O conceito de vida independente e o papel da universidade na inclusão
das pessoas com deficiência
Por Ana Maria Morales Crespo
Presidente do Centro de Vida Independente Araci Nallin, jornalista
e mestranda em Jornalismo na ECA/USP
Quando eventualmente visitava a USP, antes de iniciar o meu mestrado em
Jornalismo, na Escola de Comunicações e Artes, na USP, eu pensava:
"Estudar aqui deve ser como estar no paraíso". E essa idéia não era só pelo
prestígio por fazer parte da mais importante universidade do País.
Para mim, o câmpus da USP simbolizava o Éden porque era (ou parecia
ser) perfeito para mim, a resposta às minhas preces: plano e com
edificações, na sua maioria, térreas. Claro que esse ponto de vista muito
particular tinha origem na minha história de estudante com deficiência,
marcada, desde sempre, pela exigência de superação de todos os tipos de
obstáculos, tais como subir vários lances de escadas, trilhar terrenos
esburacados e tentar contornar poças d'água. Todos os dias.
Entretanto, assim que comecei a freqüentar as disciplinas para a pósgraduação, comecei a perceber que o terreno não era tão plano quanto
parecia e que havia mais edifícios cheios de escadas do que eu supunha.
A experiência inteiramente nova de estar fazendo mestrado (depois de ter
"fugido da escola" há tanto tempo), e estar freqüentando aulas num câmpus
tão vasto, fez com que a sensação de paraíso fosse substituída pela
impressão angustiante de me transportar, subitamente, duas vezes por
semana, a um país estrangeiro: o território precisava ser desbravado, eu
não falava a língua, não conhecia os códigos e os nativos me pareciam
hostis.
Quando esse estranhamento foi diminuindo, percebi que não estava no
paraíso, nem no inferno. Simplesmente estava numa universidade no Brasil,
ou seja, embora fosse a mais importante instituição de ensino superior e
estivesse, por causa ou apesar disso, minimamente informada sobre a
questão, a USP não estava (e não está) preparada para receber
adequadamente estudantes com deficiência.
Embora, aos poucos, tenha aprendido a desvendar os caminhos
geográficos do câmpus e os tortuosos descaminhos da burocracia, as
incontáveis pequenas e grandes armadilhas representadas por buracos,
degraus, pisos irregulares, escadas, portas estreitas permanecem até hoje
como desafios que eu e todos os outros estudantes com deficiência são
obrigados a enfrentar.
É verdade que existem algumas raras guias rebaixadas, mas estão mal
localizadas e em mal estado de conservação. Há sanitários para cadeiras
de rodas. Todavia, na maioria deles, uma vez dentro com a cadeira de
rodas, não há como fechar a porta. Os raros estacionamentos reservados
não têm as dimensões corretas, quase todos estão mal localizados,
precariamente sinalizados e geralmente estão ocupados por veículos de
não deficientes.
De acordo com o conceito de vida independente, é fundamental para as
pessoas com deficiência a adoção de medidas que garantam a locomoção
sem barreiras, através do ambiente adequadamente planejado,
devidamente conservado e amplamente sinalizado. Isto é o mínimo que se
deseja e espera.
No entanto, mesmo com as melhores condições de acessibilidade, às
vezes, as pessoas deficientes - assim como ocorre com todas as pessoas precisam de ajuda para desempenhar algumas atividades.
Pelo conceito de vida independente, fazer as coisas por si mesmo é muito
bom e desejável, mas o mais importante é poder decidir quando, como,
para quê e para quem pedir ajuda e, de fato, obtê-la.
Não há nada de errado em precisar, pedir e aceitar aquela ajuda que pode
significar uma economia de tempo e energia, que poderá ser usada em
momentos de estudos ou de lazer.
Para contornar inúmeros obstáculos à realização de algumas das minhas
obrigações estudantis - como, por exemplo, fazer minha matrícula - ,
felizmente pude contar com a boa vontade e o bom senso de muitas
pessoas. (Dessa forma, descobri, para meu alívio, que muitos dos "nativos"
eram bem amigáveis).
Numa instituição de ensino, calçadas regulares e bem-conservadas; guias
adequadamente rebaixadas; rampas suaves; elevadores que funcionem;
portas e corredores mais largos; sanitários cujas portas possam ser
fechadas quando se está dentro com uma para cadeiras de rodas;
sinalização clara e visível; estacionamentos adequados próximos às
entradas principais, sem desnível, que permitam abrir totalmente as portas
dos veículos, demarcados e reservados para pessoas deficientes; além de
mobiliário urbano (telefones, caixas de correio), móveis (mesas de
restaurantes e bibliotecas), e apartamentos estudantis acessíveis às
pessoas deficientes, sem dúvida, são coisas imprescindíveis. Mas não são
tudo.
Há também a necessidade de outros serviços que podem e devem ser
oferecidos por um escritório com pessoal treinado para dar suporte às
pessoas deficientes na realização de atividades que vão desde a realização
da matricula até a consulta em bibliotecas, passando por ledores para
cegos e assistentes para transcrever aulas gravadas, oficina para pequenos
reparos em cadeira de rodas e outros equipamentos, atendentes pessoais
e, principalmente, transporte acessível adequado para locomoção dentro do
câmpus, quando este for vasto.
Além disso, cabe à universidade oferecer também telefones para surdos,
computadores com programas adequados para uso de pessoas cegas,
impressora em braile e demais equipamentos que facilitem as atividades
acadêmicas para os portadores de deficiência.
A educação é fundamental para o desenvolvimento intelectual e pessoal de
todos os cidadãos. Em se tratando de pessoas com deficiência, ela adquire
um caráter crucial para sua inserção na sociedade.
Especialmente, uma universidade como a USP, devido à sua importância
no panorama nacional, dispondo de todos os meios para obter a melhor
assessoria na área, pode e deveria estar na vanguarda também em relação
às questões da pessoa deficiente.
A USP pode e deveria tornar-se um paradigma a ser seguido por todas as
demais instituições de ensino superior. É seu dever, como a mais
conceituada universidade pública brasileira, demonstrar como uma
universidade realmente moderna e antenada com seu tempo deve assumir
seu papel social decisivo para a inclusão dos estudantes com necessidades
especificas. E é tão lamentável quanto incompreensível que isto ainda não
esteja acontecendo.
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