena ser vendido, e portanto é bom
(HOBSBAWM, 2004, p. 184).
Em todo caso, como houve o surgimento de uma demanda de gravações de
discos de axé, quisemos saber de Gerson Silva como se desenrolava aquele
trabalho no estúdio de gravação, como ocorriam os contratos etc. Ele nos deu o
seguinte relato:
Na verdade uma das primeiras gravações que foram feitas de axé
não foram feitas por músicos baianos. O primeiro cara a gravar um
samba-reggae foi Ramiro Musoto. Ele que gravou, ele que tinha uma
visão super aberta do que tava acontecendo. Era um cara que tinha
uma formação super diferenciada, era músico de orquestra lá na
Argentina, veio pra cá, percebeu o que tava rolando nas ruas, foi
morar no pelourinho pra aprender aquela música que tava gerando o
movimento... E nisso ele começou a pesquisar, formatar as células...
E naquela época não existia um mercado como hoje. O cara ia
gravar por cinqüenta reais e achava ótimo... Hoje não... Cada projeto
tem um valor, uma quantidade de grana. Mas na década de oitenta
não se fala muito... Na década de oitenta, as pessoas que estavam
na WR... Wesley Rangel que chamou as pessoas pra gravarem suas
coisas... Foi assim com Sarajane, o próprio Luiz Caldas... E Isso aí
até hoje vem acontecendo assim.
Note-se que no início daquele mercado, a dificuldade em encontrar mãode-obra especializada, conforme os padrões ‘’novos’’ de exigência da produção
industrial, foi um fato. Destacamos anteriormente, o papel pioneiro do empresário
Wesley Rangel. Os elementos formadores do axé-music vieram de pessoas pobres.
E como acontece com outras manifestações artísticas de pessoas pobres, aqueles
elementos foram ‘’descobertos’’ por uma empresa particular — o estúdio WR—,
inicialmente de pequena escala.
Se o empresário Wesley Rangel tinha ou não uma mentalidade progressista,
no sentido de se sentir partícipe daquela produção popular nascente, havendo um
engajamento de sua parte etc., isto não nos interessa. Talvez fosse possível tal
posicionamento. Todavia, tais gravações foram proporcionadas pelo empresário com
126
o fito de lucro. A percepção inicial do empresário, como a de qualquer outro, foi
exclusivamente esta.
Outra coisa que se nota, no início da formação daquele mercado, é o nível de
exploração da mão-de-obra. É possível que a exploração, naquele momento, fosse
sentida de modo mais acentuado pelos músicos, se comparada ao nível atual. Como
disse Gerson Silva, o mercado cresceu mais do que a música nos tempos atuais.
Uma divisão de trabalho mais complexa, um maior volume de capital, enfim, tudo
isto gerou mudanças consideráveis.
Como houve uma necessidade de mão-de-obra especializada para as
gravações dos primeiros discos de axé-music, alguns critérios foram adotados pela
indústria que se formava em torno da Bahia. Como em toda indústria de produção
de massa, os produtos de longa duração e padronizados eram os ideais. O que fazia
um músico ser capaz de gravar, de participar dos trabalhos das principais
gravadoras que se interessaram, na época, pelo produto axé? Perguntamos isto ao
baixista Luciano Calazans:
Bom, o primeiro critério adotado para um músico gravar era ele ter
um mínimo de técnica no instrumento... Pra tá preparado pra o que o
arranjador fosse fazer... Experiência, já uma experiência bem
acentuada... Basicamente isso, experiência e técnica... Leitura
musical... Porque o que as gravadoras queriam, e os produtores
também, era gastar menos tempo de estúdio, então por isso se
chamava os músicos especializados em estúdio... Houve uma época
que as gravadoras davam um prazo aos produtores pra entregar o
trabalho... Então como eles tinham esse prazo, daí chamavam
pessoas mais aptas pra que o trabalho fosse concebido de forma
mais rápida e eficaz.
Aquela música baiana, então chamada de axé-music, ganhava as mesmas
formas de produção da indústria pop mundial. Observa-se que passou a haver uma
complexa divisão do trabalho para a produção rápida e ‘’eficaz’’. Uma produção da
música em linha de montagem.
Em geral, o compositor da canção que seria gravada entregava aquela para o
arranjador, que era de fato quem decidia como a música iria soar; o arranjador
escolhia o seu ‘’time’’ de músicos para realizar a gravação; o produtor mantinha a
gravadora informada de todo o processo; em seguida, a gravação passava para as
mãos de algum ‘’figurão’’ — um diretor artístico de alguma empresa de discos— da
gravadora interessada, cabia a ele escolher o veículo padrão adequado para ela.
127
O visual do cantor ou da cantora era minuciosamente trabalhado. A
interpretação do cantor ou cantora da letra da música que seria gravada tinha de
estar em perfeita ‘’harmonia’’ com o público alvo, com aquilo que o público buscava
nos espetáculos que ocorriam na Bahia: a ‘’felicidade’’, praia, sol etc. Passou a
haver uma produção mecânica, construída em cima de fórmulas. A partir da década
de 1990, aquele mundo industrial se acentuou sobremodo.
Os cantores e cantoras contratados começaram a ganhar um visual
escandaloso. A canção de axé tinha de ser interpretada como se o cantor
‘’acreditasse nela’’. Na complexa divisão do trabalho que foi se desenrolando, até
então inexistente em fins da década de 1970, esquecemos de mencionar o trabalho
crucial dos supervisores de gravação, os engenheiros de som e os editores — de
fitas de rolo no início.
Conversando com Gerson Silva sobre as contratações dos músicos para as
gravações que foram feitas no início da indústria, ele tocou na questão das fitas de
rolo. Ele argumentou o seguinte:
Na verdade, o que acontecia era o seguinte... O tempo de estúdio
naquela época era muito caro... As fitas de rolo que compravam
naquela época... Era muito caro você desperdiçar uma fita daquela
com um músico que não tinha preparação pra tá num estúdio... O
que fazia com que o músico fosse chamado era a qualidade técnica
de leitura musical... O músico na podia ficar o dia todo gravando uma
música... Porque muitas vezes, as bandas que fizeram sucesso na
época, os músicos não gravavam os discos... Os discos eram
gravados por outros músicos mais especializados.
O músico especializado dava ‘’respostas’’ rápidas para a lógica da produção
em série e em larga escala. Com o fenômeno do axé, os músicos de estúdio
gravavam, em média, cerca de 12 a 30 discos anualmente, dependendo, claro, das
variações do mercado e da reputação do profissional. De todo modo, foi naquela
indústria emergente do axé que muitos músicos passaram a ganhar a vida.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nestas considerações finais, julgamos ser oportuno tecermos alguns
comentários
sobre
algumas
possíveis
contribuições
da
pesquisa
que
foi
empreendida. Uma contribuição relevante para a História foi a tentativa de
apresentar uma sistematização, em um tempo e espaço históricos específicos, das
diversas dimensões do mundo vivido dos músicos de Salvador.
Esta pesquisa se preocupou em explorar a interface entre as mudanças
ocorridas no Carnaval, de um lado, e as implicações de tais mudanças em
determinados músicos atuantes naquele espaço, de outro. Não houve a intenção de
retomar certos debates sobre o Carnaval, como o significado das letras das músicas
ditas carnavalescas, se há ou não uma ‘’baianidade’’ no Carnaval de Salvador etc.
Tentou-se reconstruir um retrato bastante apurado dos músicos. Uma das
idéias básicas que nos moveram foi a de tentar mostrar para a sociedade baiana o
que estava por baixo dos palcos, dos espetáculos nos quais os músicos estavam
inseridos. Buscou-se apresentar os músicos no quadro da sua economia palpável de
sobrevivência.
Outra contribuição que destacamos foi a exposição feita do fazer-se daquela
classe trabalhadora. Por conta das instabilidades econômicas que acompanharam,
com freqüência, a profissão, alguns conteúdos representacionais foram imputados
naqueles trabalhadores. Se estivessem trabalhando com os ‘’grandes artistas
famosos’’, haveriam de ter, necessariamente, uma vida socioeconômica privilegiada.
Se estivessem trabalhando nos ‘’circuitos inferiores do mercado’’, não passavam de
‘’aventureiros’’.
Trouxemos os meandros das duas situações. Outra contribuição dada é a que
diz respeito à relação que os músicos mantiveram com o mundo do espetáculo
nascente no Carnaval de Salvador. Uma reverberação de ordem prática nos
músicos, proporcionada pelo jogo do espetáculo, foi o fascínio daqueles
profissionais com o mundo da fama.
Evidências importantes, as quais trazem uma relação com o fascínio dos
músicos, não entraram no texto. Apenas nos demos conta do conteúdo importante
de algumas fontes, com as quais fomos um pouco negligentes, ao término do texto.
Fontes que poderiam ter acrescentado mais à discussão empreendida.
129
Aquele fascínio gerou consensos estranhos entre os músicos e o espetáculo.
Muitos músicos chegaram a desvalorizar a sua mão-de-obra em troca do glamour
midiático. A mídia começou a dar importância ao Carnaval de Salvador na segunda
metade da década de 1980. Em troca da difusão de sua imagem, chegavam a
realizar shows com ‘’artistas famosos’’ abaixo da média de cachê estabelecida pelo
mercado carnavalesco.
O espetáculo foi um ingrediente que contribuiu para uma relativa passividade
dos músicos em relação ao interesses poderosos do ‘’mundo de mercado’’ nascente
no Carnaval. Basicamente, no momento em que muitos agentes privados se
apropriavam do Carnaval, fazendo assim aparecer alguns tipos de conflitos de
classe, os músicos se preocuparam, em medida significativa, em ficarem famosos.
Ao mesmo tempo em que havia aquela aquiescência estranha, havia também
insatisfações com algumas mudanças ocorridas com o espaço de trabalho
carnavalesco. Outra contribuição nossa tem relação justamente com estas
insatisfações. Expomos o conteúdo daquelas insatisfações; apresentamos a relação
da organização representativa da categoria com o Estado.
Uma relação que foi, em muitos momentos, conflituosa. Houve protestos que
foram encabeçados pelo sindicato dos músicos. E os músicos acompanharam a sua
instituição representativa em muitos momentos. Entretanto, não havia da parte
daqueles profissionais um sentimento de pertença àquela instituição.
É bom salientar, a partir daqui, que este trabalho não quis ‘’inventar a roda’’.
O que buscamos nesta investigação foi a compreensão. Isto mesmo. Compreender
um processo que se realiza até hoje. Ele está em pleno vigor histórico em tempos
atuais. Entender um processo histórico em suas especificidades exige evidências.
Saber vagamente como transcorreu um dado movimento na história é
possível para qualquer observador atento. Mas dialogar exaustivamente com um
conjunto de evidências históricas, estreitando os laços com as mesmas,
interrogando-as, colocando-as contra parede, sistematizando-as, enfim, tudo isto, é
trabalho do historiador de ofício. O olhar panorâmico do historiador para o passado
lhe permite uma espécie de sobrevôo naquele.
Foi isso também que fizemos aqui. O sobrevôo que realizamos buscou
encontrar carne humana. Cheiro de carne humana. Músicos que estavam se
movimentando num período de mudanças significativas em um dos principais
130
espaços de trabalho daquela categoria de trabalhadores: o Carnaval. Talvez seja
esta uma das principais contribuições da pesquisa.
É um tanto leviano da parte daqueles que não vivenciaram, enquanto
músicos, aquelas mudanças, suporem coisas vagas a partir da ‘’superfície da
história’’, da qual geralmente extraem determinadas sentenças. Só fomos capazes
de compreender satisfatoriamente as reverberações daquele arquétipo carnavalesco
nos músicos da cidade a partir deles, com eles.
Quando não conhecemos um músico, dificilmente sabemos como ele vive
realmente. As suas origens sociais, os papéis que eles representam para a
comunidade do bairro etc., estas questões passam despercebidas quando os
músicos são vistos apenas a partir do prisma ‘’focalista’’ do show business.
Expusemos os músicos nesta pesquisa fora do espetáculo.
Outra questão da pesquisa foi a reflexão posta sobre a complexa divisão do
trabalho que se desenvolveu no Carnaval. De muitas implicações que houve por
conta daquela nova divisão do trabalho, destacamos a que diz respeito às funções
que os cantores e cantoras carnavalescos foram adquirindo.
Além do abismo econômico que passou a haver entre cantores e músicosacompanhantes, os cantores e cantoras reuniram neles funções como a de garoto
ou garota propaganda dos seus respectivos patrocinadores; produtores de eventos,
os quais eram realizados a partir das empresas daqueles cantores; donos e
distribuidores de bandas emergentes no mercado musical local, entre outras funções
que não somente a de cantar.
Um
dado
também
importante,
e
que
devemos
considerar,
foi
o
desenvolvimento do gênero chamado axé-music. Trouxemos aqui os critérios de
contratação dos músicos. Como os músicos eram contratados para gravarem os
discos de axé. A partir da explosão da axé-music, muitos músicos passaram a
gravitar os estúdios de gravação.
Muitos músicos ganharam a vida com aquele novo mercado de gravações.
Passou a haver o músico especializado em estúdio. Contudo, a exploração da mãode-obra, algo que apresentamos nesta pesquisa, continuou a existir naquele novo
mercado – embora alguns músicos habilidosos tenham conseguido ganhar uma
soma importante de dinheiro.
Mas, de todo modo, as principais fontes de emprego para os músicos que
trabalhavam no Carnaval, no período que foi investigado, eram: pequenos bailes,
131
shows em eventos públicos, bares, casamentos etc. Destacou-se que o Carnaval
era um dos principais espaços, se não o principal, de trabalho para o músico obter
ganhos materiais significativos.
Outra consideração nossa, diz respeito à codificação que fizemos de vários
aspectos da profissão do musicista do Carnaval. Encontramos muitos trabalhos
sobre o Carnaval enquanto manifestação cultural relevante na Bahia. Mas não
encontramos o músico. Quando ele aparece, aparece de pano de fundo. O que
gerou
dificuldades
na
investigação.
Buscamos
pesquisas
realizadas
por
historiadores, mas não encontramos uma sequer que discutisse os músicos.
É necessário argumentar que algumas coisas ficaram por serem feitas.
Investigador algum consegue dar conta de tudo que aparece no objeto estudado. O
estudo que fizemos é parcial. Foi o primeiro momento de uma busca. Há coisas que
devem ser amadurecidas em estudos futuros. Pretendemos aprofundar, em outro
momento, alguns temas que surgiram ao longo da pesquisa.
De todo modo, algumas considerações ainda cabem. Alguns músicos
entrevistados afirmaram que os profissionais que desejavam atuar nos carnavais de
bairro, disputando uma vaga no concurso promovido pelo sindicato, eram, em
medida relevante, provenientes de situações econômicas bastante limitadas. Vimos
que as condições de trabalho do circuito dos bairros não eram boas. Os músicos
entrevistados foram assertivos quanto a isto.
O circuito hegemônico desbancou os carnavais de bairro. A maior parte das
bandas ‘’famosas’’ atuava no circuito hegemônico. Era aquele circuito que muitos
músicos buscavam. O estúdio WR lançou quase todos os discos dos grupos
musicais famosos que atuavam naquele circuito.
Além do consumo das bandas através do Carnaval, através das vendas das
fantasias dos blocos — as quais se tornaram extremamente caras a partir da
segunda metade da década de 1990—, o consumidor poderia obter também as
bandas em forma de discos.
Assim, o estúdio WR reproduzia o consumo daqueles grupos. Havia uma
simbiose na qual as bandas famosas e o estúdio saiam lucrando. Do ponto de vista
do músico, o ‘’boom’’ das bandas de axé foi visto de diversas formas. Para alguns
músicos, tocar com uma banda famosa e aparecer nos espaços midiáticos era mais
do que uma realização profissional, era a chance de ficarem famosos. Para outros,
era apenas uma boa oportunidade de ganhar dinheiro.
132
No início da produção do axé-music, as estruturas de um estúdio de
gravação eram modestas. Com o passar dos anos, o volume de capital gerado pelo
estilo musical proporcionou a construção de estúdios de última geração. Segundo os
músicos, as produtoras de axé foram responsáveis pelo surgimento das bandasempresas.
Inicialmente, as bandas eram formadas por amigos de longas datas.
Entretanto, como foi possível para os cantores e cantoras acumularem em demasia,
eles acabavam se transformando em empresários do grupo. Abriam as suas
produtoras e se utilizavam da marca da banda. Naquele momento, os outros
músicos se tornavam funcionários.
Apesar
disso,
o
conteúdo
inicial
de
banda
permanecia.
Mas
o
desenvolvimento da indústria cultural da Bahia mudou radicalmente o cotidiano dos
músicos da cidade. Os músicos que estiveram no circuito hegemônico passaram a
fazer viagens internacionais, freqüentaram bons hotéis, fizeram um périplo pelo
Brasil. Alguns dos músicos entrevistados argumentaram isto.
Alguns profissionais chegavam a realizar 20 shows em um mês. Entretanto,
notou-se que não necessariamente a alta quantidade de shows correspondia a uma
soma significativa de dinheiro. O caso dos percussionistas do Olodum, o qual foi
posto neste trabalho, é emblemático quanto a esta situação de descompasso. De
qualquer maneira, as estruturas dos palcos nos quais as bandas de axé se
apresentavam, bem como as estruturas dos trios elétricos, foram se desenvolvendo
rapidamente.
O repertório dos grupos musicais também se transformou. As letras com um
apelo significativamente político dos grupos afro foram dissolvidas. O novo repertório
prezava por refrões fáceis e construídos em cima de fórmulas. Em um curto espaço
de tempo a indústria carnavalesca adquiriu os mesmo padrões da indústria pop
mundial.
Finalmente, em face do declínio atual por que vem passando a indústria
cultural baiana, acreditamos que um novo horizonte se abre para os músicos. Os
músicos são chamados a pensarem os possíveis caminhos musicais que a Bahia
pode tomar. Fabricar uma fórmula cultural é uma verdadeira realização para aqueles
que o fazem, porém até mesmo o maior entusiasta de tal fórmula se cansa da
mesmice. Novas responsabilidades surgem para os músicos na contemporaneidade
musical da Bahia.
133
FONTES
Depoimentos Orais
Helder Mello de Araújo. Entrevista concedida ao autor, em junho de 2009, em sala
de aula, 40 minutos.
Ivan Bastos. Entrevista concedida ao autor, em março de 2010, em sua residência,
45 minutos.
Luciano Calazans. Entrevista concedida ao autor, em março de 2010, em sua
residência, 90 minutos.
Nikolaus Hatzinikolaou. Entrevista concedida ao autor, em junho de 2009, em sua
residência, 60 minutos.
Ivan Huol. Entrevista concedida ao autor, em março de 2010, em sua residência,
105 minutos.
Jorge Patrício Solovera Salas. Entrevista concedida ao autor, em junho de 2009, em
estúdio de gravação, 60 minutos.
Gerson Silva. Entrevista concedida ao autor, em junho de 2009, em estúdio de
gravação, 70 minutos.
Periódicos Locais
A fila andou. Revista semanal do jornal A Tarde, Salvador, 30 de novembro de
2008, p. 28-35.
Associação Nacional de Autores e Compositores faz divulgação na Bahia. A Tarde,
Salvador, 26 de janeiro de 1981, p.3.
Ato de força. Salvador, A Tarde, 30 de dezembro de 1993.
134
Baile da ‘Coruja de Ouro’ baterá recorde de foliões no Fantoches. A Tarde, 06 de
fevereiro de 1981, p. 7.
Barracas de ‘’som’’. A Tarde, Salvador, 03 de janeiro de 1981.
Cachê dos músicos no carnaval será decidido na terça-feira. Diário Oficial do
Município, Salvador, 03 de dez. 1993 p.1.
Carnaval e festa de Largo. A Tarde, 25 de janeiro de 1982.
Criador do trio adverte: passarelas param Carnaval da Bahia. A Tarde, quinta-feira,
7 de janeiro de 1982.
Depois de promover o vandalismo, sindicato da categoria perdeu condições de
negociar. Jornal da Bahia, Salvador, 30 de dez. de 1993.
Desemprego atinge 90% dos músicos da Bahia. A Tarde, Salvador, 08 de janeiro de
1982.
Dissídio em favor dos músicos. A Tarde, Salvador, 03 de janeiro de 1984
Dólar musical. Jornal da Bahia, Salvador, dezembro de 1993.
Indústria musical respira em 93. A Tarde, Salvador, 1993.
Lídice considera invasão da prefeitura violência contra a democracia. Diário Oficial
do Município, Salvador, 30 de dezembro de 1993.
Lídice desperta interesse de empresários com plano do carnaval. Diário Oficial do
Município, Salvador, 16 de dez. 1993 p.1.
Músicos fazem barulho na praça. Tribuna da Bahia, Salvador, 30 de dez. 1993. 2º
Caderno p. 1.
Músicos fazem quebra-quebra na prefeitura. Correio da Bahia, Salvador, 30 de dez.
1993. p.9.
Músicos invadem prefeitura para ganhar mais no carnaval. Jornal da Bahia,
Salvador, 30 de dez. 1993. p. 2.
135
Músicos pedem cachê e ganham socos e tapas. Bahia Hoje, Salvador, 30 de
dez.1993. p. 3.
Músicos querem transparência com as verbas do carnaval. SindiMúsicos, Salvador,
1993.
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